A escola de Jules Ferry: um mito que perdura 9788573352443

A obra explicita os interesses por trás da instituição da escola burguesa (calcada na disciplina, decoreba, no mérito, n

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A escola de Jules Ferry: um mito que perdura
 9788573352443

Table of contents :
Ontem... /17
Capítulo 1
A nostalgia é assim mesmo... / 25
A escola de Jules Ferry / 25
Capítulo 2
Escola para o povo? Escola do povo? / 43
A produção do saber / 64
A laicidade / 68
O patriotismo / 72
A gratuidade / 86
O ruralismo / 88
Capítulo 3
“O que é feito de vocês, homens, mulheres...” / 97
A disciplina / 102
A decoreba / 106
O mérito / 111
O fazer de conta / 116
O sintetismo / 122
Capítulo 4
“Os dias passam...” / 137
...e amanhã? / 147

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A Escola de Jules Ferry Um mito que perdura Jean Foucambert

Tradução de Lúcia Cherem e Nathalie Dessartre

UFPR

Jean Foucambert foi professor primário de uma escola rural no começo Je sua carreira. Em seguida, inspetor da educaçâo

nacional e responsável pelo

Serviço de Pesquisa do INRP (Instituto Nacional de Pesquisa Pedagógica) na França. Atualmente é coordenador

pedagógico da AFL (Associação

Francesa pela Leitura), editor da Revista Les Actes de Lecture e

também autor ou inspirador de obras e de programas de computador para leitura e escrita.

Reitor Zaki Akel Sobrinho

Vice-Reitor Rogério Mulinari

Diretor da Editora UFPR Gilberto de Castro

Conselho Editorial Alexander Welker Biondo Carlos Alberto Ubirajara Gontarski Ida Chapaval Pimentel Jose Borges Neto Luiz Edson Fachin Maria de Fatima Mantovani Maria Rita de Assis Cesar Mario Antonio Navarro da Silva Quintino Dalmolin Sérgio Luiz Meister Berleze Sylvio Fausto Gil Filho Ulf Gregor Baranow

Jean Foucambert

Tradução de Lúcia Cherem e Nathalie Dessartre

© Jean Foucambert, L'École de Jules Ferry: Un mythe qui a la vie dure Réédition/AFL/2004

Coordenação editorial Daniele Soares Carneiro

Revisão Maria Cristina Perigo

Revisão final das Tradutoras

Projeto gráfico, capa e editoração eletrônica Rachel Cristina Pavim

Imagem da capa École Communale du Petil-Ivry localizada em Ivry-sur-Seine (França). Postal de uma escola construída nos tempos em que Jules Ferry foi Ministro da Instrução Pública da França. Acervo de Marcus Levy Bencostta. Série Pesquisa, n. 163

Coordenação de Processos Técnicos. Sistema de Bibliotecas. UFPR F762e

Foucambcrt, Jean A escola de Jules Ferry: um mito que perdura / Jean Foucambert; tradução de Lúcia Cherem e Nathalie Dessartrc - Curitiba: Ed. UFPR, 2010. 150p.: il. [algumas color.]; 22 cm. (Série Pesquisa; n. 163). Tradução de: L'école de Jules Ferry: un mythe qui a la vie dure. ISBN 978-85-7335-244-3

1. Ferry, Jules, 1832-1893 - Visão política c social. 2. Educação Finalidades c objetivos - França. I. Título. II. Série.

CDD: 370.1 Arthur Leilis Junior - CRB 9/1548

ISBN 978-85-7335-244-3 Ref. 573

Direitos reservados à Editora UFPR Rua João Negrão, 280, 2.° andar, Centro Tel.: (41) 3360-7489/Fax: (41)3360-7486 www.editora.ufpr.br [email protected] Caixa Postal 17.309 80010-200 - Curitiba - Paraná - Brasil

2010

Apresentação

“A Escola de Jules Ferry - um mito que perdura” é o segun­

do livro de Jean Foucambert publicado pela Editora da UFPR. Em 2008, foi lançado Modos de ser leitor, um clássico sobre o ensino da

leitura. O autor, atualmente pesquisador da Associação Francesa pela Leitura, é parceiro, ao lado de outros membros dessa associa­

ção, da Universidade Federal do Paraná no projeto de extensão Ação Integrada para o Letramento. Jean Foucambert participou de oficinas e de debates sobre leitura nesses encontros que reúnem professores

das Secretarias da Educação do Estado e do Município de Curitiba, professores universitários e estudantes para discutir a importância de se aprender a 1er um texto e não apenas a decodificá-lo, salientando

ainda a necessidade de se realizar práticas de leitura na sociedade,

envolvendo os alunos do ensino público.

Em A Escola de Jules Ferry, o autor se debruça sobre as cir­ cunstâncias do nascimento da escola republicana na França do sé­

culo XIX, mostrando os valores sobre os quais ela se baseou e como muitas vezes eles continuam a permear as práticas escolares sem que

se tenha consciência clara disso. A partir do conhecimento dessa história, pode-se estabe­

lecer um paralelo com a da educação brasileira. Apesar de a referên­

cia a Jules Ferry parecer distante no tempo e no espaço, o texto de Foucambert dialoga com o nosso presente, uma vez que discute as

relações de poder nos processos relacionados à educação e às impo­ sições que podem passar despercebidas em tempos de confrontações

ideológicas mais sutis. Foucambert nos alerta, ainda, que, para que a escola cum­ pra finalmente seu papel, é fundamental que os professores saibam

que todo gesto consciente no ensino, por mais simples que seja, terá um peso e fará diferença. É no chão da escola, com o apoio de ou­ tros setores da sociedade, que se pode fazer as mudanças necessárias.

Mudanças essas que permitirão ao aluno entender no futuro como se produz o conhecimento e não apenas ver como ele se transmite:

“A pedagogia contribui em reforçar um sistema desigual, sobretudo

quando visa sucessos individuais ou, ao contrário, ela participa da sua transformação quando permite compreender seu funcionamen­

to. Pois só se compreende o que se transforma...”

Esperando que o livro anime nossas ações conjuntas e que nos ajude a lembrar do verdadeiro papel da pedagogia, recebam esta tradução. Queremos agradecer ainda as contribuições dos colegas Suzete de Paula Bornatto, Eduardo Nadalin e, também, a ajuda de João Wanderlei Geraldi e Marcus Levy Bencostta. E à Editora da UFPR por mais uma vez apoiar o nosso projeto1.

Lúcia Cherem e Nathalie Dessartre

1

N. T. Nossas opções em relação à colocação pronominal, regência e concor­

dância verbais procuram seguir o padrão contemporâneo do português brasileiro.

Prefácio (da edição de 2004)

Façamos a aposta de que os anos 80 carregavam ainda cer­

to otimismo, já que se supunha, nas primeiras páginas deste livro,

que a escola de Jules Ferry chegava ao fim, abalada por uma pesquisa pedagógica preocupada em responder às ambições democráticas. É

surpreendente, não? Por isso a ficção das últimas páginas. Nada se­ guraria o progresso...

Como se esperava da Restauração, esse progresso foi in­

terrompido com a sustentação de nossos pensadores midiáticos que julgam a sua capacidade de resignação, no que se refere aos outros, a

partir do que consideram inaceitável para si mesmos, capacidade essa

bastante exemplar dos modos de pensamento que a escola é intimada a transmitir às novas gerações. A ideia de que a desigualdade tem em

primeiro lugar causas econômicas e que as ferramentas intelectuais não saberiam se dissociar da capacidade de pensá-las e de reduzi-las pertence ao passado. A prova de que essas “incômodas” realidades coletivas não estariam ao alcance de nenhum saber, exceto daquele

que permite escapar dessas realidades individualmente, teria então sido evidenciada. A reivindicação de justiça em matéria de educação

é de agora em diante reduzida à igualdade das oportunidades: reem-

baralhar as cartas para cada geração a fim de que os novos pobres,

os novos ricos, os novos dominantes, os novos explorados, os novos

empanturrados e os novos famintos devem unicamente sua condição

apenas ao mérito. Cabe à escola operar a distribuição igualitária do saber que permite o acesso aos diferentes degraus da desigualdade

social; e de forma alguma participar do questionamento daquilo que cria a desigualdade.

Assim, o saber seria o bem mais urgente a ser compartilha­

do a fim de oferecer a todos chances iguais de se ter acesso aos bens que não o são. Por que esse desvio? Não seria mais fácil trabalhar

para compartilhar entre todos os homens as riquezas produzidas por

todos os homens, ao invés de fracassar ao compartilhar a única que pretende atribuir o direito de gozar legitimamente da desigualdade?

Veriamos realmente então se o saber continuaria a ser recusado aos pobres assim que eles deixassem de ser pobres! Principalmente porque esse saber mudaria seguramente de

natureza. Ele só será um bem comum se ele for produzido por todos na perspectiva do Bem comum, na luta contra a raridade de todas as

riquezas, portanto também contra a raridade do saber. A igualdade diante das riquezas não depende na realidade de seu modo de distri­

buição, mas do seu modo de produção, das razões de produzi-las, se para “elevar” e satisfazer as necessidades de todos ou se para criar o lucro de que uma minoria se apodera. O que é consternador é o

quanto a consciência desses problemas se atenuou. Pensar, depois de

Freinet, que “a escola é filha e servidora do capitalismo” soa como algo em desuso em todos os lugares, exceto no Medef2 que, ao con­

siderar indelicado dizê-lo, cerca-se dos meios para calar esse pensamento.Também os professores, à imagem do corpo social, ignoram o essencial das lutas sociais do século XIX, quando foi criada a escola que desejava Jules Ferry; e numerosos são os que, sem encontrar a re-

2

N. T. Movimento das empresas francesas.

provação de seus vizinhos, nas manifestações da primavera de 20033,

fizeram apelo, contra as maquinações de um de seus herdeiros, ao

ministro fundador da escola tal como a conhecemos. Tudo se passa como se essa escola tivesse feito a Escola e

que fosse necessário de agora em diante escolher entre ela e a igno­ rância. Nunca se deixa de lhe atribuir os efeitos, individuais ou co­ letivos, ligados a todo dispositivo de instrução do povo, esquecendo

que a França era alfabetizada quando a escola “pública, laica e obri­ gatória” foi implantada. Dissimula-se que sua criação corresponde à vontade, politicamente alertada, de controlar o processo educativo,

retirando-o, certamente, das forças reacionárias e religiosas, reticen­ tes diante dos avanços da industrialização, mas sobretudo das classes

perigosas, que tinham sido vistas em ação pouco antes, durante o episódio da Comuna de Paris. O projeto não é instruir, mas “fechar a

era das revoluções”, ou seja, instruir desviando contra ele a instrução

que o povo reivindica para a sua emancipação. O Estado republica­ no, em comunhão com as monarquias europeias, se propõe a comba­ ter o internacionalismo, a anestesiar o corpo social e a acabar com o

espectro do comunismo. Trata-se de substituir o projeto de escola do

povo, que amadureceu no proletariado, por uma escola para o povo, a fim de "ensinar" a essas classes que lutam no cotidiano por uma outra ordem do mundo, por uma outra organização social e econô­

mica. E que não separam ainda a formação intelectual da abolição

do trabalho alienado.

Durante algumas décadas, ouviremos muitos militantes pe­ dagógicos, sindicais e políticos, fazer eco à observação de Robespier­

re, lamentando que o povo devesse ser ensinado por aqueles que têm interesse em enganá-los, “como se um homem de negócios fosse en-

3N. T. Greves dos professores quando o ministro da educação era Luc Ferry.

carregado de ensinar aritmética para aqueles que devem verificar as

suas contas”. Depois, a História será escrita pelos vencedores. E Jules Ferry celebrado como o inventor da instrução pública e o pai da úni-

ca escola possível. Certamente, em 120 anos, acontecerão tentativas de aprofundar a problemática da escola, tais como as Bolsas do Tra­ balho antes de 1914, os Companheiros da Universidade Nova depois da guerra de 1914, as batalhas pela Educação Física (principalmente com Demeny e Hébert contra o “esporte” e Coubertin), Freinet e o

Educador do proletariado, numerosas propostas da Educação Nova e dos movimentos de educação popular, as classes Monod4 na Libe­

ração, as passagens menos citadas do plano Langevin Wallon5, certas escolas experimentais do Instituto Nacional de Pesquisa Pedagógica

nos anos 70, hoje as pesquisas da Associação Francesa pela Leitura sobre o aprendizado linguístico da escrita etc. Além das especifica­

ções de seu campo de práticas, que não é o caso de se abordar aqui, vários traços identificam essas tentativas, principalmente o elo que elas reivindicam entre o processo educativo e a transformação das

relações sociais, o que as opõe explicitamente, ou não, à confiscação

desse processo pela escola de Jules Ferry e aos princípios organizacio­ nais e pedagógicos sobre os quais esta se mantém. Essas tentativas

se revelam, de fato, como o lugar privilegiado de onde emergem as

práticas inovadoras sem as quais todo sistema fica coagulado e se veem, consequentemente, diversamente integradas pelos “poderes”

4

N. T Gustave Monod, pioneiro na educação, propõe, após a Liberação, uma

nova corrente pedagógica que defendia o princípio de uma participação ativa dos indivíduos

na sua própria formação. Ele declara que a aprendizagem, ao invés de ser uma acumulação de

conhecimentos, deve ser um vetor de progresso geral do indivíduo. É o princípio dos métodos ativos. 5

N. T. O plano Langevin-Wallon é o nome dado ao projeto global de reforma

do ensino e do sistema educacional francês elaborado na época da Liberação, conforme o pro­

grama do governo do Conselho Nacional da Resistência (CNR), em 15 de março de 1944.

assim que eles pensam ter conseguido expurgá-los dos pressupostos

que as fundam. Mudar para que nada mude...

Encontramo-nos, assim, diante da implantação de novas

técnicas (e não dos procedimentos que as geraram), não só compartimentadas e privadas de coerência teórica, mas contraditórias em

relação às antigas (que não substituem) e, de um modo mais geral, impossíveis de serem interpretadas, para os próprios atores, na base das categorias do discurso dominante. Portanto, essas práticas des­

virtuadas, assim como opostos oprimidos, testemunham a existência

da luta e, de algum modo, constituem para ela pontos de apoio. Os

elementos da solução já atuam no problema. Porém, para isso, é pre­ ciso que o problema seja apresentado em relação às causas, e não

somente às consequências. Fato a que toda uma ideologia dominante

se opõe. Ideologia que está aqui para apresentar a ordem das coisas como o melhor dos mundos possíveis, legítimo, natural, universal,

invejável, necessário, fazendo suportar somente inadvertências, im­ ponderáveis, negligências, mal-entendidos ou abusos que a alternân­

cia do bipartidarismo triunfador não deixará de resolver amanhã. Somos a favor da reforma, sem dizer qual, pois nada mais parece justificar o questionamento da ordem das coisas, nem a descoberta

de qual luta e qual vencedor a constituíram! Certamente não os 100 000 mortos de fome todos os dias

no mundo, certamente não as surpreendentes desigualdades que caracterizamos hoje como legítimas, certamente não o desemprego

enquanto a metade da humanidade sente falta do necessário, a volta do religioso, as guerras; e nos países responsáveis por essa ordem do mundo, o medo que se tem dos pobres, a nostalgia de um ascen-

sor social que, entretanto, nunca desceu vazio à procura dos novos eleitos, a pretendida crise da escola, a da leitura, da cidadania, dos

“valores”... Nada na opinião pública, e menos ainda na escola, para

sequer deixar suspeitar que tudo isso possa estar relacionado. Se as­ sim fosse, “a gente saberia”; seria inclusive o saber mais urgente a ser compartilhado; a ensinar na escola. Esta última teria como missão

acompanhar cada um para que cuidasse da realidade coletivamente, como se fosse seu próprio negócio, e que participasse, dentro das suas

possibilidades, do progresso humano... Então, os temores de Robes­ pierre não tinham fundamento? Então, a escola que se impôs há 120 anos não era uma ferramenta da dominação de uma classe sobre a

outra? Portanto, não basta o tamanho de uma contradição para

que ela se transforme em escola do povo: continua sendo, para e nas lutas sociais, um desafio determinante, porém instável, entre eman­ cipação e domesticação. A afirmação oficial, peremptória e reiterada dos pressupostos pedagógicos que a ancoram na reprodução do que

existe, testemunha isso: a transformação do espaço e do tempo es­ colar em santuário contra a implicação em e com o corpo social, a

primazia e a justaposição das matérias contra o enfoque transversal

e o projeto, o fazer de conta contra a produção efetiva, a separação entre o trabalho intelectual e manual contra a teorização da prática e o ensino politécnico, a competição e a avaliação individual contra a

implicação no sucesso coletivo e a experiência do trabalho em grupo, a construção pelo acúmulo de elementos simples (enfoque sintético)

contra o enfoque analítico para entrar na complexidade funcional das linguagens, a injunção de voltar para os bons velhos métodos que

demonstraram serem bons contra a evidência de que nunca foram

abandonados e de que estão precisamente na origem do que fingimos deplorar etc. É testemunho disso, simultaneamente, a vontade de se desfazer de um aparelho de Estado que sustentou por muito tempo

a ilusão da neutralidade de uma escola para o povo e a respeito da

qual se pensa, diante do seu sucesso, que o papel ideológico pode ser hoje mais eficientemente tomado diretamente em mãos pelo “Mer­

cado”, assegurando ao mesmo tempo uma rentabilidade econômica

imediata. Mais do que nunca, a escola representa um desafio social

ambíguo: ameaçada, deve ser defendida, porém com a condição de voltar, no contexto atual, aos objetivos educativos que objetivamen­

te ela sempre desviou, e isso qualquer que seja a vontade de uma maioria dos seus atores. As modalidades pedagógicas mais cotidianas

participam da manutenção ou do questionamento das relações so­ ciais. E melhor saber disso! Por isso a necessidade de entender a sua

história. E de tomar partido, profissionalmente. 28 de maio de 2004

Sumário

Ontem... /17 Capítulo 1 A nostalgia é assim mesmo... / 25 A escola de Jules Ferry / 25

Capítulo 2 Escola para o povo? Escola do povo? / 43 A produção do saber / 64 A laicidade / 68 O patriotismo / 72 A gratuidade / 86 O ruralismo / 88

Capítulo 3 “O que é feito de vocês, homens, mulheres...” / 97 A disciplina / 102 A decoreba / 106 O mérito / 111 O fazer de conta / 116 O sintetismo / 122

Capítulo 4 “Os dias passam...” / 137 ...e amanhã? / 147

Nota Várias análises deste livro, em particular as do capítulo 2, são direta­ mente inspiradas no notável trabalho de Edwy Plenel, publicado pela Payot, com o título: L'École et l'État en France (“A Escola e o Estado na França”). Agradeço a ele profundamente a confiança que teve em mim, esperando que não veja muita simplificação nos meus empréstimos, desvirtuando o princípio dos seus propósitos. Desejo que, tal qual eles parecem, incitem o leitor a encontrar o original.

Ontem...

Germain Rouquié é o terceiro filho de uma família de pequenos

camponeses do Lot6 sem futuro na fazenda, mas se sente menos obrigado que seus irmãos a ajudar os pais no trabalho; estimulado pelo seu pro­

fessor primário, realizou, graças a uma bolsa, seus estudos em Cahors, onde vai fazer um exame para obter um diploma de conclusão do ensino

fundamental. Aconselhado por um primo, vai para Paris e trabalhando como funcionário do correio, assim como muitos jovens vindos dessas regiões muito pobres, toma-se professor primário em 1900.

Sensível ao socialismo, convencido de que o século XX, no seu início, veria triunfar o ideal da Revolução Francesa, pacifista, admirador

de Jaurès, compreendeu com raiva em uma certa noite de agosto de 1914

que a guerra era daquele momento em diante inevitável. Morre quinze meses depois na ocasião de uma dessas inumeráveis vitórias perdidas, logo após ter escrito as seguintes linhas à sua mulher...

6

N. T. Região do sudoeste da França.

A Escola de Jules Ferry: um mito que perdura

17

18

Jean foucambert

A Escola de Jules Ferry: um mito que perdura

19

20

Jean Foucambert

Setembro de 1915

Minha querida e amada Fanny

Talvez, seja a última carta que escrevo a você, um grande golpe está se armando e nós estamos nas pri­

meiras filas, marchamos na linha de frente. De um momento para outro estou fadado a de­

saparecer para sempre, minha querida mulher tão ama­ da. prepare-se para ter coragem e ainda mais coragem e

sempre coragem, você vai precisar tanto quanto eu. tal­ vez ainda mais, pois tudo vai cair nos seus ombros. Lembre-se. minha querida, das recomendações que fiz a você antes da minha partida, seja forte o sufi­

ciente para pensar em tudo, não se esqueça de nada que possa ser útil para o seu futuro. Quanto à pensão à qual você teria direito, em caso de acidente, seria necessário avaliar qual é a mais vantajosa: minha aposentadoria

21

como cabo ou como professor, pois faz. 15 dias que com­

pletei 15 anos de serviço. O tabelião Baguer será com certeza uma pessoa

útil nessas circunstâncias, não hesite em ir encontrá-lo. ele me prometeu fazer tudo o que estivesse ao seu alcance.

Quanto à nossa filha querida, não digo nada,

deixo você essa noite, estando certo de que você fará mais do que será possível fazer, fique certa, minha querida

mulher, que se eu cair, será com o rosto para frente, pela frança, e meu último pensamento será para você, minha

mulher que tanto amei, e também para minha querida Germaine.

Envio os 95 francos que me restam em dinheiro. Espero que aquele que juntar meus documentos faça che­

gar tudo até você. Jjdeus a todos

Beijo você e Germaine o mais ternamente pos­ sível.

G. fouquíé R.eg. 25 Infantaria Cabo 9.ª Companhia / Setor 14

22

Sua filha desenvolveu uma desconfiança inabalável sobre tudo

o que podia conduzir um socialista à União sagrada7. Pupila da nação e

boa aluna, entrou em 1922 na escola de normalistas de Rouen. Fala ain­ da com entusiasmo daqueles anos do seu despertar intelectual, cultural e social. Ao passo que seu pai tinha ensinado à “gente” como ele, ela, como

todos os seus condiscípulos, havia se deparado com preocupações, gostos, lazeres, modos de pensar que a tornavam já um pouco diferente da média dos seus futuros alunos. Numa área de mais de 800 quilômetros, tropas esgotadas, sem material, sem munição, enter­ ram-se nas trincheiras. Da região dos Vosges até o Mar do Norte, serão várias centenas de milhares a morrer nas tentativas de investidas infrutíferas.

Se por um lado a técnica tomava os campos de batalha cada vez mais sanguinários (arames far­ pados, metralhadoras, gás...), a tática dos comandos parecia estagnada. A primeira ofensiva de 1915, na Champanha, provoca a morte de 95 000 ho­ mens do 4." exército francês no avanço de al­ gumas centenas de metros. Apesar dessa triste experiência, os generais seguem obstinados. “Nosso ânimo será irresistível, vocês não da­ rão ao inimigo nem trégua, nem repouso até a vitória”, declara Joffre. Dia 9 de maio ele ataca em Artois. Dia 25 de setembro, retoma esse ata­ que. 330 000 franceses deixaram de atender ao apelo no dia 31 de dezembro de 1915. Esse ano terá sido o dos mortos sem vitória.

Jornal Le Matin, 7 de novembro de 1985

7

N. T. Union sacrée: é o nome dado ao movimento que uniu os franceses em

1914 quando estoura a Primeira Guerra Mundial.

Entusiasta em 1936, abalada sob Pétain, ela não deixa, desde

a Liberação, de acreditar num sistema político mais conforme à ideia que

faz da igualdade econômica. A sua maneira, ela luta contra a injustiça, ingressando no ensino de reforço para se ocupar das crianças com dificul-

dade de aprendizagem.

Meu avô e minha mãe me surgem assim, cada qual da sua

maneira e na sua época, muito representativos do que se costuma chamar de “a escola de Jules Ferry”, essa escola que se manteve bem além da Re­ pública que a fez nascer. Particularmente estável, modernizou-se ao longo das décadas sem alterar a sua natureza.

Eu, da minha parte, ensinei nessa escola durante dez anos, em uma pequena escola rural entre 1958 e 1968, e o que vivenciei nela quase

não se diferenciou do que vinha acontecendo cinquenta anos antes. As obras aconselhadas, nos anos sessenta, para a formação dos substitutos, tão numerosos, resultado da onda “demográfica”, faziam sempre referên­

cia às instruções de 1923. Prodigiosa continuidade! No entanto, se um dos meus filhos vier a se tomar professor

primário, a escola que ele for conhecer não terá mais nada a ver com a escola de Jules Ferry. Mas a transformação será difícil, terá durado mais

de 25 anos, de 1965 a 1990, e se operará diante da incompreensão geral, tal era, na época, a marca de nostalgia que as mentalidades e os corações tinham em relação à escola de suas infâncias que desempenhara um papel

insubstituível. Vários livros descreveram, contaram, analisaram, avaliaram essa escola, e da cidade ou do campo, foi ela que os franceses de mais de

25 anos ainda frequentaram...

24

Capítulo 1

A nostalgia é assim mesmo...

A escola de Jules Ferry Entra-se nessa escola com quatro ou cinco anos numa pe­ quena classe e sai-se dela com quatorze anos, quando se consegue, com o Certificado de Estudos8, para aprender uma profissão dentro

da família ou com algum artesão. As vezes, quando a escolaridade é

brilhante, beneficia-se de um “ensino complementar” em um estabe­ lecimento da cidade vizinha, o que facilita a obtenção de um empre­ go em um escritório. Mas qualquer que seja a saída, esse itinerário é

a regra para mais de 80% das crianças. E os outros? A metade deles nunca frequentou a escola primária e entra diretamente nas pequenas classes dos liceus ou nas instituições privadas porque a família reserva para eles estudos mais

extensos. O resto, uma ínfima minoria, as crianças “dotadas”, aqueles

8

N. T Certificat d 'études: era um diploma de final de estudos primários, estrita­

mente. Por volta de 1890, ele era obtido por crianças de 11-12 anos. Em 1960, em torno de 14 anos.

25

que se detecta já no Curso preparatório (CP)9 por “suas facilidades”,

deixará a escola para tentar a sorte no ginásio. Nem sempre era fácil

para os pais tomar essa decisão: “Ele deverá ficar interno; ela ainda é muito pequena; é muito arriscado; esse tipo de ambição não é para

nós; fica muito caro...” Mas seja qual for a situação, até 1950, e principalmente na

zona rural, a escola municipal é frequentada até o final por nove em cada dez crianças. Essa escola é realmente a escola do município que

prepara as crianças para viver no município. Se, nacionalmente, estatísticas demonstram que o sucesso

escolar está ligado à classe social, no que diz respeito ao vilarejo,

parece não ser esse o sentimento. Os efetivos são muitos fracos, as

classes sociais muito homogêneas, as diferenças individuais muito conhecidas, a exceção tão exemplar quanto a regra. Se um filho de

um operário agrícola se tornar professor concursado, aí estará prova­ do que aquilo que explica melhor o sucesso e o fracasso é o fato de ele ser inteligente e esforçado. Os bons são recompensados e os maus alunos nem mesmo são punidos. A escola de Jules Ferry tem todas

as razões para acreditar no mérito. É nele que repousam a justiça e

o progresso. O bom professor primário é aquele que “explica bem”, que repete incansavelmente, que conhece a maneira de compensar as

qualidades e as vontades enfraquecidas. É verdade que os objetivos

parecem estar ao alcance de toda e qualquer “criança levada” que aceite dedicar algum tempo a isso; tanto é que se nem todo mundo tem o dom natural para a ortografia ou para a matemática, não há

nada que possa resistir à repetição.

9 N. T. CP: Curso preparatório - curso para entrar na primeira série, pré-primá-

rio.

26

Hoje, a aprendizagem remete sempre a domínios comple­ xos em que se mesclam psicologia e sociologia; em outros tempos, aprender remetia à memória, de cor ou em coro, já que não se di­

ferenciava nunca se se tratava de conhecer o fundo das coisas e de

se ter entendido sua própria substância ou se se tratava somente de se poder recitá-las em voz alta, coletivamente, num sábio uníssono. Os afluentes do rio Sena, as datas da História, as diferentes partes da flor, as fábulas de La Fontaine, as tabuadas de multiplicação, as regras de gramática, tudo isso pode ser aprendido; mais ou menos fa­ cilmente, mas é tarefa que exige tempo e coragem. Daí a importância

da punição para solicitar a energia. Cópias, exercícios complemen­

tares, retenção na classe, castigos, constrangimentos, essas punições

acarretam mais dissabores que o esforço dispensado para empreender a ação positiva de aprender que é treinada através de recompensas, pontos, estrelinhas, atestados de excelência. As redações mensais levam até mesmo a uma nova distribuição dos alunos no espaço da

classe; os progressos se traduzem por um avanço efetivo em direção ao mestre. Prefiguração da distribuição anual dos prêmios quando o

vilarejo concede ao mestre seu aval e vem consagrar o mérito. O pri­

meiro colocado recebe seu prêmio das mãos do prefeito, o segundo do vice-prefeito e assim por diante, para que se estabeleça o paralelo

entre sucesso escolar e reconhecimento social. Tudo isso em uma solenidade bem comportada, cheia de emoção e de sorrisos, quan­

do uma menina toma o senhor prefeito pelo pescoço para abraçá-lo como se fosse seu avô. A distribuição dos prêmios é também o dia da proclamação

dos resultados do Certificado de Estudos, da entrega dos diplomas e

da caderneta oferecida pela Caixa Econômica10, símbolo da conti-

10 N. T. Banco estatal francês, Caisse d'Epargne, especializado em poupança.

nuidade entre as virtudes escolares e as virtudes cívicas, entre um

capital de conhecimentos e o capital, simplesmente. Quando um “primeiro da Comarca” ganha o prêmio, a honra jorra sobre todo o

vilarejo. Que orgulho para a família! O Certificado de Estudos é realmente o grande negócio; basta observar o desenrolar dos exames na maior cidade da comar­

ca. Os professores, mais tensos que seus alunos, passam os temas no crivo, comparam-nos aos dos anos anteriores, avaliam as armadilhas,

já contabilizam aqueles que souberam resolvê-las, lamentam ter pas­

sado tão depressa sobre tal capítulo, alegram-se interiormente de ter

revisado, na semana anterior, algum problema específico. O estabe­ lecimento dos parâmetros de correção, sob a presidência do inspetor

acadêmico, dá lugar a debates apaixonados, cujos argumentos, nem sempre todos pedagógicos, permanecem motivados pela vontade de

dar, apesar de tudo, a algum aluno azarado, aquela consagração me­

recida, sem, no entanto, desvalorizar o nível do exame. O Certificado de Estudos é, ao mesmo tempo, o símbolo e a chave mestra da escola de Jules Ferry, o princípio organizador de uma

escolaridade autônoma, a conclusão coerente de oito anos de traba­

lho, a certeza de se ter adquirido, em todas as matérias, os conheci­ mentos fundamentais imediatamente utilizáveis na vida de todo dia,

a prova das qualidades morais e intelectuais, tanto uma marca da iniciação quanto da possessão de um viático, de uma extrema-unção, uma espécie de batismo cívico.

Em primeiro lugar, as ferramentas de base, escudos do obs­

curantismo e da superstição: 1er, escrever e contar. Mas também um leque prático de um valor incontestável que dá um real poder sobre o cotidiano. Tudo está presente ali: como se alimentar, educar as crian­

ças, organizar uma casa, projetar uma coelheira, cuidar do jardim, enxertar árvores, fazer conservas, construir; noções de fisiologia, de

28

Jean Foucambert

botânica, de biologia, de eletricidade, de mecânica, de meteorolo­

gia, de astronomia; o meio de compreender os grandes fenômenos

geográficos, de conhecer as paisagens e os recursos do seu país; de se situar na organização administrativa e política, de se situar, no que

for essencial, em relação às outras partes do mundo; e também com­ preender e balizar a evolução histórica da França, a contribuição de seus grandes homens, dos seus sábios, dos seus artistas, aproximar-se de algumas obras, de alguns grandes textos; constituir um florilégio de poemas e de fábulas, o que causa admiração quando se pensa que

uma antepassada pode tê-los recitado há 60 anos; partilhar um patri­ mônio de canções populares; e ainda aprender a desenhar, a costurar,

a consertar e a fazer trabalhos na casa; iniciar-se em alguns esportes;

praticar uma moral comum... A lista não tem fim, ela é impressio­

nante e enciclopédica. Todos esses conhecimentos não são apenas suficientes para romper com as crenças ingênuas, mas necessários para progredir, para conquistar um poder sobre as coisas, para abrir a era da ciência e da razão, para fazer de cada um ao menos um es­

pectador emocionado do desenvolvimento do espírito humano e da civilização; para adquirir, enfim, nas melhores condições, um saber

profissional na agricultura, no artesanato, no comércio, na pequena indústria, na administração e até mesmo no funcionalismo público. A escola do município oferece um quadro coerente com

essa formação completa. Tudo parece controlável e acessível, ao al­

cance da mão, desde que o aluno se dedique com um pouco de es­ forço, merecedor de tais riquezas. A escola é, no centro desse lugar fechado e calmo que é o vilarejo, um mundo protegido e sereno,

aceito e depois requisitado pelo meio para transmitir à infância os saberes da adaptação e da evolução. Decididamente não um lugar de transformação, de transtorno ou de questionamento, não! Mas um lugar de socialização, de iniciação.

29

30

31

A escola de Jules Ferry deixou de existir precisamente no dia em que ela se viu amputada da sua finalidade, de seu objetivo,

da sua função de preparar o Certificado de Estudos. Essa decisão se efetivou entre os anos 1965 e 1970, quando aconteceu realmente a entrada de todas as crianças nas quintas séries do antigo ginásio. As

circunstâncias fizeram com que, nesse período, acontecessem as ma­

nifestações de 68, e essa coincidência fortuita tem um papel impor­ tante na incompreensão daquilo que viria depois desse desapareci­ mento. A opinião não interpretará o novo cenário como a invenção

necessária de uma nova escola funcionando numa outra coerência e

numa outra duração, mas desejará ver os efeitos destrutivos de uma ideologia anarquisante e laxista, que teria dominado a mentalidade dos professores primários, uma espécie de grande recreação depois

de cem anos de trabalho, o triunfo da improvisação e da permissividade.

Mesmo que seja verdade que confusões e contrassensos

tornaram e ainda tornam difíceis o tateio e a elaboração dessa nova

escola, o desaparecimento da escola de Jules Ferry está totalmente contido na vontade de substituir uma escola primária para todos por uma escola secundária para todos. A entrada de todas as crianças na

5.ª série não só reduziu o tempo de duração da escola primária em três anos, mas modificou a sua coerência, seus objetivos, seu fun­

cionamento, e, portanto, seus métodos, transformando, assim, até mesmo os cinco primeiros anos. Sem acreditar no poder das pala­

vras, o Curso Preparatório, o Curso Elementar e o Curso Médio11 são etapas da escola de Jules Ferry para se ter acesso ao fim dos estudos. O que existe hoje é mais comparável, na sua lógica, à denominação,

que, da primeira série ao segundo ano do ensino médio, marcava a

11

32

N. T. CE c CM: 1.º e 2.º. Anos primários.

unidade no ensino médio. Vem daí um número grande de equívocos

e de falsos processos alimentados pela nostalgia. Pois essa escola é

paramentada de todos os prestígios travestidos de lembranças. O que nos toca no prédio ou na casa da escola, diferente mente das salas de aula dos colégios e dos liceus nos quais os grupos se sucedem sem deixar sua marca, é o ambiente de vida e de ofici­

na familiares. Sentimo-nos bem nessa peça clara de quatro grandes

janelas e onde flutua o odor característico da cera, da tinta, do giz,

da poeira etc. da humanidade. No inverno, sentimo-nos abrigados do vento e da chuva, espreitando o aparecimento tão esperado dos primeiros três flocos de neve; no verão, por trás das cortinas fechadas

que a brisa faz ondular, ouve-se, para lá das árvores do pátio, os ru­ mores do vilarejo e vozes que reconhecemos, cujos propósitos pare­ cem deslocados para aqueles que os ouvem do lado de cá do muro.

Sobre a escrivaninha do mestre reina uma desordem ativa

de livros abertos, de cadernos, de objetos misteriosos ou confisca­

dos. Perto dali o compêndio do sistema métrico lembra que a razão exerce o poder da medida sobre as coisas; o metro, milagrosamente

a décima milionésima parte do quarto do meridiano terrestre, cujo

padrão platinado fica depositado no pavilhão de Breteuil em Sèvres, o litro contido em um cubo de um decímetro de aresta, o quilograma, o peso desse cubo cheio de água. É a asseguradora certeza de sua

correspondência e de sua conversão graças a tabelas de múltiplas

colunas, nas quais as vírgulas se deslocam, em que os zeros são acres­

centados... Sobre as paredes, os grandes mapas claros do Estado, da

França, da Europa e do mundo, com legendas de um lado e sem le­ gendas do outro para as provas orais, assinalam o pertencimento e a

solidariedade do vilarejo com os conjuntos mais vastos, com o mun­ do da civilização, da mesma forma que ao final do afresco histórico, a A Escola de Jules Ferry: um mito que perdura (

C-t

33

última década, flecha avançada do tempo, aponta para o movimento

permanente da humanidade em direção ao progresso, à harmonia, à

razão, ao esforço acumulado das gerações guiadas por seus grandes homens para sair da barbárie e dominar a natureza.

Um pouco mais longe, os grandes quadros das ciências ex­ põem, sob cores seguras, os mistérios da vida onde tudo parece inteli­ gentemente previsto, do trajeto do sangue no corpo ao ciclo da água

na natureza, passando pelas metamorfoses das rãs, a germinação do

feijão, o corte de uma mina de carvão, os malefícios do álcool sobre o fígado e a vida familiar, a boa conduta que se deve ter diante de um

afogado. O mundo está aí, ao alcance da mão, inteiramente dado à curiosidade e ao desejo de aprender. Algumas reproduções de quadros célebres ocupam o lugar

que sobra antes dos painéis de conjugação e de ortografia que temos

o direito de consultar durante certos ditados para evitar os erros de

concordância, aqueles que valem o dobro porque infringem as re­

gras. Um grande espaço é destinado aos mais belos desenhos

e às melhores pinturas: folhas mortas, rosáceas, penas de pássaros, casas, afrescos coloridos, recortes, tecelagem, colagem... sobre uma prateleira, trabalhos em andamento, costura, massa de modelar, bri­ colagem. Ao lado, os cadernos: cadernos do dia que o aluno desig­

nado daquele dia distribui toda manhã, caderno do revezamento12,

cadernos das redações mensais, todos cobertos de capas que os dis­ tinguem. Dentro, alinhados na parte debaixo da primeira página, os

12

N. T Cahier de roulement: todos os dias um aluno diferente faz seus deveres

nesse caderno ao invés de fazer em seu caderno pessoal. Assim, num piscar de olhos, podia-se ver como trabalhavam todos os alunos.

34

Jean Foucambert

mata-borrões em formato de folha, quase sempre com publicidades, objetos de cobiça e de troca. Num armário de vidro, a biblioteca alinha uma centena de

livros encapados por um espesso papel azul e cunhados por um nú­

mero. Ao lado, o caderno de títulos e o registro dos empréstimos. Os romances exaltam a coragem, o trabalho, o amor ao próximo: Victor

Hugo, Jules Verne, Edmond About, Hector Malot, Erckmann Cha-

trian, Jack London; algumas narrativas de exploradores e de grandes viajantes...

Um outro armário, envidraçado, contém o museu: amos­

tras de pedras, conchas, animais empalhados, uma víbora num gran­ de tubo de vidro cheio de formol, borboletas, às vezes um herbário,

tudo cuidadosamente etiquetado e catalogado, no entanto, um pou­ co empoeirado, pois raramente os objetos são manipulados.

E depois as carteiras! As carteiras alinhadas, território

e abrigo de cada aluno, o domínio privado do escaninho onde se amontoam, ao lado dos livros e dos cadernos, o lanchinho da tarde,

a corda de pular, uma bola e algumas bolinhas de gude. Carteiras,

enceradas e raspadas sábado à tarde, onde reina, protegido de um

mata-borrão redondo, o tinteiro de louça branca que o aluno desig­ nado enche toda manhã com a garrafa preparada pelo mestre a partir

de cápsulas de pólvora diluídas em água quente. E, diante disso tudo, “o muro do saber”13, o grande quadronegro, ainda marcado pelos golpes de esponja regulares que o limpa­

ram na véspera. Pela manhã, quando penetramos na sala, a data já está es­

crita com belas letras inglesas, assim como o título da primeira lição:

13

Segundo a expressão de Serge Chassagne.

35

moral. Sobre a parte esquerda, linhas reproduzem os intervalos dos

cadernos dos alunos para os modelos de escrita; e, à direita, ainda escondido por um grande papel, o texto do exercício de vocabulário

que o mestre descobrirá no final da lição pronunciando a frase imu­ tável: “Peguem seus cadernos...”

Esses cadernos, obras de arte do cotidiano, onde cada jor­ nada é separada da precedente por um traço sobre toda a largura da

página, depois a data, pulando uma linha, a cinco quadradinhos da

margem, ainda um traço de seis quadradinhos, enfim, caprichando

bastante, o nome do exercício, ditado, questões ou cálculo, que se deve sublinhar. E, inevitavelmente, a mancha, quando a pena volta

cheia demais do tinteiro, borrão que é absorvido com o canto da folha do mata-borrão, umedecido com um pouco de saliva e que o mestre raspará mais tarde com seu canivete, pois é arriscado demais,

molhando a borracha, fazer um buraco na folha...

E ainda os pauzinhos para contar! E a lousa! E o lápis da

lousa tão frágil! E o molinete fixado num canto da mesa do mestre para apontar os lápis! A única ocasião de se levantar sem pedir auto­ rização... um bom operário é zeloso com suas ferramentas.

Depois, a longa varinha para acompanhar no quadro; o metro duplo utilizado também para pôr na linha o culpado que per­ deu o fio da leitura coletiva; e o grande compasso de madeira, o

esquadro, o transferidor suspensos em um prego ao lado do horário e da lista de recitações... Um mundo de aventura, de emoção, de cumplicidade; um

mundo de rigor e de esforço; um mundo de benevolência. A jornada começa sempre pela organização da fila diante

da porta da classe, em seguida, a entrada, quando já se conseguiu o silêncio. Há ainda um pouco de barulho quando os alunos pendu-

36

Jean Foucambert

ram seus pertences nos cabides, e, enfim, cada um se encontra em

pé ao lado da sua carteira esperando que o mestre dê a ordem para

se sentar. Vê-se, então, o mestre tirar da gaveta central da sua es­

crivaninha o grande caderno da chamada e anotar cuidadosamente os ausentes e os presentes. Um olhar rápido sobre os cadernos dos

deveres do final da tarde: aqueles que ficaram estudando na escola no dia anterior ajudam os outros.

As mesas são arrumadas, os braços cruzados: o mestre lê

um texto ou conta uma história e faz algumas perguntas para ajudar os alunos a formular uma máxima que será copiada, no momento certo, com a mesma concentração de uma prece. Vem então a sessão de aritmética precedida pelo cálculo mental controlado prontamente com a ajuda da pequena lousa. A

lição termina com exercícios de aplicação e é o momento do exer­ cício de “passar a limpo”, quando se levará nota. Cada um sai para o recreio no ritmo do avanço do seu trabalho. Os jogos são sempre

os mesmos, misteriosamente transmitidos de um ano para outro. Na volta, vocabulário, gramática, conjugação, ortografia ou redação rit­ mam o lugar do francês, imutavelmente seguido de um momento de

passar a limpo no caderno do dia ou no caderno do revezamento,

mantido a cada dia por um aluno diferente. O inspetor poderá, des­ sa forma, com apenas uma olhada, apreciar o nível do conjunto da classe. Nas escolas em que não há refeitório, as crianças dos luga­

rejos trouxeram suas marmitas que são aquecidas em uma bacia com água sobre uma estufa à lenha. A tarde começa pela recitação. La Fontaine ocupa um lu­

gar privilegiado, vindo apenas um pouco antes de Victor Hugo, Sully Prudhomme, François Coppée, Leconte de Lisle, Francis Jammes,

Emile Verhaeren, Théophile Gautier. Pode-se, então, viver perigosa-

mente soprando ao colega sem sorte. Depois, recita-se o resumo de

História, de Geografia e de Ciências. Quando aquele que está sobre

o estrado hesita ou se engana sobre uma palavra, a vez é dada àquele

que levantar mais alto o dedo sem que as nádegas descolem da cadei­ ra: “P'sor! eu, P'sor!”. É que é importante, principalmente quando o aluno não está muito seguro, que leve a acreditar que aprendeu

bem a lição.

Volta-se em seguida ao trabalho da manhã para terminá-lo

ou corrigi-lo antes de passar para a sessão de leitura. O mestre dá o exemplo, depois, cada um, ao ser chamado pelo nome, lê algumas linhas, enquanto os outros acompanham com o dedo ou com uma régua. Pois o essencial é não ser surpreendido quando o mestre o

designar de supetão; e também cuidar da entonação, subir a voz ao

aproximar-se de uma vírgula, e baixá-la ao final da frase. Resta ainda tempo suficiente antes do recreio para uma lição de História seguida finalmente no livro; de Geografia que pede,

então, que mapas sejam traçados, que os lápis de cores sejam utiliza­ dos, espalhando-se a cor com o canto do mata-borrão; e de Ciências

em torno da qual se observa e se desenha. A saída do recreio é acompanhada de gritos, válvulas de es­ cape necessárias em qualquer máquina sob pressão. É que falta ainda

quase uma hora de aula para a costura, o trabalho manual, o canto

ou a educação física; e com os mais fracos e os mais indisciplinados, para a recuperação do trabalho em atraso ou as punições.

A sucessão dessas jornadas semelhantes e a alternância das lições e dos exercícios criam um desenrolar tranquilizador e domi­

nam o tempo, como um eco ensurdecido dos trabalhos do vilarejo. À escola pertencem o tempo, a permanência dos ritos, o prestígio do

saber, a evidência do seu papel, tanto para a aquisição do conheci­ mento quanto para a formação do caráter.

38

Jean Foucambert

Na classe dos menores, a paisagem quase não muda. Todas as aberturas para o mundo são somente substituídas pelas ajudas e

pelas lembranças dos três saberes mágicos, 1er, escrever, contar, que garantem as futuras colheitas. O essencial reside nos quadros de le­

tras e de sílabas, nos modelos de escrita, na sequência dos números e nas tabuadas de adição. O horário é dominado pela vontade de aprender o mais depressa possível todas essas técnicas, transforman­ do, paradoxalmente, esses primeiros anos em momentos difíceis para

as crianças menores.

Na realidade, raras são as escolas em que as aulas são assim tão nitidamente separadas. Os alunos têm o mesmo mestre por vá­ rios anos, muito frequentemente, por toda a sua escolaridade. Essas

classes em que convivem crianças de idade e de níveis diferentes reforçam ainda o caráter familiar, até mesmo patriarcal, da escola municipal. Os maiores aprofundam o que sabem, ajudando os me­ nores; os pequenos pegam no ar informações não destinadas a eles

e com as quais eles começam a fazer “seu mel”. Cada um utiliza da

melhor forma o capital tempo que lhe é atribuído para progredir sem

se dobrar a um quadro anual rígido demais e sem ter que temer o castigo da reprovação. Em menos de um século, perto de 50 bilhões de jornadas

similares foram vividas pelas crianças da França, independentemen­

te da região de origem e de sua situação de nascimento, exceto os 10 a 15% vindos dos meios mais favorecidos.

Assim, não é de surpreender que essa escola tenha impreg­ nado o inconsciente coletivo e que ninguém possa, ainda hoje, fa­ lar de educação sem se referir com nostalgia a esse modelo familiar.

Essa escola é a experiência comum a todas as gerações. Ela modelou os comportamentos, os valores, os modos de pensamento da França profunda, de 80% dos franceses, de 80% de cada francês. Nós somos A Escola de jules Ferry: um mito que perdura

39

todos, coletiva ou individualmente, os herdeiros, os beneficiários ou

as vítimas dela e provavelmente os três ao mesmo tempo. Mas para

além dessa herança, a escola de Jules Ferry modela ainda o futuro, aprisionando a reflexão em educação na ilusão de um mundo fecha­

do e protegido em que todo esforço, em detrimento das desigualda­

des sociais, deveria dar igualmente seus frutos, em que o respeito

mútuo aboliria a injustiça, em que a seriedade abriria para cada um as perspectivas de uma felicidade que se tem por merecimento.

O que há por trás dessa evidência que mesmo os mais vigi­ lantes dentre nós se reconhecem construídos por ela?

40

Jean Foucambert

Bruegel, o Ancião, Um burro na escola (Gravura)

41

Capítulo 2

Escola para o povo? Escola do povo?

Ilustramos esses capítulos com as repro­ duções de um só caderno, mantido por Antoinette Frandon, aluna em 1901 da escola municipal de filhas de Marcollin, na região de Isère. Remexendo em arquivos esparsos, chega-se sempre a encontrar a prova daquilo que se quer mostrar. Mas escolhendo um só caderno preenchido em pouco tempo, fica-se impressionado com a presença da ideologia. Não há dia, em que, através dos ditados, redações ou problemas, os valores julgados fundamentais não sejam reafirmados ou desenvolvidos. Agradeço Raymond Millot por ter disponi­ bilizado os cadernos de sua mãe.

O projeto político reside na vontade de formar as novas gerações; é o momento em que a sociedade produz o indivíduo.

O século XIX é marcado pelo desenvolvimento do capi­

talismo industrial. A fração mais dinâmica da burguesia vai investir o capital acumulado pelos grandes negócios e os lucros das proprie­

dades rurais em novas empresas em que aqueles que nada possuem A Escola de Jules Ferry: um mito que perdura

43

encontrarão lugar para vender sua força de trabalho e em que a maisvalia, acrescida por essa transformação nas matérias-primas, cons­

tituirá a fonte essencial do lucro. De agora em diante, é o trabalho que se torna a mercadoria rainha sobre a qual especulam aqueles que possuem as ferramentas modernas de produção.

Formar essa força produtiva, assegurar-se de que ela pode se renovar, de que ela pode se adaptar às novas condições de traba­

lho e de vida, convencê-la da legitimidade desse novo projeto econô­ mico e social, é o que aparece como a operação mais urgente. Formá-la é dar-lhe uma instrução geral que lhe permita

dominar, tanto no trabalho quanto nas trocas econômicas e sociais,

as ferramentas do cotidiano; ter acesso aos modos de representação

mais científicos, manipular operações simples, estabelecer a possibi­

lidade de uma comunicação pela escrita. Em suma, garantir a passa­

gem de uma sociedade rural e camponesa a uma sociedade urbana e industrial e encarregar-se da adaptação a outras formas de trabalho,

de hábitat, de relações, de administração. Permitir que essa força produtiva se renove é constituir uma célula familiar de um novo tipo, já que desaparecem, ao mesmo tempo, a necessidade de um trabalho comunitário entre as gerações

e a transmissão de um patrimônio de umas às outras. Convencê-la da legitimidade do novo contrato social é

prometer-lhe que o desenvolvimento industrial garantirá a todos, em troca do trabalho e da disciplina, a segurança, a justiça, a igual­

dade e perspectivas ilimitadas de progresso material e social. É pro­ vavelmente a tarefa mais difícil, pois as condições de trabalho são massacrantes. A fé na ciência e na razão constituirá o cimento dessa

ideologia nascente e criará o sentimento de pertencer a um conjunto mais vasto e mais solidário no qual todo indivíduo pode ter seu papel a desempenhar.

44

Tal projeto, principalmente nesses dois últimos aspectos (pois a instrução se desenvolveu já na primeira metade do século),

só pode ser conduzido por uma nova instituição que dirá respeito obrigatoriamente a todas as crianças. Da rapidez da sua implantação dependem três resultados: formar a curto prazo as novas faixas etá­

rias; exercer indiretamente uma ação de formação sobre os adultos

através das crianças; permitir aos pais empregarem-se nas fábricas, desobrigando-os da guarda dos filhos durante o dia.

A escola de Jules Ferry nasceu dessa necessidade e dessa vontade. Ela aparece como o instrumento do projeto econômico e

político de uma classe social ativa e determinada. Mas ela coincide também com um certo número de aspirações ou de reivindicações humanitárias da classe operária incipiente, ao mesmo tempo em que ela procura romper com uma ordem estabelecida. Enquanto as inten­

ções que determinam a sua criação são claras, seu desenvolvimento vai ocorrer numa rede de ambiguidade, de contradição, de violência e de falsas alianças, pois, para se impor, essa burguesia industrial deve

lutar em duas frentes: de um lado, ela tenta tomar o lugar da burgue­ sia rural, conservadora, religiosa e monarquista cujos interesses são

ao mesmo tempo atrelados e opostos aos seus; do outro, ela gera e

reforça uma classe operária cujos interesses, por outro lado, também são atrelados e opostos aos seus.

A direita tradicional é a burguesia ruralista e comerciante,

aquela que, após ter feito a revolução, tentou salvaguardar seus ga­ nhos, colaborando com regimes fortes. Considera com pavor a deses-

tabilização social e política que as escolhas econômicas da sua irmã caçula não vão deixar de causar. Particularmente, ela persiste na ideia de que a ignorância e a religião representam os baluartes mais

seguros contra uma ralé que vive na miséria. Difundir um pouco de

saber é jogar tições sobre a palha seca e correr o risco de uma guerra

45

Composição francesa Mostre que todos: homens, crianças, mulheres devem tra­ balhar e diga quais qualidades morais adquirimos por

uma atividade contínua.

4 Tarefa muita curta

Desenvolvimento Todo mundo deve trabalhar: pobres, ricos, homens, mulhe­

res. crianças. Os pobres devem trabalhar para buscar a riqueza: aqueles que são suficientemente ricos devem tra­

balhar para ajudar os outros: aqueles que são bem ricos devem trabalhar para lutar contra o tédio e não fazer o

mal. porque o trabalho preserva dos maus pensamentos e das más ações. Ele conserva também a saúde, é preciso

ainda trabalhar para a humanidade. Ricos ou pobres precisam, portanto, trabalhar.

Por uma incessante atividade, adquirimos a economia porque vemos o trabalho que dá ganhar o que temos. Ad­

quirimos a ordem porque não perdemos tempo: a bondade,

porque temos mais para dar. O trabalho é, portanto, muito útil porque faz a felicidade

de todos. É preciso que todos trabalhem no universo.

47

48

Ditado *

Benefícios da instrução "Nossa ambição é que a escola seja apreciada a fim de que a criança goste dela e faça gostar dela. É com você que a gente conta, pequeno missionário das ideias moder­

nas. pequeno aluno da escola primária. Ao sair da sala

de aula, mostre a seus pais tudo o que você carrega: seus

livros, suas imagens, seus cadernos, o trabalho que você começou. Releia para eles os relatos, os belos dizeres mo­ rais ou histórias que contaram a você, tudo aquilo que ocu­

pou e interessou você. Eles compreenderão rapidamente o

alcance da mudança exercida em você, eles adivinharão

rapidamente o quanto vale uma educação como essa e a quem a devem: e. mais de uma vez. talvez aconteça que.

ao ver você tão aplicado, trocarão um olhar como que se

dizendo: "Ah! Se nós tivéssemos sido criados assim", dissi­

mulando sua emoção, eles beijarão você e nesse beijo ha­ verá mais promessas para a república do que em muitas vitórias eleitorais. "Buisson

8 erros e meio

*

N. T. Os erros ortográficos cometidos nos ditados e nas composições não fo

ram reproduzidos em nenhuma das traduções.

49

civil. Esse sentimento é constante e se expressa da mesma forma ao longo dos anos, tanto em relação “ao povo” quanto em relação às

“raças inferiores” nas terras colonizadas.

A instrução é capaz de dar aos Negros aqui uma abertura que pode conduzi-los a outros conhecimentos, a uma espécie de ra­ ciocínio. A segurança dos Brancos, menos numerosos, rodeados em suas habitações por essas pessoas, entregues a eles, exige que os mantenhamos na mais forte ignorância (MARQUES DE FÉ­ NELON, 1764).

Uma experiência deplorável provou que o abuso das luzes é frequentemente o princípio das evoluções e que a ignorância é um bem necessário para os homens prisioneiros da violência ou aviltados pelos preconceitos (VILLARET-JOYEUSE).

O que o Congresso dos colonos da Argélia retomou em 1908 (Pois é, M. Ferry...): Considerando que a instrução dos autócto­

nes faz a Argélia correr um verdadeiro perigo [...], emite o desejo de

que a instrução primária dos autóctones seja suprimida14. A esse entrave social pela confiscação do saber, o capita­ lismo industrial quer opor uma outra estratégia na metrópole. Já que

ela não pode adiar um relativo compartilhamento do saber, conside­ rando a necessidade de adaptar uma mão de obra a uma nova tecno­

logia, é necessário tentar neutralizar o eventual poder de subversão que esse saber é suscetível de conferir. A neutralização vai se operar

negando-se o caráter de classe da sociedade moderna e afirmando-

se a unicidade do corpo social. Unicidade comprovada através do sucesso escolar individual, pelas possibilidades de ascensão social. A

prova de que não existem duas classes antagônicas é que um filho de

14

50

Citado por Edwy Plenel.

operário poderá tornar-se banqueiro ou presidente da República. O abandono que deverá fazer dos seus próprios valores de classe será

então denominado Cultura. Como sugere Edwy Plenel, ao evocar Gramsci:

Diferentemente das classes dominantes tradicionais que não tendiam a elaborar uma passagem orgânica das outras classes à sua, isto é, a alargar sua esfera de classe, a burguesia, graças à es­ cola, manifestará essa vontade de conformar, ou seja, de suscitar nas classes dominadas um desejo de conformidade e uma ilusão de semelhança que, destruindo seus espaços de autonomia cul­ tural, possam encadeá-los à perenidade da ordem social.

Aí reside o princípio organizador dessa nova burguesia e

a chave da sua política escolar. Ao invés de impor uma relação de

forças classe contra classe e de justificar sua dominação pela sua ori­ gem, ela afirma que aquilo que ela representa é universal e que cada

cidadão, se ele for digno desses valores, poderá compartilhá-lo. De­ fendendo valores gerais e igualitários que mascaram sua supremacia

de fato, ela pretende desfazer as oposições sociais. Ela se afirma ainda de forma mais hábil como uma classe que renuncia a ser uma casta. Proclamando-se aberta, consegue impor sua ideologia graças a uma formação que todos aceitam na esperança de alcançá-la. O risco de uma promoção coletiva dos oprimidos graças ao saber é desvirtuado

pela oferta do sucesso individual que implica a integração e a acei­ tação dos valores dominantes. Observa-se a influência desse modo

de pensamento até nas empreitadas recentes de inovação pedagógi­

ca destinadas a aumentar a igualdade de oportunidades; tratou-se de oferecer a cada indivíduo, qualquer que fosse sua origem social,

oportunidades iguais de acesso aos escalões mais elevados de uma so­ ciedade desigual e não de ajudar as classes dominadas a desenvolver os saberes que transformariam a natureza desigual do sistema social.

51

52

5 pontos

Ditado

solidariedade O que você é, meu filho, você deve ao seu pai e à sua mãe.

que nutriram, criaram, amaram você desde que você nas­

ceu.

Você deve ao seu professor primário, que instruiu e tornou

você melhor. Mas você deve também a todos os franceses, à humanidade inteira. Vocêaproveita todo o bem produzi­ do pela sociedade através dos séculos e o que ela produz hoje. Assim. meu filho, todos os homens são seus irmãos, a

existência deles se mesclou à sua e você deve a eles quase

tudo que possui, portanto, se você é justo e bom. Jamais pense em sua felicidade sem pensar na dos seus semelhan­

tes. Trate de lhes devolver o que eles deram a você. Por sua vez, trabalhe, lute e sofra para adoçar os sofrimentos e para aliviar as dores deles. Devisrat 5 erros

53

Edwy Plenel lembra que Jules Ferry, a partir de 1867, sus­

tentava a distinção inevitável e sempre crescente entre a função do capita­ lista eado trabalhador e que ele deduzia daí a necessidade de constituir o contrapeso na ocasião e em primeiro lugar: a organização coletiva e a

educação crescente das massas operárias. Educadas, elas não se revoltarão. Educadas, elas serão consentidoras, já que o projeto é afinal substituir as relações de força por

relações contratuais, substituir a opressão pela cooperação, acres­ centa Plenel, que cita o juramento de Jules Ferry em 1870:

Não venho pregar não sei qual nivelamento absoluto das condi­ ções sociais que suprimiría na sociedade a relação de comando e de obediência. Não, eu não as suprimo, eu as modifico. Não há mais nem o inferior, nem o superior. No mestre e no serviçal vocês não perceberão senão dois homens iguais que têm um contrato [...], tendo cada um seus direitos precisos, limitados e previstos, cada um seus deveres e, consequentemente, sua dig­ nidade.

Falta, no entanto, compreender por que há um mestre e um serviçal... Faltava ainda Ferdinand Buisson precisar: A escola fará a luz. Não é verdade que haja duas Franças, que

haja dois povos nesse povo. O que será retomado por Jules Ferry de uma outra maneira:

E a ausência de educação no proletário que cria o sentimento e a realidade da desigualdade.

Só ele mesmo para pensar nisso!

54

Passa-se assim sub-repticiamente de uma educação como

meio de luta contra a desigualdade a uma educação como meio de interiorizar a desigualdade, corroborando o que já havia afirmado Victor Cousin:

Não há dúvida de que, de todos os meios de ordem interior, o

mais poderoso seja a instrução geral. É uma espécie de conscrição intelec­ tual e moral.

Será necessário lutar por muito tempo para convencer a burguesia tradicional da eficácia dessa nova estratégia de domina­ ção. Primeiramente, tranquilizando-a em relação à firmeza dos sen­

timentos de classe: a repressão sangrenta da Comuna de Paris serve para eliminar as últimas hesitações; em seguida, enfraquecendo vá­

rios desses apoios tradicionais, particularmente a Igreja, isolando-a, graças a alianças em torno de certos objetivos (tais como a obriga­

toriedade, a gratuidade ou a laicidade), feitas pontualmente com as forças sociais contra as quais esse sistema é implantado.

É o sucesso mesmo da empreitada que torna hoje difícil a compreensão das suas intenções. De fato, o século XIX viu se de­ senvolver a consciência do antagonismo das classes sociais e o medo

que as classes trabalhadoras inspiravam à burguesia. Basta, para se convencer desse fato, verificar o ódio que os dominantes sentem

pelo povo. Citando Paul Lidsky: Os escritores contra a Comuna, edi­ tado pela editora Maspero, contento-me em citar aleatoriamente as

reações dos mais célebres escritores da época: Théophile Gauthier,

Goncourt, Taine, Daudet, Dumas Filho etc. Através da reação des­ sas “almas esclarecidas” pode-se medir o terror que podia sentir um tabelião de uma cidade do interior!

55

1

56

1 ponto e meio

Ditado

O que devemos aos nossos antepassados Os pais se dedicam aos seus filhos, os homens que têm coração, os pensadores, os pesquisadores, os sábios se sa­ crificam para extrair da natureza seus segredos e tornar

menos sofrida a vida dos que virão depois deles. Todos eles, um de cada vez. transmitem uns aos outros, assim, a tocha sagrada da ciência da indústria. É graças ao suor

deles e ãs suas economias que se forma de geração em ge­

ração o que chamamos tão bem de patrimônio comum. E é por isso que somos mais ricos, ou se vocês quiserem, menos

pobres, menos ignorantes, que temos uma ideia mais eleva­ da de nós mesmos e de nossa dignidade: que somos homens

civilizados e homens livres da selvageria e da escravidão. Qual não deve ser nossa gratidão por todos esses esforços que fizeram de nós o que somos. Mas qual não é. por outro

lado, nossa responsabilidade! E quanto, após ter recebido tanto, não devemos nós mesmos deixar depois de nós. 8 erros e meio

Tassy

57

58

7 pontos

Ditado

A docilidade Para aproveitar a escola, é preciso trabalhar nela e. para

trabalhar bem. é preciso ouvir o professor e obedecer a

ele. Você deve fazer isso porque ele representa ao mesmo tempo o Estado, que lhe entrega a escola, e seus pais, que deixam você nas mãos dele, você deve fazer isso porque ao

obter os diplomas dele, ele provou que é capaz de instruir e orientar você: você deve fazer isso porque sem a obediên­ cia para com o professor e para com a regra que ele deve

manter não teria nem ordem nem disciplina e que. sem a ordem e a disciplina, não pode haver nem ensino comum,

nem trabalho. Portanto, é seu dever obedecer e também é do seu interesse, pois a submissão é para você a condição pri­

meira do progresso. O que a gente mais estima no mundo é a honestidade e a instrução. Vessiat

3 erros

59

[...] Os senhores operários, só pelo fato de acariciarem melhor

a garrafa que o trabalho e lavarem muito pouco as mãos, não tendo tempo de fazê-lo, puseram na cabeça que tudo lhes era devido, lhes pertencia na face da terra e que tinham conhecimento suficiente, tendo aprendido

somente cada um o seu próprio ofício, para tomar o lugar vantajosamente

de todos os governos dos povos civilizados. Graças a essas maravilhosas teorias [...], verificou-se [...] que a experiência, o trabalho, a ciência, a reflexão, a meditação não são nada, não servem para nada, que basta ser

grosseiro, mal-educado, feder a craca e a fumo e ter, em toda a ocasião,

palavrões e o cachimbo na boca para ser visto como um ser superior.

Não é nem mesmo a barbárie que nos ameaça, não é nem mes­ mo a selvageria que nos invade, é a bestialidade pura e simples.

A embriaguez era o elemento reinante dessa revolução crapu-

losa. Um vapor de álcool pairava sobre a efervescência da sua plebe. A garrafa foi uma das ferramentas que reinou na Comuna. Ela embrutecia

com o vinho e a cachaça os bandos imbecis que ela despachava para a morte, como o Velho da Montanha alucinava seus seguidores com o hachiche. Seus batalhões marchavam titubeando em direção ao combate. Havia

“delirium tremens" na loucura da sua resistência. Eles caíam bêbados sob as balas e sob as granadas.

Fomos a presa [...] de uma rebelião total de todos os desclassifi­ cados, de todos os frutos secos de Erostrato que pululam nos “bas-fonds" das sociedades modernas, de todos os preguiçosos saqueadores, das vadias das barricadas, da ralé das prisões e dos trabalhos forçados.

60

Adivinhamos o riso amargo, os olhos cheios de cólera do homem que teve uma infância infeliz e que odeia a humanidade, porque, em pe­ queno, usou roupas ridículas, talhadas nos trajes de seu pai.

A desfaçatez desses safados só é comparável à sua burrice e à

sua patifaria. [...]. Cheiravam a vinho, sujeira, fumo, outra coisa ainda e não sei mais qual bestial vaidade.

Devéssemos afogar essa insurreição no sangue ou devéssemos soterrá-la sob as ruínas da cidade em chamas, não haveria compromisso

possível. Se o cadafalso vier a ser suprimido, ele deverá ser conservado somente para os construtores de barricadas.

Está bem. Não há nem conciliação, nem transação. A solução foi brutal. Foi força bruta. A solução retirou das almas os compromissos

covardes. A solução deu novamente confiança ao exército, que aprendeu

com o sangue dos "comunas”, que ele ainda era capaz de lutar. Enfim a sangria foi uma sangria em vão; e sangrias como essas, que matam a parte

batalhadora de uma população, adiam a nova revolução para o próximo

recrutamento de jovens. São vinte anos de repouso que a sociedade tem diante dela, se o poder ousar tudo o que ele puder ousar nesse momento.

Nas alamedas de Versalhes, são vistos soldados vagarosos vol­

tando de Paris e sendo rodeados por passantes que os interrogam.

- Eu, eu matei uma mulher, diz um deles.

61

- Pois eu acabei com uma criança incendiária com um golpe de baioneta. - È mesmo, meu amigo? Diz uma mulher respeitável, com o missal na mão e ela lhe dá dinheiro.

Jules Ferry compartilha os mesmos sentimentos, mas, como

grande homem de Estado, ele procurará uma solução política. Como

“domesticar” essa classe operária de que a indústria necessita? Como

fazê-la ser agente do desenvolvimento econômico e fazer com que perca o sentido da revolta? Como impedir o povo de se marginalizar na sua opressão? Como passar de uma consciência de classe ao senti­

mento de pertencer a uma comunidade de prestígio? Lembramo-nos

dessas cenas do muro dos Federados em que as burguesas de Versa­ lhes furavam os olhos dos cadáveres dos comunas com a ponta fina

das suas sombrinhas. Não seria possível cegar tanto quanto sem se entregar a tais extremos que destroem as forças produtivas? Quanto ao movimento operário e socialista, ele crê na edu­

cação como fator de progresso e de justiça, procura tirar suas crian­

ças das minas e das fábricas, das escolas confessionais ou patronais.

Também ele não resistirá e, ainda menos, porque se encontra esva­

ziado de todas as suas forças vivas, a um projeto que pode parecer se inscrever na grande tradição de 1789 e dos Direitos do Homem.

A escola municipal nasceu nesse triângulo, dessa vontade de colocar duas oposições uma contra a outra, desse projeto do ca­

pitalismo industrial, resolutamente antipopular e antissocialista, que quer modelar as forças produtivas que lhe são necessárias, mas que,

confrontado a uma opinião conservadora, se apoia sobre ideias lai­

cas, igualitárias e democráticas.

62

(CL. D. Bourbonnais, B.N. Versailles)

63

A produção do saber, a laicidade, o patriotismo, a gratui­ dade e o foco posto sobre os valores rurais vão constituir os grandes

terrenos de embate nos quais as oposições se dividem e em que o movimento operário se encontra permanentemente tomado em con­

tradição, pois é obrigado a sustentar, contra a direita, valores que

carregam, no senso comum, o mesmo nome daqueles que ele quer

promover, mas com conteúdos diferentes. A política escolar de Jules Ferry desenvolveu essas ambi­

guidades como tantas outras armadilhas, oferecendo ganhos reais impossíveis de serem recusados, mas que desviavam sempre as solu­

ções que ela deixava passar como possíveis.

A produção do saber No embalo do século das Luzes, da Enciclopédia e, depois,

do positivismo, e diante do sucesso das ciências e das técnicas, o Conhecimento aparece como o instrumento incontestável de todos

os progressos e de todas as liberações. Ter acesso ao saber é ter acesso

ao poder sobre as coisas: compartilhar o saber é compartilhar o poder entre os seres. Para todos, e ainda para a esquerda de hoje, a luta

emancipatória começa pela transmissão dos saberes dos dominantes aos dominados: daí a importância da escola necessariamente libera-

dora quando ela transmite e desmascara saberes dominadores... A

eficácia de uma armadilha reside na qualidade da isca.

Se se tem como certo que a manutenção na ignorância é uma arma absoluta da dominação social que autoriza apenas revoltas

e jamais revoluções, o conhecimento não é um patrimônio neutro e universal constituído fora do funcionamento social no qual e para o qual ele se elabora. O conhecimento se opõe, no senso comum,

64

Jean Foucambert

à ignorância que se confunde com o erro. Daí que o conhecimento parece ter sempre uma relação com a verdade. É difícil admitir que

uma sociedade administre o estado provisório do seu conhecimento, ou, o que dá no mesmo, da sua ignorância e que esse estado é uma causa e uma consequência das formas da divisão social e da domi­

nação de uma classe sobre a outra. A esperança dos oprimidos de

transformar esse conhecimento para fazer dele um instrumento de liberação é uma ilusão tão profunda que é o mesmo que se afastar desse conhecimento. Não há nada a ganhar ao recebê-lo, há tudo a

perder ignorando-o. Visto assim, o problema não tem solução.

Pois o que é essencial não é nem a maneira como os sa­ beres são transmitidos, nem a quantidade de saberes existentes de

que os dominados poderiam se apropriar, mas as condições nas quais saberes novos vão ser produzidos, tanto no plano individual como

no plano social. O poder liberador de um sistema educacional não reside na quantidade de saberes que ele transmite, mas na expansão que ele permite das bases sociais dos processos de produção desses saberes. Em que medida uma escola prepara os trabalhadores a serem

utilizadores de saberes construídos por uma minoria e cuja utiliza­ ção reproduzirá a hierarquia social que os concebeu? Em que medida

uma escola associa todos os indivíduos, na ocasião da construção dos seus próprios saberes, ao processo de elaboração de novos saberes?

O problema fundamental não é o acesso ao conhecimento, mas o acesso à produção do conhecimento; e essa exigência não é adiável.

Se ela estiver ausente dos primeiros aprendizados, os saberes adquiri­ dos não dão acesso a nenhum poder coletivo. Se ela estiver ausente dos primeiros aprendizados, os indivíduos selecionados para produzir

novos saberes o farão segundo o modelo no qual foram formados, conformados ou deformados pela recepção (e não a construção) dos

conhecimentos anteriores, e sua produção só reforçará o sistema ini­ cial que os escolheu. É nesse sentido que todas as concepções edu­ A Escola de Jules Ferry: um mito que perdura

65

cacionais fundadas sobre o elitismo numa perspectiva pedagógica de transmissão dos saberes são essencialmente conservadoras. Aliás, o problema se coloca hoje da mesma maneira que há cem anos. As novas formas de produção exigem uma elevação importante do

nível de qualificação dos trabalhadores, e 80% de uma faixa etária deve­ rão ter o ensino médio completo. Como transvasar mais conhecimento sem compartilhar da mesma forma o poder? Se a burguesia se encontra

menos inquieta que há um século, é que ela descobriu, através da escola de Jules Ferry, que é possível, graças a certas modalidades pedagógicas, ou

simplesmente, o que significa a mesma coisa, com a negação da pedago­ gia, não dar acesso ao modo de produção social do conhecimento. Sua transmissão não concede mais poder do que sua confiscação. Sabe-se que a Comuna fez, durante sua bre­ ve existência, propostas no campo da educação. Sob o impulso de Edouard Vaillant, uma comis­ são da qual faziam parte Courbet, Vallès, Clé­ ment etc. tentou promover um ensino integral. Os jornais da Comuna faziam referência a esse ensino. Trata-se, pode-se 1er no Le Père Duchêne, de “formar homens completos, ou seja, capazes de executar todas as suas faculda­ des e de produzir não somente com os braços, mas também com a inteligência".

E Le Vengeur acrescentava: “É preciso, enfim, que um manejador de ferramentas possa escre­ ver um livro, escrevê-lo com paixão, com talen­ to, sem que para isso se veja obrigado a abando­ nar o torno ou o banco do carpinteiro”. O que está claro no centro de toda essa refle­ xão é a análise dos efeitos da divisão das tarefas, da separação, na escola como no corpo social, entre o trabalho produtivo e a produção do co­ nhecimento.

Da Comuna à escola municipal, o fosso vai sendo escavado...

66

Dessa forma não é de se admirar a aspereza dos combates

enquanto o movimento socialista puder conduzi-los contra o projeto escolar da burguesia.

Uma educação do povo pelo Estado é algo absolutamente con­ denável, escreve Marx em 1875. Determinar, por uma lei geral, os recur­ sos das escolas primárias, as aptidões exigidas do professorado, as discipli­

nas ensinadas, [...] é totalmente diferente de fazer do Estado o educador do povo! Mais ainda, é preciso proscrever da escola, da mesma maneira,

toda a influência do governo e da Igreja. E acrescenta: Se a burguesia e a aristocracia negligenciam seus deveres para com seus descendentes, é problema deles. A criança que goza dos privilégios dessas classes está con­ denada a sofrer as consequências de seus próprios preconceitos... [...] a combinação do trabalho produtivo remunerado e da educação intelectual [...] elevará a classe operária bem acima do nível das classes burguesas e

aristocráticas.

A tradição operária do século XIX favoreceu constante­ mente o aprendizado mútuo. Em 1860, 87% dos operários parisien­ ses sabem 1er e escrever. Alain Cottereau relata que, até o fim dos anos 70, os contratos de aprendizagem comportam frequentemente cláusulas de instrução mútua dos aprendizes de uma mesma oficina, fora

de toda instituição escolar.

O Estado, acrescenta Edwy Plenel, vai criticar a autodidaxia, todas essas práticas educacionais diretas e mútuas que prescindem da escola, sua ordem hierárquica e sua escala de valores.

Impondo um modo de transmissão, fazendo a escolha de uma pedagogia, a burguesia pretende manter o controle de todos os

processos de produção do conhecimento a fim de que a generaliza­ ção da instrução não possa se voltar contra ela.

67

A laicidade O combate contra um ensino confessional sustentado pe­ las forças mais conservadoras pôde dar a impressão de que aqueles

que o realizaram desejavam promover um ensino progressista, fa­ vorável aos oprimidos, como se tudo acontecesse num espaço com

duas dimensões em que o inverso de um erro é necessariamente uma verdade. Quem não se lembra da crítica acerba de Hugo denuncian­

do no partido clerical a sacristia soberana, a liberdade traída, a inteli­

gência vencida, acorrentada, os livros rasgados, o sermão substituindo a imprensa, a batinas assombrando os espíritos, e os gênios domados pelos

sacristãos!

Essa questão levantou tantos debates memoráveis que é inútil voltar a isso por muito tempo. Se, para o movimento operário, o combate laico é insepa­

rável da contestação de uma ordem social que a Igreja sustenta, para a burguesia industrial, o objetivo é sensivelmente diferente. Trata-se

de desfazer as oposições sociais difundindo valores comuns a todos,

nos quais cada um deve poder se reconhecer. Impor a crença de que a escola está acima das classes, dela subtraindo uma ideologia muito

marcada politicamente, tal é a função essencial de um combate laico

que não revestiu jamais, apesar das aparências, uma aspereza sufi­ ciente para opor permanentemente as correntes presentes no pró­

prio seio da burguesia. Tem-se mesmo a impressão de que se trata de

desacordos entre aliados sobre a estratégia a ser adotada face a um adversário comum. Operando a primeira aproximação, a primeira fusão

resultante da mescla dos ricos e dos pobres, nos bancos da escola, esperase mascarar as relações de exploração e os conflitos entre classes e fa­

zer, assim, a economia de enfrentamentos mais violentos. Jules Ferry,

68

Jean Foucambert

Instrução obrigatória: Quadro de Geofroy / Foto: J.-L.Charmet, Museu Carnavalet

69

ao querer convencer a burguesia rural do seu estado, exprimiu esse sentimento muito sinceramente:

Nas escolas confessionais, os jovens recebem um ensino com­ pletamente dirigido contra as instituições modernas. Exalta-se aí o antigo regime e as antigas estruturas sociais. Se esse estado de coisas se perpetuar, há que se temer que outras escolas se constituam, abertas aos filhos de operários e camponeses, onde serão ensinados princípios diametralmente opostos, inspirados talvez em um ideal socialista ou comunista na esteira de movi­ mentos mais recentes, como por exemplo, dessa época violenta e sinistra entre 18 de março e 24 de maio de 1871.

Jules Ferry acertou em cheio ao colocar a questão: a bur­

guesia só pode impedir que o movimento operário desenvolva suas

próprias escolas ao renunciar ela mesma às escolas confessionais e

implantando uma instituição comum que ela passará a controlar.

Edwy Plenel, que recorda esse discurso de Jules Ferry, acrescenta: tal

é o desafio que a lenda gostaria de calar. E cita Louis Legrand:

Acreditamos que Ferry é antes de tudo um homem da ordem e que sua ação pedagógica se inscreve em uma perspectiva delibe­ radamente conservadora. Se ele trabalhou para o proletariado, foi, antes de mais nada, por preocupação com a disciplina co­ letiva, para melhorar o funcionamento do organismo social, em uma só palavra e em conformidade à inspiração positivista, para dar um fim à revolução.

Plenel conclui sobre esse ponto:

A melhor prova de que a laicidade deva em primeiro lugar ser relacionada a esse dispositivo de dominação é dada pelos limites do anticlericalismo das repúblicas. Eles são flagrantes. Politicamente, o conflito é de curta duração e a política dita

70

Jean Foucambert

do “congraçamento” marca, a partir de 1890, o reencontro das frações da classe dominante face a um movimento operário que ressurge.

Por mais que certos socialistas e certos anarquistas tenham

denunciado a identidade de classe entre a escola laica e a escola con­ fessional, a armadilha funcionou para a esquerda em geral. A bur­

guesia vai jogar habilidosamente, deixando sempre pairar “a chan­ tagem da escola particular”. A partir do momento em que avanços na escola e condições políticas mais favoráveis provocam receio de um desvirtuamento da instituição sobre posições mais transformado­

ras, a mobilização contra uma ameaça escolar, emanando das forças conservadoras, obriga a esquerda a defender a escola tal como ela é e, diante do perigo, a parar, em primeiro lugar, de contestá-la. Vimos um exemplo disso após as eleições de 1981, quando um novo contex­ to podia criar esperança ou temores de que a escola tirasse proveito

da reflexão e da inovação dos trinta últimos anos para transformar profundamente seus princípios e seus efeitos. Foi suficiente provo­

car uma ofensiva do ensino privado, ainda mais surpreendente, já

que nada o ameaçava, para fazer aceitar, sob o pretexto da defesa da escola pública, uma política convergente de restauração dos valores e dos objetivos da escola tradicional, o parâmetro tendo sido fixado

somente em um nível de instrução um pouco mais elevado. Como observa ainda Edwy Plenel, a ambiguidade social da

noção de laicidade é tal que a esquerda em geral não se contenta em defender o ensino público como algo melhor, mas o idealiza, encobre suas funções sociais e faz do seu desenvolvimento a antessala do Estado sócialista.

O que faria sem dúvida sorrir Jules Ferry!

A Escola de Jules Ferry: um mito que perdura

71

O patriotismo Todos os franceses se lembram desses mapas da França

debruados de negro, o luto das províncias perdidas15. Pensemos nisso sempre, mas não falemos jamais sobre isso. Esse patriotismo, nutri­

do de nacionalismo e de revanche, exalta valores que pretendem transcender os interesses particulares e associar cada indivíduo,

quaisquer que sejam seu lugar e seu papel, no desenvolvimento e

na defesa de um patrimônio comum. Trata-se de dar a cada um o sentimento de pertencer e de ser responsável, o que prefigura a fa­

mosa União sagrada de 1914. Findas as disputas entre franceses, as divisões sociais e as posições de interesse. A Pátria substitui Deus e essa armadilha vai funcionar como uma réplica contra os conluios

do internacionalismo socialista e o temeroso: Proletários de todos os

países, unam-se. A escola desempenha um papel importante nessa trans­ formação das mentalidades, impondo a ideia de que não há ope­ rários ou patrões. Mas somente franceses, todos beneficiários do

trabalho de uns e de outros. Da mesma maneira, não há mais bas­ cos nem bretãos, só há franceses, falando a mesma língua, tendo a

mesma forma de viver e de pensar... Essa normatização, através da laminação das particularidades individuais e regionais, visa masca­ rar as verdadeiras desigualdades e as verdadeiras diferenças por trás

de uma imagem de um francês típico, de uma ideologia comum,

de sentimentos de solidariedade, de devoção e de gratidão, uma

cultura comum.

15

72

N. T. Alsácia e Lorena, as duas regiões perdidas para a Alemanha.

A esperança da revanche mantém nas escolas uma preo­ cupação militar. O primeiro slogan da Liga do Ensino não foi "Pela Pátria, pelo livro e pela espada”?

Os “batalhões escolares” de Jules Ferry são dotados de fuzis

de exercício com os quais eles treinam, desfilam e manejam armas. É verdade que se pode esperar reduzir dessa forma os cinco anos de um

serviço militar que retira uma mão de obra jovem e forte do mercado de trabalho. Assim enganados, os oprimidos vão partir para Berlim e morrer no caminho, mortos por outros oprimidos, para fazer triunfar

as ideias de liberdade e de igualdade. A União sagrada de 1914 é,

depois da Comuna, o mais pungente fracasso das ideias socialistas e, para muitos, isso se deve à escola. Com o mesmo espírito, a escola exaltará a família, como

célula fundamental da sociedade em que se aprendem e se exerci­

tam os mesmos valores: o respeito pela autoridade, pelo dever, pela solidariedade... É preciso dizer que a fragmentação da sociedade rural e a precariedade das condições de vida e de trabalho nas peri­

ferias das grandes cidades põem em xeque as estruturas tradicionais

e anunciam elos familiares e modos de relação entre pais e filhos

de um novo tipo. A burguesia se preocupa diante da possibilidade de que uma estrutura mais coletiva do que a família passe a cuidar das crianças, desembocando então no sentimento de não pertencer

a essa célula fundamental em que se transmitem, junto com um

patrimônio, o sentido da propriedade e dos valores individuais. Ra­ zão pela qual a burguesia vai iniciar ações múltiplas para impor ao mundo operário a vida em uma célula capaz de garantir, em todos

os sentidos da palavra, uma reprodução mais eficiente. Como assi­

nala Edwy Plenel:

A Escola de Jules Ferry: üm mito que perdura

(I.N.R.P. Musée National de L'Éducation)

74

(Instituto Nacional de Pesquisa Pedagógica - Museu Nacional da Educação)

**

N.T. L'Assiette au beurre” foi um jornal francês ilustrado por desenhistas

anarquistas publicado de 1901 a 1912.

75

76

5 pontos

Ditado

A educação para o patriotismo A verdadeira escola do patriotismo é a história nacional.

Ela conta a você os triunfos de seus ancestrais e assim inflama seu patriotismo, ela conta a você os infortúnios, as humilhações, as dores de seus compatriotas e assim

provoca sua ternura. Para amar a grande pátria, comece por amar sua pátria local: estude o solo que você habita,

seus produtos, suas riquezas. 'Pergunte a si mesmo quais grandes homens suas cidades, seu vilarejo, seu estado viu nascer. Aprenda a conhecer todos os vestígios do passa­

do. todos os monumentos que testemunham as lutas susten­ tadas pelos seus pais. A terra então se animará por st só e

pregará a você o amor à pátria. 5 erros

A Escola de Jules Ferry: um mito que perdura

77

Tarefas do dia 28 de dezembro de 1901 Cartas do primeiro dia do ano Tarefas do dia 30 de dezembro de 1901

Moral

Tarefas na família (revisão) Máxima. As alegrias mais puras e as mais duráveis são

aquelas que encontramos no seio da família. Aritmética

Divisão dos números decimais. Trova. Problema

Um cultivador nutre 13 vacas que...

6 pontos

78

Jean Foucambert

DEVOIRS ENVERS LA PATRIE.

181

fection dans le maniement des armes, la précision des mouvements d’ensemble sont devenus le principal. Le soldat a besoin d’être formé d’avance, et il faut bien, coûte que coûte, se résigner à entretenir, en cas de besoin, de nombreux régiments dans les casernes. — Mais, monsieur, est-il nécessaire que tous les jeunes gens sans exception entrent à l’armée. — Nécessaire, non; utile, oui; car le nombre des soldats est un élément de succès très important main­ tenant; cela est équitable surtout, car il ne serait pas juste que certains d’entre nous allassent risquer de se faire tuer pour les autres qui resteraient tranquille­ ment chez eux sans rien faire d’utile à la patrie. Les devoirs du soldat au régiment tu les devines, ou plutôt tu les connais : d’abord la discipline, sans laquelle il n’y a pas d’armée possible, pas de solidité, pas de force, pas de victoire. La discipline comprend l’obéissance aux chefs, l'amour et le respect du dra­ peau, qui est l’image de la Patrie, de sa gloire, de ses bienfaits et des obligations sacrées qu’elle nous impose : au combat, le courage et le dévouement allant jusqu'à l'héroïsme. La France est riche en exemples de ce genre. Nous ne devons pas déchoir de ce passé. L’armée doit être l’institution préférée du pays, son espoir, son honneur, son plus cher souci. Elle n’est pas une caste à part, elle est la nation elle-même se protégeant contre les attaques possibles et demandant à chacun de scs membres valides le dévouement et le secours qu’elle est en droit d’attendre de tous. Elle sera encore plus intimement unie au peuple d’où elle sort, lorsque tous ceux qui sont appelés à

A Escola de Jules Ferry: um mito que perdura

79

182

LA PATRIE.

en faire partie plus tard se seront dès l’enfance pré­ parés à ce devoir. L’institution des bataillons scolaires facilitera l’ins­ truction du soldat. Tous nos enfants seront bientôt de petits hommes qui n’auront plus qu’à grandir pour être en état de défendre vaillamment la Patrie à la­ quelle ils doivent tout. SOMMAIRE

Avec l’impôt et le vote, le plus important des devoirs du citoyen envers sa patrie est le service militaire. 11 est nécessaire, en l’état actuel, que chaque pays entretienne une armée permanente pour faire res­ pecter sa sécurité et son indépendance. Le service militaire est maintenant obligatoire pour tous, ce qui est prudent et juste. L’armée n’est que la nation elle-même se défendant contre ses ennemis et se préparant par la discipline et l’étude à protéger l'héritage des ancêtres. EXERCICES

Pourqui l’impôt est-il le premier des devoirs que contracte un ci­ toyen envers sa patrie ? — Expliquez la nécessité et la justice de l’im­ pôt. — Pourquoi est-ce un devoir pour le citoyen de s’intéresser à la marche des affaires de sa pairie? — Comment peut-il exprimer son opinion à ce sujet ? — Que pensez-vous des citoyens qui s’abstiennent dans les votes importants? — Pourquoi faut-il que chaque nation au­ jourd'hui entretienne une armée permanente 7 — Pourquoi la levée en niasse, à la veille du combat, ne suffirait-elle pas? — Pourquoi le service militaire est-il obligatoire pour tout le monde? — Que com­ mande la discipline ? —Pourquoi faut-il que toute force armée obéisse à une discipline? — Quelle est l’utilité des bataillons scolaires?

80

Jean Foucambert

DEVERES PARA COM A PÁTRIA

181

feição na manipulação das armas, a precisão dos movimentos

coordenados tornaram-se o principal. O soldado precisa ser formado antecipadamente e é necessário, custe o que custar,

resignar-se a manter, em caso de necessidade, muitos regimentos

nas casernas. - Mas, senhor, será que é preciso que todos os jovens sem

exceção entrem no exército? - Necessário, não; útil, sim; pois o número de soldados é um

fator de sucesso muito importante agora; isso é, sobretudo, equitável, pois não seria justo que alguns de nós fôssemos arriscar a

vida pelos outros que ficariam tranquilamente em casa sem fazer nada de útil para a pátria.

Os deveres do soldado no regimento, você pode adivinhálos, ou melhor dizendo, você os conhece: primeiro a disciplina,

sem a qual não há exército possível, não há solidez, não há força, não há vitória. A disciplina compreende a obediência aos chefes,

o amor e o respeito à bandeira que é a imagem da Pátria, da sua glória, dos seus benefícios e das obrigações sagradas que ela nos

impõe, no combate, a coragem e a devoção até o heroísmo. A Fran­

ça é rica em exemplos desse tipo. Devemos honrar esse passado.

O exército deve ser a instituição preferida do país, sua espe­ rança, sua honra, sua maior preocupação. Ele não é uma casta à parte. Ele é a nação em si se protegendo contra possíveis ataques

e solicitando de cada um de seus membros válidos a devoção e a

ajuda que ele tem o direito de esperar de cada um.

Ele será ainda mais intimamente unido ao povo do qual

se origina, quando, mais tarde, todos os que são chamados

A Escola de Jules Ferry: um mito que perdura

81

A PÁTRIA

182

a fazer parte dele terão, desde a infância, se preparado para este

dever.

A instituição dos batalhões escolares facilitará a instrução do soldado. Todos os nossos filhos serão logo pequenos homens a

quem só lhes restará crescer para serem capazes de defender com

valentia a pátria à qual devem tudo.

SUMÁRIO Juntamente com o imposto e o voto, o mais importante dos deveres do cidadão para com a sua pátria é o serviço militar.

É preciso, no estado atual, que cada país mantenha um exér­ cito permanente para fazer respeitar sua segurança e sua inde­

pendência. O serviço militar é agora obrigatório para todos, o que é pru­ dente e justo.

O exército não é senão a nação em si se defendendo dos seus

inimigos e se preparando pela disciplina e o estudo para proteger a herança dos seus antepassados.

EXERCÍCIOS Por que o imposto é o primeiro dos deveres contraídos por um cidadão para com a sua pátria? - Explique a necessidade e a justiça do imposto. - Por que é um dever para o cidadão interessar-se pelo andamento dos negócios da sua pátria? - Como o cidadão pode expressar a sua opinião a esse respeito? - O que você pensa dos cidadãos que se abstêm nas elei­ ções importantes? - Por que é preciso que cada nação hoje mantenha um exército permanente? - Por que a mobilização em massa, na véspera do combate, não seria suficiente? - Por que o serviço militar é obrigatório para todos? - O que comanda a disciplina? - Por que é necessário que toda a força armada obedeça a uma disciplina? - Qual é a utilidade dos batalhões escolares?

82

Jean Foucambert

O que está em jogo é a destruição das antigas formas de socia­ bilidade. A propagação do saber viver dominante impõe a não imbricação das famílias, a separação por idade, a ausência de contato nos jogos ou nos locais de aprendizagens; procura-se evitar a aglutinação nas ruas, a instabilidade no trabalho ou na moradia. É importante uniformizar os modos de vida e de pen­ samento, unificá-los de acordo com um modelo que atomiza, compartimenta e divide. Distanciar-se da comunidade social, refugiar-se no espaço familiar facilita o controle e o isolamento do operário como indivíduo.

Armadilha que foi, se não desejada, pelo menos aceita: a

família aparece entre os meios populares como um refúgio frente a

um mundo difícil e condições de trabalho desumanizadas, como um território de relativa autonomia. Foi surpreendente, às vezes, a faci­

lidade com a qual a Terceira República desmoronou-se para deixar

lugar ao governo de Pétain. Mas o slogan do novo Estado francês

“Trabalho, família, pátria” corresponde melhor aos valores inculcados pela escola de Jules Ferry do que aqueles, muito mais formais, do

slogan republicano. Da mesma forma que alguns discursos xenófobos de hoje em dia diferem pouco deste livro destinado à formação moral

e cívica dos professores do ensino fundamental.

A Escola de Jules Ferry: um mito que perdura

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QUEST CE QUE LA PATRIE?

169

— De bien servir sa patrie. — Certes, mais qu’est-ce que cela veut dire, bien sert ir sa patrie? N'avons-nous pas déjà dit qu’il faut aimer la patrie comme une mère et lui obéir comme à un père. L'aimer, c’est facile, n’est-ce pas? La nature nous y porte presque malgré nous. Quel est le Français qui ne sente pas son coeur battre au seul nom de la France, qui ne soit pas heureux de sa gloire, et ne sont pas triste de ses malheurs? — Oh! oui, monsieur, je comprends bien qu’il faut aimer tous les hommes, mais jamais je ne pourrai m’empêcher de préférer les Français à tous les autres. — Et tu feras bien de ne pas lutter contre ce senti­ ment, mon ami. On doit avoir de la sympathie pour tons ses semblables, mais il n’est pas défendu d’aimer mieux ses parents. C’est la même chose quand il s’agit du pays : le nôtre passe avant tous les autres. C’est justice, puisque nous recevons de lui plus de bienfaits; la reconnaissance nous oblige à le traiter mieux que les autres. ' Aimer sa patrie cela n’est pas diffiçile, mais respec­ ter son autorité et obeir à ses lois, voilà qui est

moins aisé que tu ne crois, — Mais ce n’est pas bien difficile non plus, cela, puisque ces lois sont conformes à la justice. — Non certes, il n’y a pas grand mérite à se sou­ mettre aux lois qui consacrent des droits évidents et reconnus de tous. Mais la patrie juge quelquefois qu’il est de son intérêt de fixer d’une certaine manière la forme de son gouvernement et le détail de son admi­ nistration : il peut arriver que les espérances ou les

84

Jean Foucambert

O QUE É A PÁTRIA?

169

- Bem servir à sua pátria. - Certo, mas o que significa bem servir à sua pátria!

Já não falamos que é preciso amar a sua pátria como a uma mãe e obedecer-lhe como a um pai? Amá-la é fácil, não? A natureza nos leva a isso quase sem que a

gente qieora; Qual é o Francês que não sente seu coração bater ao ouvir sumente o nome da França, que não fique feliz pela sua glória, e não fique triste por seus infortúnios? - Oh, sim, senhor, entendo perfeitamente que é necessário amar

todos os homens, mas nunca poderei me impedir de preferir os fran­ ceses a todos os outros. - E você fará bem em não lutar contra esses sentimentos, meu

amigo. Devemos ter simpatia para com todos os nossos semelhantes,

mas não é proibido amar melhor seus familiares. É a mesma coisa quando se trata do país: o nosso vem antes de todos os outros. E normal, já que recebemos dele mais benefícios, a gratidão nos obriga

a tratá-lo melhor do que aos outros.

Amar sua pátria não é difícil, mas respeitar sua autoridade e obedecer às suasleeis is,éo que menos fácil do que parece; - Mas isso também não é muito difícil, já que essas leis estão em

conformidade com a justiça. - Não, certamente, não há grande mérito em se submeter

às leis que consagram direitos evidentes e reconhecidos por

todos. Mas a pátria julga algumas vezes que é do seu interesse

fixar de alguma maneira a forma do seu governo e o detalhe da sua administração: pode acontecer que as esperanças ou os

A Escola de Jules Ferry: um mito que perdura

85

A gratuidade É a contrapartida da obrigatoriedade do ensino e é fácil medir a ambiguidade dessa determinação. O fato de a burguesia in­ dustrial ter tido que batalhar firmemente contra os membros conser­ vadores para obter a gratuidade da instrução do povo é um argumen­ to capaz de lhe garantir o apoio e o reconhecimento das forças da

esquerda e de conferir à instituição um ar democrático. De fato, esse direito à instrução sempre foi uma reivindicação importante do mo­ vimento operário. Porém, ao contrário, não se vê muito bem como

teria sido possível conduzir o projeto de formação das novas forças

produtivas sem instaurar uma gratuidade que levasse simplesmen­ te em consideração a situação econômica da população envolvida. A adaptação das forças produtivas às formas modernas do trabalho

implica também tais investimentos. A obrigatoriedade em si é ambí­ gua já que se opõe tanto ao obscurantismo que nega a necessidade

do saber quanto à tradição do movimento operário que propõe um

outro modelo educativo e não confunde a gratuidade garantida pelo Estado com a educação do povo pela burguesia.

Aliás, mais uma vez, Jules Ferry é muito franco: É preciso que o rico pague o ensino do pobre, e é deste modo que

se legitima a propriedade. Ao mesmo tempo em que ela se justifica e se reforça, em

nome da caridade e do interesse, é claro. O que transparece ainda mais claramente quando se apresenta a questão da gratuidade do

ensino secundário: O dever do Estado, declara Jules Ferry, na questão do ensino

fundamental é absoluto, é devido a todos. Por quê? Porque este dever é

medido pelo próprio interesse social... Porém, quando se trata do ensino

86

Jean Foucambert

médio, a necessidade é outra e a pretensão não seria mais admissível... Têm direito a ele, somente aqueles que são capazes de receber e que, ao

recebê-lo, podem prestar serviço à sociedade. A propriedade se justifica transmitindo aos pobres os sabe­

res que a reforçam; entretanto, o acesso à produção do saber deve ser reservado aos herdeiros... Qual diferença estabelece de fato Jules Ferry entre o interesse social do ensino fundamental e o serviço pres­

tado à sociedade pelo ensino médio? O público do ensino fundamen­ tal vai utilizar saberes; o do ensino médio vai produzir saberes. Por

que não seria admissível que todos recebessem uma formação que lhes permitisse participar desta criação? Por que a sociedade não pre­

cisa disso? Certamente. Por que nem todos os indivíduos são capazes de produzir? É uma petição de princípio. Por que é perigoso? Eviden­

temente. A partir de então, que filtro adotar? Aquele da não gratui­

dade que reserva o ensino médio exclusivamente aos herdeiros... O interesse social do primeiro grau é aquele que Durkeim descreve da

seguinte maneira:

É respeitando a regra escolar que a criança aprenderá a respeitar as regras, que ela se habituará a se conter e a se constranger, por­ que deve se constranger e se conter. É uma primeira iniciação à austeridade do dever. É o início da vida séria... [...] É preciso, portanto, que a educação leve a criança a sentir desde muito cedo que existem limites que são baseados na natureza das coi­ sas, o que significa na natureza de cada um de nós...

Não haveria melhor maneira de justificar o interesse des­ se investimento educativo que se fundamenta ao mesmo tempo na

obrigatoriedade e na gratuidade, já que se trata de levar as crianças a interiorizar a regra da desigualdade social como sendo própria da

natureza das coisas, ou antes, da desigualdade natural que existiría entre os indivíduos! A Escola de Jules Ferry: um mito que perdura

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O ruralismo Quase não se precisa insistir no apego da escola de Jules

Ferry pela natureza, pelo campo, pela agricultura, pela jardinagem, pelo vilarejo. Todos nós temos em mente o problema do agricultor

que quer cercar o seu campo e que se pergunta quantas estacas deve comprar; da mesma maneira, o ritmo das estações, o tipo de moradia, a maneira de se alimentar, as formas de trabalho, o tipo de lazer, tudo evoca a vida rural. Os poemas e as canções exaltam o contato com

a natureza e o amor pelas coisas simples, saudáveis e laboriosas, e lembram, ao seu modo, o quadro mais amplamente popularizado, o

Ângélus de Millet.

Ângelus de Jean François Millet (Imagem comum nas casas dos camponeses franceses).

É verdade que, no final do século XIX, a França ainda é

amplamente rural e que os professores do ensino fundamental são recrutados em massa entre os filhos de pequenos camponeses. Por-

88

Jean Foucambert

Problema

7 pontos Tarefa satisfatória

Um campo tem uma superficie de 358 ares***. Um are pro-

duz 20 l de trigo. Qual é o lucro desse campo se o hectoli­ tro desse trigo é vendido a 23.75 francos sabendo que as despesas do cultivo se elevam a 80 francos por hectare?

Solução

A quantidade de litros produzida nos 358 ares é de 358 X 20 = 7160 l ou

71a 60.

O preço de 71a 60 é de

7160X 2375 = 175Ofr5Oc

Operação 358x20 = 7160

7160:100 = 7160 7160 23.75 35800 50120 21480 14320 1750.5000

*** N. T Unidade de medida para superfícies agrárias que corresponde a 100 m²

[símb.: a].

tanto, não surpreendería que a educação se enraizasse no ambiente

de vida e na experiência comum aos alunos e aos professores. Mas, desde o início, escolas do ensino fundamental funcionam nas cida­ des e a urbanização vai se acelerar ao longo dos anos. No entan­ to, de 1875 a 1940, e mais adiante ainda, o caráter profundamente

rural da escola não se apagará. Inclusive na mais notável tentativa

de mudança, da qual voltaremos a falar, constituída pelo aporte de Célestin Freinet: a cidade, a realidade da vida urbana, a especifi­

cidade de uma cultura citadina e operária, tudo isso ficará de fora

das preocupações do ensino fundamental. E não constitui o menor dos paradoxos o fato de que uma escola implantada na lógica da

industrialização tenha exaltado e exalado, durante quase um século, um sistema de valores diferentes, até mesmo opostos. Não dá para

deixar de enxergar nisso o temor inspirado pelo mundo operário das cidades e das periferias, sempre a ponto de se revoltar, de se deixar

levar pela anarquia, mundo ao qual se opõe a virtude do trabalhador

rural que, ao contrário, sabe encontrar sua felicidade no trabalho, na permanência e na resignação. O universo da cidade fica, ou fora das preocupações da escola, ou é apresentado de modo negativo como uma realidade ameaçadora, um lugar onde tudo é fácil, depravado

e perigoso, com uma moralidade precária. A descrição do trabalho na fábrica não aparece ou é substituída mais sutilmente por formas

de trabalho que se parecem mais com o trabalho do artesão do que com o trabalho em série. O desemprego é explicado pela má conduta do mau trabalhador, a pobreza pelo alcoolismo. Nem se mencionam as razões de militar em um sindicato ou de pertencer a um partido

político. Quando uma greve é evocada, é pelas suas consequências

desastrosas para a família e para a economia, e não como o último meio de se preservar ainda um pouco de humanidade.

Desse modo, esse ruralismo visa quatro objetivos: 1) Tran­

quilizar a burguesia conservadora que reencontra seus próprios valo-

90

res; 2) Ancorar o meio operário na nostalgia do seu passado próximo

oriundo do campo; 3) Manter as qualidades camponesas no prole­ tariado que está nascendo: submissão, paciência, noção de econo­

mia, individualismo, medo de mudanças etc.; 4) Evitar que a escola favoreça a conscientização sobre a realidade social em que, de fato, se vive.

A escola propõe um modelo social artificial que elimina do cotidiano a opressão, própria às novas formas de produção, e torna,

dessa maneira, muito mais problemática a sua teorização. Quando se considera, cem anos depois, esses cinco pilares da escola de Jules Ferry, não temos como deixar de constatar que estes foram edificados para resistir às duas oposições com as quais

a burguesia industrial se encontrava confrontada. Alimentar as es­

peranças dos meios operários para sair dos limites do obscurantismo

político e social dos conservadores; transmitir a instrução necessária às forças produtivas sem trocar este saber por poder; em outras pala­

vras, transmitir um saber de tal modo que pudesse ser reinvestido na economia, mas não na política. Do lado da oposição conservadora, a questão não tardará

a ser resolvida: a crueldade da repressão à Comuna tranquilizou, a

mediocridade das tentativas monarquistas decepcionou, as garantias para a permanência do ensino confessional particular convenceram. Assim, o congraçamento se deu antes do final do século XIX.

Do lado do movimento operário, as coisas são mais com­

plicadas. O extermínio da Comuna marcou o fim de um conflito até

então relativamente equilibrado. As forças de esquerda estão esgota­

das; e por vários anos. A escola Jules Ferry vai poder se desenvolver rapidamente, em meio ao estupor e à resignação. Quando se recons­

titui, o movimento operário encontra-se diante de outros problemas

e frente a uma instituição coerente e já eficiente. Já é tarde demais

92

Jean Foucambert

Composição francesa Em que consiste a poupança. Como convém praticá-la.

Erros a evitar. 6 pontos Tarefa satisfatória

Desenvolvimento A poupança consiste em gastar somente o necessário e

menos do que se ganha. A poupança garante uma velhice tranquila, serve em caso de doença e de desemprego.

Tara praticar a poupança convém colocar progressiva­ mente suas economias na Caixa Econômica****. Se as guardamos em casa, elas não dão lucro nenhum e nós

ficamos mais tentados a gastá-las. ao passo que na Caixa Econômica só sacamos em caso de extrema necessidade.

O erro a ser evitado na poupança é a avareza. A avareza

consiste em juntar seu dinheiro e em privar-se do mínimo

necessário. O avaro amontoa seu dinheiro e vive somente por ele. É nefasto para ele. Já que faz mal a si mesmo ao

se privar do necessário. E nefasto à sociedade porque não

presta serviços com medo de perder seu tempo ou de gastar

o seu dinheiro. Nem avaro, nem pródigo, é preciso ser eco­ nômico. E preciso aprender desde cedo a economia a fim

de se habituar a ela.

N. T. Caisse d'Épargne: Banco nacional francês especializado em poupança. **** A Escola de Jules Ferry: um mito que perdura CX . OíW c 7

d-&

93

para lutar contra a sua implementação. Só resta uma esperança: ex­

plorar da melhor maneira as suas contradições, ir além das suas in­ tenções e transformá-la em arma de classe. Exceto alguns maçons nostálgicos e alguns socialistas mis-

tificados, ninguém mais pensa hoje em dia em definir a obra de Jules Ferry de outra forma que não seja como um investimento econômi­

co, que é ao mesmo tempo um aparelho de dominação ideológica e legal. Entretanto, a burguesia não faz muita questão que sejam des­

vendadas as intenções e as consequências de uma instituição que ela mesma implantou em beneficio próprio; sempre terá habilidade para fingir discordâncias com esta instituição com o fim de reforçar

ainda mais o sistema, obrigando a esquerda a preferir defendê-la e a promovê-la antes que contestá-la.

A esquerda, por sua vez, estima, como assinala Edwy Ple-

nel, que com a gratuidade, a obrigatoriedade, o recuo do domínio clerical [...], as leis laicas realizam, do ponto de vista das classes laborais, um movimento limitado, porém positivo. E teme que uma crítica excessi­ vamente radical da escola capitalista leve ao abandono do que con­ sidera, apesar de tudo, como uma conquista. Razão pela qual ela

se acostumou a adotar, em relação à escola, uma atitude reformista

que esvaziou a reflexão acerca da escola de toda análise política e focalizou seus esforços na defesa de uma ampliação dos meios. É es­

sencialmente por esse viés que espera transformar uma ferramenta de dominação em benefício dos dominados.

É necessário, por fim, defender-se contra toda simplifica­ ção. Se não resta dúvida alguma a respeito das intenções políticas

de Jules Ferry, seria preciso evitar ver na implantação da escola fun­ damental a realização de um plano frio e maquiavélico. Não nos en­

contramos diante de uma classe social dominante que impõe, com cinismo, uma ideologia em benefício próprio. A crença da burguesia

94

Jean Foucambert

não provém de uma escolha deliberada entre várias possibilidades.

Ela acredita no que é somente capaz de conceber. Sua ideologia re­

presenta ao mesmo tempo a sua arma e seus limites. Para transpor a expressão de Marx: uma classe social que oprime uma outra não

é livre. A classe dominante também é alienada pelos “valores” que deve promover para dominar.

Da mesma maneira, distorções importantes vão se criar

entre o efeito prescrito e o efeito real de um projeto escolar como esse. A escola implantou-se nas contradições de uma luta simultânea

contra dois adversários que teve que levar em conta. Os dominados a transformaram, assim como ela os transformou. Daí a sua ambigui­

dade e suas esperanças.

A Escola de Jules Ferry: um mito que perdura

95

Capítulo 3

“O que é feito de vocês, homens, mulheres...”

A implantação desse projeto foi rápida. Em pouco menos

de quinze anos a França viu desenvolver-se uma rede coerente e hierarquizada em torno da escola fundamental: os próprios estabe­

lecimentos, os espaços de formação dos professores do ensino funda­ mental e o dispositivo administrativo e de avaliação dos professores. Sem falar de uma opinião pública que com muita facilidade se iden­ tifica e se reconhece nela.

Trabalhos recentes insistiram, com razão, no fato de essa

implantação ter sido realizada a partir de instituições já existentes; da mesma maneira, quando se considera os resultados, é preciso evi­ tar imaginar que a França passou, em vinte anos, da ignorância ao saber. As diferentes formas dos dispositivos anteriores já haviam ele­

vado de modo decisivo o nível de alfabetização da população.

A ação de Jules Ferry visa, antes de mais nada, sistematizar e generalizar os meios de uma instrução que não deve mais depender

das circunstâncias locais; e (sobretudo, porque se se tratasse somente disso, teria sido suficiente propor mais recursos às estruturas existen­ tes) inscrever essa instrução em um projeto político: transformar o

Estado em educador do povo para transmitir os conhecimentos neA Escola de Jules Ferry: um mito que perdura

97

cessários à economia, sem perder, por isso, o controle sobre o poder

social do Saber. Em outras palavras, definir desde a sua origem os

modos de transmissão e de aquisição para reforçar a ordem em vez de fragilizá-la. Criar não a escola do povo, mas uma escola para o povo

que o leve a interiorizar a desigualdade social negando a divisão de

classes, que torne científica e moral a natureza das coisas, que expli­

que a relação dominantes-dominados, pelo fracasso ou pelo sucesso de indivíduos tendo se beneficiado de oportunidades iguais. Que me perdoem os nossos progressistas retrógrados de hoje, tudo isso passa pela pedagogia. É verdade, a escola não cria

mais desigualdade do que ela é supostamente capaz de reduzir; mas o modo pelo qual tem-se acesso ao conhecimento desempenha uma função fundamental na reprodução do sistema, uma primeira vez se­ lecionando indiretamente, a partir de características sociais, aqueles

que fracassam e aqueles que têm sucesso, e uma segunda vez, es­

terilizando, com seu modo de transmissão, os saberes concedidos à maioria. A pedagogia contribui em reforçar um sistema desigual,

sobretudo quando visa sucessos individuais ou, ao contrário, ela par­ ticipa da sua transformação quando permite compreender seu fun­ cionamento. Pois só se compreende o que se transforma... Mais uma vez, essa implantação pedagógica será, em si, um

desafio em um meio docente perpassado pelas próprias contradições

e seus engajamentos filosóficos e políticos. Os professores da escola de Jules Ferry serão recrutados em sua maioria nos meios populares e suas ações sempre serão motiva­ das pela vontade de trazer os benefícios da instrução até seus pares.

Mais do que os soldados, defensores da República, são os Cruzados da Instrução que perseguem a ignorância e a superstição e enxergam

98

Jean Foucambert

no progresso científico e moral as garantias mais certeiras de uma promoção coletiva para os desfavorecidos. Porém, ao mesmo tempo, são selecionados entre seus pa­ res, a partir de seu sucesso escolar e sua aptidão em tirar proveito do ensino tal qual é oferecido. Eles pensam que devem tudo à escola, que aparece, então, não somente como um meio de promoção co­

letiva, mas também como o meio de um sucesso individual, como a

melhor possibilidade oferecida aos pobres para ultrapassar os limi­ tes da sua condição. Os professores do ensino fundamental são os primeiros usuários e os primeiros beneficiários desse ascensor social e sua experiência vai modificar consideravelmente a percepção da

função da escola. Em vez de instrumento a serviço de uma política

coletiva - seja o projeto da burguesia ou o do movimento operário - a escola vai se apresentar como um serviço colocado à disposição dos indivíduos, como uma oportunidade ofertada a eles para subir

na escala social, já que a relação de forças não permite questionar a própria existência dos níveis desta estratificação.

Evidentemente, só há ascensão quando se mantém o desnivelamento entre aqueles que têm sucesso e aqueles que fracassam. Assim, esse deslocamento, para não dizer esse desvio, de uma função

coletiva para um uso individual, tem como efeito manter e inclusive justificar a desigualdade e a divisão social, porque o caminho existe e todo indivíduo tem, teoricamente, a esperança, pelo seu trabalho

e pelos seus dons, de subir de um nível para outro. É pelo viés dessa

promoção dos melhores alunos dos meios populares em direção às carreiras de professores do ensino fundamental, de funcionários, de

empregados, que vai se constituir aos poucos o que se chama a classe média, realizando, graças à ilusão de uma continuidade, condições

sociais harmoniosas, já que temos a prova disso: existe somente uma França, única, em que cada um se situa em função de seu mérito e

carrega assim toda a responsabilidade do destino que é o seu. “se ti­

vesse ido bem na escola, poderia dizer o operário para seu filho, seria

engenheiro ou patrão...”

Certo, mas, e se todos os operários tivessem ido bem na escola? Felizmente, o bom Deus é vigilante ao distribuir, para alguns, dons que recusa a outros e, para não se confundir em uma contabi­

lidade delicada, parece ter tomado globalmente o partido de fazer

nascer - se se observa a porcentagem de filhos de operários nas uni­ versidades — os imbecis entre os pobres... Fora algumas exceções, ora

veja!

A pedagogia da escola de Jules Ferry desenvolveu-se em meio a essa dupla limitação: criada para dotar as forças produtivas de

conhecimentos necessários e, segundo a expressão de Louis Legrand, para por fim à revolução, a escola será “construída” por professores

de ensino fundamental que querem, na sua maioria, desenvolver co­ nhecimentos libertadores. Pelo viés da confrontação desses dois pro­

jetos, a promoção coletiva vai se transformar em corrida em direção

ao sucesso individual. Ao constatar, rapidamente, a sua impotência na divulgação de conhecimentos capazes de questionar as relações

de domínio em si, a escola vai querer ser libertadora na medida em que permitir para um maior número de dominados juntar-se ao cam­

po dos dominantes. Assim passou da promoção coletiva à promoção

social. Sem perceber que nesse deslize encontrava-se a armadilha.

Pois os conhecimentos a serem adquiridos para serem re­ conhecidos por um sistema são, de modo sutil, diferentes dos co­

nhecimentos necessários para transformá-lo. No primeiro caso, são recebidos, no outro, são construídos. No primeiro caso, são objetos

externos, produtos sociais como os demais e que já têm as caracterís­

ticas do sistema que os concebeu. No outro, são elaborados a partir

de ações reais realizadas no próprio sistema, já em reação a ele e para

100

Jean Foucambert

transformá-lo. Encontramos aqui as duas concepções pedagógicas

que, no século XIX, não pararam de opor a burguesia e o movimento operário. Aprender, sim, mas como e em que condições?

Com a esperança de multiplicar, na base da conformidade, os sucessos individuais, optou-se por uma pedagogia da transmissão, o que levará, entre muitas outras, a três consequências:

1. Para que o enxerto desses conhecimentos funcione, precisa-se de uma certa compatibilidade entre o doador

e o receptor. Quanto mais o meio familiar do aluno for

portador dos valores transmitidos pela escola, mais fácil será a aquisição escolar. Portanto um formidável poder

reprodutor, homem por homem.

2. Só são selecionados para produzir novos conhecimentos os indivíduos que primeiro provaram a sua aptidão ao receber os conhecimentos já existentes, que já prova­ ram o seu isomorfismo com os modos de pensamento e

de análises dominantes. Portanto um formidável poder reprodutor, valor por valor. 3. Aqueles, a extrema maioria, que não serão seleciona­

dos, ficarão com a pequena panóplia dos conhecimen­ tos transmitidos e terão uma dificuldade muito grande para ter acesso, por si mesmos, a partir da teorização da

sua experiência, à produção de conhecimentos novos.

Os conhecimentos transmitidos, utilizáveis dentro da

lógica que os concebeu, são pouco férteis para produzir outra lógica. Portanto um formidável poder reprodutor,

sistema por sistema.

Essa esperança do sucesso individual aparece claramente como o para-raios das ideias revolucionárias. A Escola de Jules Ferry: um mito que perdura

A pedagogia da escola de Jules Ferry se desenvolve, portan­ to, em meio a essas ambiguidades, a essas limitações, sob o controle de uma opinião pública que tem seus próprios fatores de evolução,

suas expectativas, suas representações da criança e da educação. A sua eficácia toda reside agora na sua pedagogia. Quais são as suas diretrizes?

A disciplina “Você vai ver quando for pra escola!”

O bom professor é, por natureza, severo e justo; ele “im­ põe” disciplina. As crianças o temem e o respeitam. Todos nós nos

lembramos daqueles recreios que terminavam ao se ouvir o som do sinal. Cada um se imobiliza para depois juntar-se às fileiras ao ou­

vir o segundo sinal, “cada um mantém suas distâncias” levantando um braço até o ombro de seu vizinho. As duas fileiras avançam sob

o olhar do professor que entra, assim, em posse da sua classe. Os

alunos ficam de pé ao lado da sua carteira, de braços cruzados, se sentam ao ouvir a ordem... A juventude turbulenta deve ser canalizada; razão pela

qual o dia se passa dessa maneira. Ninguém se levanta sem autoriza­

ção, ninguém fala sem ser convidado a fazê-lo, ninguém tira as coisas

da mochila sem antes ter recebido a ordem de fazê-lo. Cada um tem a obrigação de... Barreiras firmes trazem de volta os esquecidos ou os rebeldes para o bom caminho: as páginas arrancadas, as linhas

a serem copiadas, as conjugações, os pontos negativos, as punições durante o recreio ou no final das aulas, o castigo no canto da sala com as mãos na cabeça, as palmatórias, a ordem de ir à outra classe

ou à sala do diretor, a advertência enviada aos pais, a convocação dos Jean Foucambert

mesmos etc. De acordo com seu grau de autoridade pessoal, o pro­

fessor recorre mais ou menos a este arsenal; alguns nunca precisam

dele, outros acabariam sentindo prazer em usá-lo. A disciplina também é a regularidade, o respeito às regras, em primeiro lugar, porque são regras; regras no horário, no uso do espaço. Sem dúvida, é Durckheim quem expressa melhor o que a

sociedade espera desta disciplina:

É preciso que a criança aprenda a respeitar a regra. É preci­ so que aprenda a cumprir com seu dever porque é seu dever, porque se sente obrigada a fazê-lo, e sem que a sensibilidade lhe facilite a tarefa, além da medida. Esta aprendizagem, que, na família, ficaria muito incompleta, deve ser realizada na es­ cola. De fato, na escola existe todo um sistema de regras que predeterminam a conduta da criança. Deve vir à escola com regularidade, deve chegar lá em horas fixas, com uma roupa e uma atitude adequadas; na sala de aula, não deve perturbar a ordem; deve ter aprendido as suas lições, feito as suas tarefas e com bastante aplicação etc. Existem assim muitas obrigações às quais a criança deve se submeter. O conjunto destas regras constitui o que chamamos de disciplina escolar. É pela prática da disciplina escolar que se pode inculcar na criança o espírito da disciplina. Com exagerada frequência, é verdade, temos da disciplina es­ colar uma concepção que não permite atribuir-lhe uma função moral tão importante. Nela, somente enxergamos um meio de manter a ordem externa e a tranquilidade da sala de aula. Visto assim, foi possível considerar bárbaras essas exigências imperati­ vas, essa tirania da regra complicada à qual se submete a crian­ ça, e com razão. Protestou-se contra esse constrangimento que lhe era imposto com o único objetivo, ao que parece, de facilitar a tarefa do professor uniformizando-a. Será que esse tipo de sis­ tema não é próprio para despertar na criança sentimentos de hostilidade, para com o professor, em vez da confiança afetuosa que deveria existir entre eles? Entretanto, na verdade, a natureza e a função da disciplina es­ colar são bem diferentes. Não se trata de um simples artifício para que reine na escola uma paz externa capaz de permitir que a aula aconteça com tranquilidade. Trata-se da moral da turma, A Escola de Jules Ferry: um mito que perdura

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assim como a moral, propriamente dita, é a disciplina do corpo social. Cada grupo social, cada tipo de sociedade tem, e não poderia deixar de ter, a sua moral que expressa sua constituição. [...] O dever escolar tem um caráter já mais frio, mais impessoal (do que o dever familiar); diz mais respeito à razão e se diri­ ge menos à sensibilidade; exige mais esforços e uma contenção maior. E, apesar de termos que, como teremos a ocasião de dizêlo, evitar exagerar esse caráter, o dever escolar é indispensável para que a disciplina escolar seja assim como deve ser e cumpra sua função. Pois, é com essa condição que ela poderá servir de intermediário entre a moral afetiva da família e a moral severa da vida civil. É respeitando a regra escolar que a criança apren­ de a respeitar as regras...

De fato, estamos numa lógica da submissão e longe da par­

ticipação ou da responsabilização. Sem querer ir exageradamente além dessas declarações, é fácil perceber, e alguns não deixaram de

colocá-lo em prática, que quanto menos se referir ao afeto e à com­

preensão mais valor formativo terá a regra. Pois, se o que se procura através da disciplina é a obediência e a docilidade, mais vale deixar

de provocar a adesão à regra e menos ainda uma participação na sua definição. A disciplina não é uma facilidade para o funcionamento,

mas, em si, uma forma de ação educativa. É difícil avaliar os efeitos dessa concepção nos indivíduos. Sabe-se quanto os pais, e em particular os do meio popular, valorizam

essa disciplina. Segundo eles, não se vai à escola para se divertir, pois é preciso se preparar desde cedo para viver na fábrica. Os leitores desse

livro, assim como seu autor, certamente não são os mais indicados para decidir sobre isso. É provável que alunos razoavelmente bons, pelo me­

nos na norma, conservem algumas lembranças, bastante valorizadoras,

de revoltas contra a arbitrariedade; porém, globalmente, essa submis­ são lhes permitiu trabalhar em paz sem ter que sofrer com os “os maus

elementos”. A regularidade traz segurança, traz referências, elimina as relações conflituosas. Suas lembranças escolares evocam bastante

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a impressão que se tem de breves estadias em alguns países europeus prósperos. Tudo parece previsto, organizado, sereno. Mas a que preço,

na escala mundial, se paga por essa serenidade?

Porque, para a maioria, os efeitos são diferentes. Uma mi­

noria fracassou por não aceitar se submeter à arbitrariedade. Os “re­ sistentes” fracassaram na escola. Reputados como pouco “sociáveis”, veem suas chances de ascensão social ficarem comprometidas. As­

sim, a escola detecta e esteriliza os motins para que não se tornem mutantes. Quanto à maioria, ela incorporou aquilo que se queria que

incorporasse, o respeito à regra porque é a regra. Instauram-se socialmente as condições dessa paz civil tão

procurada, pois cada um tem certeza de ficar em paz e “livre” desde que respeite a regra. O indivíduo fica protegido da arbitrariedade e da injustiça enquanto não se pergunta de onde vem o poder. Pelo contrário, questionar o bom fundamento das leis, querer compreen­ der quem tira proveito delas, imaginar que possam ser diferentes, é

ressuscitar o modelo do mau aluno. É fazer política... É ser anarquis­

ta, pois não existe outra alternativa: se submeter à regra não é uma

atitude política, transformar a regra é político. E já que os alunos nunca participaram da elaboração de uma regra, contestar a ordem é

simplesmente querer a desordem. No temor suscitado pelo proletariado instala-se o poder da

burguesia: um poder ameno enquanto dispõe de meios suficientes para se fazer aceitar, para não ter que reprimir. A democracia que se

instala é um sistema de delegação a favor de uns “eles” que gover­

nam, decidem ou “exageram”. O que prevalece é uma vontade de desresponsabilização, de não participação no poder do qual veremos amplamente os efeitos cada vez que a esquerda, no governo, fracas­

sará ao tentar engajar os cidadãos no exercício das suas responsabili­

dades. A dominação de uma classe sobre a outra é muito menos con­ A Escola de Jules Ferry: um mito que perdura

testada hoje do que há um século, a tal ponto que se espalha a ideia de que a repartição da sociedade em classes sociais, cujos interesses

seriam opostos, não daria mais conta da realidade de hoje.

O conceito de classes médias (sempre no plural, por que será?) é um exemplo e tanto disso. É porque se situam em categorias

socioprofissionais intermediárias, que aqueles - que são obrigados a vender a sua força de trabalho àqueles que detêm os meios de pro­

dução - perderam, por um lado, a compreensão da natureza dessa

transação econômica e, por outro lado, se identificam com um certo número de valores gerais, que muitas vezes, eles mesmos, contribuem

em produzir segundo o desejo da classe dominante. O que caracteriza essas classes médias é que não têm consciência de classe, já que têm o estatuto de uma classe e a ideologia de outra. Só lhes resta superar

essa contradição negando a existência da divisão social.

Resultado conforme as intenções daqueles que instituíram a escola e que deve lhe ser em parte imputado.

A decoreba È muito bem conhecido que as crianças de hoje não sabem

mais nada, em comparação com as de ontem, as quais, graças à es­ cola, dispunham de conhecimentos facilmente mobilizáveis. Elas o deviam a metodologias que desenvolviam a memória, receptáculo e

fonte de todos os saberes. Essas crenças impregnam a opinião pública com uma in­ tensidade capaz de desanimar qualquer um. Saber de cor as regiões

de “seu” país, com os seus estados e suas capitais, a altitude das prin­ cipais montanhas, os afluentes e defluentes dos rios, os canais, os

portos etc. Saber de cor “suas” datas históricas, a sucessão dos reis,

106

)ean Foucambert

as batalhas, os tratados... Saber de cor as “suas” regras ortográficas

e a lista das exceções que necessariamente as confirmam... Saber de cor “suas” tabuadas de multiplicação até 9, até 12 ou até 15, quan­

do o professor é exigente... Eis como aparece o saber. Quem não se lembra desses jogos televisivos em que a França toda contemplava

com emoção e reconhecimento o concorrente que havia conseguido

dizer o nome do diplomata que carregava a pasta de Talleyrand na

ocasião da assinatura do tratado de Viena? Eis um, pelo menos, que era bom em História!

Aprender é aprender de cor; saber é saber de cor. Os co­ nhecimentos se memorizavam com repetições geralmente orais e se demonstravam nas sessões de recitação; assim para o resumo de História, o poema, a nomenclatura das partes da flor, as fórmulas aritméticas. O bom professor sabia minimizar esse esforço propondo mnemotécnicas que durante muito tempo apareceram como o pa­ raíso da pedagogia: O volume da esfera é igual, o que quer que se faça, aos quatro terços de pi16 e R ao cubo (tt R 3) mesmo que a esfera seja de madeira!

Se, na concepção de todos, ter esse tipo de conhecimento

significa dispor do saber, aquele que relativiza o papel da memória só

pode aparecer como defensor do obscurantismo. O que está em jogo, afinal, nessa pedagogia da decoreba?

O que aparece de imediato é uma justificação utilitária: tornar disponíveis, a um menor custo e em prazos curtos, certo nú­ mero de técnicas utilizáveis tais quais nas operações da vida quoti­ diana. Trata-se realmente de mecanismos, ou seja, de fatos e de en-

cadeamentos de ações físicas ou intelectuais que são consequências

16

N. T Em francês pi se chama pierre que significa também pedra. A aproxima­

ção com a madeira é uma forma de ajudar a decorar a fórmula.

107

As consequências dessa opção pedagógica são múltiplas:

1. Já que se focaliza o conhecimento de alguns resultados

e nunca os processos que permitem estabelecê-los e fazê-los evoluir, o indivíduo encontra-se com uma do­

tação de base, um tipo de saber mínimo garantido que dificilmente é perfectível e não permite desenvolver

ulteriormente condutas de autodidaxia e de formação

permanente.

2. O capital de partida se desvaloriza tanto mais rapida­

mente quanto mais o estado dos conhecimentos progri­ de. Daí uma defasagem tanto mais rápida quanto mais

o ensino vira as costas aos processos culturais de apren­

dizagem para se dedicar à transmissão de conhecimen­ tos.

3. Esses conhecimentos transmitidos fora do processo cul­

tural que permite construí-los em um momento dado não deixam de ser a consequência de uma atitude cul­

tural externa ao aluno, que não é declarada, que não

se distancia e que reforça uma ideologia sobre a qual não se tem mais nenhum poder. Na falta de iniciar um processo cultural, impõe-se certamente uma ideologia. Todas as tentativas de inovação pedagógica que orientaram

a Escola de Jules Ferry diziam respeito a esse problema fundamental: transmissão ou construção. Conheceram destinos diversos e sem dú­

vida mais fracassos do que sucessos. Mas, todas foram condenadas em

nome da memória e da decoreba onde se quis enxergar a garantia de certo número de automatismos descritos como modo de pensamen­

to. Ora, se o ponto de partida das novas pedagogias se resume a esse

princípio: “Não tenho memória, portanto sou condenado então a ser inteligente para inventar sem parar”, ficava, no entanto, evidente Jean Foucambert

para todos os inovadores que a memória desempenhava um papel

determinante na facilitação dos processos criativos. Memoriza-se o

que já se aprendeu ou se memoriza ao invés de aprender? Memorizase estratégias ou fatos?

O mérito Carlos Magno transmitiu o hábito de por os bons alunos à direita e os maus à esquerda. Aliás, todas as representações do

julgamento final fazem o mesmo com os condenados e os eleitos. Apresentada sob forma de incentivo ou de punição, essa noção mo­ ral do mérito impregna a escola fundamental. Os pontos positivos, as

estrelinhas, as menções honrosas, as distribuições de prêmios recom­

pensam o sucesso mais do que o esforço; e, pelo contrário, o fracasso

é denunciado, vira objeto de zombaria e de vergonha. As orelhas de burro e o caderno amarrado nas costas do mau aluno para que cir­

cule entre as demais crianças não fazem parte da mitologia. Durante décadas, foram práticas comuns, para não dizer que faziam parte do

inventário dos catálogos dos editores! Entende-se perfeitamente a vontade de emulação contida

em tais processos. O bom comportamento não começa com o medo

do guarda? Conseguir da criança mais do que desejaria dar espon­

taneamente é agir para o seu bem em um momento em que ela não

está necessariamente consciente das consequências de sua atitude atual. O adulto tem o dever de preparar o futuro da criança, inclusi­

ve contra a vontade dela. Pois a fronteira entre a ausência de exigência e a resigna­ ção, a renúncia ou o desprezo é tênue. Na cabeça de muitos profes­

sores do ensino fundamental, essa severidade é sinal de um otimismo A Escola de Jules Ferry: um mito que perdura

essencial nas possibilidades de todas as crianças. Não é porque não é capaz que um aluno fracassa, é porque não se empenha em demons­ trar boa vontade e aplicação.

Sem dúvida, se entende melhor hoje que o sucesso e o fra­ casso dependem menos de dons ou da boa vontade do que de atitu­

des ou de proximidades culturais em relação aos valores da escola. Essa é a razão pela qual consideramos esses procedimentos tão bárba­

ros quanto castigar os doentes ou recompensar as pessoas saudáveis, sem que por causa disso...17

Mas, é preciso ainda se perguntar a respeito dos efeitos reais de tal atitude. No nível dos resultados não é um sucesso. Glo­

balmente, estima-se que menos de 50% das crianças de uma faixa etária tenham obtido o Certificado de Estudos. Fica evidente, desde o início, que essa noção de mérito não provoca o efeito esperado. En­

tão, se ela se mantém ao longo de décadas apesar da sua ineficácia, é

porque a opinião encontra nela outras vantagens. E essas vantagens são morais e psicológicas.

Nada vem de graça, tudo se merece e somente os esfor­

ços são recompensados. Aqueles que querem se beneficiar de tudo sem nunca ter feito nada são os parasitas, maus cidadãos. Passa-se facilmente dessa evidência à outra. Aqueles que não têm nada, não

quiseram mobilizar, quando tinham a possibilidade de fazê-lo, os es­ forços indispensáveis para isso. Tiveram a oportunidade de fazê-lo,

mas não souberam aproveitá-la, hoje são castigados por isso. Passa-se depois à outra evidência. Aqueles que reclamam por uma repartição

17

N. T. Acredita-se que o autor não vê muitas mudanças na escola no trato

dos problemas de aprendizagem dos alunos, mesmo que hoje se conheça as razões do fracasso

escolar.

112

Jean Foucambert

Instituto Nacional de Pesquisa Pedagógica - Museu Nacional da Educação

A Escola de Jules Ferry: um mito que perdura

113

mais igualitária das riquezas pretendem beneficiar-se de vantagens

que não se justificam na atitude deles. O mérito é relacionado, na mentalidade coletiva, à legiti­ mação da propriedade e do lucro. E aqueles que não têm nada devem

culpar-se a si mesmos. Estimem-se felizes se, mesmo assim, alguém lhes “dá” trabalho. O desemprego sempre fica como um pano de fun­

do para ensinar a essas cigarras que devem agradecer às formigas. Mais uma vez, a realidade das relações sociais é mascarada pela res­

ponsabilidade individual de subir o máximo possível na escala social. E a escola mostra muito bem que quem consegue são os melhores, humilhando aqueles que fracassam.

A segunda consequência decorre da primeira: o saber vem justificar a hierarquia social. Esse saber, transmitido pela escola,

sancionado pelas provas, o saber intelectual, e não o saber manual, constitui a referência, a tal ponto que, no senso comum, se confunde com a verdade. O saber se opõe ao erro, não à ignorância. Não se

trata de uma ferramenta coletiva, provisória e imperfeita para passar

de um estado de erro relativo a outro, para dissipar as zonas sombrias que a prática social desloca na medida em que evolui, de uma trans­

formação permanente do conhecido pela exploração do desconhe­

cido. Trata-se do estado estático do Verdadeiro. O saber não é um

caminhar através do erro, um processo de questionamentos, é um bem desigualmente dividido que fornece, àqueles que se apropriaram

de alguns fragmentos desse saber, direitos em relação aos outros. É assim que o corpo social se organiza para produzir os co­ veiros e os médicos dos quais precisa; que um médico custe muito

mais caro para se produzir do que um coveiro; que só possamos vir a ser médico nos beneficiando de recursos coletivos que não produzi­

mos; nem por isso, no final das contas, o médico deixa de reivindicar ganhar mais do que o coveiro porque estudou mais. E o coveiro enJean Foucambert

terra os resultados das ignorâncias provisórias da ciência esperando simplesmente que seus filhos possam tornar-se médicos... O saber,

longe de ser a ferramenta mais necessária, portanto, a mais difundida para que a sociedade evolua rapidamente para o bem de todos, é uma mercadoria que se vende e, portanto, que deve permanecer rara para

valer um bom preço.

A terceira consequência dessa noção de mérito é o elitismo, sobretudo quando é republicano e que visa à seleção dos melho­

res pelo sucesso de todos. A respeito desse princípio, não há o que dizer: a nação toda deseja dispor dos melhores arquitetos, dos me­

lhores jornalistas, dos melhores professores, dos melhores políticos,

dos melhores generais. Nada mais normal. Mas, da mesma maneira, dos melhores empregados nos escritórios, dos melhores agricultores, dos melhores empregados de manutenção. Ora, essa orientação dos

melhores em direção às áreas em que serão de fato os melhores supõe uma verdadeira igualdade dessas áreas, tanto no que diz respeito ao

estatuto social quanto ao salário. Enquanto existir uma hierarquia das funções sociais justificadas pela quantidade de saber absorvido

anteriormente, podemos ter certeza de que o engajamento em uma

carreira depende menos do interesse da coletividade em relação a essa profissão do que do benefício que o indivíduo possa esperar des­

sa carreira.

Por essa razão, quantos filhos de “boa” família se tornaram

médicos medíocres enquanto poderiam ter sido brilhantes jardinei­ ros! Gilbert de Landsheere, em sua Histoire mondiale des sciences de

l’éducation (História mundial das ciências da educação), lembra que, em 1922, um ministro francês da Educação desejou substituir as provas

chamadas de seleção baseadas na cultura geral por testes de aptidão, com o fim de garantir o interesse geral e, sem dúvida, o interesse indi­

vidual. Essa proposta provocou tempestades entre a burguesia porque

115

tal medida reduzia a liberdade de seus filhos de ter acesso a postos in­ vejáveis e ameaçava inserir na hierarquia social muito mais indivíduos

oriundos dos meios populares. Por outro lado, o que quer que se pense dos testes, esse lembrete evidencia a diferença entre aptidões que, sem

dúvida, devem ser distribuídas com bastante igualdade entre a popu­

lação e saberes de tipo escolar cuja detenção depende de um certo nú­ mero de características sociais. O que remete incansavelmente ao que

distingue o processo pedagógico fundamentado na promoção coletiva daquele que visa o sucesso individual. Inclusive, e, sobretudo, no que

diz respeito aos saberes em si. O que se precisa saber para se ter sucesso individualmente?

O que se precisa aprender para que a sociedade evolua em direção

à justiça?

O fazer de conta A escola foi concebida como um espaço fechado. Basta observar, ainda hoje, as construções escolares do início do século, com o muro que fecha o pátio, as janelas bem altas que não deixam

as crianças ver lá fora, as salas de aula cuidadosamente separadas umas das outras e comunicando somente por um corredor para sen­ tir o quanto a escola, ou mais especificamente cada turma, entende

constituir um espaço educativo diferente do meio social: previne agitações, rumores, problemas do mundo dos adultos. Ao proibir a entrada ao seu recinto de “toda pessoa estranha ao serviço", a escola

protege-se ainda mais.

Esse isolamento e esse fechamento traduzem a vontade de

subtrair a criança da realidade social enquanto durar a sua educação. Vontade que testemunha um julgamento implícito do caráter não

116

educativo dessa realidade; não porque a realidade social não tem efeito educativo, mas porque não tem o bom efeito ou pelo menos aquele que os promotores da escola desejam. Toda sociedade que

isola a educação da sua vida tem um julgamento moral desfavorável

sobre essa vida ou deseja proibir que certas aprendizagens se desen­ volvam nesse contato. Aprisiona, então, o processo educativo nessa simulação cujos parâmetros ela controla cuidadosamente.

A realidade social do final do século XIX e do início do

século XX caracteriza-se por uma industrialização dura, por confli­ tos, por greves, por manifestações, por repressões tanto dos operários

quanto dos camponeses, e por expedições coloniais... A Belle Épo­ que não é radiosa para todos da mesma maneira. A primeira Guerra

Mundial abre perspectivas inesperadas para o horror. As condições

de vida nas periferias das cidades são desumanas. A moral social vai de encontro aos princípios declarados: o gosto pelo lucro, a explora­ ção do trabalho, a violência com a qual os que possuem impõem sua lei àqueles que nada têm, as práticas legalmente fraudulentas que

garantem o sucesso nos negócios privados e públicos, tudo vai de

encontro ao quadro idílico e humanista de uma sociedade que seria regida por sentimentos de igualdade, de fraternidade, de liberdade.

A escola só pode apresentar a sociedade como uma orga­ nização harmoniosa, equitativa, preocupada com a justiça, a felici­

dade e a solidariedade mantendo firmemente a sua porta fechada. É

somente a esse preço que ela pode levar o indivíduo a acreditar que ele tem tudo a ganhar se “socializando”, que deve exigir de si mesmo um esforço necessário para ser digno de viver nesse mundo em que

o homem não seria um lobo para o homem. A educação vai ajudá-lo a afastar seus demônios: a preguiça, o egoísmo, a intemperança, a violência, a inveja, a ira... é o indivíduo que deve se mostrar digno da sociedade, pois tal como ela é, ela é boa. A Escola de Jules Ferry: um mico que perdura

Tal postura somente se sustenta se a realidade cotidiana for excluída da vida da escola, se a experiência ou até mesmo a represen­

tação da desigualdade, da injustiça, da miséria não puderem entrar nela. Basta substituir a realidade social por uma realidade escolar que

teria somente as qualidades pretendidas da sociedade. A escola cria um ambiente artificial em que a luta de classes e os antagonismos

sociais não existem. O filho do operário despedido, porque solicitou

aumento, não fica sentado entre o filho do empresário, que recusou o dinheiro solicitado para a sobrevivência, e o filho do guarda, que

mantém essa ordem das coisas, são três alunos, “a-sociais” como se

diz “a-sexuados” que se encontram, em nome da igualdade, da ino­ cência da infância e da vontade de preservar tão jovens seres de

todas essas torpezas, mesmo que, uma vez fora da escola, essas torpe-

zas impregnem, de um modo distinto, porém tão decisivo, cada um deles.

E verdade que não dá para imaginar uma escola em que se afrontariam as crianças socialmente marcadas e cujo pátio seria

regularmente coberto de barricadas. Mas pode-se conceber uma es­ cola cujo papel seja o de compreender essa realidade social, não de

mascará-la, de ajudar cada um a analisá-la e a se engajar melhor nela. Pois não fazendo assim, deixamos a alguns os meios de domi­

nação que eles detêm pela sua origem, e aos outros a incompreensão

do que os espera.

Nesse sentido, essa realidade social teria que estar presente para que a ação educativa permitisse que se construísse, para uns e para outros, ferramentas de análise e de poder sobre o mundo.

É precisamente onde residiría a diferença entre a escola da

promoção coletiva e a escola do sucesso individual: com qual reali­ dade trabalha a escola? A diferença não incide em um igualamento

das chances de sucesso num sistema escolar e depois de inserção

118

em um sistema social que não sofreu mudanças, mas no poder de transformação da realidade social que o sistema escolar confere ou não aos atores. É aqui que se opõem a concepção educativa da bur­

guesia e a do movimento operário. Se os socialistas do século XIX exigem que a formação intelectual não seja separada da realidade do

trabalho produtivo, é porque exigem que as ferramentas de análise

e de teorização se desenvolvam no contato com a realidade social e

não em cima de uma simulação esvaziada do essencial e que todo saber deveria, no entanto, contribuir para erradicar: a exploração do homem pelo homem. Parece-lhes evidente que se a escola constitui um meio

artificial e apresenta uma imagem da sociedade sem nenhuma das características do jogo social em si, então os saberes que o aluno vai

desenvolver em contato com esse fazer de conta, os conceitos, os métodos, os sistemas de análise, os modelos teóricos e práticos serão

inadaptados e sem poder de transformação. Da mesma maneira, a burguesia está persuadida disso, por isso sua vigilância para que a

escola seja de fato o espaço do fazer de conta.

O que vai então caracterizar da melhor maneira a pedago­

gia da escola de Jules Ferry é a opção deliberada de inculcar certos

conhecimentos através da simulação, mais do que oferecer ao aluno a possibilidade de proceder à análise do funcionamento social que ele experimenta pelas suas próprias ações. A escola será, portanto,

um espaço em que, ao entrar, os alunos perdem suas características sociais. O uso do uniforme é tão significativo dessa vontade quanto a

interdição da entrada na escola de outros objetos sociais, sejam eles jornais, seja aquilo que as crianças vivem em casa. Daí a função essencial dos manuais escolares e do ensino livresco: eles garantem que o aluno esteja de fato em contato com

uma representação da realidade, representação da qual foi retirado A Escola de Jules Ferry: um mito que perdura

119

tudo aquilo que poderia ir contra a imagem inocente da sociedade. A

expressão mais do que conhecida “nossos ancestrais, os gauleses...”

que as crianças africanas, indo-chinesas ou bascas deviam recitar, não constitui, nesse sentido, uma aberração que teria escapado à vi­

gilância de alguns pedagogos, mas uma vontade deliberada, não mais

surpreendente do que as lições de moral sobre a honestidade dadas às crianças cujos pais são obrigados a vender a preço de banana sua

força de trabalho. Trata-se da mesma vontade de negar a realidade para forjar melhor uma ideologia.

Esse fazer de conta inspira a pedagogia. A escola e o aluno vão ficar suspensos em uma bolha privada de contato com o mun­

do. Os móveis, o material e os livros terão características que já os distinguem dos mesmos objetos no ambiente. Nenhuma atividade

externa é admitida, nenhum adulto, exceto o corpo docente, pode intervir junto aos alunos. Nenhuma produção pode ser trocada com o exterior sem ser neutralizada por um selo que a transforma em

objeto marginal cuja única utilidade social foi permitir que os alu­

nos aprendessem. Nada do que vem da escola entra em relação com o meio, situando-se no jogo econômico e nas leis do mercado. Ao

contrário de todos os lugares onde se trabalha, a escola não produz

nada. Pois aqui, não se trabalha, senhor, se aprende! E se aprende fora de toda produção. Aprende-se para saber fazer, mas não fazen­ do de fato; e, sobretudo sem se inserir no ciclo de uma produção confrontada às exigências de destinatários autênticos. Sempre é o

professor que aprecia; e com critérios didáticos, não de produção, não de expectativa social. Escreve-se para aprender a escrever, mas o que se escreve não diz respeito a ninguém que queiramos convencer ou sensibilizar.

Por isso, nunca estamos em uma verdadeira situação de comunica­ ção escrita e aquilo que se aprende não é a escrita, no máximo o Jean Foucambert

uso de regras acadêmicas, a adoção de convenções das quais não

se entende a necessidade, a reprodução de um modelo do qual não se percebe a função social, as intenções, as consequências, nem a

marca. O aluno não fala senão para dizer ao adulto aquilo que o adulto sabe melhor do que ele: o professor somente formula pergun­

tas das quais conhece as respostas. O aluno vai encontrar textos a respeito dos quais ele não se pergunta nada e dos quais não espera nenhuma resposta. Quando terminar de aprender, talvez continue

lendo, mas como terá aprendido a 1er, se 1er consiste, em primeiro lugar, em encontrar em um texto as respostas a suas próprias pergun­

tas? Brinca-se de cozinhar porque não se aprenderia nada fazendo comida “para valer”... Brinca-se de vendedora porque não se tem nada para comprar, para vender ou para trocar. Escrevemos ao chefe

da estação de trem para lhe descrever o guarda-chuva que teríamos esquecido no trem quando nunca viajamos. Pergunta-se quantas es­

tacas ou telhas o agricultor deve prever apesar de a classe não ter que construir nada. E tudo aquilo que se aprende neste fazer de conta

não tem poder algum sobre a realidade, porque lhe falta o confronto global com ela, o fato de levar em conta a funcionalidade social da

ação em relação a que, e somente dessa forma, os saberes parciais se definem. Não se compreende a realidade se não se é confrontado a ela para transformá-la.

A consequência evidente dessa pedagogia da simulação, que torna improvável qualquer verdadeira aprendizagem, é a infla­

ção do ensino e de seu corolário: não se julga o aluno sobre o que

aprende, mas sobre o que restitui do ensino. Corolário do qual se observa os efeitos até nas palavras, já que é o professor que “ensina” a 1er...

Aprender é inventar uma solução provisória para resolver um problema novo cuja solução importa. Uma aprendizagem supõe A Escola de Jules Ferry: um mico que perdura

121

necessariamente que o meio se comporte com o aprendiz como se

este fosse dotado daquilo que se espera que aprenda. Caso contrá­

rio, não há problema novo. É pelo fato de os pais considerarem seu filho como o destinatário legítimo das suas palavras e, portanto, de

lhe dirigirem mensagens incompreensíveis, que ele se encontra dian­ te da obrigação de inventar, de construir e de organizar um sistema com o fim de atribuir sentido àquilo que não tem. Está aprendendo. Do contrário, se os pais definissem a sua mensagem, sem conside­

rar a criança como um destinatário incondicional, mas levando em conta o seu estado atual de não saber, só lhe dirigiríam grunhidos e

balbucios e ela não poderia aprender nada, por não ter problema a resolver. Então, frente à impossibilidade de se aprender, a comunica­ ção oral deveria ser ensinada. Seria necessário construir de fora, em

situações pedagógicas e não em situações funcionais, elementos de

solução para um problema que ainda não existe. Aprisionamo-nos,

então, na simulação.

O que permite controlar bem aquilo que se transmite, já

que não se pode aprender nada que não tenha sido anteriormente ensinado. Assim, quando a simulação substitui o encontro efetivo da realidade, evita-se o desenvolvimento dos saberes e dos comporta­

mentos extremamente diferentes daqueles que garantem a perenida­

de da ordem estabelecida.

O sintetismo Tratamos aqui de um aspecto da pedagogia que alimentou numerosos debates, sobretudo quando foi apresentado a respeito da

leitura.

Jean Foucambert

No que diz respeito à escola, tudo acontece como se o sim­

ples fosse fácil e o complexo difícil. Razão pela qual a criança tem

que afrontar não a realidade complexa, mas os elementos que a cons­ tituem. Quanto mais elementos simples se acumularem, mais se será

capaz de enfrentar a complexidade. A aplicação dessa concepção é

fácil de se observar.

Em matéria de leitura, se ensina as letras isoladas, depois a sua combinação sistemática por dois, três e quatro para constituir as

sílabas, a combinação das sílabas para constituir palavras, das pala­ vras para constituir frases, das frases para um texto, do texto para um significado... Mas aí não dá para ter certeza! Esse só sabe as letras,

aquele só conhece os sons, quantos saberão 1er, como se diz, mas não

entenderão o que está escrito?

O mesmo acontece com o ensino do cálculo: tem-se con­ tato primeiro com os algarismos, depois com os números, depois com

as operações, e depois com os problemas. Quantas crianças ficarão

no meio do caminho, incapazes de escolher a boa operação no mo­ mento certo? Ao passo que, no sentido inverso, partindo da situação e indo em direção ao meio de resolvê-la, não há espaço para esse tipo

de dúvida... Da mesma forma, em História, em que o aluno encontra “grandes homens”, batalhas, tratados, tudo aquilo que é relevo do acaso. Quantos abordarão os meios de análise para compreender o

presente? Outro exemplo, que se tornou o símbolo da escola, no ensi­

no da natação em que serão sucessivamente ensinados os movimen­ tos dos braços, os das pernas, e a sua combinação em um banquinho. Quantos entrariam na água sem se afogar? De modo que ficam na borda como ficam à margem de tudo aquilo que lhes diz respeito,

A Escola de Jules Ferry: um mito que perdura

agindo somente no projeto dos outros sobre o qual não terão poder

algum. Podem chover críticas, nada vai mudar! A psicologia mos­

trará que o todo não se reduz nunca à soma das partes, que a criança é confrontada, desde que nasce, à complexidade que analisa progres­

sivamente a partir da experiência funcional que tem dela e somente a partir dela, que é precisamente essa atividade de análise que produz

o conhecimento dos elementos simples, ao mesmo tempo em que produz o domínio da sua organização. Mostrará que caracterizar um elemento simples é muito mais difícil do que caracterizar uma fun­

ção global, que a relação que se pode estabelecer entre dois elemen­

tos tomados isoladamente é diferente daquela que existe entre eles quando funcionam dentro de um sistema... Tudo já foi dito, mas nada conseguiu atingir esse dogma. E

não poderia ser diferente! Pois sempre voltamos à própria concepção do saber. O saber é o conjunto dos meios, dos métodos e dos concei­ tos adquiridos por um indivíduo para compreender a realidade agin­

do sobre ela. O saber é um procedimento de análise para, através do contingente, entender as regras do jogo, os princípios ativos e a sua

organização com o objetivo de construir um modelo dessa realidade

que permita a ação e a transformação. Mas, e se o objetivo da escola não fosse o de levar a conhe­

cer a regra do jogo? Se o objetivo fosse o de fornecer outra regra que

não aquela que é de fato empregada? Não haveria melhor maneira

de provocar impedimentos! O saber também é a natureza dinâmica desse procedimen­ to a fim de que evolua graças ao efeito da sua aplicação. Todo pro­

gresso, na escala do indivíduo como da humanidade, depende do questionamento dos elementos supostamente simples, seja porque

se revelam não ser tão simples quanto pareciam, seja porque outra Jean Foucambert

análise produz outros elementos simples, diferentes daqueles que tí­ nhamos o hábito, a preguiça ou o interesse de encontrar. Razão pela qual, nenhum saber pode se confundir com a posse de um catálogo

de elementos simples ao qual se acrescenta uma combinatória como

regra de uso. Reencontramos assim a divisão social entre aqueles que produzem o saber e aqueles que somente têm acesso ao produto des­

se saber, conjunto de tijolos utilizáveis em projetos concebidos por outros, mas que, tais quais, não criam nenhuma autonomia, nenhum

projeto novo. A opção profundamente enraizada da escola de Jules Ferry

a favor desse enfoque decididamente sintético se explica dessa ma­ neira: levar as forças produtivas a adquirir conhecimentos pontuais

que devem reinvestir em modelos de ação impostos de fora para den­ tro, sem deixar que se desenvolva outra possibilidade de produção do saber, e por isso, não permitir que seja enfocada a realidade complexa pela via da análise.

O procedimento sintético corresponde à divisão do traba­ lho na vida econômica e ao sistema de delegação na vida política. Ele os reforça tanto quanto os justifica. O taylorismo pede ao produtor

que deixe seu cérebro no vestiário, que seja a roldana perfeita em

um projeto que ignora e que não pode modificar. Ninguém espera dele que participe da análise do processo no seu conjunto de modo

a definir as melhores condições das ações elementares. Muito pelo

contrário, se teme que o faça, pois muito provavelmente ele levaria em conta, na situação inicial, muitas outras considerações e chegaria ao final a outro modelo econômico, social e político.

Basta, portanto, transmitir conhecimentos sem a chave da

produção do saber e o método sintético convém perfeitamente a tal projeto.

A Escola de Jules Ferry: um mito que perdura

(te Assim, retomando, no seu conjunto, os grandes princípios

pedagógicos da escola de Jules Ferry: a decoreba, a disciplina, o méri­ to, o fazer de conta, o sintetismo, só se pode admirar a sua coerência com o projeto político que os implantou. Essa escola se sabe e se quer

uma escola de classe, uma escola para o povo e não uma escola do povo, e cada uma das suas atitudes converge nesse sentido. Porém, mais uma vez, seria ingênuo imaginar que uma mente diabólica ti­ vesse deduzido, a priori, esses princípios de funcionamento a partir

de uma vontade política. Aos poucos, esses princípios se definiram tanto pela lógica interna da escola quanto pela expectativa social

que a pressionava. Os princípios que regem o funcionamento social não permitem simplesmente a implantação, de forma duradoura e em grande escala, de outra pedagogia. Ao observar a história das inovações que se esforçaram em

bloquear, em desviar, em reorientar essa fantástica máquina, medese a potência do controle ideológico que a classe dominante exerce na instituição, inclusive mobilizando em benefício próprio aqueles

que, afinal, são destinados a sofrer mais as consequências dessa op­ ção. E isso, sempre em nome da estabilização social.

A querela mais que conhecida em torno do método global

é um exemplo maravilhoso disso. Sem entrar aqui nos aspectos téc­ nicos associados à leitura, é fácil observar que o método global visava

romper com o sintetismo. Em vez de acumular letras, de fusioná-las

em sílabas, de associá-las em palavras etc., o método pretende partir

de uma comunicação que é anterior, da função na sua globalidade e na sua riqueza que, aos poucos, vai ser desmontada progressivamen­ te, conservando a relação dos elementos com o conjunto.

126

Jean Foucambert

Esse procedimento parecerá intolerável. Ou, mais exata­

mente, a ideia de que possa existir, porque, na realidade, ele será pouco usado. Mas a batalha será tão habilmente conduzida que,

ainda hoje, o cidadão médio, menos informado, se declara violen­

tamente hostil à sua aplicação. Argumenta que significa a morte da ortografia e, além disso, a razão de toda a desordem, o fim do res­ peito, em uma palavra, a contestação. Como os especialistas alegam

que esse procedimento se fundamenta em teorias dificilmente refu­ táveis, proclama-se que provavelmente seja excelente para os alunos “inteligentes”, mas que nada equivale, para os outros, ao método tradicional: sintético como deve ser. O que surpreende mais ainda, já que Decroly o havia aos poucos criado para e com crianças com

dificuldades! Assim deixou-se de poder abrir uma brecha no sintetismo.

Do mesmo modo, em torno dos trabalhos de Dewey e de Ferrière,

nascerá a ideia de uma pedagogia do projeto. Finalmente, a criança pode ser o ator de uma verdadeira produção relacionada com o seu

meio. Sua atividade não se dirige mais ao docente, se não aos ou­ tros dentro e fora da escola. Veremos os alunos responsabilizar-se por

uma ação na sua totalidade, desde a sua concepção até o tratamento da sua recepção. Para levar a cabo esse projeto, desenvolvem conhe­

cimentos com responsabilidade: conhecimentos em comunicação, conhecimentos técnicos, conhecimentos sociais... Reação imediata dos opositores: não se manda as crianças para a escola para que tra­ balhem e sim para que aprendam! Essa brecha no fazer de conta não

será aprofundada.

Cousinet procura dar forma ao trabalho em grupo? Ele considera que, se a turma homogênea permite ao professor ensinar, ela não cria muitas oportunidades para que o aluno aprenda. Para aprender, ela precisa ser confrontada, em torno de ações comuns, A Escola de Jules Ferry: um mito que perdura

127

com estratégias e com conhecimentos em ação, distintos dos seus. O

grupo, por ser heterogêneo, permite uma aprendizagem mútua. Eis

que se atinge o indivíduo, a emulação, a competição. Como selecio­ nar pela produção de grupo? A brecha no mérito não será aberta. Inspirando-se em exemplos estrangeiros, professores fran­ ceses conceberão a escola como uma república de crianças. É dado a

elas um poder sobre a sua vida, seu espaço e seu tempo. Inventam e

fazem evoluir, pela sua experiência, uma instituição, em vez de pade­ cer a ela e de se submeter a regras externas. Em todos os lugares onde

tais tentativas aconteceram, os alunos são mais ativos, mais calmos, mais implicados, mais responsáveis. Esse novo estatuto da criança

se opõe em demasia ao estatuto desresponsabilizado do futuro cida­

dão. Essas escolas serão apresentadas como lugares de laxismo, que colocam em perigo a ordem e a moral. A brecha na disciplina será

rapidamente fechada.

Considera-se que a aquisição de métodos para ter acesso aos conhecimentos é mais importante do que o simples acúmulo de

fatos difíceis de organizar? Ou que os meios da autodidaxia consti­ tuem o essencial do procedimento educativo, da mesma maneira que

se considera mais importante ajudar os famintos a aprender a pescar do que depender de uma caridade externa? Eis que os alunos não

sabem mais nada, que o nível vem baixando, que na minha época... A brecha na decoreba não acontecerá.

Tudo isso se resume a um símbolo, a um farol: Freinet, incontestavelmente o maior pensador da pedagogia francesa. Mais notável ainda o movimento cooperativo que o acompanhou, agru­

pando milhares de professores entre os melhores. Nunca teoria e prática ficaram tão estreitamente unidas na procura por uma escola

diferente, de uma ruptura fundamental com o paradigma da escola de Jules Ferry; ruptura desejada, coerente, explicitamente política, à

128

procura de uma escola do povo, de uma escola da promoção coletiva. Freinet terá que deixar o ensino público; a administração atrapalha­ rá, inclusive sob forma de sanções, o trabalho dos militantes. Suas

classes serão retratadas como lugares em que, na ausência de ensino, as crianças não podem aprender. Marginalizado, sem receber o apoio dos meios populares

que foram enganados por essas informações, o movimento recuará segundo uma lógica adquirida. Irrisória vingança de baixo nível, a administração irá até defender algumas técnicas esvaziadas da sua

razão de ser: o texto livre obrigatório no lugar da habitual redação do sábado.

Temo que esse retrato da escola de Jules Ferry seja, mais uma vez, desfavorável aos professores. É tão mais fácil duvidar do

trabalho deles do que confessar a vontade política do sistema em si.

O professor com classes de 50 alunos, preparando meticulosamente o trabalho simultâneo de várias aulas, corrigindo detalha­

damente inúmeros cadernos, levando até o Certificado de Estudos

50% das crianças, cuidando da secretaria da prefeitura depois das aulas e aconselhando os moradores mais necessitados, criando as bases para uma vida cultural local e abrindo bibliotecas, conseguin­

do centros de férias para os mais pobres, corrigindo o privilégio do ensino médio com aulas complementares, inovando no movimento

cooperativo, desenvolvendo as práticas esportivas e de lazer... tudo

isso merece estima, respeito e reconhecimento. E, no entanto, tudo isso não muda nada nos efeitos objetivos do sistema escolar. Fica, entretanto, difícil fazer um balanço preciso dessa es­ cola e de avaliar o que o progresso lhe deve ou não lhe deve.

A primeira dificuldade provém do fato de que a escola de

Jules Ferry, ao se instaurar, substituiu outros sistemas possíveis dos A Escola de Jules Ferry: um mito que perdura

129

PELAGEA WLASSOWA APRENDE A LER

O PROFESSOR diante de um quadro-negro - Então, vocês querem aprender a 1er. Na verdade não consigo compreender para que vocês

precisam disso, na sua situação. E alguns de vocês estão, talvez, velhos demais para isso. Mas eu vou tentar, sra. Wlassowa, em atenção à se­

nhora. Todos têm com que escrever? Então vou escrever agora três pa­ lavras simples: Ramo. Peixe. Ninho. Repetindo: Ramo. Peixe. Ninho. SIGORSKI - Para que essas palavras?

PELAGEA WLASSOWA sentada com outros à mesa - Por favor, Nikolai Iwanowitsch, precisam ser mesmo ramo, peixe e ninho? Nós já estamos velhos e precisamos, assim, aprender depressa as palavras que

nos sejam úteis.

O PROFESSOR sorri - Olhem: tanto faz aprender com estas ou ou­ tras palavras.

PELAGEA WLASSOWA - Como assim? Como se escreve, por exem­ plo, operário? Isso interessa ao nosso Sigorski.

SIGORSKI - Ramo não aparece nunca. PELAGEA WLASSOWA - Ele é metalúrgico. O PROFESSOR - Mas aparecem as letras.

O OPERÁRIO - Mas em “luta de classe” também aparecem as le­ tras.

O PROFESSOR - Sei, mas vocês têm de começar pelo mais simples, e não direto com as palavras mais difíceis. “Ramo” é simples. SIGORSKI - “Luta de classes” é muito mais fácil.

O PROFESSOR - Mas não existe luta de classes nenhuma. É bom que isso fique claro de uma vez por todas. SIGORSKI levanta-se - Então eu não tenho nada a aprender com o

senhor, já que para o senhor não existe luta de classes! PELAGEA WLASSOWA - Você precisa aprender a escrever. E isso você pode fazer aqui. Ler, isso é luta de classes!

O PROFESSOR - Acho isso tudo uma bobagem. O que vocês estão dizendo agora? Ler é luta de classes! Pra que tanta falação? Escreve. Portanto, isso significa: Operário. Copiem!

Jean Foucambert

PELAGEA WLASSOWA - Ler é luta de classes, assim penso eu: se

os soldados em Twer pudessem ter lido os nossos cartazes, talvez não

tivessem atirado em nós. Eles eram filhos de camponeses. O PROFESSOR - Olhem, eu sou professor e há dezoito anos que en­

sino a 1er e escrever, mas devo lhes dizer uma coisa: no fundo tudo isso é absurdo. Livros são absurdos. Os homens se tornam sempre piores. Um

simples camponês já é um homem melhor, simplesmente por não estar corrompido pela civilização. PELAGEA WLASSOWA - E como se escreve então luta de classes?

Pawel Sigorski, você precisa apoiar a mão com firmeza, senão você tre­ me e a letra fica ilegível.

O PROFESSOR escreve - Luta de classes. Para Sigorski - O senhor precisa escrever numa linha certa e não sobre a margem. Quem escreve

sobre a margem também transgride as leis.

Trecho. BRECHT Bertolt. A Mãe. Tradução de: João das Neves. In:_ _ Teatro Completo. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994- v. 4.(Coleção Teatro), p. 194-196.

A Escola de Jules Ferry: um mito que perdura

131

quais desconhecemos evidentemente os efeitos. Não esqueçamos

que, antes dela, a França não era um país de analfabetos e que a

aprendizagem mútua defendida pelo movimento operário tinha con­ seguido que, antes mesmo de 1870, 80% dos operários parisienses soubessem 1er e escrever!

A segunda dificuldade reside na impossibilidade de ava­ liar a função do meio no processo educativo global, tratasse-se da

família, da empresa, da mídia e em particular da imprensa, das inu­

meráveis associações para a educação popular, dos sindicatos, do en­ gajamento em favor de lutas políticas... Qual é, para um homem de

quarenta anos, a parte da sua formação ou da sua deformação que ele deve à escola, e que nunca teria adquirido se ela não tivesse tido

a forma que conhecemos? Qual é a parte de alienação e de liberação

que podemos lhe atribuir? O balanço só pode ser o do sistema global em que a escola

desempenha o papel que lhe é devido. De nada serve imaginar que as coisas teriam sido melhores ou piores sem ela. São o que são com ela.

Implantada para elevar o nível de formação geral até um

patamar descrito e controlado pelo programa do último ano dos estu­ dos, a escola, sem dúvida, cumpriu seu contrato. 50% da população

deixará de atingir esse nível; 20% prosseguirá seus estudos além des­ se nível; certo tipo de autodidaxia permitirá a uma parte dos outros fazer com que seu conhecimento adquirido frutifique. Não erramos

muito ao estimar que o nível médio de formação da população fran­

cesa gira em torno desse mínimo vital representado pelo Certificado

de Estudos, graças ao qual a máquina econômica funcionou de ma­ neira satisfatória. Socialmente falando, a escola parece ter desenvolvido seu

papel de ascensor social para uma minoria sem que as condições

132

Jean Foucambert C'y CcC/' l '[

desse fenômeno tenham sido alguma vez corretamente analisadas. O exemplo do filho de operário alcoólatra que se tornou professor

universitário existe, mesmo que seja somente no imaginário coletivo!

Porém, o que é pouco explorado é o ambiente dessa ascensão. Se olharmos para ela com mais atenção, sempre encontramos uma in­ tervenção extraescolar, a de um tio, de uma pessoa importante do vi­

larejo, de um professor talvez, que valorizou esta criança porque lhe

parecia interessante, e a ajudou, modificando totalmente o mítico estado inicial que teria permitido a tantos pobres, uma vez famosos, testemunhar que deviam tudo à escola. Mais frequentes e melhor descritas são as promoções so­

ciais em duas ou três gerações que levam até à presidência da Repú­

blica tal tataraneto de um camponês pobre do interior. Entretanto,

a verdade estatística convida a uma modéstia maior e mostra o ex­

traordinário poder reprodutor do sistema educativo. A mobilidade observável aparece aí bem mais como uma consequência da evolu­ ção econômica que cria, entre dominantes e dominados, categorias socioprofissionais novas (e não uma classe) do que como resultado

de uma mescla entre as próprias classes sociais. Do ponto de vista

cultural, os resultados também parecem modestos. A França perma­ nece dividida em dois blocos: uma minoria consome “cultura” e a

maioria fica quase que totalmente excluída dela. A pintura, a músi­ ca, o teatro, a literatura, a poesia, pertencem às classes dominantes. Estimava-se ainda, muito depois dos anos 50, que 15% da população

consumia 85% do conjunto da produção cultural e 50% dos france­ ses liam menos de um livro por ano. Quanto à cultura científica ou

técnica, bastou focalizar a física, a astronomia, a biologia “espontâ­

neas” dos adultos para se surpreender. O que imagina, sabe ou tem como representação o Francês médio da eletricidade, do rádio, da relatividade, do átomo?

A Escola de Jules Ferry: um mito que perdura

133

Mais do que em outra parte, é no espaço político que as in­ tenções foram realizadas com maior sucesso. Lembremo-nos da ame­

aça que Jules Ferry fez à direita conservadora: em resumo, se vocês

não aceitam criar uma escola para o povo, não poderão impedir que o povo crie sua escola, e então nada poderá impedir que se propague

uma ideologia socialista ou comunista que levará inevitavelmente a uma subversão tão deplorável quanto aquela que tivemos que com­ bater na Comuna. Missão cumprida! Em 80 anos, a despolitização foi um su­ cesso. Desapareceu a sensação de pertencer a classes sociais anta­

gônicas. O rico acha que tem os mesmos direitos que o pobre; e o pobre os mesmos deveres que o rico! O individualismo substituiu

a evidência da luta solidária. As oposições entre classes foram su­ cessivamente desviadas contra os judeus, os alemães, os russos, os

jovens, os imigrantes e, quando a situação social piora, contra todo mundo ao mesmo tempo. O sentimento de impotência e o refúgio

na resignação desembocam em um respeito espantoso para com os poderosos. A credulidade e o mito do grande homem tomaram conta de uma opinião pública que perdeu, junto com o gosto pela imper­

tinência e o sentido da revolta, todos os meios de análise e de ação

sobre a realidade. Por mais que essa evidência seja dura de ouvir, a

união da maioria dos Franceses com Pétain, que se vangloriava de

preferir Hitler à Frente Popular, é coerente com a vontade inicial da burguesia que confiou a Jules Ferry o cuidado de estabelecer, com base nos mesmos princípios, um império colonial e um ensino fun­ damental. A Terceira República nasceu em meio à aniquilação de

seus operários pela burguesia de Versailles, auxiliada pelos exércitos

alemães e, por medo dos seus operários, se fundiu a um estado que colaborou com o fascismo.

Jean Foucambert

Essa permanência, de Thiers até Pétain, leva à admiração

e não estamos falando mal de ninguém quando observamos que a escola não conseguiu inverter essa tendência. As conquistas sociais

que, apesar disso, marcaram o século, resultam de um trabalho obs­

tinado dos sindicatos e dos partidos de esquerda com o fim de des­ pertar, em uma minoria, uma consciência de classe, o sentido de um engajamento e os meios de uma análise política; trabalho conduzido

contra o que a escola ensina, pois nada incita o futuro cidadão a interessar-se pela política, a se preparar para a luta social.

Essa aceitação do inaceitável, essa submissão à injustiça moderada, o isolamento de todo um povo em um presente sem pers­

pectiva, esse desarmamento, essa impotência, se chama alienação. Qual é o papel da escola nisso? Será que contribui diretamente com

isso? Será que é impotente para combatê-la? E a conclusão à qual nos levam os pressupostos pedagógicos em que a escola se baseia.

Razão pela qual todas as perspectivas de inovação que vão contra essa resignação rimam com a constatação terna e desesperada

de Aragon. Les poètes

Os poetas

J'en ai tant vu qui s’en allèrent Ils ne demandaient que du feu Ils se contentaient de si peu Ils avaient si peu de colère

Vi tantos que foram embora Só pediam fogo Contentavam-se com tão pouco Tinham tão pouca cólera

J’entends leurs pas j’entends leurs voix Qui disent des choses banales Comme on en lit sur le journal Comme on en dit le soir chez soi

Ouço seus passos ouço suas falas Que dizem coisas banais Como se leem nos jornais Como são ditas à noite nas suas salas

Ce qu’on fait de vous hommes femmes Oh pierre tendre tôt usée Et vos apparences brisées Vous regarder m'arrache l’âme.

O que é feito dos senhores homens mulheres Oh pedra lisa tão cedo gasta E essas aparências pisadas Dói na alma encontrar vossos olhares. A Escola de Jules Ferry: um mito que perdura

135

Capítulo 4

“Os dias passam...” Hoje, o homem sabe escrever no céu. E o que escreve! Bebam Coca-Cola.

J-P. Chabrol

O que essa escola tem ainda a ver com a gente?

Observemos primeiro que sua ideologia impregna 80% de cada cidadão desse país e que, o que chamamos de “a psicologia do Francês médio”, para o nosso desespero ou a nossa felicidade, foi,

aos poucos, moldada por ela. A história prossegue, portanto, com as pessoas assim como elas são, tal qual, não por um decreto da nature­

za, mas da sociedade. Não adianta cobrar das pessoas aquilo em que

acreditam se elas são as primeiras vítimas dessa crença.

Conhece-se o estado atual da opinião pública, sua medio­ cridade, seu racismo, sua recusa em confrontar-se aos verdadeiros problemas, sua aceitação de uma ordem econômica e política, en­

tretanto, incapaz de propor soluções que não mutilem a metade da

humanidade, sua futilidade, sua credulidade, seu culto às vedetes, sua versatilidade, sua recusa em tomar nas mãos um destino coletivo,

suas esperanças de se sair dessa ganhando na loteria, sua submissão à mídia e à publicidade. Outrora, os poderosos impunham o ina­

ceitável, deixando acreditar que tudo seria melhor na vida eterna; A Escola de Jules Ferry: um mito que perdura

137

hoje, triunfam repetindo que a vida seria pior sob o regime soviético. É mais ou menos a única argumentação, porém suficiente para ca­

lar toda contestação. A alienação existe... É preciso entender seus mecanismos para sonhar com uma escola que diga não, que ajude a

mudar e não a padecer. Mas essa não pode ser a escola daqueles que pensam que — já que seus privilégios são exorbitantes e injustificados, portanto

precários - tudo deve ser feito para legitimá-los. A educação é ne­

cessariamente um desafio político; ela é, de um lado como do outro, uma luta. Não há nada a se esperar; tudo está por conquistar. Hoje,

como há cem anos, projetos educativos se opõem da mesma maneira

que os projetos sociais. Com a diferença de que um século de modelo único confunde ainda mais.

Entender como funcionava a escola de Jules Ferry significa

preparar-se, ao mesmo tempo, para lutar contra a nostalgia ambiente e evitar as falsas soluções que só a reforçam.

A escola de Jules Ferry deixou de existir como instituição

coerente ao longo dos anos 60. Porém, não foi substituída. Sobrevive a ela mesma na espera de um novo projeto coerente; que está demo­

rando a nascer...

Os eventos desses últimos anos o confirmam: a relação atu­ al das forças políticas não poderia levar à definição de uma escola em

que florescería uma educação da transformação social. Entretanto, as mutações técnicas e econômicas tornam indispensável a obtenção

de novos resultados. A necessidade, hoje admitida, de que 80% de uma faixa etária atinja um nível de formação geral próximo do atual

baccalauréat18 faz com que o sistema escolar viva uma temível con­

18

N. T. Exame nacional realizado ao final do segundo grau que permite o aces­

so à universidade.

138

Jean Foucambert

tradição, muito comparável àquela que a França conheceu antes que

Jules Ferry implantasse a sua escola. Será possível aumentar ainda o nível de conhecimento sem

provocar riscos sociais ao compartilhá-lo? Será possível transmitir so­

mente esses conhecimentos sem, de um modo ou de outro, modificar

seu modo de produção? Um século mais tarde, o problema se apre­ senta nos mesmos termos e dois roteiros se opõem. Os dominados conseguirão penetrar na contradição vivida pelas classes dominantes

ou deixarão, mais uma vez, a divisão se expandir entre aqueles que

produzem o saber e aqueles a que só se pede que o apliquem?

Temos que confessar que se o problema é o mesmo, a cons­ ciência que os meios populares têm dele foi seriamente atingida por um século de escola com o modelo que conhecemos. Em 1870, dois

projetos se opunham claramente. Hoje, a reflexão educativa da es­

querda política beira o irrisório. A análise dos programas eleitorais, de tempos em tempos, multiplica as provas disso. Razão pela qual o futuro parece tão mais

obscuro...

A solução geralmente mais cogitada, de forma geral a de Jean-Pierre Chevènement19, define com bastante clareza novos obje­ tivos e implanta, no segundo grau e no nível superior, várias estrutu­ ras para atingi-los. Mas, no que diz respeito ao fundamental, que nos

interessa aqui, todo mundo parece acreditar que uma restauração da escola de Jules Ferry permitirá transformá-la em uma base fértil de

um sistema escolar prolongado para todos até os dezoito anos. Equi­

vale a recusar entender que a lógica dessa escola se perdeu quando

19

N. T. Ministro do Interior na França de 1997 a 2000, durante o governo de

Jacques Chirac, de direita, com Lionel Jospin, do Partido Socialista francês, como primeiro ministro. O que se chama, na França, “coabitação”.

A Escola de Jules Ferry: um mito que perdura

se transformou, para a quase totalidade dos alunos, na primeira etapa

do sistema educativo, em vez de ser o sistema em si. Restaurar os valores de Jules Ferry, e para tanto, varrer cin­

quenta anos de pesquisa e de reflexão pedagógicas, constitui uma posição totalmente suicida. A opção não se situa entre uma escola

sem pedagogia e outra escola com. Como se a escola de Jules Ferry não se preocupasse com a pedagogia e como se essa última fosse so­ mente o lobby, o hobby, a extravagância ou o álibi de inovadores ca­

rentes de reconhecimento! Sabemos a favor de quem votam as boas pessoas que se vangloriam de não fazer política... Para a pedagogia, é a mesma coisa. Negar a sua função equivale simplesmente a caucio-

nar uma pedagogia implícita, aquela que evidentemente se baseia na

decoreba, no mérito, na disciplina, no sintetismo e no fazer de conta. Para reproduzir melhor.

Porém não há dúvidas de que, para atingir novos objetivos

e, ao mesmo tempo, compartilhar os conhecimentos e ampliar as ba­ ses sociais da sua produção, seja necessário confrontar-se a tamanhos pilares da transmissão pela escola. É agora ou nunca a hora de levar

a pedagogia a sério!...

Resulta fácil demais, e muitos o fizeram, caricaturar a ino­ vação retratando certas hesitações e certos erros. O fato de a escola, no desespero, na ausência de metas políticas e de alianças sociais,

ter-se perdido às vezes na falta de direcionamento, na psicanálise,

no despertar da criança, na recusa de qualquer exigência ou na de­ sistência simplesmente, não pode justificar a volta a um sistema que

essas tentativas, por mais inábeis que fossem, procuravam, e com razão, transformar. Se há algo a lamentar, é, pelo contrário, o fato de, em 20

anos, as inovações não terem sido suficientemente numerosas, de

a pesquisa pedagógica não ter tido os meios de fundamentá-las, de

140

Jean Foucambert

avaliá-las, de ajudá-las a chegar à teorização, de diversificá-las. É ur­ gente entender, e desejaríamos que um governo de esquerda o enten­

desse, que os objetivos a serem atingidos necessariamente dependem de avanços pedagógicos simultâneos em todos os pontos que travam a escola tradicional. Não os favorecendo, a escola se condena ao fracasso. E, portanto, a desaparecer aos poucos.

Pois outro cenário visa reduzir ainda mais os riscos que uma ampliação dos conhecimentos representa para um sistema social que

necessita deles. Basta, para tanto, isolar ainda mais os indivíduos que estão aprendendo.

Graças à incerteza do mercado de trabalho, é possível obri­ gar os indivíduos a se resignarem ainda mais para ficar entre os elei­ tos. Colocar em posição de concorrência severa uns contra os outros

é a melhor maneira de submeter, obrigar cada um, se quiser sucesso, a entrar no modelo dominante.

Pode-se conceber também, com a telemática e a informá­

tica, que a estrita transmissão dos conhecimentos se vivencie de um modo completamente individualizado, cada um isolado, em casa, ou dentro de um pequeno grupo, dialogando com uma máquina que

ajusta a melhor progressão.

Ainda pode-se imaginar, na coerência do liberalismo de­ senfreado e das desnacionalizações, que as famílias recebam “bolsas escola” para permitir-lhes matricular os seus filhos em módulos de

ensino ministrados por bancos de programas didáticos informatiza­ dos ou por televisões pagas. Encontros semanais frente a um moni­ tor (a palavra é ambígua!) bastarão para recapitular o trabalho de

cada um e resolver o que não depende da máquina. No Japão, como na França, as primícias dessa escola fragmentada em que monitores

acompanham e avaliam algumas crianças, trabalhando com meios

A Escola de Jules Ferry: um mito que perdura

telemáticos em família ou ao lado de algumas famílias, começaram a aparecer. A escola não passa, na verdade, de um evento histórico

e, é fácil conceber uma sociedade sem ela, não segundo o modo de

convivência de Illitch, mas sob o modo do individualismo e da com­ petição. Existe, em um sistema assim, menos riscos de divergência

social, pois a perspectiva da seleção e a necessidade de se submeter

a ela, para fugir da insegurança, levam as famílias a escolher o meio educativo que permite interiorizar, da melhor maneira, a norma.

O segundo cenário é, de longe, o mais provável, mesmo

porque o fracasso do primeiro está garantido. Ou a escola é concebida dentro de um projeto político de transformação social e se interessa francamente pela pedagogia, ou

a transmissão dos conhecimentos continua sendo o objetivo prio­ ritário e, neste caso, meios muito mais eficientes do que a escola vão se desenvolver nos quinze próximos anos, levando assim ao seu

desaparecimento. Em outras palavras, e não se trata do menor dos paradoxos,

situando-se estritamente na lógica social que implantou a escola de Jules Ferry, vemos se desenhar o seu declínio. E, ao contrário, a esco­ la só pode se manter se adotar objetivos políticos e sociais totalmente

diferentes, aqueles de uma transformação da sociedade e não da sua

reprodução. Transformação a partir de outras bases, com outra peda­ gogia e para outras alianças.

Que a gente goste ou não dessa escola de Jules Ferry, é tão estéril deplorá-la quanto sentir falta dela. Ela existiu, existe ampla-

Jean Foucamberc n

mente ainda nas nossas mentes, forma opinião, impondo uma ideo­

logia do conhecimento, do mérito, das relações sociais.

A luta por uma escola diferente, por uma escola da pro­

moção coletiva, por uma transformação das relações de produção do saber, que me parece ser o verdadeiro desafio de toda reflexão

educativa, tudo isso só pode progredir se entendermos os princípios ativos da escola atual. Ora, essa compreensão só nasce do trabalho

realizado para transformá-la. É pela ação dos movimentos para uma nova educação, das

inovações e das experimentações, que se revelam as chaves do siste­ ma e que emergem os opostos dominados merecedores seguramente

de serem trabalhados. Porém, essa conscientização não precede a ação; ela a acompanha. Compreender e transformar andam juntos.

Portanto, só podemos aprender ao exercer já o poder pre­ sumido do saber. Razão pela qual o compartilhamento social do saber

reflete o compartilhamento social do poder. A reflexão dos movimentos pedagógicos envolvidos na ação aponta para as possibilidades do futuro, e não há vontade de

mudança desde que se negue, na escola, o papel da pedagogia. Neste livro, meu propósito não era o de desenvolver so­

luções, e sim, simplesmente, o de lembrar os princípios ativos que

fazem com que a escola tenha, quaisquer que sejam os esforços e as

intenções dos seus atores, os efeitos que lhe conhecemos. Não há dú­ vida, entretanto, de que precisamos nos engajar mais decididamente

em várias direções, notadamente:

-

Para informar mais amplamente o público a respeito da escola, dos seus desafios, dos seus efeitos, das suas vias

de transformação e para criar uma reflexão comum com os partidos, os sindicatos e as associações; A Escola de Jules Ferry: um mito que perdura

Para formar de outra maneira, e de modo aprofundado,

-

professores e educadores para que a inovação pedagógi­ ca se torne, sem demora, um espaço de práticas positi­

vas ao invés de adotar o negativo, como se fosse de uma

foto, das práticas tradicionais;

Para relacionar os parceiros da educação a fim de en­

-

contrar uma coerência política e educativa entre os diferentes espaços transformando, assim, o estatuto da

criança;

Para integrar a reflexão educacional dentro de uma re­

-

flexão social geral; já que o estatuto da criança só pode evoluir na medida em que os demais estatutos, aqueles

do adulto e do trabalhador, evoluem simultaneamente;

Para integrar as novas técnicas, e em particular a in­

-

formática, em um alto nível de funcionalidade com o

objetivo de que liberem sua potência inovadora e não se limitem a reforçar e depois substituir a pedagogia tra­ dicional.

Quanto ao sentido das inovações, é fácil percebê-lo a partir daquilo que é questionado na escola de Jules Ferry:

-

Em que medida rompem com a competição e o mérito individual? Com a submissão às regras externas? Com

a memorização de conhecimentos pontuais, sem ter a possibilidade de produzi-los? Com o enfoque que parte

de elementos simples sem nunca chegar à sua totalida­ de? Com a existência de um meio artificialmente criado para ser educativo? -

Em que favorecem a aprendizagem mútua de saberes necessários ao grupo? A invenção de regras a partir da

Jean Foucambert

solução de conflitos em e entre os grupos? O desenvol­

vimento dos meios de produção do saber? Um enga­

jamento em projetos de produção? O confronto com a realidade social? Ainda não devemos esquecer que

essas inovações têm que tratar de todos esses aspectos

simultaneamente. Se negligenciarmos alguns, transfor­ maremos até o benefício que podemos esperar dos ou­ tros.

145

..e amanhã?

[Conversa ouvida em 2086 entre um avô e seu neto]

“Na minha época, quando ia à escola, pelo menos a gente tra­

balhava e a gente aprendia...

Imagine locais amplamente abertos para o bairro, com grandes espaços, ali uma midiateca, aqui um estúdio de TV, outro de rádio, mais

longe a imprensa, uma sala de espetáculos, um ateliê com máquinas para consertar e até fabricar; e ainda, estandes de exposição, pontos de encon­ tro e de debates, locais de venda... Por todo lado, pequenas salas para se

reunir e trabalhar em pequenos grupos, em todo lugar, TVs e terminais de

computadores... E muita gente. Gente do bairro que vinha para se encontrar e

trabalhar para si mesmos ou com a gente, para se aperfeiçoar em labora­ tórios de língua, de leitura ou de matemática; e também as associações de

inquilinos, de usuários, os movimentos culturais, os sindicatos operários,

os sindicatos familiares, assim como o pessoal da comunidade... Utilizam os mesmos ateliês que a gente para refletir, produzir, escrever, emitir, difun­ dir, trocar, compreender. Estamos sempre juntos, participamos do projeto

deles, nos ajudam nos nossos.

Não falta trabalho! Todos os dias temos que produzir os pro­

gramas de TV e de rádio para o bairro e também um jornal semanal. O responsável pela imprensa não brinca com os prazos! Nem te conto o que A Escola de Jules Ferry: um mito que perdura

a gente precisa preparar e saber! Informar-se, redigir entrevistas, escrever artigos, criar espetáculos, ficar a par dos demais jornais e das produções dos clubes e das escolas da cidade; compreender os problemas das pessoas, organizar campanhas informativas e de sensibilização, debates, exposições;

participar da gestão de todos esses espaços e da manutenção dos materiais;

fabricar, nós mesmos, alguns objetos, condicioná-los para expedi-los, man­

ter em dia as finanças da escola, encontrar recursos, decidir sobre os gas­

tos; ir vivenciar experiências com os nossos interlocutores nos seus locais

de trabalho, entender o que fazem, participar do trabalho deles, gerenciar a vida dos grandes grupos, resolver os conflitos nos pequenos, e ainda tomar-se eficientes para 1er, expressar-se e implantar a informática... Sem

falar do que estou esquecendo! A gente não parava... A gente nunca estava sozinho. Os menores trabalhavam com

os maiores nos mesmos projetos; assim tratavam de cara as questões com­ plexas que aprendiam aos poucos a resolver, resolvendo-as. Os professores se diferenciavam pouco dos demais adultos com os quais trabalhávamos

e que eram também envolvidos em projetos comuns. Nós os conhecíamos

melhor, porque se associavam sempre em diversas tarefas. Eles nos encon­ travam muitas vezes para conversar, ver em que pé estavam as organiza­ ções que tínhamos escolhido, examinar os resultados, entender com a gente

as nossas dificuldades, trazer-nos explicações, apresentar-nos técnicas no­ vas, ajudar-nos a dominá-las, acompanhar com a gente treinamentos que fazíamos frequentemente nos computadores... Tínhamos a sensação de já ser cidadãos como os demais, mas

com as características da nossa idade; mesclados permanentemente à vida dos adultos. A escola era o local comunitário onde cada um voltava para produzir bens coletivamente, estabelecendo uma relação com um tipo de

teorização permanente da experiência social. Ah, estava esquecendo: tam­ bém tínhamos que...

- Olha, vô, você já me contou essa história cem vezes! Jean Foucambert

Sua escola já pertence ao passado! A nostalgia é legal, mas eu

vivo outra coisa. Você prende a gente nas suas lembranças...

- O que você tá dizendo me lembra meu avô! Ele também não parava de falar do que tinha vivido, mas eu nunca entendi na verdade... Parece inclusive que tinha salas de aula, e que os professores davam aulas,

e que os alunos faziam exercícios... - Não! Você confunde tudo, essa era a escola de Jules Ferry! - Mas era em 1986 ! ..." Novembro de 1985

A Escola de Jules Ferry: um mito que perdura

Este livro foi composto em Goudy Olst Bt, corpo 22/16/14/11/10/9/8/, Chaucer, corpo 11/9, Hoefler Text Ornaments, corpo 14, impresso em off-set, em papel Pólen Soft 80 g/m2 para o miolo, e pape! cartão supremo 250 g/m2 para a capa, pela Imprensa Universitária da UFPR para a Editora UFPR, em julho de 2010.

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Lei de 28 de março de 1882, artigo 4.°: "A instrução primária é obrigatória para as crianças dos dois sexos, de 6 anos completos até 13 anos completos ’. A escola de Jules Ferry nasceu. O que ela representa? • A concretização por parte de um povo unânime dos seus ideais de generosidade, de igualdade, de progresso moral e de justiça, prosseguindo assim a obra da Revolução Francesa? • A iniciativa de uma burguesia que elimina as concorrências educativas entre a esquerda e a direita a fim de melhor domesticar, em uma escola “para” o povo, uma mão de obra necessária para o crescimento do capitalismo industrial, fechando assim definitiva mente a era das revoluções?

A qual desses dois objetivos faz-se referência quando se proclama que a escola fracassou? Questão mantida voluntariamente obscura, paradoxalmente para dissimular melbor seu sucesso e convencer os oprimidos da urgência em defendê-la, reivindicando para suas crianças os funcionamentos pedagógicos que eles mesmos receberam. Jean Foucambert, por muito tempo encarregado das experimentações sobre a organização geral da escola no Instituto Nacional de Pesquisa Pedagógica, se esforça para mostrar que é pelo gesto pedagógico cotidiano e pelo funcionamento mais banal que se realiza a intenção política de um projeto educativo. Principalmente porque o debate pedagógico se encontra ausente.

Mudar a escola boje é relacionar outra ambição para a humanidade com novas modalidades pedagógicas. Ainda é necessário saber de qual história c de que lutas sociais provêm as práticas de hoje. -