A Educação pelo Trabalho I [I, 2ª ed.]

Table of contents :
PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO -------------------------------------- 7
INTRODUÇÃO ------------------------------------------------------------------ 9
1. O encontro de duas culturas --------------------------------------------13
2. Reencontrar as fontes claras -------------------------------------------- 17
3. Uma consciência clara e viril ----------------------------------------- 20
4. A permanência humana------------------------------------------------- 25
5. A fonte deve tornar-se torrente, ribeira e rio ------------------------ 23
6. Os erros humanos da ciência ------------------------------------------ 31
7. Perigos de degenerescência ----------------------------------------- - 37
8. O falso brilho — o ouro e a prata ------------------------------------- 43
9. Reencontrar as linhas de vida ----------------------------------------- 46
10. Conhecimento e sabedoria - ------------------------------------------ 52
11. Os ritmos perdidos ------------------------------------------------------ 54
12. O progresso -----------------------------------------------------— 59
13. A criança desenraizada ------------------------------------------------- 64
14. O ensino do passado ----------------------------------------------------- 70
15. Os camponeses poetas -------------------------------------------------- 78
16. Os perigos da escolástica ----------------------------------------------- 81
17. A cultura profunda ------------------------------------------------------- 88
18.
O progresso técnico será forçosamente um progresso
humano? ---------------------------------------------------------- 96
19.
A instrução nem sempre torna o homem melhor 105
20. Cultura e conhecimentos ---------------------------------------------- 114
21. A memória --------------------------------------------------------------- 122
22 O esforço, o prazer e os jogos ------------------------------------------- 127
23. A procura duma filosofia ---------------------------------------------- 144
24. Uma educação pelo trabalho ------------------------------------------ 152
25. Mas qual trabalho? ------------------------------------------------------ 172
26. Uma poderosa necessidade de trabalho ----------------------------- 177

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Celestin Freinef

A EDUCAÇÃO PELO TRABALHO VOLUME I

Questões

EDITORIALPRESENÇA

A EDUCAÇÃO PELO TRABALHO

QUESTÕES: 1. CARTA A UMA PROFESSORA, pelos rapazes da Escola de Barbiana 2. O BUDISMO ZEN, por Alan W. Watts 3. UMA EXPERIÊNCIA NA AMÉRICA LATINA, por Sal­ vador Allende 4. A PSIQUIATRIA EM QUESTÃO, por R. D. Lalng 5. AS UTILIZAÇÕES DA CULTURA, por Richard Hoggart 6. PARA UMA ESCOLA DO POVO, por Célestin Frelnet 7. A EDUCAÇÃO PELO TRABALHO I, por Celestin Frelnet

CELESTIN FREINET

A EDUCAÇÃO PELO TRABALHO 1.º VOLUME

Colecção QUESTÕES - EDITORIAL

PRESENÇA

Título original

L'EDUCATION DU TRAVAIL Copyright by Editions Delachaux et Niestlé Tradução de antônio pescada Capa de F. C.

Reservados todos os direitos para a língua portuguesa à EDITORIAL PRESENÇA, LDA. — Av. João XXI, 56-1.º LISBOA

PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO

A edição original deste livro, publicada em 1946, está desde há muito esgotada. A pedagogia que ele preconiza está no entanto mais do que nunca na ordem do dia. Com efeito, ao longo destes quinze anos de pós-guerra, a cultura escolástica con­ sumou a sua falência, enquanto se elevavam acima da sua confusão, as vozes concordantes de todos os investigadores inquietos, psicólogos, pedagogos, filósofos, homens de ciência e técnicos. A conjunção das suas teorias faz com que hoje pareçam menos ousadas e menos temerárias as ideias de implacável bom senso do presente livro. No entanto, na prática, a Escola raramente ultrapassa ainda a verborreia tradicional, e as tentativas para sair dela apenas nos conduziram, em muitos casos, a impasses. Pro­ cura-se em vão, desde o princípio do século, razões de ser e motores para uma pedagogia nova que tem tentado sem êxito a emulação e as classificações, as técnicas audio-visuais, a actividade ou o jogo. Só os psiquiatras reconheceram o valor curativo duma «ergoterapia» cujo emprego nem sempre está à altura exacta dos princípios. Mas entrementes, a Escola moderna preparou metodi­ camente os instrumentos e as técnicas da educação pelo tra­ balho; ela introduziu e desenvolveu em milhares de escolas uma forma de educação e de cultura que aparece já como a solução de futuro— e do futuro próximo — dos problemas

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dramaticamente urgentes da preparação das jovens gerações para a sua missão técnica, social e humana. Há vinte anos a educação pelo trabalho não era ainda mais do que uma promessa entusiasmante. Ela é hoje uma realidade que o presente livro deve justificar e promover.

C. F.

INTRODUÇÃO

HÁ FONTES QUE SÃO APENAS DE ÁGUA FRESCA E CLARA, MAS CUJO ACESSO CONTINUA A SER COMO QUE UMA BÊNÇÃO Nos momentos mais penosos da minha vida — e a nossa geração parece ter nascido sob o signo das grandes pertur­ bações individuais e colectivas — quando o horizonte está como que toldado por sucessivas catástrofes, não é no ensi­ namento dos filósofos, cuja leitura outrora me impuseram, que vou procurar sossego e íntima esperança. Olho para as minhas fontes. A fonte clara e fresca que corre abundantemente à entrada da aldeia, que se some sob um aqueduto para sal­ titar gurgulejando até à roda do velho moinho. Nas grandes chuvas, ela fervilhava em borbotões e parecia evaporar-se em denso nevoeiro, que diminuía a pouco e pouco na grande praça e à volta do lavadouro. Reencontro em pensamento o magro fio de água sob as raízes dos buxos, no cimo da montanha, e cujo caminho secreto só o pastor e o seu cão conhecem. Estávamos ali sentados, nessa manhã de Maio, comendo uma bucha enquanto a água aclarava na cova apressadamente escavada na areia. 9

E essas outras fontes claras que foram, ou que ainda são, os sábios que na aldeia souberam dominar a vida e mostrar obstinadamente as únicas vias que talvez nos per­ mitam reencontrar e reconquistar as forças embotadas e as eternas e simples razões de viver e de esperar: Minha mãe, que no seu tempo era como que o resultado duma cultura tradicional hoje aparentemente ultrapassada, cujos defeitos e insuficiências as pessoas de bom grado ridi­ cularizam sem verem aquilo que ela trazia de calma confiança e de intuitiva iluminação. Mathieu, cujo espírito conservou misteriosamente, como uma reivindicação de origem, o direito de não acreditar sem discutir, de fazer passar tudo pela crítica das realidades, sem deixar que as coisas se lhe imponham pelo ouropel da apa­ rência que ele tem o dom de atravessar com um desenvolto piparote. Encastrado no edifício duma serena filosofia donde retira calma e poder, ele lá vai, atrás dos seus animais, no seu ritmo lento de camponês, denunciando o erro, a ano­ malia, descobrindo as vias simples, possuído por não sei que divina aptidão para fazer descer o ideal ao nível da vida, elevando a acção quotidiana ao nível do ideal para colocar ao seu alcance as verdades eternas que continuam, através dos cataclismos, quais postes indicadores torcidos pelas explo­ sões e que se obstinam em mostrar o caminho. Mais do que ele me aventurei eu nos dédalos da cultura: tive que sofrer os assaltos duma insinuante autoridade que por vezes me orgulharam e me perturbaram; participei no progresso. Mas sempre voltei a encontrar-me com não sei que espécie de nostalgia da simplicidade abandonada, do bom senso tornado inútil, da clareza irradiante das fontes. Ao mesmo tempo sondei também a vaidade duma cultura que a escola e o progresso enxertaram sobre a minha natu­ reza forjada de boa terra camponesa; medi a impotência manifesta dos iniciados que substituíram a vida complexa e poderosa por toda uma falsa filosofia dos sinais, das pala­ vras e dos sistemas, como esses citadinos que, intimidados pela torrente no entanto inofensiva da ribeira — que natu­ ralmente tem os seus calhaus, os seus cipós, os seus peixes, 10

as suas serpentes — sobem penosamente a corrente à procura duma ponte, enquanto que o camponezinho sagaz tira os sapatos, arregaça as calças enlameadas e, rindo e esparri­ nhando, atinge triunfalmente a outra margem. Então tive a pretensão e a audácia de voltar à escola dos sábios da minha aldeia, de me impregnar do seu ritmo, do seu sentido da vida, do seu ensinamento, para tentar descobrir, ou precisar, ou prolongar, para além do impasse em que a cultura nos abandonou, os fundamentos originais duma melhor concepção filosófica e pedagógica. E quis fazer a experiência de tomar essas ciências pela base para ver se por acaso, com a ajuda de marcos mais metodicamente colocados, nos seria possível elevarmo-nos mais alto e com mais segurança no conhecimento do homem e da criança, na exploração, para fins educativos, da sua compleição e das suas tendências; se não seria também possível trazer à luz, na complexidade dos problemas essenciais, os caminhos de simplicidade e de clareza pelos quais poderão então tomar, com a mesma certeza, todos aqueles que trabalham humil­ demente por uma humanidade melhor. Quis caminhar sobre os passos do camponês nos seus campos, reencontrar os atalhos do pastor na montanha; quis sentar-me com eles à sombra das árvores, com a bolsa do jantar entre os joelhos. Reaprendi a perscrutar a natureza tão inconstante e diversa e bebi até à saciedade nas claras fontes que tão deliciosamente reencontrei.

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1.

O ENCONTRO DE DUAS CULTURAS

SE HOUVESSE. ACIMA E PARA ALÉM DA NOSSA CIÊNCIA FORMAL. UMA OUTRA TÉCNICA DE VIDA — Donde vem agora, Mathieu? — De Collongues... Uma perna partida... — E fez o que era necessário? — Porque não? Escarranchado na sua burra, o homem regressava à aldeia. As pernas, balanceando frouxamente, quase tocavam o chão, enquanto que o seu busto se inclinava à direita e à esquerda, à cadência do andamento, fazendo corpo com a albarda da besta. Era Domingo, um Domingo como tantos outros, com a água correndo tal como tem corrido desde há milénios, as folhagens que verdejam e se ornamentam de flores e de frutos como eternamente o têm feito, entre as velhas casas vacilantes que sabem resistir ao tempo apesar da sua decre­ pitude, como resistiriam seres que tivessem um ritmo de vida mais longo e mais lento que o nosso, e cuja velhice pudesse prolongar-se ainda por séculos. Raparigas vestidas de cores claras passavam sob as árvores e o seu canto ingénuo subia como um cântico. Crian­ ças turbulentas brincavam, salpicando-se umas às outras, ati­ 13

rando pedras à água ruidosa do canal que acompanha a estrada. Na praça, homens em mangas de camisa disputavam com seriedade uma partida de bolas, e uma fila de velhos, de cachimbo nos beiços, formavam-lhes como que uma guarda-de-honra. A burra desembocava agora na ruela. Parou por si mesma porque sabia ter chegado ao fim. Inclinando-se para a esquerda, o cavaleiro pôs pé em terra e. com uma palmada amistosa, mandou o animal para a cavalariça. A senhora Mathieu saía nesse mesmo instante, trazendo num balde transbordante a ceia generosa do porco que grunhia de impaciência. — O Gaston quer falar-te... — Quê? Outra vez? — Uma ovelha que partiu a perna. — Ele que a traga. A sopa fervia sobre o fogão de ferro. Mathieu tomou do armário uma grande malga de barro, migou-lhe para dentro um naco de pão, destapou a panela, aspirou por momentos o cheiro do presunto cozido e depois, agarrando na concha que pendia mesmo ali à mão, regou o seu pão com metódicas colheradas de caldo. Uma sombra tapando bruscamente a luz da porta fê-lo voltar-se: Gaston colocava sobre a soleira uma ovelha que vacilava sobre as suas três patas. — Espera! Nada de pressas! Vai procurar duas talas e fio! Sentado à mesa rústica, Mathieu come ruidosamente a sua malga de sopa, e depois, engolido o último bocado, dirige-se para o animal ferido. Com os seus dedos subtis tacteia demoradamente a perna balanceante, faz funcionar a articulação, experimenta a parte inferior que balança como se apenas estivesse ligada por uma língua de pele, e, masti­ gando ainda o seu último bocado, começa a tarefa. A sua atenção concentra-se, os seus dedos escrutam uma zona cada vez mais reduzida e depois fixam-se em dois pontos precisos da pata doente. Então o seu rosto ilumina-se: 14

— É aqui! Vais ver as esquirolas penetrarem uma na outra e tudo voltar ao seu lugar. Um pequeno movimento muito comedido faz correr um. frémito sob a pele... o encaixe está realizado. — As tábuas... aqui! Amarra! O animal vai-se embora, saltitando sobre três pés. E, como se acabasse de fazer qualquer gesto muito natural, familiar, inscrito nos seus hábitos quotidianos, Mathieu volta a sentar-se e continua a sua refeição, a palavra e o pensa­ mento continuam o seu curso. — Senhora Long, em que posso servi-la? A porta por onde entra uma parte da luz que ilumina a grande e baixa cozinha de novo se obscurece. Mas desta vez não é uma pesada silhueta camponesa, mas a figura cuidada duma senhora à moda. com um pouco de pó nas faces e um nada de baton na flor dos lábios. Avança, como que hesitante, e confessa: — Sabe, eu vim às escondidas... Imagine que cocheio... Dei um mau jeito... O médico receitou-me uma pomada e compressas mas não sinto melhoras nenhumas. — Qualquer desarranjo, sem dúvida. — Nada de grave, afirmou o médico... Compressas e descanso. Meu marido por seu lado tem confiança, repete-me que o médico sabe o que diz e que eu faco mal em não seguir as suas prescrições com mais perseverança. Toda a gente me aconselha: «Vá ter com o senhor Mathieu!». Mas, sabe, disseram-nos tanto mal dos endireitas, dos endireitas em geral... não de si! E nós ensinamos que as pesSoas devem desconfiar das suas práticas... Assim! Como se todos aqueles argumentos de modo nenhum o atingissem. Mathieu limitou-se a dizer: — Mostre cá o seu pé!... Leónie, traz a bacia com água quente!... Ponha aqui o pé! E com os mesmos gestou naturais com que cuidava há pouco a ovelha ferida, acaricia agora o pé doente da senhora. O fogo crepita suavemente; um vapor assobiante escapa-se, como uma respiração ruidosa, da panela que ferve. As gali­ 15

nhas debicam na soleira da porta; e «conversam» enquanto esperam o punhado de grão costumeiro. As crianças, na rua, arrebatam-se num último jogo. Mathieu está em perfeito uníssono com esta calma aldeã. E sente-o mais ou menos confusamente; participa nela com a segurança daquele que sabe. Os seus dedos começam agora a exercer uma certa pres­ são, mas suave, natural, como que amigável. Depois utiliza as duas mãos: com a esquerda faz mover o calcanhar, o pé, os dedos, enquanto que com a direita segue os «nervos». O homem está concentrado mas não excessivamente, com à vontade e confiança. Sentimos que vai com certeza, tão calmo e plácido como o estava há pouco sobre a sua burra. — Ê aqui! Nada receie!... Aqui está. Pode apoiar o pé. Experimente! A senhora Long põe-se de pé, apoiando o pé timida­ mente como se procurasse, com um resto de céptica apreen­ são, a dor que a atormenta desde há vários dias... Mas nada! — Já não sinto nenhuma dor aguda. Apenas como que uma fadiga. É milagroso! — Agora uma ligadura, para manter as coisas nos seus lugares... Dois dias de repouso e tudo terá passado, verá. — E dizer que o médico...! — Os médicos têm a sua própria competência. Eles estu­ daram demoradamente os nomes de todas as peças do nosso mecanismo; possuem aparelhos maravilhosos para ver no interior das carnes, mas não sentem viver os corpos sob os seus dedos. Eles tratam e cuidam como se o corpo humano não fosse mais que um conjunto passivo e morto de ossos, de músculos e de nervos. Acha que o essencial seja real­ mente conhecer o nome dos órgãos, a sua composição e a sua forma? Como se um artista tivesse necessariamente que ser iniciado na estrutura do seu violino para dele tirar melo­ dias duma perfeição sobre-humana, uma linguagem que, muito melhor do que as nossas pobres palavras, sabe exprimir o indizível e pressentir o incognoscível. «Eu passeio os meus dedos e sinto viver a sua carne e o seu corpo; sofro consigo, mau grado meu, e só me sinto 16

tranquilo quando sei restabelecida essa harmonia funcional donde resulta a saúde. Sou apenas um camponês sem grande instrução, mas tenho reflectido muito sobre os homens e sobre a vida; uso o melhor que posso, com veneração e caridade, os dons e segredos que meu pai me transmitiu para vir em socorro daqueles que sofrem. Outros talvez o consigam melhor pela via do conhecimento e da ciência. «Existem várias habitações na casa de meu pai». Sem cerimónia, o homem recomeçou a comer o seu naco de pão, cortando com a faca um pouco de queijo. O seu rosto por momentos iluminado, retomou a expressão de calma impassível como que para significar filosoficamente: «Deixe­ mos agir o tempo e a vida».

2.

REENCONTRAR AS FONTES CLARAS

A VIDA NÃO É SIMPLES E A CIÊNCIA ESTA MUITO LONGE DE LHE HAVER DESCOBERTO OS SEGREDOS. SERÁ PRECISO REENCONTRAR AS FONTES CLARAS Foi um drama familiar quando a senhora Long quis explicar ao marido, e ao mesmo tempo justificar, de forma no entanto muito natural, a visita que acabava de fazer a Mathieu. Os professores representavam ainda há pouco na aldeia a, Razão, a Ciência e o Progresso. Tinham sido formados na veneração fanática daquilo a que se chama a Civilização. Os seus mestres não tinham palavras bastante severas para estigmatizar todos os inimigos do progresso, como se este 2

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último não tivesse ele próprio saído das tentativas e dos inevitáveis erros do passado, tal como um arbusto vigoroso, alimentado de húmus e de estrume. Eles não sabiam já distinguir, nas práticas condenadas em nome da ciência, essa parte de lógica e de humanidade, e portanto de verdade que permitiu o nascimento dessa ciência e lhe assegurou a per­ manência através dos séculos, a aderência fecunda ao real. Dir-se-ia que o passado incomodava esses mestres e os seus discípulos, os professores. Talvez se enegrecesse mesmo um pouco de propósito esse passado para que, apesar de tudo, aparecesse e impressionasse, por contraste, a pequena luzinha tremeluzente do progresso que agora se tornou uma claridade fascinante, mas de tal modo violenta e crua que fascina e impede que se vejam os detalhes, os perigos, e também as belezas dos caminhos que conduzem à triunfante descoberta. O senhor e a senhora Long, como tantos educadores formados nessa disciplina, eram no entanto as vítimas sin­ ceras dessa deformação que fazia deles «primários». Não porque tivessem apenas uma educação do primeiro grau, mas porque a sua formação intelectual e moral, excessiva­ mente simplificada, era desprovida de compreensão humana e de viva flexibilidade. Esta foi talvez uma etapa necessária; ela valeu em muitos casos aos professores uma coragem e uma audácia fanáticas e iconoclastas que não deixaram de ter uma certa grandeza mas que seria perigoso considerar doutro modo que não o da chicotada que estimula por um momento a parelha, à qual se deixa em seguida retomar o seu ritmo e o seu balanço. E eis que o problema entra por um outro meio na vida dos pedagogos: a senhora Long foi-se tratar, e curar, por um endireita! Porque não iria ela amanhã, quando tivesse uma enchaqueca, a casa da velha que «leva o sol» e, no dia seguinte, à bruxa Toinette para se libertar dum feitiço ou adivinhar o futuro? — Que atitude teremos com os nossos alunos? — pro­ testa o senhor Long, e que autoridade junto dos adultos para justificar a nossa moral baseada na razão, o nosso 18

comportamento racional em face dos acontecimentos, a nossa fé total e inabalável nas descobertas bem-fazejas e nos pode­ rosos ensinamentos da ciência? — Pois bem, respondeu a senhora Long, ele curou-me, e sem fingimentos, sem preces nem feitiçarias, pelo simples efeito duma técnica que ele domina e que parece ser a emanação duma ciência inteiramente intuitiva, humilde e natural. Se ele cura sem milagre em pontos onde muitas vezes os médicos falham, não é sem dúvida pelo simples efeito do acaso ou duma magia misteriosa. Quem sabe se uma observação racional, simpática e experimental não nos permitiria descobrir os fundamentos normais e humanos des­ sas práticas? Gostaria que lhe falasses, a esse Mathieu, que pudesses adivinhar a sua ciência e apreciar a sua lógica robusta. A vida, vês tu, não é assim tão simples como quiseram ensinar-nos. A ciência está ainda longe de haver descoberto e compreendido todos os seus mecanismos. Talvez exista nas tradições desdenhadas um certo bom senso, e práticas basea­ das nesse bom senso, que valem mais, em relação à vida, do que certas pretenciosas descobertas dos nossos sábios. — Eis-te agora num declive perigoso... Fraqueza de mulher! Vê-se que frequentas de bom grado a gente do povo. Mas cuidado: em breve, em vez de os elevares como tens o dever de fazer, serás tu a descer para eles. — E depois?... Confesso que, mau grado esta cultura de que nos orgulhamos, conservo o meu temperamento de mulher, naturalmente intuitiva e sensível. O ensino dos nossos mestres, as suas afirmações, a sua moral, não fizeram mais do que sobrepor-se à minha natureza sem a afectarem pro­ fundamente. Falta-lhes esse sentido da vida que é a marca essencial do humano. É a ele, é ao coração e à minha sensi­ bilidade que faço apelo nas situações delicadas, mais do que às palavras e às teorias que quiseram impor-me e que nós temos como missão inculcar por nosso lado. — Sempre original! Bem se diz que mulher e razão nunca andam juntas... Se toda a gente pensasse como tu, em que estaria o. progresso? 19

— O progresso? É efectivamente altura de falar dele, pois que faz das suas pelo mundo. E esse espectáculo da loucura humana deve empenhar-nos mais deliberadamente ainda em rever as nossas concepções filosóficas, morais e pedagógicas, em procurar e confessar os nossos erros, em beber nas fontes claras onde poderemos ainda chegar para reencontrar linhas de vida mais humanas e mais seguras. Esta é, julgo uma questão de vida ou de morte, para nós, para os nossos filhos, para o nosso País, para a nossa civilização.

3.

UMA CONSCIÊNCIA CLARA E VIRIL

AS MELHORES ACÇÕES, OS GESTOS MAIS GENEROSOS, ARRISCAM-SE A REFORÇAR O ERRO E O MAL SE NÃO REENCONTRAMOS A LUZ QUE ILUMINA AS ESTRADAS DA VIDA — Perguntam porque é que os nossos métodos curativos, não sendo nem diabólicos, nem mágicos, nem mesmo irra­ cionais, são tão subestimados, tão desdenhados, tão calunia­ dos e porque é que a sua irradiação resiste no entanto à invasão da ciência? A senhora Long fazia a sua primeira saída, expedita e direita, e feliz, naturalmente, por poder caminhar sem bengala e sem sofrimento. A seu lado, o senhor Long parecia orgu­ lhoso da sua vitória. Era por uma tarde luminosa de Primavera. O sol, já quente, subia cada dia um pouco mais acima das colinas, fazendo recuar a mancha sombria do Hubac onde persistiam, na encosta dos pequenos vales, largas manchas de neve. 20

Mathieu lá estava, à porta do seu casal, preparando a «mistura» da tarde para os animais. Procedia sem pressa, com a mesma consciência aplicada e a mesma serenidade que punha no outro dia ao recompor os membros feridos, como se se tratasse dos mesmos actos naturais, que têm uma importância igual, e que não custam mais um do que o outro. Abandonou a sua forquilha, acocorou-se familiarmente sobre um cepo nodoso que segura a porta, e explica-se em palavras moderadas e lentas, virando e revirando o seu pen­ samento cuja expressão raramente parece satisfazê-lo, como se não fizesse mais do que continuar um longo e profundo monólogo familiar. — Porque é que os nossos segredos nunca são explorados senão por nós, pobres camponeses? Porque é que a vossa ciência nos eclipsa, sem prejudicar, ou muito pouco, a nossa popularidade?... Digo-vos que nós estamos já todos mergulhados no erro, como o morfinómano no seu vício. E servimo-lo ingenua­ mente, sacrificamo-nos pelo seu triunfo; nem mesmo podemos já retroceder, de tal modo todo o aparelho mental, fisiológico, económico e social está impregnado dele. Viu essas passadeiras lançadas duma margem à outra sobre a nossa ribeira? Quando a água é clara e calma, é uma brincadeira atravessar sobre essa prancha; aliás podemos evitá-lo saltando de pedra em pedra. Imagem da nossa civili­ zação: em período normal de paz, todas as vias parecem possíveis, ou pelo menos sem perigo de maior. Temos a impressão de que se a coisa não vai, sempre se encontrará uma solução aceitável, sem drama vital histórico. Mas quando a ribeira engrossa com todo o afluxo das tempestades, quando a torrente fervilha em turbilhão, e os vagalhões de água suja se desfazem contra as pedras, então não é sem uma legítima emoção que alguém se aventura sobre a passadeira. E no entanto isso é necessário; não podemos ficar assim vencidos, perante o obstáculo. Decidimo-nos: logo aos primeiros passos, a prancha verga e balan­ ceia sobre o encrespamento alucinante da corrente desorde­ 21

nada. Estamos agora no meio, o ponto mais difícil. Que fazer? Arrepiar caminho? Impossível... Então precipitamo-nos cegamente para a outra margem porque essa é verdadeira­ mente a única solução razoável. Se nos tivéssemos enganado no caminho? Se a via acon­ selhável estivesse na margem abandonada? Tanto pior! Não temos a coragem para enfrentar novamente o perigo. Fica­ remos no erro; mergulharemos nele cada vez mais; adaptar-lhe-emos apenas aquilo que nos resta de impulsos generosos, de esforços desinteressados, de subtileza intelectual. E se algum original nos mostra, na margem que inconsiderada­ mente abandonámos, o verdadeiro caminho que deveríamos ter seguido, sabemos apelar para todo o arsenal cultural e religioso para lhe provar que é ele que está errado. Estamos nesse período de crise. Somos daqueles que ainda não atravessaram o rio e que quereríamos puxar para a borda os viajantes que involuntariamente embarcaram numa aventura da qual não são nem os senhores nem os respon­ sáveis. É bom, é necessário que fiquem aqui, deste lado, alguns homens de lógica e de bom senso que serão como que testemunhas das virtualidades de que um dia aproveitará a massa daqueles cujos olhos se terão aberto lentamente sob golpes de cruel experiência. — Se um único comerciante — prosseguiu Mathieu — um único químico, um único pai, uma única criança, cometessem actos lamentáveis, e todos os outros tivessem consciência do mal que os culpados fazem a si próprios e à sociedade, então a reacção seria fácil. Mas se toda a gente se afunda no mal como que por prazer, sem se dar conta de que se trata do mal, julgando mesmo por vezes que se trata do bem, e acusando a originalidade e o humor daqueles que se obsti­ nam em avisar contra os perigos, então adivinha-se a gravi­ dade dessa perdição colectiva. Se vos falo por vezes com uma aspereza incisiva, não se julgue que de algum modo quero mal a uns ou outros em particular. Eu sei que seria muito difícil a um comer­ ciante isolado voltar a subir a encosta pois que ele se 22

arruinaria assim e o seu sacrifício apenas provaria a sua derrota; a um químico denunciar os perigos dos produtos que inventa porque estaria imediatamente desempregado; a um médico comprometer-se noutras vias terapêuticas pois que ele seria abandonado pelos seus doentes e perseguido pelos seus colegas; a um pai ou a um filho abster-se de tudo aquilo que a natureza ou a lógica deveriam condenar, porque a vida talvez já não fosse possível. — E então? — objectou o senhor Long, intrigado. — Será igualmente difícil para o professor que o senhor é reconhecer o erro geral e tomar intrepidamente a direcção oposta porque seria criticado, denunciado, talvez perseguido pelos próprios pais dos seus alunos, e finalmente afastado pela autoridade, como perigoso, do ensino que pretende regenerar... A menos que seja uma espécie de herói que não receia enfrentar o erro, mesmo a um contra todos... E mesmo assim!... Eu tenho a vantagem de falar livremente sem temer as cóleras duma administração ou dum corpo constituído. Posso considerar como nocivos, mesmo como criminosos, os actos de alguns dos meus contemporâneos, sem que por isso deixe de continuar a conservar a minha estima para com todos os bons obreiros que fazem o seu trabalho com consciência e devoção, ainda que eu esteja convencido da inutilidade ou dos perigos dos seus esforços. Isso não basta, eu sei. O mal tem o carácter diabólico de se insinuar por toda a parte, com a aparência do bem, impondo a sua realeza e persuadindo os humanos de que devem defendê-lo. E quando, num dado momento, sábios, poetas, profetas, vêem a luz, são por ela iluminados, a reve­ lam, a cantam, a explicam, os escravos, arrebatados, marti­ rizam os perigosos videntes. As grandes verdades, no entanto tão simples, que toda a gente compreenderia, ninguém ousa afirmá-las nem mesmo reclamá-las. O erro serve demasiado os apetites, o prazer de uns, a sede de lucro ou de dominação de outros. E é assim que quem quer que o combata, ou simplesmente o ameace, vê erguer-se contra si a coligação complexa e hipócrita dos 23

interesses egoístas. Na verdade, os homens nem todos são heróis, nem sempre são heróis... Eles preferem uivar com os lobos, persuadindo-se de que isso é uma necessidade social e histórica. Os médicos fazem o seu trabalho. Eles não procuram a manutenção da saúde... Isso seria ser mais papista que o Papa, dir-vos-ão eles, pois que os próprios clientes não querem consentir em nenhum sacrifício — à parte o do dinheiro — para a conservar ou a reconquistar. Os médicos limitam-se a tratar e curar — se o podem — as doenças. E isso não basta. Tal como o legislador que não procura saber por que motivo esse adolescente está hoje perante o juiz por roubo ou crime, que se não arroga o direito de prevenir ou reparar essa degradação, limitando-se a castigar para «curar». Cumprida a pena, tomada a droga, o doente e o delinquente são novamente atirados, sem mais, para esse mesmo erro que os havia já conduzido à presença do médico ou do juiz, apenas com algumas imunidades físicas ou morais a menos. E depois espantamo-nos com as recaídas! Os juízes vivem da sua profissão, tal como os médicos, os pasteleiros, os comerciantes e os professores. Fortificam-se no seu raio de acção para evitar quaisquer aborrecimentos ou compromissos. Repito-o: é uma atitude humana, se incluir­ mos nesta palavra todas as fraquezas e renúncias de que nós estamos cheios. Podemos no entanto lamentar que a civilização pela qual nos orgulhamos não tenha aumentado o número de homens de consciência clara e viril, que sabem elevar-se acima das contingências subjectivas para servir heroicamente o esplendor de um destino majestoso.

24

4.

A PERMANÊNCIA HUMANA

OS SÁBIOS QUE SABEM REENCONTRAR, SOB A VASA DA FALSA CULTURA, O ESPLENDOR DAS RICAS VEGETAÇÕES HUMANAS Ao ficar só, Mathieu regressou ao seu casal e acabou a mistura. A sua forquilha nervosa parecia responder a uma necessidade interior de ir um pouco mais além, mais profun­ damente, nesses pensamentos que ele virava e revirava na sua cabeça, principalmente para si, para ver mais claro, para pensar mais justamente, para julgar generosa mas impie­ dosamente. Aliás o contacto com as raras pessoas susceptíveis de apreciar, ou pelo menos de compreender as suas preocupa­ ções, têm sempre para ele algo de decepcionante. Elas vêm, umas e outras, com a sua memória de papagaio, repetindo as razões superficiais e tortuosas bebidas no último número do jornal ou nos livros em voga. Ou então falam numa gíria tanto mais hermética quanto mais sábia. E avante o progresso, a civilização, as descobertas, as ciências! Este é realmente o momento indicado para os glorificar! É como uma inundação que tivesse recoberto de lodo os campos férteis do vale, arrancado, deitado e enterrado as orlas de amieiros e de vimes. E os homens empenham-se em admirar as rugas do lodo e o seu reflexo glauco ao sol poente. Mas as riquezas e as belezas submergidas, em tudo semelhantes às riquezas e às belezas que em todos os tempos ornamen­ taram a terra, as únicas mitigantes e as únicas fecundas, já se não conhecem. A planície revolvida torna-se como que um lugar de maldição. Alguns velhos dir-nos-ão talvez que outrora existiam ali, no lugar desse lodo estéril, fartas pradarias, bosques densos e ricos, que se poderiam ainda atingir esca­ 25

vando essa crosta áspera... mas as pessoas já nem sequer os escutam e riem-se deles. A inundação passa sobre o mundo e o seu curso desor­ denado continua a desabar. A tal ponto que as gerações enganadas acabarão por acreditar que o mundo nunca teve outro aspecto e que basta adaptar-se-lhe para viver. Ouvirão e compreenderão eles algum dia as objurgações veementes e os apelos angustiados daqueles que, sentindo mais profunda­ mente o perigo do momento, quereriam reencontrar, fazer reencontrar, recolocar no centro da vida as grandes ideias meio soterradas pelo lodo movediço, e que foram, e conti­ nuam a ser o tesouro comum dos pensadores ainda inquietos pelo sentido profundo da vida? Mathieu tem como que uma intuição vigorosa dessa realidade. Quando folheia os poucos livros enegrecidos — tão ecléticos — que jazem em confusão sobre uma prateleira à mistura com registos, pensa que os homens de hoje nada descobriram, que antes parecem ter esquecido tudo, e que escondem as inconsequências — conscientes ou não — e as fraquezas da sua vida sob uma espécie de lodo mais ou menos sedimentado, mais ou menos fértil, sob o qual não ousam já ir procurar a seiva viva e vigorosa das vegetações promissoras. Eram esta intuição e esta constatação que davam a Mathieu a espantosa segurança do filósofo e do profeta ilu­ minado por uma luz directriz e salvadora. O senhor e a senhora Long eram como que a sua antítese. As pessoas escolasticamente instruídas, que leram muito e em que o pensamento impresso e os ensinamentos formais dos mestres substituíram mais ou menos completamente a reflexão pessoal, acreditam de tal modo na superioridade da sua cultura que subestimam sempre, à sua volta, as grandes virtudes da permanência humana. Isso faz parte da aberração pretensiosa que a ciência moderna inculcou nos homens. A criança que sabe desmontar, e voltar a montar uma bicicleta e andar nela, olha já com comiseração o homem solitário e reflectido, dominado pelo pensamento e pela tradição. 26

O senhor e a senhora Long tinham, em relação aos camponeses cujos filhos instruíam, essa mesma soberba um tanto desdenhosa. E eis que descobriam entre esses rudes um homem duma espécie nova, que se lhes impunha de repente, que lhes parecia decidido a fazer-lhes frente, que repudiava deliberadamente a sua argumentação apoiando-se, com uma lógica inabalável, em raciocínios, em certezas de que eles próprios haviam perdido o longínquo sentimento. Mathieu é incontestavelmente um desses homens de bom senso que souberam encontrar, em si e à sua volta, razões para viver e para esperar que já nos não são comuns. Esse humanismo ancestral é como um archote que ilumina os caminhos da humanidade. Mas não há também os maus guias cautelosos que, sob essa mesma máscara de sabedoria, não fazem mais que servir a Satanás, contra a luz e a verdade? Como dois pólos, e entre esses dois pólos a multidão indecisa procura penosamente o seu caminho. Entre ela, os mártires do ideal, que entrevêem por momentos a luz mas não se limi­ tam a subir às cumeadas para serem banhados por ela, que quereriam arrastar para aí os seus irmãos para os ajudarem obstinadamente a realizar finalmente, na terra, o grande sonho dos sábios. De modo que há trabalho para todas as boas-vontades, para os Mathieu e para os Long, e para muitos outros ainda. Mas pelo menos é necessário que eles entrevejam a luz, ps que saibam reconhecer os sábios, ou recuperar o uso do bom senso, esse nome vulgar das grandes e definitivas virtu­ des humanas.

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5.

A FONTE DEVE TORNAR-SE TORRENTE, RIBEIRA E RIO

SÓ A INFÂNCIA E A JUVENTUDE SÃO CAPAZES DE SUBIR OUSADAMENTE PARA OS CUMES. MAS É NECESSÁRIO NãO AS IMPEDIR Ao acaso dos encontros e das trocas de ideias, uma espécie de amizade curiosa se estabeleceu entre os dois professores e o homem sábio e simples de quem haviam feito a feliz descoberta. Foi assim que o senhor e a senhora Long se encontravam no serão em casa de Mathieu numa noite desse Inverno prestes a findar. O tempo dos belos serões aproximava-se do fim. Já não faltava o trabalho nos campos: cortar as moitas nas ribas, reconstruir os muros abatidos — no fundo dos quais sé encontram caracóis «secos», deliciosos assados na brasa—; levar o estrume para os prados, cavar as hortas e sobretudo seguir o bando indócil dos cordeiros que se tornam cada vez mais exigentes à medida que crescem e que sentem crescer, dos trigos verdejantes, aromas irresistíveis. Então os serões são naturalmente encurtados; mas nunca se tem pressa em casa de Mathieu e os visitantes são ali sempre benvindos. A senhora Mathieu, amável e humilde, vigia o fogo onde ferve a panela dos porcos. (Mataram o grande e agora apenas restam na pocilga dois novitos, rosados e esguios, fáceis de satisfazer). Um rapaz termina um cesto de vime e a rapariga tricota. Mathieu, sentado à mesa sozinho, folheia um velho livro: — Mergulhado então na medicina? — Não, não!... Um evangelho onde encontro, luminosas de forma e de simplicidade, as grandes verdades que pare­ cem sempre novas porque sempre mal conhecidas, deformadas 28

ou abandonadas. Há dois mil anos. Jesus havia dado aos homens as lições definitivas. Sem grande sucesso. Essa inuti­ lidade das prédicas, mesmo quando são a expressão de acções generosas e duma vida de sacrifício, não faz mais do que confirmar o meu pessimismo quanto à correcção fisio­ lógica, intelectual e moral das gerações que deram até hoje as suas provas. Os homens estão fartos de sofrer e de lutar. Querem gozar, viver, dizem eles... e morrer se possível sem dor. Não vêem mais longe, nem mais alto, e nada podemos contra isso! Os seus pensamentos fizeram corpo com os seus hábitos; a sua concepção da vida inscreveu-se num comportamento familiar e social que se toma impermeável ao raciocínio e fechado à experiência. É como uma árvore cujo caule lenhoso se formou de través e que não conseguimos já endireitar nem guiar. Só a infância e a juventude possuem ainda, natural e poderoso, esse desejo de viver, de subir, de conquistar, mesmo à custa de esforços e de sofrimentos, o privilégio de ser forte e vigoroso para dominar o mundo, essa viril aptidão que, mau grado os fracassos e as decepções, empurra para os cumes as novas gerações. Ao menos, não se deve impedir a fonte de se tomar torrente para mais adiante ser ribeira e rio; nem espantar-se com o fervilhar das cascatas nos pinheiros, ou com a selvagem grandeza das águas vivas descendo entre as rochas. — A juventude não basta no entanto, e a natureza nem sempre é dócil e boa... foi necessário que a ciência... — ...Orgulhosa e pretensiosa tentasse substituir pela sua ordem e pelas suas leis os desígnios misteriosos duma vida cujo processo e cujos fins nos dominam e ultrapassam. Desde que tem algum poder, o homem julga-se senhor da criação; quer subjugar a natureza, dirigi-la, refazer as suas obras segundo outras normas mais conformes com as suas teorias e as suas descobertas. Presunção infantil, pouco digna da majestade dos nossos sábios! Eles criticam, e com razão, a confiança ingénua de determinado pedagogo que acha que «está tudo bem quando sai das mãos do autor das coisas», mas isso é para tomarem o sentido oposto e dizer: «Tudo é 29

imperfeito no que a natureza produziu. O homem, graças ao aperfeiçoamento das suas técnicas, está em condições de fazer melhor... Vejamos já as suas maravilhas...» — Não pode no entanto negar que a ciência tem produ­ zido de facto grandes coisas... — Não nego nada, mas também não pasmo perante a magia do cinema, da rádio, da luz perfurando as trevas, da velocidade devorando os espaços. Continuo a -achar igual­ mente maravilhoso, e mesmo mais, o mistério da vida na sua fecunda diversidade, a explosão da flor que se abre, a magia do pensamento e da recordação. Sim, admiro o génio do homem, mas admiro ainda mais os milagres renovados de que a natureza nos dá o emocionante espectáculo, e conservo, integral, o meu cepticismo sobre o poder virtual das vossas técnicas. Quando éramos pequenos, gostávamos de brincar aos ninhos. Aplicávamo-nos a moldar a erva seca, a entrançá-la com pauzinhos, a suavizar-lhe o leito com um musgo fino ou com uma tenra penugem por vezes retirada de algum velho ninho da estação precedente. E escondíamos a nossa habitação imaginária com uma ciência que parecia igualar o instinto dos pássaros. Mas a magia terminava aí: os ovos quentes e brilhantes que contêm em si a vida, o piar dos passarinhos, o mistério das penas que recobrem lentamente a carne rósea, os bicos abertos para procurar a comida deli­ cada, a emoção do primeiro voo, podíamos imaginá-los, mas não imitá-los nem produzi-los. O que não nos impedia de nos apaixonarmos na Primavera com o espectáculo da vida que nascia no fundo dos ninhos, se agitava, piava, trasbor­ dava até que se cumprisse o ciclo. Que o homem meça humildemente o seu verdadeiro poder e as suas possibilidades efectivas, e que ele saiba, naquilo que o ultrapassa, vibrar como as crianças às pulsações fecundas da vida que sobe e que cria.

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6.

OS ERROS HUMANOS DA CIÊNCIA

A CIÊNCIA, QUE MEDIU IMPERFEITAMENTE OS SEUS ESFORÇOS, TOMA PALIATIVOS PERIGOSOS POR SOLUÇÕES DEFINITIVAS E NÃO SE APERCEBE DE QUE LEVA A RAÇA À DEGENERESCÊNCIA Mathieu parou por um momento. Seu filho trazia da cave uma garrafa de bom vinho aromatizado, feito de uva meio seca pelo sol de Outono, xaroposo e perfumado, como um néctar. O vinho corria para os copos num gorgolejar cristalino; era dum negro brilhante como um fruto selvagem... — Podem estalar as línguas... Este é puro sumo... Dir-se-ia que bebemos sol, não é verdade? A rua estava agora silenciosa. A panela sobre o fogão tinha parado de exalar as suas baforadas húmidas que espa­ lhavam na sala um cheiro complexo de batatas, beterrabas e abóbora. Apenas se ouvia o ressoar compassado do fogão bem guarnecido. Enquanto atiçava o lume com uma acha de madeira resinosa, Mathieu retomava agora o fio das suas ideias: — Falava-me de ciência, senhor Long, desse novo deus que deve trazer aos homens uma razão para viver e também o meio melhor de realizar o destino que eles até hoje não puderam mais imaginar ou esperar. Na medida em que ela nos traz um estudo imparcial, solidamente fundamentado na experiência segura, numa documentação completa, algo que seja evidente como dois e dois serem quatro, e não apenas hoje e aqui, mas exacto também no tempo e no espaço, uma espécie de verdade trazendo em si a perenidade do divino, considero também a ciência como uma grande conquista humana, respeito-a e admito-a. 31

Mas atenção! Trata-se ainda aqui de um ideal atrás do qual nós corremos, duma luz inatingível que perseguimos obsti­ nadamente, tal como esse pássaro azul que julgamos agarrar e segurar nas nossas mãos e que incessantemente se escapa, mais para diante. Dever-se-ia sempre dizer: a ciência humana, para marcar a sua falibilidade e a sua relativa impotência. Que constatamos efectivamente? Estamos nós seguros do rigor científico das investigações empreendidas e da perfeita honestidade dos resultados con­ siderados? Não é assim em muitos casos, infelizmente, tanto em medicina como em política — e o que digo aqui para a medicina é válido para outras pseudo-ciências, a ciência peda­ gógica por exemplo. Os métodos e os homens cotados vêem-se reconhecer publicamente, oficialmente, todas as virtudes cien­ tíficas requeridas para inspirar confiança à massa dos pacien­ tes. Porque é bem preciso que se faça acreditar na perfeição dos ídolos pelos quais se quer inspirar respeito. Depois a moda muda... Para erguer sobre o pavês outros ídolos, reve­ lam-se então os erros por vezes criminosos cometidos em nome das ciências oficiais desacreditadas. Que garantias pode­ mos nós ter, razoavelmente, de que aquilo que hoje nos apre­ sentam como científico o é mais do que aquilo que nos diziam ontem igualmente científico para em seguida denunciar impu­ dicamente os seus malefícios? — Naturalmente — objectou o senhor Long, um tanto desconcertado pela severidade cortante daquelas críticas —, em tudo é necessário contar com as fraquezas humanas. No entanto, em todos os ramos da medicina — para falar apenas desta ciência — não têm sido feitas descobertas seguras que são susceptíveis de orientar as práticas actuais para uma efi­ cácia terapêutica cada vez mais apreciável? — Isso é incontestável... Mas os sábios, ou antes a corte dos seus discípulos que vêem menos e menos profundamente, e que não têm por esse facto a sua espantosa humildade perante a vida — esses homens de ciência são inteiramente comparáveis aos citadinos que pretendem vir instalar-se na terra para nos darem lições. Também eles adquiriram nas escolas ou nos livros algumas noções precisas sobre a cul32

tura ou a criação de gado; sabem nomes; à primeira vista, parecem dominar-nos nitidamente pelo seu método e sua cul­ tura. E depois, na prática, apercebemo-nos — e eles próprios são forçados a dar-se conta — de que o seu conhecimento apenas abrangeu peças do mecanismo, sem de modo nenhum penetrar no segredo do seu funcionamento; eles desfiguram a natureza à sua volta, sem se familiarizarem com todo o dinamismo misterioso que a agita e a transforma. Então pro­ curam, apesar de tudo, aplicar os seus princípios, fazer funcionar o mecanismo que julgam conhecer. E come­ tem erro após erro até ao dia em que compreendem a neces­ sidade de sentirem também subir a seiva, de escutarem a linguagem, eloquente para quem sabe entendê-la, dos botões que se abrem, das flores que se ostentam ou definham diferentemente coloridas segundo a saúde e o vigor dos indi­ víduos, de participarem na vida unânime, não só com a ins­ trução e a inteligência, e os seus conhecimentos, mas com o coração e a sensibilidade, pelo meio ainda inigualado de todas as possibilidades subtis que temos de escrutar e de compreender. Sim, os nosso médicos, e os nossos pedagogos, proce­ dem como esses aprendizes de camponeses, ainda com a diferença de que estes se dão experimentalmente conta dos seus erros e das suas imperfeições porque a natureza é impie­ dosa. Pedagogos e médicos têm a possibilidade de atirar para os seus sujeitos a responsabilidade dos seus fracassos e das suas insuficiências. Eles têm sempre razão. Pensa sem dúvida, em matéria de progresso, nas medi­ cações modernas, nas injecções e nos soros destinados a subs­ tituir ou a excitar um órgão deficiente, ou a deter a virulência dos micróbios descobertos durante determinada afecção. Eu ainda não tenho confiança: quaisquer que sejam as garantias oferecidas pelos processos mais aperfeiçoados da ciência, os riscos de erro estão longe de ser eliminados porque essas medicações não foram colocadas no quadro complexo e exi­ gente da vida. O médico receita-nos uma pílula ou uma poção; e as nossas dores atenuam-se e desaparecem; o nosso coração 3

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bate mais energicamente, a nossa febre baixa, ou pára uma tosse pertinaz. E ficamos plenamente satisfeitos porque, egois­ tamente fechados sobre nós próprios, apenas pensamos no imediato que queremos viver com um mínimo de riscos, sem nos preocuparmos com o destino que era o nosso, nas mãos da natureza generosa. Como o aprendiz de camponês que multiplica os adubos, os estimulantes, para que a colheita desse ano prospere, sem cuidar de saber se compromete as colheitas futuras; ou que administra liberalmente os insecticidas, sem pensar que se mata infalivelmente os seus inimigos, inocula às plantas tóxicos que as afectam perigosamente e dissimula nos botões e nas flores o veneno que destrói tam­ bém os seus amigos pássaros. À escala do imediato, no dia a dia, os homens de ciência podem ter razão em cem por cento. À escala da natureza e da humanidade, os seus erros não deixam de ter influência directa sobre a degenerescência e a decadência, das quais os acontecimentos actuais são uma consequência. Eles procedem demasiadas vezes como o condutor que já não consegue fazer com que a sua máquina estafada suba a encosta. Ele não pode no entanto parar ali, em pleno campo, e tentar uma reparação que sabe longa e delicada. Então dá-lhe um pouco mais de gás; fecha o ar; inunda os pistões de óleo; e o motor readquire força como se acabassem de insuflar-lhe uma nova vida. Mas, ainda diferentemente dos médicos, o nosso condutor não procura iludir-se, nem iludir aqueles que transporta, sobre o alcance da operação que acaba de realizar; não grita vitória. Feliz dele se consegue, com esse estratagema, atingir o cimo da encosta para depois descer em ponto morto até à próxima oficina onde se fará a reparação profunda e essencial. A vossa ciência, em todos os domínios, está ainda apenas em paliativos, que ela toma e quer fazer tomar por soluções definitivas. Daí um mal-entendido permanente cujas conse­ quências não será demais denunciar. Porque enfim, quando o médico administra um remédio, quando o educador pratica um método, não se satisfazem eles demasiadas vezes com o resultado imediato que para 34

eles é o único importante, e que parece ser o único impor­ tante para aqueles que sofrem? Ter-se-á realmente estudado as consequências a longo prazo de determinado soro, ou vacina, ou cápsula, que produzem efectivamente uma ate­ nuação imediata das indisposições ou dão uma reanimação surpreendente, sobre o fígado, os rins, o coração, sobre o tónus vital em geral, sobre o cérebro e o sistema neuro-motor, ou mesmo muito simplesmente — sintoma não desdenhável — sobre o comportamento intelectual, afectivo, moral e psíquico? Dirá talvez que isso é levar as coisas longe de mais e que é difícil, se não impossível, proceder a semelhantes medidas. Não o creio. Em todo o caso, posso afirmar-lhe que distingo rapidamente, no aspecto de certas crianças, se apli­ caram nelas um desses soros inventados contra a colibacilose ou contra as febres malignas e cuja lista cresce todos os dias. Naturalmente, na maior parte dos casos, a reacção não é nem imediata, nem nitidamente caracterizada, e é esse o motivo por que toda a gente se engana e a negligencia. O mecânico de que falámos sabe que os meios impro­ visados a que recorreu não fazem mais do que agravar o mal e tornar depois mais delicada a verdadeira e necessária repa­ ração, e é esse o motivo por que reduz o seu uso ao mínimo. A ciência não tem essa sabedoria prática. Daí resulta que a terapêutica actualmente em uso provoca uma redução muito acentuada do tónus vital dos pacientes, uma predis­ posição crescente para todas as doenças possíveis, e que esses são os sinais clínicos da degenerescência duma raça que talvez não mais conheça a doença aguda, como uma sociedade agonizante não conhece já qualquer revolução profunda, mas que caminhará fatalmente para a impotência e a morte. — Acredita mesmo assim que se o perigo chegasse a esse grau seria você o primeiro a denunciá-lo? Tantos homens eminentes... — Os homens eminentes nem sempre o são em tudo... Estão mergulhados numa atmosfera no seio da qual se formaram, viveram e trabalharam, e que lhes parece natural; participam numa espécie de plano tácito do qual nem sempre 35

lhes é possível desligar-se... E além disso, o mundo actual mata a tal ponto a originalidade de pensamento em proveito do conformismo gregário! É difícil, como sabe, não pensar como os outros, com os outros, aventurar-se em novos cami­ nhos. Primeiro para a nossa tranquilidade moral, pois que nunca temos a certeza de estarmos no caminho certo, quando vemos a massa, e mesmo a elite, voltar-lhe as costas; e como é agradável e encorajante seguir a corrente, levado pela admiração duma multidão que nos faz uma natural e cons­ ciente escolta! A nossa tranquilidade material também sofre, porque nós somos um pouco como esse passageiro que puxa a sineta de alarme por uma razão cuja legitimidade o comum dos mortais não admite, o que lhe atrai as invectivas e a mal­ dição das pessoas apressadas que já não terão a sopa quente à chegada, ou que chegarão atrasadas ao cinema. E no entanto a ideia caminha, e basta por vezes que ela seja, aqui ou ali, expressa com vigor, para que a pouco e pouco tome ressonância, para que outros investigadores inquie­ tos a reconheçam, para que se animem em certas consciências perturbadas clarões que se irão amplificando, encontrando-se, até fazerem explodir um dia a verdade que nós procuramos. Por isso nunca devemos desencorajar. Como o soldado que realiza uma tarefa heróica e no entanto anónima, que se sacrifica, muitas vezes sem disso se aperceber, de quem nin­ guém conhecerá nem o nome nem a abnegação, e que é no entanto, por sua vez, o artesão directo duma vitória que se não conseguiria sem os esforços anónimos daqueles que lutam e morrem como ele. ’. Digo-lhe isto, acredite-me, sem qualquer preconceito contra os homens que disso são vítimas. E só aparentemente

1 «A medicina, escreve Alexis Carrel no seu livro O Homem, esse desconhecido, está longe de haver diminuído tanto como geralmente se crê a soma dos sofrimentos humanos. Como se morre menos das doenças infecciosas, morre-se mais das doenças degenerativas que são mais longas e mais perigosas».

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ataco a ciência médica. Continuamos mais perto do que julga do assunto que naturalmente nos apaixona: a educação. Vós também tendes os vossos doutores mais ou menos oficiais que preconizam igualmente remédios por assim dizer exteriores à natureza profunda da criança, e que se admi­ nistram em doses especializadas para curar determinada tara, suportar determinada inapetência, para suscitar artificial­ mente um esforço que sempre se recusa. Tal como o mecânico que deve, a todo o custo, levar a sua máquina até ao cimo da encosta... Mas colocam-se esses processos sob a égide pomposa duma ciência balbuciante que se glorifica de resul­ tados que são apenas uma etapa mais para a decrepitude dos indivíduos e da raça. Não seria tempo de reagir?

7.

PERIGOS DE DEGENERESCÊNCIA

E AQUI TEMOS EXEMPLOS QUE PROVAM QUE, EM CONSEQUÊNCIA DUM ERRO NAS AGULHAS, A CIÊNCIA MÉDICA, AGRÍCOLA OU ALIMENTAR, NOS CONDUZ Â DEGENERESCÊNCIA — Aquilo que vos disse, continua Mathieu, a propósito do tratamento médico dos homens — e do tratamento peda­ gógico que lhe está directamente aparentado — parece-vos talvez parcial e exagerado. Compreender-me-ão melhor se vos fizer a demonstração no que respeita ao tratamento moderno das árvores de fruto. — Elas são, observa a senhora Long, mais pacientes do que os doentes, mais dóceis do que os nossos filhos, e ainda menos que eles poderão lamentar-se e reclamar. 37

— Isso é talvez um erro. Em todo o caso, assistiremos aí. por assim dizer, à aceleração do processo cuja marcha lenta somente foi descoberta nos humanos da nossa época. Outrora, as árvores eram geralmente fortes e sãs, sem dúvida porque as pessoas se não obstinavam em contrariar a natureza cultivando-as onde elas não podiam crescer nem produzir normalmente. E elas produziam, sem poda sábia, sem tratamento de nenhuma espécie, naturalmente, porque a função das árvores é produzir frutos. E elas produziam-nos, asseguro-vos, e todos os anos. Era às carradas que traziam aos nossos dois moinhos de oleaginosas — hoje mortos — as belas nozes sãs e gordurosas. E não se passava ano sem que as nossas reservas estivessem guarnecidas de lindas maçãs frescas como rostos de crianças... E era também às carradas que as colhíamos das macieiras tão amplas como os vossos plátanos inúteis... E os pêssegos! E as vinhas que subiam até ao cume da montanha onde algumas cepas se obstinam em não morrer... Não viram, no fundo das nossas granjas, as cubas imensas hoje abandonadas?... A civilização julgou que podia, impunemente e a seu belo prazer, domesticar a natureza; que bastava ao homem dizer, porque daí lhe advinha um lucro considerável: «Neste campo, vou plantar tantas árvores de fruto... Cada árvore produzirá em média tanto... o que me dará uma colheita possibilitando um rendimento de tanto...» «Mas o terreno, ou o clima, ou a exposição, não eram favoráveis... A consequência disso era uma produção defi­ citária e por vezes nula. «Os homens de ciência interessaram-se pelo problema. Tinham uma confiança tão absoluta nos seus conheci­ mentos e nas suas técnicas que nem sequer lhes ocorreu a ideia de que seria bom, em todo o caso, escutar um pouco a natureza, ter em conta as suas exigências, as suas reacções e os seus ensinamentos. Os seus mestres não lhes deixavam oportunidade para tal: era preciso produzir onde a cupidez humana exigia que se produzisse, e isso mudava com efeito os dados, não é verdade? 38

A ciência respondeu cegamente aos desejos dos comer­ ciantes e dos especuladores: com adubos de diversas compo­ sições. ela regulou o curso da vegetação para evitar as intem­ péries desastrosas. A humidade anormal favorecia a proli­ feração dos cogumelos, dos micróbios e dos insectos nocivos à frutificação... Pouco importa! Procuraram-se, experimen­ taram-se, usaram-se insecticidas poderosos que efectivamente destruíram micróbios e cogumelos, tal como os soros e injecções matam no homem os micróbios que a ciência identificou. É um facto. «Mas será necessário ter um dia em conta as conse­ quências temíveis — ainda que não sejam imediatas — de tais práticas: os produtos arsenicais, coprosos, sulfurosos, usados para o tratamento químico das árvores passam necessaria­ mente para a seiva e daí para o fruto. A árvore sofre com isso e gasta-se com uma rapidez anormal. Os nossos pesse­ gueiros duravam outrora várias gerações de homens; nas modernas plantações estão acabados em alguns anos. As flores levam em si o veneno que matará os para­ sitas. Mas esse veneno atinge também, e mata, com maior ou menos rapidez, a multidão de pássaros que, ao nascer do sol, vêm beber nessas flores gotas de orvalho que não são nem claras nem puras. E lamentamo-nos depois de que as regiões mais especialmente entregues à droga já não tenham pássaros! Sem pássaros para destruírem, como outrora, insectos e ver­ mes que podem, assim, proliferar de forma catastrófica. E será necessário redobrar as doses, multiplicar ainda e inten­ sificar os processos químicos para salvar arbitrariamente uma produção que era outrora normal mas cujas leis foram dese­ quilibradas. Os frutos serão também atingidos pelo veneno; e, quando crianças ou adultos os consumirem, sofrerão miste­ riosamente com isso, até disso morrerem, como os pássaros. Julgam que exagero?... Quem me dera que sim! Dizem que as doses empregues são infinitesimais, e portanto inofen­ sivas. Antes de mais, ninguém sabe se elas são realmente infinitesimais, porque não há nenhum controlo tão superfi­ cial e teórico como o dos insecticidas e da sua aplicação. 39

Podemos usar nas nossas árvores os venenos que quisermos, nas épocas que nos convenham, sem que alguém nos venha pedir contas em nome da colectividade que consumirá os nossos produtos. Considera-se como critério bastante o sucesso incontestável que representa uma bela pêra apetecível, grande e perfumada, sem qualquer vestígio de verme, e que se con­ serva extraordinariamente, mesmo depois de transportes difí­ ceis. Um belo fruto comercial, pois então! «Quanto a saber se dores de cabeça, diarreias, conges­ tões do fígado, insónias tenazes e esgotantes, se as modernas doenças misteriosas que desorientam a própria ciência, não serão por vezes, muito simplesmente, a consequência da ingestão em altas doses desses tóxicos, ninguém pensou ainda nisso. A Faculdade continua a tratar as doenças cujos sinto­ mas constata, mas sem lhes procurar as causas profundas cuja supressão seria a verdadeira e definitiva conquista. Há aqui, incontestavelmente, negligências ou erros mor­ tais para uma raça e para uma civilização, os elementos dum lento suicídio que a massa aceita, desde que ele reserve presentemente a uns lucros cada vez maiores, aos outros a satisfação doentia de desejos e de necessidades hipertro­ fiados. — E no entanto, apesar de tudo, não será um progresso no activo da nossa civilização, essas árvores carregadas de frutos num vale ainda há pouco inculto, essas pêras e esses pêssegos duma beleza, dum tamanho e duma imunidade sem igual? — Tomados em si mesmos, esses resultados são certa­ mente dignos de admiração, tal como o maravilhoso progresso da aviação de guerra, a precisão matemática dos canhões e dos torpedos, a mobilidade dos tanques... — As coisas não são contudo comparáveis, e não vai por certo assimilar as obras essenciais de alimentação e de vida às forças diabólicas de destruição hoje desencadeadas? — Não há infelizmente aí mais do que uma diferença de grau nos perigos e na nocividade desses filhos comuns duma mesma ciência; estamos em presença das mesmas forças de cega decadência... 40

Mais provas ainda?... Tenho um amigo arboricultor que me dizia: «Se sou­ besse como produzimos os nossos grandes pêssegos nunca os compraria!...». Quando o fruto está quase a amadurecer, cava-se à volta da árvore uma vala circular na qual se deita um certo produto químico que, abundantemente regado, provoca na planta como que uma sede doentia. A água ime­ diatamente absorvida sobe ao fruto, que duplica de tamanho em alguns dias. E quando comemos o belo pêssego, ingerimos naturalmente a água química incontestavelmente nociva. Eis o que a ciência faz com as plantas e os frutos... Sabem como ela trata os animais? As vacas das nossas montanhas podem viver muito tempo sem doença pois que escolhem por si mesmas, nos prados, a erva mais saborosa. Mas elas nem sempre pro­ duzem grandes baldes de leite como as vacas pseudo-alimentadas racionalmente. E, no dizer dos químicos, o seu leite nem sempre é suficientemente rico em matérias gordas. Segundo as suas teorias, o bom leite fabrica-se — a palavra não é exagerada — nos modernos estábulos dos arre­ dores das cidades. Aí as vacas estão encerradas em habitações limpas e claras como pavilhões dum hospital. E são mugidas mecanicamente para que o leite não seja conspurcado por nenhum contacto. Mas alimentam-se os animais quimicamente; secunda-se, condimenta-se, completa-se o feno com bagaços e produtos diversos que têm a virtude de fazer produzir leite, e leite gordo! E efectivamente essas vacas são dum rendimento por vezes duplo do das nossas; com um leite que é um primor. Só que as vacas submetidas a esse regime de exploração intensa morrem tuberculosas ao fim de dois ou três anos! Quem ousaria pretender que o leite dessas vacas, esse leite que não é já o seu fruto natural mas uma secreção mons­ truosa devida à desordem suscitada pela química moderna, pretender que esse leite é bom, ainda que se produzam análises atestando a sua pureza e o seu alto teor em matérias gordas? Como se o leite não fosse mais do que matérias gordas!... 41

E as galinhas dos aviários modernos, que são forçadas, também por meio de produtos químicos, a pôr incessante­ mente, a um ritmo acelerado, ovos de gema pálida, mas que se vendem bem. Essas galinhas, tal como as vacas dos está­ bulos modernos, morrem esgotadas ao fim de dois ou três anos, se se não tomou a precaução de as matar antes disso. Acredita-se verdadeiramente que os produtos degenerados de animais esgotados por aquilo a que chamam criações racionais possam ser favoráveis à alimentação, ao equilíbrio e à saúde dos homens? Por aqui se vê o erro, digamos social, duma ciência que leva até ao absurdo o rigor aparente das suas interpretações, que estuda, comenta e explora observações exactas em si mesmas, quando vistas no meio artificial do laboratório, ou com os antolhos deformantes do exclusivo lucro mercantil, mas que esquece que os seres humanos são um todo mara­ vilhoso, animado, dinâmico, incorporado num outro todo igualmente maravilhoso e dinâmico do qual os não poderíamos abstrair, e que os problemas da vida e da saúde têm uma outra amplitude, uma outra profundidade e uma outra pere­ nidade que as descobertas fragmentares da ciência contem­ porânea. Quereria provar-vos, tal como o sinto, que há aí como quem diria um erro de agulhas, uma falsa concepção dos esforços inteligentes do homem, que fazem com que aquilo que julgamos bem e bom, realizações que se admiram, nos conduzam não obstante à desordem e à catástrofe. E não apenas no domínio das ciências médicas, agrícolas ou alimentares. O mesmo erro impregnou a cultura e a edu­ cação, e é sobre este ponto que eu gostaria de insistir.

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8.

O FALSO BRILHO —O OURO E A PRATA

INTEGRAÇÃO DO PRESENTE NO PASSADO. HUMILDADE PERANTE A CRIAÇÃO E A VIDA, PROCURA PERMANENTE DAS ESTRA­ DAS REAIS DO PROGRESSO, CONDIÇÕES PRINCIPAIS DA NOSSA ASCENSÃO OBSTI­ NADA PARA OS CUMES Faz-se tarde. O fogo extingue-se lentamente. O filho adormeceu sem cerimónia, com a cabeça apoiada na mesa, e a senhora Mathieu dormita, resignada. Entre duas tiradas do marido, ela arrisca uma observação: — Vamos, amanhã será outro dia. Por mais que se obstinem, não poderão dizer tudo esta noite... O mundo que tanto tem girado, continuará a girar ainda algumas horas sem a vossa intervenção... O meu marido falava-vos durante uma noite inteira sobre estas questões... Outros inquietar-se-iam com um cabrito que mamou mal ou com o trigo que cresce irregularmente. Mas ele só se compraz em agitar as grandes ideias que, segundo ele, conduzem o mundo. Como se Deus não bastasse sem que preten­ dêssemos fazer também os nossos pequenos deuses. Foi a senhora Long que se desculpou e desculpou Mathieu: — Fazemos menos mal assim, minha senhora, do que a dizer mal da vida alheia... O seu marido tem inteira razão: a reflexão original, baseada na observação, na expe­ riência e no bom senso tornou-se tão rara que devemos louvar e encorajar aqueles que ainda sabem e podem praticá-la. Os papagaios são numerosos, mas as personalidades susceptíveis de pensar direito são cada vez mais como que uma curiosidade... Não se admire se nos demoramos mais do que convém, pelo que nos desculpamos... 43

— De resto, vamos terminar por esta noite — atalha Mathieu. ...Se querem que vos diga, este é o grande segredo dos nossos erros e da nossa orientação deplorável: os homens perderam toda a humildade perante a natureza que julgam poder ultrapassar e corrigir sem penetrarem nos seus verda­ deiros segredos. Essa palavra ciência, da qual já nos ocupá­ mos longamente, tem o seu destino demasiado ligado a esta outra noção: o Progresso. E quem diz progresso diz marcha para a frente, e desdém mais ou menos injusto, mais ou menos perigoso, pelos pensamentos e técnicas do passado, como se o próprio Progresso não fosse função desse passado, e não fosse o longo e humano resultado dos erros, das tentativas, da luta obstinada dos bons obreiros que nos precederam. Nós somos um pouco como essa criança que abandona pela primeira vez, pela cidade brilhante e rutilante, a pequena aldeia sombria e deslavada, de uma só rua, sem outro orna­ mento além das portas de estábulo alternando com as soleiras modestas das habitações, a pequena aldeia sem anúncios, sem ruídos, sem outro adorno além da sua gola de hortas e prados de opulência cambiante, e a sua escarpa inteiramente dourada na Primavera pelo pululamento das giestas em flor. A criança é seduzida, subjugada, dominada por tudo quanto a cidade oferece exteriormente ao gozo dos seus sentidos: pelas luzes, as ostentações multicores, as bocas tentadoras dos cinemas, e as mil e uma surpresas insuspeitadas, e os veículos opulentos, e os passeantes limpos e afectados... E começa a pensar com uma certa piedade na sua aldeia, nos parentes e amigos que lá deixou. Quereria generosamente fazê-los beneficiar, nem que fosse por um só dia, dessa sumptuosidade estonteante. O Progresso! Que maravilha! E como são felizes os que podem beneficiar dele! Depois inicia-se pouco a pouco, ou mesmo muito depressa, nas surpresas decepcionantes que lhe reserva o reverso da medalha: habitações sem sol, ruas cujo vai­ vém nos obceca, indiferença ou mesmo desumanidade das 44

pessoas que passam... A criança começa então a lamentar a paz dos campos, a calma melodiosa da aldeia, a simpli­ cidade familiar dos habitantes, a sabedoria exemplar daqueles que admira... E quereria voltar para a pequena aldeola, para a tranquila existência camponesa... Poderá fazê-lo? Ou, apanhada numa implacável engrenagem, como no turbilhão infernal de Dante, terá que se limitar a essa nostalgia, que dir-se-ia fisiológica, do homem que foi brutalmente separado dum passado e dum meio de que nenhuma civilização arti­ ficial o poderia recompensar. Vós, contemptores da ciência e do progresso, sois como aqueles filhos que, porque se elevaram um pouco na escala económica — o que não é forçosamente a escala social, e menos ainda a escala humana — porque têm bom aspecto, habitam em casas claras e limpas e viajam de automóvel, olham com comiseração e por vezes com desdém para os pais que permaneceram pobres e humildes. E no entanto, tudo quanto têm de bom, afora esse verniz exterior que não ilude por muito tempo, o que eles têm de coragem e de entusiasmo e de confiança ancestral na vida, e o que lhes resta de rectidão de espírito e de bom senso, não lhes vem dos pais, ou dos pais dos seus pais, ou dos seus próximos? Vós procedeis como esses inconscientes pretensiosos: vestis a civilização — aquilo a que chamais civilização — de ouro e brilhantes, ou antes de ouropéis; cobris o passado com uma sombra de obscurantismo e exultais: vêde onde se encontram a luz e o progresso!... Mas isso não é o sistema... O ouropel é com efeito inteiramente absorvido pelo vosso progresso... Mas o ouro e a prata escondem-se ainda nas moradas dos simples. É a história de Merlin Merlot que se repete incessan­ temente. Esquecem-se de que o passado, mau grado os seus erros, tem também a sua parte de grandiosidade, e ser-me-ia fácil provar-vos que esse progresso que julgais particular dos nossos séculos mecanizados, se é certo que avança em flecha para algumas técnicas, soube, noutros períodos, desenrolar-se, amplificar-se e, por caminhos cujo segredo em muitos casos 45

perdemos já, conduzir a humanidade a cumes que nunca mais atingiu. Alinhamentos megalíticos, pedras, duma massa colossal erguidas, pirâmides gigantescas, ousadia divina das nossas catedrais; e essa sabedoria suprema dos profetas que, ilumi­ nados por um sentido superior da harmonia universal, soube­ ram igualar os deuses; esses mártires que, em todos os tempos, ousaram pelo seu corajoso sacrifício salvar, contra a barbárie sempre renascente, os direitos imprescritíveis da dignidade humana... Ao considerar essas elevações, ao medir no tempo o impulso misterioso dos homens para o ideal, adquirimos um sentido mais justo do progresso e do respeito que devemos ao passado; começamos a duvidar de que a via em que nos embrenhámos seja a estrada real, única, salvadora; permanecemos indulgentes e compreensivos para com aqueles que procuram, fora das sendas exploradas, essa luzinha da vida e do ideal, outras razões talvez para lutar ainda e, quem sabe, para ir mais alto e mais longe. O caos actual chama por si próprio os obreiros obstinados da nova construção.

9.

REENCONTRAR AS LINHAS DE VIDA

DEVEMOS DEPOSITAR NA NATUREZA UMA CONFIANÇA NOVA, E NO SEU SEIO, REEN­ CONTRAR AS LINHAS DE VIDA FORA DAS QUAIS NINGUÉM PODERIA CONSTRUIR UTILMENTE Todas estas críticas tão naturais, tão conclusivas, pare­ ciam abalar um tanto o senhor Long na sua veneração pelo Progresso filho da Ciência. Mas os dois homens não falavam 46

a mesma linguagem, não olhavam a vida com os mesmos olhos: um estava ainda fascinado pelos melhoramentos mate­ riais, pelas conquistas técnicas, pelo aumento evidente do poder do homem sobre a natureza, tudo coisas que não são decerto indiferentes à felicidade, mas que não são no entanto as condições essenciais dela pois que podem confinar com o extremo infortúnio, com a desordem que decompõe e mata, com o desequilíbrio que aniquila até as razões de viver. Mas não tinha consciência das fraquezas e dos erros que estão na origem dessa desordem e desse desequilíbrio. O outro, Mathieu, tinha por si a superioridade de nunca haver sobrestimado as possibilidades duma ciência que osten­ tava orgulhosamente as suas conquistas, de haver considerado no seu justo valor técnicas que não acrescentam nada àquilo que faz o verdadeiro valor da vida, de haver conservado maravilhosamente essa íntima ligação, ao mesmo tempo espi­ ritual e material, com o passado familiar, e de julgar os acontecimentos com uma espantosa clarividência que lhe dava como que um fundamento de vivaz optimismo. —Admiro, senhor Mathieu, o rigor das suas críticas; mas gostaria que, depois deste longo preâmbulo, regressasse àquilo a que entre nós chamamos por vezes o lado constru­ tivo da questão, que precisasse o que poderia ser a orientação no sentido das linhas de vida, em que direcção orientaria os esforços daqueles que continuam apesar de tudo dispostos a servir o verdadeiro progresso... — O senhor é verdadeiramente exigente. Não aspiro de modo nenhum a um papel de profeta, nem me sinto em condições de responder actualmente à sua expectativa. Procuro como você: quando discuto, não faço mais do que precisar para mim mesmo aquilo que sinto por vezes confusamente; viro e reviro as ideias para as ajustar a uma concepção da vida que considero justa e fecunda. Tenho o sentimento preciso da direcção para que deveríamos caminhar, mas é à medida que avanço que reconheço o meu caminho. Poderá sempre acompanhar-me se não receia os desvios, as pausas à beira do fosso, os retrocessos para nos convencermos de que não nos desviámos e nos tranquilizarmos a nós próprios. 47

Não tenho aliás outro talento além desta simples lealdade ao serviço do raciocínio lógico e do bom senso. Não poderia nesse aspecto separar-me da vida e da natureza; é delas que espero as luzes supremas e os ensinamentos decisivos. A medicina — e também a pedagogia — tratam o ser humano como um sujeito inerte e passivo, ou antes os seus grandes sacerdotes, seguros duma rara suficiência, apenas contam com os seus próprios talentos para curar ou para formar os seus sujeitos. Será antes de mais necessário regressar a práticas condi­ cionadas pelo dinamismo que cada ser traz em si para assegurar o seu crescimento, a sua defesa e a sua elevação. O nosso ser físico e mental é um todo maravilhoso que tende naturalmente para restabelecer incessantemente a harmo­ nia que lhe é essencial; há nele um sistema ainda misterioso não só de defesa mas também de compensação, e mesmo de criação. Porque ainda não conseguiu penetrar nesse mistério, a ciência quereria considerá-lo como inexistente, preferindo utilizar descobertas aparentemente seguras porque baseadas em realidades experimentais e arbitrariamente codificadas. Como a criança que quisesse emitir um juízo maior sobre o mundo porque, pela primeira vez, subiu ao outeiro que domina toda a sua aldeia e donde descobre todo o desconhe­ cido do vale. A medicina reconheceu os órgãos do corpo humano aos quais deu nomes mais ou menos sábios. Então trata esses órgãos, corrige as peças defeituosas do mecanismo, sem se preocupar com as diversas reacções do próprio mecanismo. — No entanto se há um órgão atingido, um pulmão roído pelos bacilos, uma pleura que supura, um estômago ulcerado, um fígado hipertrofiado, é necessário tratá-los... — É exactamente aí que está, em meu entender, o grave erro do comportamento actual, tanto dos médicos como dos pedagagos, erro que vem dessa falsa interpretação — de forma escolástica — das promessas de vida, duma falta total de confiança na natureza, nas suas obras, no seu poder de reacção e de criação. 48

O corpo, desde que o ajudemos eficazmente nisso em vez de nos substituirmos a ele, pode muito bem regenerar pulmões, ou, se tal não for possível, acomodar-se com certas limitações irremediáveis; ele pode assimilar o líquido duma pleura, cicatrizar a úlcera de um estômago, restituir ao fígado o seu vigor de funcionamento, ou pelo menos o mínimo necessário para permitir ao ser humano realizar a sua função. Têm sido feitas neste sentido experiências concludentes; no dia em que a ciência oficial quiser considerá-las, talvez saia do impasse em que se debate. Não se trata, como vê, de feitiço nem de bruxaria, nem duma confiança cega em certas forças físicas ou astrais que bastasse tornar favoráveis por meio de preces ou malefícios; nem dum desdém bárbaro por todos os conhecimentos acumu­ lados por vários séculos de investigações pacientes e metó­ dicas, pelos instrumentos e métodos realizados por uma prospecção que honra a inteligência humana. É a utilização desses conhecimentos e dessas técnicas, a atitude da ciência perante o problema humano em toda a sua complexidade, não só fisiológica mas também espiritual e vital, que devem ser modificadas. É pouca coisa e é no entanto muito porque se trata duma viragem no nosso comportamento, até na nossa concepção da vida, duma verdadeira revolução cuja importância lhe afirmarei e que só ela pode salvar-nos da degenerescência e da falência. O problema está no entanto posto. Está brutalmente posto pelas crises de desordem, de luta e de destruição sem precedentes, de que somos testemunhas e vítimas. Acusam-se os homens, e apercebemo-nos de que eles não têm sido mais do que joguetes impotentes; acusam-se as instituições, e não conseguimos traçar uma ordem diferente porque as próprias bases são trémulas e carcomidas. Com­ preende-se então que é necessário ir mais profundo. Mas como? Acusar a ilusão do progresso e voltarmo-nos beatificamente para um passado que já não quadra com a medida da nossa vida? Fugir ao materialismo e restituir ao espírito prerrogativas ideais que rapidamente lamentaríamos? Apelar para a regra rígida das religiões de nossos pais?... Tentativas 4

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desvairadas do homem perdido num grande bosque onde não apercebe já nenhuma luz e que vai, vem, regressa sobre os seus passos para tentar reconhecer os caminhos, sobe a uma árvore para escrutar em vão o horizonte, chama incansavel­ mente na noite. Há, asseguro-lhes, algo de melhor a fazer. As vias da salvação estão ainda aí, ao nosso alcance. Existe, tanto em medicina como em educação, e portanto em filosofia — e é de propósito que acuso tantas vezes estas ciências, não porque, vós que me escutais, sois professores, mas porque, em meu entender, a educação sofre e debate-se, e perde-se, pelas mesmas razões que deixam a medicina impotente perante a doença e perante a morte, e a filosofia tímida e menor perante o pavoroso cataclismo — há pois, em medicina tal como em educação, novas concepções cujas bases existem já e são, apesar do que possam parecer à primeira vista, tão científicas e racionais, senão mais, que tudo o que tem sido tentado até aqui, que aliás utilizam e adaptam pelo menos uma parte das descobertas contemporâneas, mas que perma­ necem mais lógica, humilde e humanamente ao serviço duma vida que traz ainda em si bastante dinamismo poderoso para regenerar as nossas civilizações envelhecidas e gastas. — Se a ciência, que se julgava tão certa e tão lógica nos seus métodos e nos seus desenvolvimentos não é ela própria mais do que uma decepcionante aventura, que novi­ dade seria então susceptível de nos trazer razões mais eficazes para viver e lutar? A fé seria em definitivo o nosso único recurso, como o retraimento do animal acossado... — Compreendo... Vós sois como anjos decaídos e desen­ corajados que já não ousam partir à conquista do céu. Mas eu que permaneci um homem, mais simplesmente, vedes-me sempre com a minha mesma confiança — aliás pouco exigente — perante a vida. Vocês podem, e devem, retomar as verda­ deiras conquistas. Mas, em todas as coisas, é necessário tentar primeiro compreender profundamente, ir à própria fonte dos erros e dos lampejos de verdade, reencontrar os fios condu­ tores dos comportamentos individuais e sociais. E aí, nessa profundidade, quem quer que saiba ainda reflectir sadiamente, 50

conseguirá então despir a ilusão das palavras e a vaidade infantil dos sistemas para reencontrar, sem verborreias nem floreados, as grandes ideias directrizes da actividade dos homens, que são muito mais simples e muito menos nume­ rosas do que se julga. Quem pôde chegar até aí, pode sem receio aventurar-se em qualquer domínio do conhecimento. É a posse desse segredo que nos dá, a nós, aquilo a que vós chamais por vezes a suficiência, e que não é mais do que a certeza, mau grado os erros possíveis no pormenor, de haver reencontrado essas linhas essenciais da vida fora das quais ninguém poderia construir. Essas linhas de vida, recomeça Mathieu, nunca se situam para mim no domínio do intelectualismo e sei melhor que ninguém como a própria Natureza é madrasta quando o homem não consegue dominá-la à força de inteligência e de habilidade. Por mim, reajo com o meu bom senso de camponês. Não reajo contra a própria ciência, técnica experimentada dum longo tactear experimental e metódico, mas contra as deformações que nela ocasiona o meio social a que estamos sujeitos. No dia em que os trabalhadores tiverem dominado e corrigido o sistema de mentira e de exploração que desvia a ciência dos seus objectivos, nesse dia o meu bom senso aderirá à experiência científica. Mas entretanto, não será mau que aqueles que vêem tentem abrir os olhos das vítimas.

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10.

CONHECIMENTO E SABEDORIA

REENCONTRAR ANTES DE MAIS. SOB O VERNIZ DUMA FALSA CULTURA, AS VERDADES FECUNDAS E DINÂMICAS QUE SÓ ELAS PERMITIRÃO AS SÓLIDAS CONSTRUÇÕES DO FUTURO Lançados na sombra negra da praça, depois regressados à sua própria cozinha, cujo asseio burguês contrasta com a desordem da pobre cozinha camponesa, o senhor e a senhora Long não podiam impedir-se de pensar ainda nos ensina­ mentos de Mathieu. Uma dúvida nascia neles, uma dúvida que cavava uma ponta de clareza. Se eles nunca tinham podido fixar-se numa tranquilizante certeza, era porque ninguém lhes havia ensinado a escrutar as profundezas, e porque eram agitados ao sabor de ideias e de sistemas que nunca mexiam mais do que a superfície; porque nunca tinham feito mais do que brincar à entrada da gruta, sem nunca se aventurarem, de vela na mão, para os recontos difíceis que detêm os segredos do passado e as próprias razões do presente. Mathieu, seguro de si, desentulhava as mais sábias cons­ truções como aqueles conhecedores que, ao visitarem um chalé, sabem, afastando as plantas de adorno, encontrar as peças mestras cuja solidez experimentam vigorosamente, sacudindo impiedosamente o mais subtil pechisbeque que pretendia mascarar as fraquezas originais. E também como o professor que, ao entrar numa aula vizinha, sabe afastar o fictício, o acidental, o brilho mais ou menos humano, para sentir as veleidades duma personalidade e dum carácter... Ambos descobrem agora que essa faculdade de pene­ trar em profundidade não supõe necessariamente a amplitude de conhecimentos nem a formal aquisição escolástica. São antes como que duas vias separadas, que o não deveriam 52

estar pois que uma deveria conduzir à outra para a tomar mais poderosa e mais clara. E é talvez essa a origem do grande drama humano, essa separação e a impotência do conhecimento para conduzir até à sabedoria. Porque o conhe­ cimento é de má qualidade, ilude, mas não alimenta como o deveria fazer. Existiram assim no passado — por que motivo restam tão poucos no presente? — anunciadores, messias, que não tinham certamente podido iniciar-se em todas as técnicas da sua época: o carpinteiro era mais hábil do que eles na sua arte e conhecia melhor a sua madeira; o barqueiro sabia melhor do que eles enfrentar as vagas e evitar os obstáculos; o astrólogo era mais perito em designar as estrelas e em predizer as suas revoluções, e só o escriba conhecia na perfeição a arte de vestir de eloquência a impotência duma causa. Mas eles, os sábios, tinham adquirido algo duma preciosidade diferente: o conhecimento, intuitivo primeiro, racional depois das grandes leis da vida. E podiam ir junto dos artesãos, dos agricultores e dos cientistas, calmos e serenos, resolvendo as situações complicadas, esclarecendo o carpinteiro, tranquilizando o barqueiro, encorajando e guiando o astrólogo, dando úteis lições ao escriba. Os outros envernizavam e coloriam a superfície sobre a qual se cansa­ vam a traçar os sinais sempre imperfeitos da sua ciência; eles animavam o fundo; eles redescobriam as razões e os motivos da própria vida, o que lhes dava, do corpo e do coração do homem, e da natureza que o cerca, um conhe­ cimento misterioso que fazia deles grandes construtores e construtores para a eternidade, porque as verdades que assim fizeram surgir há cem anos, há mil anos, há cinco mil anos, permanecem as mesmas fecundas e integrais verdades, o único alimento que apazigua a fome dos eternos insatisfeitos. A crosta e o verniz apenas mudaram de consistência e de apa­ rência ao sabor das modas e das épocas, e os confusionistas ainda não terminaram a sua tarefa vazia e vã. Ah! se, no seu ensino, os educadores soubessem enfim, também eles, perfurar e dissolver o verniz duma falsa cultura para atingir o fundo das verdades essenciais, deixar agir o seu 53

poderoso fermento, e colocar humildemente a ciência ao serviço das suas revelações! ...«Se não vos assemelhardes a essas crianças...», dizia Jesus.

11.

OS RITMOS PERDIDOS

COZER O PÃO NO FORNO COMUNAL; REEN­ CONTRAR OS GESTOS ANCESTRAIS, SUPÕE TAMBÉM O REGRESSO A UM RITMO ESQUE­ CIDO A QUE SERÁ NECESSÁRIO REGRESSAR PARA O READAPTAR AO MUNDO CONTEMPORÂNEO — Leva para o forno o feixe de cavacos e enforna os ramos de pinheiro que trouxeste ontem, para que sequem... A massa está a levedar... Grande dia na casa dos Mathieu!... Dia de cozedura!... Retomou-se, um tanto por força de necessidade, a tra­ dição perdida. Porque é um trabalhão amassar e cozer e, antes da guerra, achava-se mais cómodo entregar a farinha ao padeiro da aldeia vizinha que em troca trazia um peso equivalente de pão. E um pão muito branco, bem levedado e estaladiço, um pão como que adomingado, ao pé do qual o casqueiro redondo e meio espalmado que saía do forno comunal parecia como que envergonhado da sua humildade. Agora, o padeiro está preso; o seu ajudante faz um pão mal cozido, escuro e áspero, que aliás só muito irregular­ mente vem trazer à aldeia. Então, limpou-se a «mastre», aqueceu-se o forno e, de tempos a tempos, vê-se, como outrora, subir um fumo espesso em direcção ao penedo e sente-se, algumas horas depois, o odor do pão fresco invadir 54

a aldeia, esse odor que é subtil e quente como um perfume discreto de flor dos campos, prometedor e rico como uma manhã ensolarada. É pois esta a vez dos Mathieu. Desde o alvorecer, ouvem-se as pancadas surdas da massa, amassada pela senhora Mathieu. Depois passam grandes tabuleiros carregados... Mathieu, de mangas arregaçadas, esfalfa-se diante do forno aquecido em vazio e que agora é necessário varrer... O monte de brasas continua lá, no interior, junto à porta; as cinzas fumegam no cinzeiro e a vassoura de pinho, apesar de abundantemente regada, encarquilha. Depois, Mathieu enforna os pães que a sua mulher corta e deposita sobre a pá... Já só há lugar no centro... Será para as «fogaças», cujos braços, largamente destacados por um corte, parecem oferecer-se... Algumas merendeiras em feitio de flauta para as crianças. Terminou... Mais um lugarzinho para o tradicional gratin de abóbora, para uma torta gulosa, para um prato trazido por um vizinho. A porta fecha-se... Mathieu tira um pouco de água do regador, molha a fronte, bebe uma golada e sai para a soleira, respirar o ar fresco que sobe do vale. O forno engoliu a massa; o mistério vai realizar-se... A farinha tomar-se-á pão!... Não há de resto que esperar muito tempo: as fogaças espalmadas estão já alouradas. Mais um instante e Mathieu trará à soleira a primeira fornada, como uma bênção. A partilha familiar dessa primeira fogaça renova com efeito a ceia e a partilha do pão, muito melhor do que essa hóstia misteriosa de que o povo não compreende já o simbó­ lico sacrifício. — E sem cerimónia, sabem!... Tire um «braço»... Há que chegue para todos os assistentes... Se se fazem braços à fogaça é para serem comidos... E cheire-me isto! Dir-se-ia o perfume da eira quente onde se empilham as paveias. E saboreiem!... Isto não é um alimento ordinário... É mais do que um alimento: é o fruto da terra que estão a comer; é ao mesmo tempo a frescura verde da Primavera e o calor 55

do Verão escaldante com o canto das cigarras e o cri-cri dos grilos!... Digo-vos eu: isto é uma bênção!... O senhor e a senhora Long eram da festa. Parecia-lhes efectivamente que nunca tinham saboreado nada dê tão subs­ tancial. Havia, na sua sensação, um pouco dessa comovente apreensão, desse respeito divino que haviam sentido — recor­ dam-se bruscamente — quando da sua primeira comunhão quando acabavam de tomar, das mãos do padre, a hóstia consagrada. Mas esse sentimento era agora como que mais humano e mais profundo. Não se sabe porque é que esse «braço» de fogaça à saída do forno se bastava tão totalmente. Não teria vindo à ideia de ninguém comer esse pão com «qualquer coisa», nem que fosse nozes bem cheias, esse regalo! Era como que um absoluto, como que o sinal da fecunda e ancestral união do homem com a terra. — Vejam, ataca Mathieu enquanto espera que o pão coza, vejam ao que nos conduziu a vossa cultura. Ela tinha-nos levado a subestimar ou a desdenhar os verdadeiros valores, a não sentir mais a significação mística da partilha do pão, a não compreender já o alcance de todos os provér­ bios que a haviam consagrado, nem mesmo esta expressão de Jesus: «Ganharás o teu pão com o suor do teu rosto!» — É sempre muito fácil, perante a desgraça, argumentar: «Eu bem lhes tinha dito!» e acusar o próximo. Estou certo de que se por acaso o vosso pão não estivesse bem levedado seria por culpa da senhora Mathieu!... Que responsabilidade, directa ou distante, podemos nós ter nas desgraças actuais da França, nós que sempre realizámos a nossa tarefa com a maior consciência? Que responsabilidade poderia ter mesmo a maior consciência? Que responsabilidade poderia ter a Escola pública cuja instituição, há meio século, marcou, apesar de tudo, um inegável progresso?... — Tal como a «panificação» feita pelo padeiro, com auxílio duma amassadeira mecânica, num forno moderno aquecido a gasóleo, representava um inegável progresso sobre a cozedura familiar, extenuante, e nem sempre perfeita. Mas esse progresso era tão singularmente orientado, levou-nos tão 56

longe, que aqui estamos de novo diante da nossa amassadeira e do nosso forno centenário. E muito felizes ainda por termos este recurso àquilo que os nossos haviam cons­ truído e ao exemplo vivo que eles nos haviam dado. Dirão que permaneço o homem do passado, que vejo o presente com olhos demasiado prevenidos e que me arrisco, desse modo, a ser apesar de tudo parcial e injusto para com aquilo a que chamais o progresso. É possível; porque, se julgamos com uma complacência os nossos próprios actos, somos sempre severos para as acções dos outros, e a nossa caridade é sempre um pouco em sentido único... Eu não escapo sem dúvida à lei comum. Mas não será preferível uma certa severidade, ainda que injusta, quando se trata do nosso destino, a uma frouxa aceitação de todos os erros e das mais temíveis fraquezas? Não tenho interesse de espécie alguma em inclinar-me servilmente perante os poderes de hoje — e não se trata apenas do poder oficial com as suas leis e a sua polícia... Prefiro antes falar do poder oculto que, por detrás desse, por palavras, por ritos, por crenças — e não só religiosas! — constitui a cama daqueles que detêm o chicote. Vocês vão por vezes à missa — ou pelo menos já lá foram... Sabem que, durante a elevação, quando o oficiante faz os gestos que precedem a partilha da hóstia, o menino do coro agita a campainha; e todos os fiéis devem baixar a cabeça, como que para não ver o acto misterioso que se realiza. Quando estou na missa — o que não me acontece muitas vezes, de tal modo estou sempre tão ocupado — não posso baixar a cabeça. Sinto que seria um atentado à minha dignidade de homem. E olho com alguma comiseração o oficiante untuoso, o menino de coro irresponsável que agita a campainha, e a massa dos homens e das mulheres que esperam passivamente o último toque para voltarem a erguer a cabeça num gesto impaciente de alívio. ...Não, eu não me inclino... Eu julgo os acontecimentos e as coisas com o máximo de bom senso que pude conservar, ainda que seja eu o único a ousar... 57

— Julga então que estamos dominados ao ponto de também já não podermos nem reflectir, nem julgar, nem agir?... — Talvez vos não falte vontade para isso, decerto; mas todos vós que haveis sofrido a cultura tendes tendência para não vos aperceberdes já a que ponto ela vos domina por assim dizer automaticamente. Dir-se-ia aliás que tudo con­ corre, na sociedade actual, para impedir os homens de reflectirem, como se eles estivessem sob o domínio duma diabólica conjuração. Quando parto, montado no meu burro, tenho tempo, acreditem-me, de calcular, de virar e revirar as minhas ideias, de construir pacientemente uma filosofia. O animal guia-me; basta que, de vez em quando, o estimule um pouco com um vigoroso safanão das minhas pernas balanceantes. Durante o caminho tenho tempo para olhar os campos e as árvores, para comparar os cultivos e as colheitas... Olha, este ainda não acarretou o estrume e daqui a pouco é altura da semen­ teira... Aí está um bom adubo, mas que deixam secar demasiado sobre o restolho... Estes muros não foram levan­ tados. .. Fulano faria melhor em ocupar-se deles do que andar a vadiar dias inteiros pela rua!... E, ao observar assim os caminhos, os campos e as culturas, aprendo a julgar os homens; tomo o pulso aos habitantes. Mais adiante, quando deixamos o nosso vale, a atmos­ fera modifica-se: a linha das montanhas modifica o horizonte; ruídos diferentes sobem das quintas; um pastor reúne algumas vacas; o chiar duma carroça vem ao meu encontro. Este é um ritmo actualmente desaparecido, salvo nas nossos aldeias afastadas, e para nós, camponeses autênticos. Naturalmente, vocês que estão habituados a andar de auto­ móvel, para reencontrar, ao regressar a casa, um rádio que vos embarca em pensamento para novas viagens, acham que deve ser mortal permanecer assim, num solilóquio de tão longas horas. Mas o tempo é para vós uma carga assim tão pesada que o vosso único objectivo é «matá-lo» para correr em vão na perseguição duma vida que passa? Eu estou em paz comigo mesmo; acho que cada hora do dia tem o seu 58

interesse e a sua fisionomia, que cada paisagem, cada aspecto dos indivíduos têm o seu encanto. E quando chego do meu passeio, ponho pé em terra e despeço a minha montada, sinto a alma satisfeita, e mesmo um pouco mais rica do que à partida. ...E quem sabe o que faz o meu pão?... É um trabalho de artista cozê-lo na medida exacta, nem endurecido num forno mal aquecido, nem «surpreendido» por um calor exces­ sivo, nem pálido, nem demasiado dourado... Desculpem-me... Isto é mais urgente do que filosofar!...

12.

O PROGRESSO

ONDE SE ABORDA O PROBLEMA DA CULTURA NAS SUAS RELAÇÕES COM O PROGRESSO MATERIAL E SOCIAL E AS CAUSAS VARIÁVEIS MAS SEMPRE RENOVADAS DE EMBRUTECIMENTO Não foi por muito tempo... A cozedura ainda não estava perfeita. Mathieu voltou a sentar-se pausadamente, como homem para quem, com efeito, os minutos pouco contam. E retomou sem mais o fio dos seus pensamentos: — No ano passado tivemos cá a nossa sobrinha Rosette... Conhecem-na? Tem quinze anos e foi educada na cidade. Chegou com uma verdadeira colecção de jornais e de romances, porque previa que iria morrer de aborrecimento no nosso buraco onde não teria nem sequer um rádio. Precisava de um livro para ler na cama à noite e de manhã. Se nos acompanhava a Graneirée, levava o seu livro. O dia estava delicioso e 59

sonoro... Pombos bravos atravessavam o vale majestosa­ mente; os galos chamavam-se uns aos outros e agrupavam-se em redor da velha cabana no meio do bosque; os melros brincavam nos silvados ou nos matagais de feijão amarele­ cido. Um perfume vigoroso de tomilho e alfazema subia dos outeiros. Deitado de costas, com a cabeça sobre o meu velho casaco, sentia-me encher dum bem estar subtil. Dir-se-ia que me penetrava uma réstea de eternidade... E pensava que seria sacrílego tapar os ouvidos e afastar do espírito essa indizível riqueza... Rosette lê... Ela nada vê de tudo isso; nada sente dessa maravilha! Mergulha no seu livro de ilusões, no seu livro mentiroso. Se lhe digo: «Olha esses pombos!» ou: «Escuta os estalidos secos das vagens do feijão que rebentam ao sol!»... ela levanta como que contrariada, com um imperceptível gesto de impaciência, um rosto surpreso e incompreensivo, como essas crianças que, ao despertar, abrem os olhos a uma realidade tão diferente do seu sonho e que têm necessidade de se espreguiçar demoradamente antes de recuperarem os sentidos. Se tento explicar-lhe, fazê-la penetrar das minhas sensa­ ções e emoções, ela responde com monossílabos delicados mas ausentes, para depressa retomar uma leitura que nem durante o regresso interromperia se o caminho acidentado a não obrigasse a uma vigilância nervosa de cada um dos seus passos de citadina. E aí temos o que a Escola, o que um sucedâneo imundo de cultura fizeram desta jovem: ela não é já um ser vivo, uma flor sensível e compreensiva: não conservou nenhuma das qualidades humanas às quais concedemos com justa razão uma importância tão primordial. Nem sequer tem já bom senso!... Conhece os nomes dos artistas de cinema, pois claro! E os títulos dos romances populares. Julga que a vida tem as cores excitantes e sedutoras que lhe atribuem os livros e a tela. Mas as desilusões virão, tarde de mais! 60

— Tem razão no que respeita ao cinema. Mas existem bons livros e não é por nossa culpa se as pessoas lêem os maus. — Se a vossa escola não é a única responsável, não está no entanto tão inocente como o quereriam pensar e dizer. Mas eu examino neste momento os resultados e digo-vos francamente: gostaria de ver vir para junto de mim, em Agosto, uma jovem que não soubesse ler nem escrever, que nunca tivesse visto cinema, nem ouvido rádio, mas que estivesse aqui com os seus olhos e o seu espírito intrepida­ mente curiosos, com a sua inteligência e o seu bom senso intactos e que soubesse principalmente sentir e viver a vida. Então, ela escutar-me-ia e interrogar-me-ia; e interrogaria também a natureza, exercitando a sua ingénua compreensão, desenvolvendo e agudizando o seu sentido da beleza. Não seria um papagaio sem originalidade nem sabor; não seria uma dessas bonecas estandardizadas de quem se admira os atavios e as pestanas cuidadas, e o toque de «rouge» nas faces, mas de quem se deve renunciar a tirar o que quer que seja de humana e inteligente sensibilidade. Ela despertará um dia, mas isso será terrível: a com­ plexa vida de família, os filhos tão difíceis de educar, o lar dominado pelas dificuldades e a miséria, fá-la-ão voltar às realidades, obrigando-a a reconsiderar todos os problemas e a lamentar os erros tenazes. Ela deter-se-á então, como na encruzilhada dum caminho, hesitante ainda, e depois, para refazer a sua vida mal orientada, recomeçará do zero. Mas quanto tempo perdido, quantas desilusões, quantos desgostos por ter tido que arrepiar caminho quando se julgava no limiar dum paraíso de romance! Desequilíbrio, desadaptação, irritação, doença, fastio pela vida, miséria! São estas as dádivas que vocês preparam para as crianças! — A anomalia que justamente o irrita não poderia bastar para condenar uma cultura que felizmente produz também frutos mais naturais, nem a nossa escola que continua a ser apesar de tudo uma enseada de progresso... — Aí temos outra vez a grande palavra progresso, como se as nossas gerações lhe tivessem gozado o privilégio. O pro­ 61

gresso existiu também no passado, e seria tempo de nos inspirarmos em algumas das conquistas que ele nos terá valido. Veja que não corro o risco de haver alguma vez vangloriado a ignorância ou negado certos progressos. Isso é tão bom de saber! Eu disse, isso sim, que preferia uma Rosette que não soubesse ler nem escrever, com a condição de que tivesse conservado as suas aptidões essenciais para a apreensão da vida. O que não significa uma Rosette ignorante, muito pelo contrário! Com efeito não bastaria suprimir a instrução para que o indivíduo fosse melhor, e estou bem longe de pensar ou de dizer que tudo andava melhor no tempo em que os filhos do povo não sabiam uma letra. Isso seria esquecer que se o cinema, a rádio, o livro actuais correm o risco de afas­ tar o indivíduo da estrada real que sobe para um ideal, houve, no passado, outras causas de embrutecimento ainda mais nefastas que a ciência actual ao serviço de condições econó­ micas e sociais mais humanas fez desaparecer quase total­ mente. Havia a miséria, que faz com que os seres se preocupem apenas com a sua subsistência imediata. Ia dizer como os animais! Mas isso seria menosprezar os animais. Digamos: como os animais esfomeados que são fascinados pelo prado verde ou pelo odor da luzerna. Havia a sujidade, a escuridão, o frio, a insegurança. Havia também essa espécie de sujeição moral, essa domi­ nação em que os mantinha a ignorância dos factos naturais mais comuns, o medo dos espíritos, dos fantasmas, o medo do inferno e do diabo com que a Igreja havia substituído aqueles, o domínio dos senhores temporais que detinham nas suas mãos o seu destino e a sua vida. Que a ciência actual, o Progresso, a Escola tenham atenuado ou feito desaparecer essas causas de embrutecimento, só temos que nos felicitar por isso. E haveria verdadeiro progresso se essas causas não tivessem sido substituídas por outras que preenchem exactamente a mesma função. E por vezes perguntamo-nos em que medida ganhámos com a troca... 62

Mas já sinto o bom cheiro do pão cozido... Vejam a bela cor dourada!... Aspirem este perfume! Sim, o pão é uma bênção. Quem o possui tem como que uma garantia de vida que lhe põe o espírito em descanso e o ajuda a pensar calma e humanamente. Porque o homem é como os animais de que vos falava há pouco: quando o seu estomago é regularmente satisfeito, quando os campos à sua volta são férteis e ricos, ele come em paz sem guerrear com os seus vizinhos, e gosta de se deitar depois ao sol entre a erva perfumada que continua a ser a promessa da noite e do dia seguinte. E então, tran­ quilizado, ele olha o céu, ausculta a terra, examina e sonda os homens... Pensa! Mas se o estômago o assedia, se sente escassear o ali­ mento à sua volta, se passa horas e dias sem apaziguar normalmente a sua fome, sem encontrar a segurança dum abrigo ou a fortuna duma cama quente, então comporta-se como os animais ávidos na Primavera. Só tem olhos para o tufo verde que cresce junto a um muro. A carência que tem de satisfazer as necessidades invade todo o seu espírito, açambarca todos os seus pensamentos. Ele parte como um louco, empurrando sem piedade os possíveis concorrentes. Vemo-lo errar, irritar-se, correr, lutar. Não seria de esperar desse homem gestos profundos de humanidade. Estas considerações deveriam ser as primeiras lições de pedagogia. Elas ensinariam a raciocinar sem pressuposto quando se fala de escola, de cultura e de progresso... Aqui temos agora os nossos tabuleiros cheios, a nossa riqueza pronta para ser recolhida. Quando a tiver admirado bastante, quando tiver sentido o seu odor fecundo invadir a nossa velha cozinha, estarei mais bem disposto para con­ tinuar as minhas demonstrações.

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13.

A CRIANÇA DESENRAIZADA

A CULTURA MODERNA PRODUZIU UMA SEPARAÇÃO PERIGOSA ENTRE A VIDA E O PENSAMENTO. UMA LACUNA NO PROCESSO DE EVOLUÇÃO DO ORGANISMO INDIVIDUAL E SOCIAL Sentado sobre a soleira da sua porta, como um sábio no limiar do seu domínio, Mathieu repousava da dura jor­ nada. Era uma dessas tardes de luz calma, que já não têm a aspereza picante das tarde de Inverno, nem o peso obsi­ diante dos crespúsculos de Verão. A tília sobre o largo exalava um odor tímido, anunciador do desabrochar pró­ ximo. Uma criança regressava, trazendo um ramo de pesse­ gueiro florido e seguida por uma cabra com o seu cabrito. Os melros regressavam à sua rocha e ouviam-se os seus gritos em cascata subirem de socalco em socalco, nas moitas e azinheiras. Reflectiria Mathieu na sequência dos seus pensamentos do dia? Impossível dizê-lo; nem mesmo ele o saberia dizer. Geralmente, ele deixa correr o tempo, limitando-se a reagir como convém aos acontecimentos, mas sem fixar anormal­ mente a sua atenção sobre elementos de discussão que teriam então tendência para se destacar do harmoniso conjunto da sua vida. Não pensa por capítulos, como tantos antigos alunos em quem a classificação arbitrária matou toda a verdadeira ordem. Pensa com todo o seu ser, e é todo o seu ser que participa no caminhar do seu espírito que é assim alimentado e fortificado. Só quando exterioriza as suas reflexões é obrigado a utilizar as palavras que isolam o seu pensamento, que lhe dão um contorno e assumem por vezes, desse modo, um valor de absoluto e de definitivo que se arrisca a ser já um princípio de erro. 64

E ninguém mais do que ele desconfia das palavras. Para o senhor e a senhora Long, era o pensamento que parecia impor-se incessantemente como o suporte das suas vidas, que os obsecava e os subjugava. De modo geral esses pensamentos agitavam-se no quadro familiar duma filosofia que os satisfazia aparentemente. Mas eis que Mathieu. com as suas repetidas invectivas, tinha abalado o edi­ fício mental erguido pela escola e a sua cultura. O senhor e a senhora Long começavam por sua vez a duvidar de certas palavras, a reconsiderar noções essenciais, a discutir o progresso... Mas, de momento, eram ainda as razões PRÓ que predominavam, até ao momento em que Mathieu enter­ rava de novo, nesse princípio de dúvida, a cunha do seu agressivo bom senso. — Vendo-o assim tão calmo, senhor Mathieu, no entar­ decer dum dia bendito, imagino que era sem dúvida assim que se sentava já o seu pai, quando acabava de amassar e de cozer... — O que prova que o progresso, pelo menos na nossa aldeia, tem patinhado estranhamente, pois que com efeito nada parece mudado depois de cem anos de existência! Não falemos da cidade, porque então eu poderei pergun­ tar-me, perante o espectáculo das carnificinas e da miséria actual, se não houve um retrocesso... Sim senhor, em cem anos construíram-nos uma escola! É muito, concordo, e é pouco, porque uma escola assim perdida num conjunto de elementos que se fixam na sua forma em vez de evoluírem adaptando-se às novas ideias, não pode ter uma influência muito profunda sobre a vida e o comportamento das gerações que passam. — Nunca se sabe. Porque o progresso não é forçosa­ mente material. Há também a evolução no pensamento, no andamento do organismo social, no desenvolvimento do sen­ tido moral. — Eu sei... É como a água que desce da nossa fonte clara de Rocheroux... Ela pode ser riacho sussurrante entre os vimes e os morangueiros da montanha: ou riacho de 5

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cascata levado por canais rústicos a regar feijões e árvores de fruto, prados e legumes; mas também, em certos dias, tromba selvagem que desaba das alturas, arrastando rochas, troncos e terra, arrancando tudo à sua passagem e submer­ gindo no vale campos inteiros que são como que envenenados por ela. Mas, desde que a montanha, abandonada a si mesma, se rearborizou, as cóleras da nossa torrente são menos fre­ quentes e menos terríveis. Pudéssemos nós encontrar um dia idêntica morigeração para o nosso Progresso! Ataco no entanto aqueles que, por sua própria autori­ dade, se declararam montanha para gerar e orientar a torrente, para dominar o vale; aqueles que julgam ter des­ coberto os cumes, mas que esquecem que esses cumes não existiriam sem os flancos dos vales que os erguem para as nuvens, e sem os baixios férteis que valorizam a aridez e a austeridade das encostas; e que se espantam por vezes que o mundo não esteja a seus pés, obedecendo aos movi­ mentos factícios que eles ordenaram. — As verdadeiras montanhas são duma outra humil­ dade, senhor Mathieu. Poderia apresentar-lhe aqui os escri­ tos sugestivos de certo homem de ciência, onde veria a que ponto ele está isento de qualquer soberba e fatuidade. — É exacto... Alguém disse — e eu estou convencido disso — que um pouco de ciência afasta do bom senso e da verdade, mas que uma grande ciência reconduz a elas. Sim, existem verdadeiros homens de ciência que são cons­ ciências superiores, cuja especialidade não extinguiu esse sentimento da complexidade ainda misteriosa do mundo que os rodeia, que souberam, desse modo, medir o limite do seu poder, e que conquistaram nessa concepção exacta da sua função, a humildade perante a vida que domina o espí­ rito dos sábios. Mas, a par dessas raras personalidades, quantos temos desses falsos sábios para quem a vida está limitada ao hori­ zonte das suas provetas, que não sabem destacar-se dos seus livros, que generalizam apressadamente as suas descober­ tas, pequenas ou grandes, e que mutuamente se sagram como os pilares dum pensamento, duma ciência, duma filosofia 66

que os desintegram da indispensável harmonia universal. Eles revelaram, ou julgam ter revelado uma parcela de verdade sobre a qual edificam apressadamente os sistemas mais ou menos coerentes que nós sofremos. E estão de tal modo enfatuados da sua superioridade que desdenham os seus contemporâneos não iniciados, e o longo passado a cujos ensinamentos continuam obstinadamente fechados. As conquistas da ciência no domínio mecânico e buro­ crático, essa ilusão de progresso que ilumina com uma falsa luz toda a nossa época, lisonjeiam o amor próprio até dos ignorantes, que se regozijam beatamente por haverem nas­ cido no século das luzes. E encontram-se sempre bastantes políticos astutos para sentirem as possibilidades de explo­ ração que encerram essas novas crenças. A vossa escola, senhor Long, é um dos instrumentos dessa ilusão. Para abolir um passado de servidão e de opressão — como vê, eu falo como os grandes convencionais que pelo menos teriam tido alguma desculpa — era necessá­ rio colorir o presente e iluminar o futuro com luzes pro­ missoras. Pediu-se à escola que se encarregasse da tarefa, e filósofos, escritores, sábios participaram na edificação duma nova concepção da vida, que só tem o mal de ser imposta a partir de cima, sem ter em conta aquilo que existia e que nem sempre era mau, com as suas bases pro­ fundas e seguras; e de haver chapeado, sobre uma civilização de tramas ancestrais, uma concepção do mundo acanhada e artificial, com os seus ritmos anormais, os seus interesses e os seus ideais. Então produziu-se uma separação perigosa entre á vida familiar, os hábitos inextricáveis de alimentação, de traba­ lho, de jogo, entre todo esse complexo profundo, e também psíquico, por vezes subconsciente, que nos prendem mau grado nosso a um solo, a uma casa — ainda que esta seja um pardieiro — a um vale, a uma sombra, a uma atmosfera, a um atalho, e, para além desse solo e desse atalho, a um passado e a uma raça; produziu-se pois uma separação peri­ gosa entre todos esses elementos essenciais que se julgou poder eliminar, e as tentativas aventurosas duma ciência, 67

duma cultura, nas quais nem tudo é falso, mas que consti­ tuem como que uma ruptura de equilíbrio, como uma tenta­ tiva de movimento autónomo, como um desses mísseis que os cientistas projectam enviar para a Lua e que partiria com uma força inicial espantosa, força que perderia à medida que se afastasse da terra, e que estaria ali, em suspenso, pronto a cair novamente sobre a terra para aniquilar a própria ideia por momentos realizada com uma audácia digna de um melhor fim. Os vossos homens de ciências, os vossos filósofos, os vossos pedagogos, acreditaram que era possível tomar os seres humanos tal como tomavam a matéria bruta e amassá-los nos seus laboratórios, combiná-los para formar outras vidas, do mesmo modo como criam novas ligas. A indústria, símbolo da nova economia, prosseguia a operação no plano material; eles eram por seu lado encarregados da tarefa intelectual e moral. Eles pensaram — e convenceram-vos disso — que era possível arrancar, por assim dizer pelo raciocínio, pela demonstração lógica, servindo-se em especial da alavanca da inteligência, que era possível arrancar os homens à cultura, ainda que empírica, que os impregnou, ao solo que alimentou a sua seiva, a todo esse decisivo e per­ manente passado que é para a vida social o que a memória é para a vida individual, tenaz como essas raízes que cedem por um momento quando se abate a árvore, mas que ime­ diatamente voltam a agarrar-se à terra criadora para enviar ainda ao tronco ameaçado um pouco de vida. Este erro monstruoso vale-nos agora um perigo igualmente mortal: a reacção feroz dos timoratos, dos enfezados e dos políticos assustados com o verdadeiro progresso e que quereriam fazer-nos crer que a idade de ouro, que não soubemos descobrir para a frente, está atrás de nós, que o progresso e a ciência falharam e que devemos voltar-nos para o passado para construir segundo outras normas, que não fariam mais do que produzir um novo desequilíbrio. O homem saberá, esperemos, agir de forma diferente desses animais acossados que se lançam cegamente para um 68

lado e avançam em frente, mas que, em breve chegados à beira dum precipício, recuam assustados para se lançarem com a mesma cegueira para o lado oposto onde esbarrarão finalmente com um precipício talvez mais temível ainda. Não basta rejeitar em bloco a tradição ou o progresso, mas adaptar inteligentemente o nosso comportamento às necessi­ dades da nossa época. É necessário que encontremos, para o futuro próximo, soluções que se fundamentem no presente real, descendente e herdeiro do passado recente e do con­ tributo longínquo das gerações que fertilizaram o nosso solo, que construíram as nossas casas, idealizaram a nossa língua e o nosso espírito. O progresso deve fazer-se por assim dizer em função do passado, evitando esse corte cujos perigos medimos, esse corte que nos isolou da vossa ciência, privando-a da nossa seiva e do nosso esforço. A Escola poderá fazer muito por isso. Mas ser-lhe-á necessário antes conhecer e julgar à sua medida esse pre­ sente e esse passado, descobrir aquilo que eles trazem em si de dinâmico e de construtivo, e fazer surgir também as grandes linhas de vida, as essenciais forças subterrâneas que serão as alavancas indispensáveis para as criações que se impõem. Duas tarefas igualmente urgentes a realizar com método, mas também com a noção exacta da nossa humil­ dade, das nossas fraquezas e das nossas grandezas.

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14.

0 ENSINO DO PASSADO

A CULTURA POPULAR DE OUTRORA ESTAVA CONDICIONADA POR MODOS DE PENSAR. POR UM JOGO ORIGINAL DA INTELIGÊNCIA HUMANA QUE TINHAM AS SUAS VIRTUDES E O SEU VALOR, E QUE MERECIAM MELHOR DO QUE O DESDÉM DE QUE TÊM SIDO VÍTIMAS Chegou a noite. Parece que o céu nos fecha os olhos para nos facilitar esse olhar interior com a lenta ressurreição das recordações. — O passado? — continuava Mathieu... Conheço melhor do que vocês, acreditem, os malefícios da triste noite das almas, da inquietação permanente ou da frágil segurança dos seres para quem tudo é ainda mistério na vida; do reino dos espíritos, do diabo, dos deuses e dos anjos; ou dessa magia moderna a que se chama sorte — ou azar — com as suas práticas desconcertantes que são como que a negação dos nossos conhecimentos comuns. E também eu aspiro ao reino da luz, mas da luz verdadeira, e não dessa claridade artificial, tão falaciosa e acariciante como os clarões enganadores que desencaminham nos nossos velhos contos as crianças imprudentes. Conheço as fraquezas do passado, mas sei também as razões que fazem com que por vezes o lamentemos. Sei o que havia outrora no povo. Aprendi pelo meu pai e pelos velhos que se compraziam em contar-mo, o que era, há cem anos e mais, a vida de aldeia, com as suas taras para com as quais nós não temos geralmente a mínima indulgência, 70

mas também com o seu espiritualismo e a sua humanidade, com a sua «cultura» original e tenaz. — Não vejo grande vestígio disso à nossa volta... É um passado bem morto!... — Isso é um facto. E uma consequência!... Todas as forças, políticas, económicas, sociais, filosóficas se uniram desde há mais de um século para despersonalizar as nossas aldeias, para ridicularizar as veleidades criativas dos me­ lhores dentre nós, para desencorajar todas as tentativas locais em proveito duma vasta empresa, tão geral que esquecia por isso o particular. Temos assistido aos últimos sobressaltos dessa luta. Conhecemos uma aldeia cujo padrão de vida dificilmente se pode comparar, é certo, ao que era ainda há pouco em vésperas da guerra. Porque quase não há medida comum. Bens e vantagens a que damos muita importância ainda não existiam, ou estavam reservados a alguns privilegiados, mas o povo tinha em contrapartida alegrias e satisfações que nós perdemos. O que há de certo é que, feitas as contas, esta aldeia não era sombria e morta como o é desde que grassam os vossos conhecimentos escolásticos e os vossos princípios de vida tão acanhados e, mau grado a sua aparência, tão insuficientemente racionais. Hoje, quando os jovens se reúnem, e raramente o fazem a não ser no café, excluídas as raparigas, para uma bisca automática, não sabem como «passar o tempo» se não tiverem um rádio a berrar ou um piano mecânico. As próprias velhas acabaram por se persuadir de que as histórias, os jogos, as tradições de que se alimentou a sua juventude não têm actualmente valor e de que há nas páginas dos jornais ou nas telas dos cinemas mistérios muito mais comovedores. Ora certos serões eram outrora verdadeiros serões recreativos. Havia os organizadores de jogos, de espírito fértil e empolgante, que sabiam apaixonar todo um círculo de con­ vidados com actividades variadas de farsas, adivinhas, contos, lendas, baladas, nas quais participavam todos os presentes. Havia sobretudo os contadores. E não apenas as mães 71

que contavam e recontavam para pequenos e grandes essas histórias por assim dizer fundamentais, que são de todos os tempos e de todos os países, mas que a fantasia e a tradição vestem de cor local, esses Pequenos Polegares, e esses Gargantuas, esses pássaros azuis e esses gatos de botas que são a verdadeira Lenda dourada do povo. Alguns velhos recriavam para nós narrativas outrora ouvidas e das quais não haviam esquecido a mais pequena das peripécias; e os jovens, também à maneira tradicional, inventavam atrevida­ mente contos que encantavam o auditório. Como inventavam eles? Talvez ruminassem longamente a sua criação durante o dia quando, com uma corda debaixo do braço, sozinhos sob o sol de Inverno, iam buscar um molho de ramagem, ou quando seguiam o seu burro mais do que nunca pacífico e melancólico. Não se tratava para eles de tomar notas pois que não conheciam uma letra; mas tinham ao seu serviço uma memó­ ria duma amplitude e duma fidelidade que hoje se conside­ rariam como surpreendentes. Eles criavam positivamente, à medida que falavam, considerando o mistério e o esplendor dos seus ditos pelas próprias reacções dos espectadores, de olhos brilhantes ou ferozes, de frontes marcadas de espanto ou de temor, pelos gritos retidos ainda antes de esboçados, pelas explosões apaziguantes de lágrimas ou de risos. Eles conheciam a arte de conduzir os seus efeitos, de satisfazer como que a conta-gotas uma curiosidade sabiamente atiçada, de repetir e de reforçar as situações dramáticas. Os seus contos iam aliás modificando-se, adaptando-se, melhorando a cada repetição, prolongando-se ou simplificando-se segundo as circunstâncias. Quando se fala de contos, pensa-se naturalmente nessas pequenas histórias que ocupam uma ou duas páginas dos vossos livros, ou que se enquadram num canto inutilizado do vosso jornal. Os seus contos eram por vezes verdadeiros romances, que duravam duas ou três horas, tanto tempo como o que duravam a acha e a provisão de lenha, e que por vezes tinham continuação na noite do dia seguinte. 72

— Como os trovadores! Os próprios temas não eram sem dúvida mais do que uma ressonância das grandes cor­ rentes que percorriam a França, como hoje esses «cantores» que nos admiramos de ver surgir simultaneamente, seme­ lhantes no fundo mas diferentes na forma, nas mais diversas regiões do país. — Nunca se sabe ao certo. Produzia-se sem dúvida nenhuma uma interpenetração cuja profundidade dependia do talento e da originalidade do contador, das condições e das circunstâncias que presidiam a essa recriação. Havia certamente, em todo o caso, uma quantidade de contos que eram específicos da nossa região e da nossa gente, e lamento não possuir duma forma ou doutra alguma prova disso. — Esses contadores deviam ser indivíduos particular­ mente dotados e inteligentes. Noutros tempos, eles teriam sido os elementos duma elite... — O que a nossos olhos lhes dá um valor muito parti­ cular, é justamente o facto de que, na vida de todos os dias, eles se não distinguiam absolutamente nada dos seus contem­ porâneos. Se os tivessem visto, lavrando ou cavando, ou esgaravatando a terra com os dedos empedernidos; se se tivessem cruzado com eles, miseravelmente dobrados sob o peso dum incómodo fardo de palha, nunca teriam suposto que se tratava desses contadores de olhos brilhantes, que eram capazes de empolgar e de seduzir, durante várias noites, toda uma multidão de seroeiros... A característica dessa época que precedeu para o povo as vossas tentativas de cultura formal, era, sobre um fundo de tradição, o poder criador dos indivíduos e a sua memória colossal. Poder criador! Eles eram o oposto exacto da minha sobrinha cuja his­ tória já vos contei, que não sabe mais do que seguir e macaquear porque nela se extinguiu a centelha dessa divina faculdade. Eles criavam porque viviam, tal como a árvore dá frutos, semelhantes é certo aos dos anos anteriores e no entanto únicos na sua individualidade, e renovando para nós, em cada Outono, o mistério da fecundidade. 73

Esse é, asseguro-vos, um bom hábito para adquirir e para conservar. Recordo-me que em jovem tinha começado, também eu, a inventar contos. Era como que uma espécie de exaltação: enquanto guardava os borregos, construia no meu espírito a trama da minha história, banal talvez na origem, mas necessariamente impregnada na sua forma pelo ar que eu respirava, pelo ruído cantante da água que se desfazia nos arcos da ponte, pelo balido fresco dos cabritos. À noite, perante os amigos que me solicitavam, sentia aguilhoar-me uma imaginação eufórica que me dava audácia e eloquência. Em tudo há, como vêem, um hábito a adquirir. Se eu tivesse podido continuar nesse sentido, talvez me tivesse tomado também um contador... A Memória! Parece que os vossos mestres de pedagogia raciocinaram muito e escreveram demoradamente sobre este assunto, e vocês têm a lamentar, eu sei, a má memória dos vossos filhos. Então, inventam exercícios engenhosos para a excitar, para a fixar, para a desenvolver. Sem grande sucesso!... Por meu lado, creio que aquilo que enfraquece a memória dos homens do nosso tempo, é o conjunto e a diversidade dos meios que a civilização elaborou para secundar, para substi­ tuir, para aliviar essa memória. Temos um papel e confiamos ao papel um pensamento, uma nota, uma recordação para os quais se teria igualmente encontrado na cabeça um refúgio seguro e fiel. E isto é já como que uma perversão e uma traição. O escritor projecta nos seus escritos as flutuações e as subti­ lezas das suas ideias, mas logo que estas são materializadas por sinais, são como que uma parcela do homem que se tivesse separado dele, exteriorizando-se e fixando-se. E, efectivamente, o escritor nunca mais se preocupa com elas, a não ser para a sua difusão. A sua memória encontra-se assim liberta, mas o seu espírito deixa também assim de ser enri­ quecido. O que ele ofereceu aos outros por intermédio dos sinais imutáveis está perdido para a sua personalidade. O contador conserva em si os pontos de referência; a criação permanece viva, apenas adormecida, mas capaz de 74

despertar, de passar novamente pelo entendimento, de desa­ brochar aos fogos renovados da imaginação para se oferecer transformada talvez mas aperfeiçoada, a novos auditores. É essa a forma normal da memória, aquela que não é mais do que uma peça preciosa do maravilhoso organismo humano. — E no entanto a escrita foi inconstestavelmente um dos motores essenciais da civilização. A prova disso temo-la aí: da imaginação genial dos seus contadores analfabetos, nada nos resta hoje. Tudo teve que ser incessantemente reconstruí­ do de geração em geração, enquanto a ciência humana não veio prolongar, como um eco ultrapassando as gerações, a memória demasiado limitada dos homens. — Eu sou o primeiro a lamentar que não tenha havido, no tempo de que vos falo, um escriba capaz de confiar ao pergaminho ou ao papel as realizações dos nossos contadores. Mas ainda aqui devemos distinguir esse trabalho de escriba da tarefa artística, criativa e complexa do próprio autor. Por­ que assistimos depois a uma lamentável — e de resto inevi­ tável — mistura das duas funções: a leitura e a escrita facili­ taram certamente aquilo a que poderíamos chamar já a produ­ ção intelectual, mas isso à custa da concentração, à custa dum permanente polimento, e também à custa de todo o dinamismo vivo duma, obra que permanece como à respiração fecunda da humanidade. Certo sábio dizia que a língua é a melhor e a pior das coisas. Esta opinião é ainda mais exacta quando se trata das técnicas modernas que fixam, conservam e transmitem as ideias e os conhecimentos: livros, jornais, cinema, rádio, terei ainda muitas oportunidades de vos falar deles. Não é que eu esteja contra as novidades: estou contra o mau uso que delas se pode fazer. Não são essas técnicas, em suma, um aperfei­ çoamento, ou antes um prolongamento das mãos do homem? Há mãos benditas por todo o bem que fazem e o alívio que levam àqueles que procuram e que sofrem; mas há também mãos malditas, que se deveriam cortar pelos pulsos, segundo a parábola de Cristo. 75

Se a criança, se o adolescente, se o homem não foram habituados, treinados na utilização humanamente desejável desses meios ao serviço do conhecimento e dos progressos do espírito; se eles não foram prevenidos contra esses prolonga­ mentos mecânicos das suas mãos; se o pior deve aniquilar o bom, quanto não devemos nós desconfiar dessas possibilidades que a ciência pôs à nossa disposição sem nos indicar o seu uso, como dessas máquinas delicadas e perigosas que se for­ necem sem as indispensáveis indicações de uso. — Tem inteira razão. Por isso nos empenhamos nós, nas nossas escolas, em dirigir as nossas crianças no bom senso, mas não somos de modo nenhum os senhores exclusivos nem mesmo decisivos do seu destino. — Isso seria uma maneira demasiado simples de vos desculpar, sob o pretexto de que não sois os únicos a fazer mal. Talvez eu esteja errado, mas não tenho por hábito fazer das minhas e depois lavar as mãos das consequências possíveis dos meus actos. O operário mercenário, se perdeu toda a consciência, se desintegrou os seus gestos do grande devir cósmico, pode semear a semente sem se preocupar com aquilo que ela venha a ser. Mas nós, camponeses, quando confiamos essa semente à terra, não podemos admitir que ela esteja perdida, que a invadam as ervas daninhas, que lhe pilhem os frutos antes de amadurecerem. Isso são coisas contra a natureza, que nos fazem mal como se o nosso próprio corpo fosse assim efectivamente mortificado. Vocês também não têm o direito de lançar a semente sem saber em que se tornará ela. Não têm o direito de habituar essas mãos, que estão ao mesmo tempo na origem das técnicas que as prolongam e do espírito que as idealiza, a um uso fútil, por vezes mesmo malsão, ou imoral. Todo o gesto, todo o acto, todo o entusiasmo adquirem em vós uma importância excepcional justamente em consequência da sensibilidade extre­ ma dos seres de que estais encarregados. Não se trata de proce­ der inconsideradamente, ao sabor das modas e das teorias, e depois de nos desculparmos das consequências da nossa 76

intervenção, ou de tentar corrigi-las com prédicas inúteis e sanções supérfluas. Que diríamos nós dum homem que semeasse o seu trigo em Agosto, sem cuidar de saber se as espigas, nascendo prematuramente no Outono, não irão ser inevitavelmente queimadas pelos frios do Inverno; ou que semeasse em Maio quando a terra fez já explodir a sua seiva; que plantasse em sequeiro as árvores e as sementes de peque­ nas raízes que têm necessidade da humidade do vale, e perto do ribeiro as árvores poderosas, inimigas apenas da geada? Acham que lhe bastaria depois acusar Deus, os ele­ mentos, as sementes ou as plantas, aqueles que os puse­ ram na terra, e aqueles que os viram agir sem protestar? Aconselhar-se-lhe-ia apenas uma lógica maior, uma docili­ dade mais humilde às leis gerais da natureza, e um sentido elementar da vida. — O seu rigor é justificado. Só que as reacções ao nosso ensino são mais complexas e menos luminosamente convincen­ tes do que as reacções da natureza aos vosos erros, e nós pode­ mos, com a maior boa fé do mundo, não lhes ser sensíveis. Bastaria talvez que um sábio nos detivesse á beira do caminho para nos fazer reflectir sobre a sorte de determinada planta que estiola, sobre uma outra que cresce inconsideramente, ou sobre esses frutos que secam antes de amadurecerem e caem prematuramente. Aprenderíamos então a julgar mais sadiamente sobre as consequência dos nossos actos... Os pen­ samentos verdadeiros irradiam, e um belo dia os seus clarões tornaram-se tão brilhantes que iluminam vitoriosamente aque­ les que se tinham habituado à noite e ao erro... E é esse o motivo por que escutamos a sua palavra com tanto respeito, mesmo quando ela nos fustiga e nos mortifica... Isso é sem dúvida necessário...

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15.

OS CAMPONESES POETAS

ESCUTAR A VOZ DO PASSADO, IMPREGNAR-SE DOS SEUS ENSINAMENTOS, PROGREDIR PRUDENTEMENTE, DESCONFIANDO DAS ILUSÕES E DAS MIRAGENS Mathieu levantou-se e esboçou alguns passos sobre a praça como se fosse regressar. — Falou-nos bem dos contos, retomou o senhor Long. Mas há mais do que os contos na vida... — As poesias?... Conheci um poeta camponês... Ele não assumia poses inspiradas; não tinha gabinete de trabalho imponente, próprio para a meditação. Era já muito velho nessa época, mas deviam tê-lo ouvido dizer, sempre com a mesma chama nos olhos, e um dialecto tão saboroso e tão expressivo, as poesias que havia composto cinquenta anos antes... E revivia-as, assegu­ ro-lhes, quando no-las dizia; revivia-as como se as recom­ pusesse, secundando o ar de juventude que elas traziam em si com uma atmosfera de ingenuidade nostálgica que dava aos seus olhos então enterrados nas órbitas dessecadas um clarão que era para nós duma comovente eloquência. Ele comprazia-se em contar-nos como havia composto os seus poemas. Quando saia de manhã, com um cesto no braço, o sol aureolava os montes, alcançando depois insensivelmente as árvores do vale. O ar era fresco e húmido... cantavam os pássaros; o poeta sentia-se preso duma irresistível necessidade de fazer como eles. E assobiava essa quente amizade, essa intima pertença, que pareciam exalar-se do que nela havia de melhor; depois, seguiam-se as palavras, hesitantes ou tumul­ tuosas, adaptando-se lentamente à música clara que acabava de nascer... Era um pouco como se a humidade perfumada que subia dos caminhos, os gritos do lavrador estimulando os 78

seus bois, o odor difuso das silvas queimadas, o balancear do burro à sua frente, se casassem e se equilibrassem na sua alma para darem a sua forma e a sua perfeição ao poema que era agora como uma jóia, e para sempre!... Ele era poeta... Outros eram cantores e criavam as suas canções. Hoje não se sabe mais do que repetir aqui as árias che­ gadas de Paris e cujo refrão se impõe como uma moda mecâ­ nica. Dir-me-ão que isso é a marca duma época em que tudo se despersonaliza sob efeito duma ciência que encurta as dis­ tâncias, abate barreiras, aproxima os povos. Teoricamente sim. Praticamente, vejo nisso sobretudo a generalização temí­ vel da tendência para deixar de pensar, para repetir, para imitar, para se parecer com os outros, e para negligenciar cada vez mais esse divino poder de criação que é como que a centelha duma dignidade sobrehumana. Nunca ouviram essas canções compostas nas nossas aldeias por homens duma outra era? Eram como que o jornal can­ tado da região, de que cada estrofe tinha o seu ritmo familiar, por vezes com comoventes arrebatamentos líricos e sentimen­ tais; ou então diziam a nostalgia dos soldados que ficavam durante tão longos anos na guerra que já nem reconheciam, ao regresso, o caminho de suas casas. Podemos verter também uma lágrima por esse passado. E os jogos? Havia todos os jogos tradicionais de que até a lembrança se vai apagando perante as distracções modernas, mas que alguns piedosos amantes do passado felizmente recolheram e consignaram em livros. Neste domínio, tal como para os contos e as canções, a criação tinha a sua parte. Provérbios e adivinhas, em especial, transmitiam-se de geração em gera­ ção, impregnando-se de passagem com a marca genial dos melhores entre o povo. — Que esse lado criador e dinâmico do passado tenha existido tal como o recorda com emoção, não duvido. Isso não poderia no entanto fazer-nos esquecer a miséria, o erro, o obscurantismo, que são também eles os estigmas duma época. — Uma vez mais, não procedo de modo nenhum a uma 79

apologia fanática e parcial do passado; nem sequer pretendo que. feitas as contas, a vida tenha sido mais eficiente e mais aceitável do que nos nossos dias. Quanto à miséria e ao obscu­ rantismo, tudo é relativo; suportamos ainda uma parte sufi­ cientemente infamante deles para julgarmos com menos rigor o esforço social e humano dos nossos pais. Quis apenas insis­ tir no facto de que nem tudo é mau no passado, que nem tudo deve ser negligenciado ou rejeitado no saldo das lutas condu­ zidas pelos homens na procura obstinada do bem-estar e do ideal; e que uma ciência, uma filosofia, uma educação que pretendessem separar-se dessas raízes poderosas e determinan­ tes correriam o risco de se transviarem, como esses petizes que, desdenhando dos ensinamentos dos pais como o coelho da fábula, se lançam na vida com uma cega temeridade, e são repelidos ou esmagados. O progresso — o verdadeiro progresso individual, moral e social, e não apenas o superficial progresso material e téc­ nico— não data de hoje. Homens procuraram antes de nós, com tanta — e talvez mais — lealdade, devoção, desinteresse e génio. Partindo mais de baixo, nem sempre puderam ele­ var-se ao esplendor dos conhecimentos que alguns se gabam de haver atingido nos nossos dias. Os seus méritos nem por isso eram menos consideráveis. Eles descobriram certamente alguns princípios de verdade, de que nós vivemos; começaram a desentulhar os caminhos do futuro. Devemos acreditar que os processos por eles usados não careceram totalmente de eficácia. Eles tinham as suas insuficiências e os seus perigos. Quem poderia pretender que a ciência contemporânea não tem os seus? Escutar a voz do passado; penetrar-se dos seus ensina­ mentos para as tarefas futuras, progredir prudentemente, des­ confiando das ilusões e das miragens, aí temos, segundo me parece, para muitos investigadores, e também para nós, uma linha razoável de conduta. Aí temos mais um marco lançado. Não há pressas, não é verdade? Continuaremos as nossas reflexões num próximo dia.

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16.

OS PERIGOS DA ESCOLÁSTICA

NADA É TÃO TENTADOR, NEM TÃO PERIGOSO, PARA OS EDUCADORES COMO A ESCOLÁSTICA. ELA CORTA A ÁRVORE DAS SUAS RAÍZES, ISOLA-A DO SOLO QUE A ALIMENTA. PRECISAMOS DE REENCONTRAR A SEIVA Era numa esplêndida tarde de Maio. No vale e junto à aldeia, as macieiras, as pereiras eram como imensos ramos de festa; a erva dos prados estava salpicada de brilhantes estrelas; alguns lilases inebriantes assomavam as suas cabeças cónicas sobre a vedação dos jardins. O rochedo estava vestido dum tufo dourado sobre fundo verde escuro: era a sumptuosa magia das giestas em flor que exaltava o vende áspero das azinheiras. Período de enlevo! Raramente para os adultos, infeliz­ mente, que já não sabem gozar as verdadeiras e simples bele­ zas porque sempre se misturam às suas sensações raciocínios interessados e a sombra parda dos cuidados da vida. Só as crianças participam totalmente nesse milagre da Primavera. Elas chegavam à escola com os sapatos todos enlameados pela sua corrida nas clareiras destemperadas, à procura dos jacintos e dos narcisos que crescem abundantemente nos cantos gene­ rosos de erva viçosa; uma rapariguinha tinha apanhado um ramo de pessegueiro florido, partido pelo vento; alguns rapazes seguravam prudentemente os seus bolsos trasbordantes de flores de giesta das quais se serviam à guisa de confetti para encher a boca entreaberta das rapariguinhas tagarelas... O senhor e a senhora Long não eram no entanto insen­ síveis a esse entusiasmo. Sentiam a necessidade de caminhar contra o vento, de seguir os atalhos invadidos a pouco e pouco pela erva nova e onde as sarças escondem as últimas violetas, 6

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de se misturarem a toda uma população que se agita e se anima como as abelhas ao nascer do Sol. A natureza era para eles um esplêndido e mágico ramalhete que se nos oferece, de que desfrutamos, que enche por um instante a cozinha ou o salão, sem afectar doutro modo o próprio ser que continua uma vida artificialmente independente da revolução das esta­ ções. Para Mathieu. como para todas as pessoas da terra, aquilo era algo de mais íntimo, de mais profundo. O homem não se detém decerto para colher um ramo de violetas ou para encher as mãos de flores raras, mas vive a Primavera; sente subir a seiva; a explosão de um botão, as folhas nascentes nas jovens árvores, os primeiros amentilhos que caem das noguei­ ras, misturam-se à sua vida, fazem parte do seu processo de pensamento, são elementos do seu futuro. O citadino que passa julgá-lo-ia insensível à magia primaveril porque ele não leva para casa uma parte dessa riqueza da qual disfruta no próprio local, intensamente. Tudo isso está aliás misturado às preocupações do tra­ balho, que cresce com os dias, e também às excessivas fadi­ gas que chegam a atenuar a sensibilidade e a fruição. Mathieu SENTE a Primavera. O senhor e a senhora Long vêem-no, compreendem-no e tentam desfrutar dela por retalhos. É esse o motivo por que exclamam frequentemente ao subirem para as Maisons-Vieilles, na companhia de Mathieu que vai levar um carregamento de estrume. E o burro carre­ gado avança com dificuldade, dir-se-ia que com um sentimento de mágoa pela opulência dos prados e o vigor excitante das luzernas. — Vê, senhor Long? Toda esta natureza, rude e dura ontem, hoje opulenta, nos marca irremediavelmente; os nos­ sos sentimentos e até os nossos pensamentos impregnam-se deste ritmo lento dos nossos animais, deste perpétuo recome­ çar da vida, do espectáculo da planta que nasce, cresce, flo­ resce, frutifica e seca, do infinito do céu que temos sobre as nossas cabeças. Outros sofrem influências diferentes raramente tão favo­ ráveis, mas são menos marcadas por elas. Nós nascemos num 82

certo meio, que é aquilo que é. Contraímos na nossa primeira infância, hábitos cuja marca nunca mais se extinguirá. Os modos de vida material, intelectual, moral e técnica em que nós somos formados nas nossas famílias e nas nossas aldeias — ou nas casas luminosas dos arredores citadinos, nos casebres dos bairros populosos ou nos blocos das cidades tentaculares — esses modos de vida serão tão determinantes para a nossa orientação futura que nos será muitas vezes impossível liber­ tarmo-nos do seu domínio. Que esta realidade incomoda aque­ les que pretendem modelar à sua vontade os corpos e as almas não oferece dúvida. Eles são aliás tão insensatos nesse aspecto como o ferreiro que aquecesse e reaquecesse o ferro, batendo-o e amassando-o, para depois se espantar que tanta habilidade, tanta ciência e tantos esforços não pudessem man­ ter no metal essa bela cor de um branco avermelhado, que irradia ao sair da forja, mas que lhe não é natural. Na esperança de fazerem mais depressa coisas novas, a fim de terem maior liberdade de acção para orgulhosas e arbitrárias construções, os vossos mestres tentaram temerariamente cortar a árvore das suas raízes, contando modificar assim a contento dos políticos, a cor ou o alcance da folha­ gem, o esplendor das flores e o sabor dos frutos. Mas a árvore murchou e com ela se estiolaram todas as inebriantes pro­ messas: os frutos não foram mais do que abortos enrugados e insípidos, ou monstruosamente deformados, disformes, dege­ nerados cujos cuidados exteriores não conseguem restabelecer o equilíbrio desde que lhe falte o luxo vivificante da seiva materna. É essa no entanto a louca operação que a escola contem­ porânea tentou fazer. Julgou-se que era possível impune­ mente e com proveito, arrancar a criança à sua família, ao seu meio, à tradição que a incubou, ao ar natal que a banhou, ao pensamento e ao amor que a alimentaram, aos trabalhos e aos jogos que foram as suas experiências preciosas, para a transportar autoritariamente para esse meio tão diferente que é a escola racional, formal e fria, como a ciência cujo templo quereria ser. 83

É este talvez o maior drama — e vocês nem sequer o suspeitam! — o erro fundamental que suscitará e necessitará práticas que vos são próprias e que vos espantareis em seguida por reconhecer inoperantes e perigosas. Os vossos alunos acabam de abandonar a cozinha sombria e suja, mas quente e viva; os seus sapatos, cujas rugas pro­ fundas e endurecidas são também o produto dos caminhos pedregosos da aldeia, ressumam ainda o cheiro do estábulo onde foi necessário levar o vitelo a mamar: as suas roupas cheiram a palha e a madeira bafienta... Ao passarem pela fonte, abraçaram amorosamente o burrinho que acompa­ nhava, impulsivo e lunático, os animais ao bebedouro. Antes de passarem o limiar da aula, lançaram um último olhar cheio de inveja e de pesar a um pequeno rebanho de cordeiros e de ovelhas que partiam para os campos. Gostariam tanto de pendurar ao ombro o saco do jantar, agarrar um botão e seguir o pastor! A porta voltou a fechar-se e, no interior desses muros sabiamente vestidos de mapas e de quadros, vocês pregaram-lhes uma moral que lhe é estranha, senão indiferente; ofere­ ceram-lhes, ou impuseram-lhes a leitura de textos que ficavam a cem léguas das suas preocupações vivas; vocês tentaram lições que, bem o sabem, deslizavam sobre os espíritos que tão raramente eram atingidos ou atraídos. Acaso tentaram por vezes saber os temas profundos das tão numerosas distracções dos vossos alunos? O canto dum galo, o passo irregular duma burra descendo o caminho pedre­ goso, o ranger dum regador sobre as banas de ferro da fonte ou muito simplesmente uma nuvem que passa pela frente do Sol e que ensombra bruscamente a sala, bastam para romper esse encanto factício que vocês procuram criar... A seiva já não circula na vossa escola, e por mais que façam apenas obterão, também vocês por esse motivo, produtos raquíticos e enru­ gados. .. Podeis embelezar as vossas histórias, contá-las com a vossa voz o mais deliciosamente matizada, tentar captar o interesse dos vossos petizes com jogos, imagens, canções, cinema!... Tudo isso será trabalho perdido se não reencontra­ rem a seiva!... E esta não parte da vossa ciência pedagógica: 84

circula a partir da velha cozinha sombria, do caminho pedre­ goso, da cabeça nova e lustrosa do frango, e do rebanho cabriolante ao sair do curral. — Você é demasiado radical e demasiado severo... Con­ fesso-lhe que as nossas crianças entram com prazer na nossa escola e que nela trabalham com alegria... — À superfície, sim! Observe que não subestimo nem a vossa competência nem a vossa devoção, nem os vossos esfor­ ços corajosos para corrigir aquilo que a vossa formação, que os regulamentos que vos dominam, que os hábitos escolásticos, os livros, vos impõem, ainda que por vezes mau grado vosso. Mas esse pouco mais ou menos ilusório não nos deve satis­ fazer, nem a vocês nem a nós. Assim, em vez de nos gastarmos inutilmente em descontentamentos e incompreensões recípro­ cas, é preciso procurar cavar mais fundo, até às linhas essen­ ciais de vida que regenerarão naturalmente a vossa escola logo que as tenhamos alcançado. Sentem vocês como eu sinto, de que maneira, mesmo nas melhores conjunturas presentes, os vossos alunos estão no entanto desenraizados, e como vocês se esgotam tentando dar do exterior, a esses arbustos privados do melhor da sua seiva, esse dinamismo e essa vitalidade de que só a natureza detém o segredo? Mas nós podemos reencontrar essa seiva. Falei-vos da necessidade, em meu entender, de ligar a ciência de hoje à tradição do passado e às lições do presente, naquilo que elas têm de lógico, de racional e de vivo. É igual­ mente necessário ligar o ensino metódico da escola a essa cultura difusa pela qual o meio marca para sempre o corpo e as almas. E ligá-las não artificialmente, mas tão intimamente, tão naturalmente que um seja a sequência normal e o com­ plemento da outra. Não tentem construir independentemente da vida sobe­ rana. É preciso construir com a vida e na vida!... Quando, ao regressar dos campos, subo o caminho acima da escola, ouço distraidamente, sem os escutar, os ruídos har­ moniosos que nos vêm dos jardins, dos estábulos e das ruas. Um rapagão, ajudado por seu pai, carrega o burro; na soleira 85

duma porta um petiz discute com as galinhas; duas velhotas, sentadas ao Sol, tagarelam, graves e resignadas; uma rapariguinha passa, levando à sua frente cabras e cabritos. Nenhum desses ruídos destoa. Sentimos que eles participam todos na mesma atmosfera de paz e de trabalho. Só a vossa escola rompe brutalmente essa paz e essa harmonia, o que me faz sofrer como um sacrilégio... Uma criança lê... Compreende que lê não por saber o que expri­ mem os sinais, mas para se submeter a uma prova que vocês vigiam e sancionam. Depois a classe transborda num murmúrio frio, hesitante e tímido, que ressoa monótono como uma prece de igreja, um murmúrio destruído de tempos a tempos por uma pancada de régua sobre a secretária... E, bruscamente, o tom desse murmúrio modifica-se, ani­ ma-se, complica-se, vai-se amplificando. Dir-se-ia que um novo sangue o colora... Adivinho que o professor acaba de sair, tal­ vez para ir dar uma olhadela à cozinha ou conversar um instante com o senhor Presidente da Câmara... Nesse momento, a escola deixa de ser escola: torna-se uma célula da vida com o seu ritmo, os seus hábitos, os seus gritos... Vocês regressam: novamente a cor muda bruscamente, como nos teatros onde jogos artificiais de luzes produzem à vontade a atmosfera de alegria ou de tristeza, de vida ou de infortúnio, de Prima­ vera ou de frio. Eu sei: as desculpas não vos faltam, e elas são por vezes excelentes. Também o horticultor que produz belos pêssegos nocivos tem as suas desculpas, igualmente humanas. Não é com as fraquezas dos homens que nós chegaremos a cons­ truir sã e utilmente, mas descobrindo, e suscitando novas razões para compreender melhor a vida primeiro, e ajudá-la a realizar-se e a desabrochar depois. Racionalizando a sua filosofia e o seu ensino, a Escola pretendeu ultrapassar a Igreja para um dia a substituir. Mas vocês não se dão conta de que procedem como a Igreja, e que não é por acaso que as crianças têm em relação à escola as mesmas reacções que têm ao entrar na igreja e que na escola as vozes ressoam e trauteiam como ao domingo nos ofícios. 86

Esta constatação, como vêem, é muito mais grave do que julgam. Compete-vos procurar-lhe as verdadeiras causas, medir o seu erro para tentar corrigi-la. — Deformação profissional!... É simplesmente o hábito de falar diante de crianças imóveis e nem sempre dóceis, a necessidade que temos de ensinar, mesmo apesar delas, dis­ ciplinas que estão longe de as apaixonar! — Como para o abade o hábito de pregar... Estamos de acordo... Se o pai de família se pusesse também a explicar aos filhos como se atrelam os bois à charrua, ou por que movimentos delicados da mão sobre a rabiça se lavra direito e profundo, acabaria igualmente por pregar, e num tom idêntico. Mas ele sabe por instinto a fragilidade dessas prédicas. Ele vai para os campos e ali, pelo próprio trabalho, dispensa as suas como­ ventes lições, claras e silenciosas, porque o jovem boieiro é tão totalmente absorvido pelo rego que se abre à sua frente que esquece até de estimular os bois... E o pai olha religio­ samente o filho que abre a gleba em seu lugar, como um símbolo... — Semelhantes críticas contra as lições e as prédicas não são novas... Outros as fizeram há vários séculos... — E de nada serviram... É isso que quer dizer? — Não é que as tenham sistematicamente desdenhado ou combatido, mas talvez muito simplesmente porque vai uma grande distância da teoria à realização, e porque é necessário contentarmo-nos por vezes com o pouco que temos... — É porque demasiadas pessoas se contentam assim com o que há que o mundo vai para onde o levam o acaso ou os maus génios. Os educadores, mais do que quaisquer outros, devem empenhar-se primeiro em ver com justeza, e depois em fazer surgir nem que seja um vislumbre de verdade. Então, mesmo que não triunfem plenamente, enquanto os seus olhos forem guiados por esse clarão, cumprirão uma missão superior. — Sim, mas na prática é muito difícil por vezes seguir esse clarão, servi-lo e reforçá-lo, se é que se chega a desco­ bri-lo. Então cansamo-nos, desviamos os olhos, tal como os outros!... 87

Ah! sabe, é ao pé do muro que se vê o pedreiro!... — É exacto. Mas o pedreiro, sobretudo se só deficiente­ mente possui a habilidade e a ciência necessárias, tem por vezes necessidade que o aconselhem e o critiquem aqueles que o vêem erguer a sua obra. Eu não sou pedreiro, mas posso muito bem dizer-vos no entanto se o muro está construído em esquadria e aprumado, com bom material, e se poderá segurar o vigamento. Os bons pedreiros farão depois a sua tarefa.

17.

A CULTURA PROFUNDA

À PROCURA DUMA CULTURA PROFUNDA, FILHA DO REAL E DO MEIO. QUAIS SÃO AS VERDADEIRAS CAUSAS DOS DESVIOS DUMA CIÊNCIA E DUMA CULTURA QUE TRAÍRAM A NOSSA HUMANIDADE? — Vou despejar aqui, no campo, a carga de estrume, e mandar o burro embora, que regressará sozinho. Nós, por nosso lado, subiremos até ao planalto de Maisons-Vieilles... À medida que se sobe, o vale parece estender-se cada vez mais, todo verde à volta da fita azul do rio. Mathieu examina, observa, admira, tal como um proprietário que fizesse a visitantes as honras dos seus domínios: — Ali estava, sem dúvida, num passado distante erguida a nossa aldeia. Saber em consequência de que cataclismo, ou de que evolução, essas construções foram abandonadas, e aparentemente arrasadas, é coisa que ignoro e de que nin­ guém hoje na aldeia poderia fornecer a explicação. 88

Olhe-me esses lances de parede! Isto era boa construção? E estes orifícios ainda escancarados que parecem abrir-se para misteriosas masmorras, no próprio interior da rocha! Que maravilhoso posto de observação, e como se estava aqui bem colocado para vigiar o inimigo que podia surgir pelo vale ou pela planície... O tempo apagou até a recor­ dação desse passado heróico da nossa aldeia. Mas não tentou reencontrar, o senhor e os seus alunos, em alguns velhos papéis de família, um vestígio pelo menos desse passado? Não acha que teria aí como que uma his­ tória em ponto pequeno dessa luta dos homens que se conti­ nua, a uma escala pavorosa, mais feroz e mais implacável, arrasando mais minuciosamente ainda as cidades orgulhosas, não deixando mais que ruínas como marcos da história?... O mundo, diz-se, progride. Mas não parece que é para chegar, depois de desvios exaltantes, ao mesmo decepcionante nada? — É certo, reconheceu o senhor Long, que se nós, pro­ fessores, conhecessemos melhor a vida passada das nossas al­ deias, se nos fosse possível fazer reviver, para os nossos alunos, essas gerações de guerreiros, de pastores, de cultivadores, de construtores, de aventureiros, dos quais eles descendem, muitas coisas se esclareceriam e seria reforçada na sua ori­ gem essa aderência ao meio que você recomenda. Na falta disso, instruímos como podemos, com um má­ ximo de compreensão e de inteligência, utilizando livros, alguns dos quais são, devemos reconhecê-lo, verdadeiras obras-primas. — Nós «instruímos»!... Aí está!.,. Tudo depende daquilo que vocês entendem por instru­ ção. Se se trata dessa caricatura de ciência cujos princípios formais e frios inculcais, dos rudimentos duma história exclusivamente para fins políticos e partidários, dum cálculo abstracto que é como uma charlatanice de feira, então reco­ nheço que a escola soube, com efeito, aperfeiçoar os seus métodos. Desculpar-me-á, mas eu quereria saber em que medida essa aquisição serve à criança que entra na vida, em que medida a ajuda a compreender e a melhor dominar os 89

acontecimentos, a reagir vigorosa e sadiamente perante as difi­ culdades que surgem, a gostar mais do trabalho, e também a forjar, na própria vida, uma cultura e uma filosofia susceptíveis de iluminar o esforço. Acredito infelizmente que, neste domínio, a vossa escola ainda nem abordou o seu A B C... Ela fez como esse cam­ ponês orgulhoso que, atrasado nas sementeiras, mal esgara­ vata a terra para enterrar o grão para que os seus campos adquiram, como os dos vizinhos, essa cor húmida e fértil, prometedora de futuras colheitas. Mas não se pode enganar a natureza e a maturidade saberá confundir e sancionar essa cultura apressada e superficial que apenas por um momento terá iludido. Mas não sem prejuízo! Aos pais que, sem ela e antes dela satisfaziam, pelo menos empiricamente, a iniciação elementar dos seus filhos, fez a Escola crer que se encarregava dessa preparação para a vida, dessa generosa sementeira que os tornaria mais ricos e mais fortes. Temos algumas razões para não estar satis­ feitos com os vossos ofícios. Aquilo que nós damos, dirá, é no entanto melhor que nada! Como se antes da escola popular, não houvesse nem iniciação, nem formação, nem preparação para a vida. Naturalmente, quando apenas se arranha a crosta da terra, despacha-se muito trabalho e a tarefa parece depressa terminada. Nós, estamos habituados a cavar mais fundo os nossos regos, e quereríamos, também para os nossos filhos, menos brilho superficial e um pouco mais dessa cultura profunda que enche os celeiros dum frumento cheio e rico, a rebentar de vitalidade. Os homens das gerações passadas eram por certo menos instruídos do que aqueles que vós formais, mas estavam incontestavelmente mais habituados a olhar à sua volta, a examinar a natureza e as suas transformações ao sabor dos dias e das estações, a reflectir sobre os acontecimentos nor­ mais ou fortuitos. O que não quer dizer que eu preconize simplesmente o desaparecimento da escola e o regresso ao empirismo da tradição. Pode-se, com utensílios melhor estu­ dados, com um exame mais atento e mais inteligente do ter­ 90

reno, e uma força decuplicada, obter ao mesmo tempo no nosso campo a cultura profunda e a rapidez do trabalho para a extensão frutuosa das sementeiras. É isso o verda­ deiro progresso, a necessária linha de acção para os esforços humanos que nós queremos cada vez mais eficientes. Siga na Primavera um dos nossos «velhos» através dos campos onde se agita a seiva. Vê-lo-á deter-se religiosamente diante dos botões que apenas começam a engrossar, onde você não distingue nada, a não ser uma fina pele que se colora. Ele dir-lhe-á: Aqui teremos maçãs!... Esta pereira não dará nada este ano!... Se o tempo nos não falhar, come­ remos cerejas!... Meterão por um atalho fugidio entre as giestas e os buxos, entre os quais você terá dificuldade em abrir passa­ gem. Para além dessa aparência enredada que o obseca a si, ele participa na vida misteriosa da charneca: aqui passou uma lebre!... Se procurássemos neste canto talvez desco­ bríssemos a sua cama. Aqui estiveram texugos a esgaravatar a terra!... E aqui temos excrementos de raposa!... Ele ergue os olhos para o céu, segue o voo das aves, aspira o vento e diz: «Vamos ter um período de bom tempo; será preciso apressar as sementeiras!...». Compreenderá então que esse homem possui uma ciên­ cia espantosa, não só dos elementos essenciais do seu trabalho, mas também de toda a vida complexa e grave do meio que o rodeia. Cultura em profundidade!... Ora é justamente esse conhecimento intuitivo, subjectivo, sensível e vibrante, que se vai perdendo à medida que se expande um embrião de ciências formais que encantam o espírito, dão-lhe a ilusão da força, mas não sabem ainda integrar-se nele para se ajustarem às necessidades da vida e do trabalho... Ara-se uma larga faixa de terreno para cobrir a semente... — Vistas as coisas desse ângulo, teria certamente razão, concedeu o senhor Long, abalado pelo raciocínio de Mathieu. Talvez estejamos errados, mas nós consideramos o problema de mais alto. Não pensamos exclusivamente no homem no seu elemento por assim dizer material, no camponês entre 91

as suas árvores e os seus trigos, no operário na oficina ou na fábrica. Tudo isso competirá à aprendizagem, que virá mais tarde. De momento, a Escola quereria primeiro guarnecer o espírito da criança, aquecer-lhe o coração a fim de que ela esteja em condições de cumprir dignamente o seu destino de homem e de cidadão, na sociedade que a acolhe. — Compreendi muito bem, e é a determinação contra a qual me levanto... É isso mesmo: vocês vêm agarrar os nossos filhos, arrancam-nos às suas casas, aos seus campos, à intimidade familiar que os banha, para os encerrar numa sala fria onde pretendem formá-los segundo os ensinamentos de mestres que manejam talvez perfeitamente os conceitos filosóficos e abstractos, mas que se enganam certamente quando se trata da formação de crianças que não são apenas espíritos, mas também músculos, coração, sem contar com essa imponderável fantasia cujo papel construtor avaliamos mal. É um pouco como se retirassem pássaros do ninho pre­ maturamente, para os colocar em caixas cuidadas, onde encon­ trariam uma alimentação abundante mas demasiado con­ centrada, que não poderiam ingerir integralmente, e menos ainda digerir; onde não mais ouviriam o canto familiar dos pais, que procuram já imitar, onde não beneficiariam já dessa permanente solicitude que abre misteriosamente o espírito ao entendimento e o corpo à audácia. Continuo aliás convencido de que não é por idealismo nem por filantropia que se arranca assim o pássaro ao seu ninho, de que não é no seu próprio interesse que o colocam numa gaiola, mas porque aqueles que se apoderam dele vêem nisso as suas próprias vantagens materiais ou a sua tranquilidade moral. E tornei-me bastante céptico sobre as verdadeiras razões que levam os governantes às iniciativas pretensamente huma­ nitárias. Não foi porque se supunha que as crianças não eram suficientemente educadas nas suas famílias, nem bas­ tante bem preparadas para o seu destino de homens, que se construíram escolas, se treinaram e pagaram professores. É a um lote de idealistas ingénuos que devemos tais explica­ 92

ções. A verdade, é que a complicação crescente das técnicas de trabalho necessitava uma formação especial e um mínimo de iniciação e de instrução da massa do povo, sem contar a parte de preparação, de «formação» indispensável para submeter os homens a actos e a modos de vida que lhes não são naturais... O pássaro chilreava no seu ninho... É bem de chilreios que se trata! O destino é exigente e avaro... A sociedade reclama, exige conhecimentos novos, uma trans­ formação penosa dos hábitos, e sacrifícios... Mas a raça dos oportunistas e dos comerciantes é a mesma em toda a parte e em todos os tempos. Se se trata dum cavalo, diz-se francamente: «Está habituado a pernear na pradaria, mas agora que é ágil e forte, deve render-nos alguma coisa. Não vamos alimentá-lo assim para os seus caprichos... Domestiquem-me isso!... Que lhe ponham a rédea; que o habituem o mais depressa possível a suportar a sela e o cabresto!». O cavalo só compreende a ameaça quando ela é efectiva; as palavras de nada servem para acalmar ou atenuar as suas reacções. É necessário prudência, doçura e habilidade, tanto como força. Os criadores bem o sabem!... Mas para os homens, as coisas passam-se de modo dife­ rente: é possível persuadi-los de que devem aceitar a rédea, a sela e o cabresto. Aceitar? Que digo eu? Se se souber actuar, os homens solicitarão por si mesmos essas cargas, essas limitações, essas humilhações como deveres ou recom­ pensas. Dir-se-lhes-á que isso é para o seu bem pessoal, para a sua elevação e para a sua libertação intelectual, para a sua dignidade e da sua família, e, nas piores conjunturas, para a remissão dos seus pecados e para a sua beata segurança na vida eterna. Para esta tarefa de persuasão que tem algo de maquiavélico, faz-se prudentemente apelo às potências e aos homens susceptíveis de remediar filosoficamente aquilo que não seria na origem mais do que uma espécie de intrujice mercantil. Faz-se apelo primeiro aos magos, aos feiticeiros; mais tarde, às religiões e aos seus padres; depois aos cientistas, aos mora­ listas e aos filósofos. Estabelece-se uma colaboração íntima, 93

consciente ou não: os dominadores, os chefes, os senhores pagam mais ou menos generosamente os distribuidores de ilusões, aqueles que são capazes de explicar aos trabalhadores — e logicamente se lhes agrada! — a necessidade social ou divina de aceitarem a sua sorte, de irem cada vez mais longe nessa via de sujeição e de sacrifícios, e até bendizendo os reis e deuses pelas graças de que lhes fazem beneficiar! Uma explicação tão friamente iconoclasta indispunha o senhor Long que a não podia aceitar: — Oh não! Isso é atribuir às ciências, à filosofia e à escola, que dispensa os seus princípios, um papel enganador mais ou menos consciente. Como se não tivessem existido, e não existissem ainda investigadores, sábios, pensadores sinceros, e ciosos da sua independência intelectual e moral, que sabem, no momento próprio, erguer-se eles próprios contra as pretensões inumanas dos exploradores e dos opor­ tunistas da cultura! — Mas também o cavalo está agora cioso dos seus arreios brilhantes e das atenções do seu dono, e sabe defender no momento próprio a sua manjedoura bem guarnecida, e, se o pudesse, sem dúvida louvaria os progressos assim reali­ zados para arrancar à estepe os selvagens que se obstinam em correr, assustados e esfomeados... O padre pode ser absolutamente sincero, o homem de ciência pode estar persuadido de que serve a humanidade com as suas laboriosas descobertas, o filósofo de que penetra cada vez mais profundamente no conhecimento do homem, o educador de que recebeu, adquiriu e dispensa uma cultura elevada, humana e profundamente útil à elevação social. E no entanto uns e outros podem enganar-se, não no porme­ nor, não na forma por assim dizer primária da sua tarefa, mas na própria concepção, na origem e na direcção superior dessa cultura de que se julgam os ordenadores e os mestres e que não é definitivamente mais do que uma máquina de exploração ao serviço das forças maléficas que demasiadas vezes dirigem as nações. Que não nos espantemos, assim, se a multidão que escuta e que suporta se interroga por vezes, indecisa, no limiar dos 94

templos antigos ou novos; se as vítimas têm, de longe em longe, como o cavalo atrelado, uma inconsciente nostalgia ao espectáculo daqueles dos seus congéneres que ainda cor­ rem, de crinas ao vento, através das campinas; se os homens desconfiam duma cultura e duma civilização que os vão encadeando sempre com igual dureza, e se procuram por vezes, a despeito das objurgações das elites, discernir a possi­ bilidade de novas vias ou o regresso simplista às práticas dos bons velhos tempos... — Está a entrar aí num domínio que nos ultrapassa... — Pelo contrário, falo de coisas extremamente simples, e, creio, bastante compreensíveis, para quem quer compreen­ dê-las, para quem não teima numa atitude que tem certa­ mente todas as vantagens, mas também os perigos do confor­ mismo. Nós devemos — e vós, educadores, mais particular­ mente ainda — reencontrar a realidade das coisas, oculta, deformada sob a ilusão das palavras, das concepções e dos sistemas. Não são eles que conduzem o mundo. Não são as Escolas, nem mesmo as Faculdades ou as Academias que orientam e estimulam o progresso. Elas servem-no, mas tanto em mal como em bem: ou antes, seguem-no. Existiram maus génios que, favorecendo os baixos instintos dos homens, desencadearam toda uma orientação social e por vezes espi­ ritual que nem os sábios nem os pensadores puderam mais controlar. Mais valeria conhecer melhor em especial a influên­ cia dos grandes homens políticos que têm como que a intui­ ção genial do lado pelo qual se deve tomar os homens para os fazer agir num determinado sentido. E a influência desses homens políticos vai aumentando. Eles souberam pôr ao seu serviço a ciência e a cultura. Neste assunto, sei-o eu, vocês são mais vítimas do que responsáveis. Mas isso nada altera nesse destino diabólico dum pensamento generoso, de investigação desinteressada, duma razão lógica tão orgulhosa das suas conquistas e das esperanças entrevistas, de religiões que exaltam tudo quanto o indivíduo traz em si de benéfica humanidade, e que são desviadas dos seus objectivos, domesticadas, subjugadas pelas 95

forças más tão bem camufladas que já se não distingue nem o bem nem o mal. e que nos espantamos pelo vertiginoso caos em que soçobram as mais comovedoras veleidades. Vou explicar-lhe isso à minha maneira, porque dificil­ mente me debato com as grandes palavras, e os pensamentos a que vós chamais abstractos não me são familiares... Mas regressemos, se não se importa, porque tenho que ir dar de comer aos animais. Tudo é de resto tão calmo nos nossos caminhos que também neles estaremos à vontade para discutir como nestes recantos de velhos muros.

18.

O PROGRESSO TÉCNICO SERÁ FORÇOSAMENTE UM PROGRESSO HUMANO?

PORQUE É QUE A CULTURA NÃO É MUITAS VEZES MAIS DO QUE UMA JUSTIFICAÇÃO A POSTERIORI DUMA EVOLUÇÃO SOCIAL QUE PODE VOLTAR AS COSTAS À VERDADEIRA HUMANIDADE. MAS QUEM OUSA, SALVO ALGUNS RAROS GÉNIOS, REMAR CONTRA A CORRENTE E REVELAR OS CAMINHOS SALVADORES? — Nunca subiram às nossas montanhas? — Sim, em excursão!... — Gostaria que as subissem um dia na companhia do nosso velho pastor. Vê-lo-iam seguir tranquilamente os carreiros traçados pela passagem incessante, ao longo dos dias, de centenas e cente­ nas de ovelhas. Ficariam por vezes espantados de ver esse 96

homem meter com tal confiança por meio de matagais que a vós nos pareciam inextricáveis. Mas ele sabe que esses carrei­ ros são como algo vivo, que têm uma origem e um fim, e que podemos segui-los com a certeza de que conduzem onde se quer ir. Mas acontece que, ao acaso duma pancada de varapau, dum golpe de podão, os pastores, os roçadores ou os colhedores de alfazema, desbastaram, endireitaram os carreiros mais frequentados, aqueles que levam às fontes, aos abrigos provi­ sórios, aos promontórios donde se domina e se vigia todo o vale... Isso é já um progresso, direis vós: existem pequenos muros na travessia das fracturas, escadas rudimentares para cortar as encostas. Caminha-se com efeito mais à vontade. E o cão que, nos carreiros só podia tropeçar com o nariz nos calcanhares dos homens, tem agora espaço para se deter, aspirar o ar e reflectir, ou passar à frente quando sente a necessidade de partir na vanguarda em direcção ao pequeno vale. Depois quando se quis levar os burros para carregar no Villard ou no Faoul os fardos de giestas e de ramagens, foi necessário alargar ainda mais os atalhos, multiplicar os muros, não apenas cortar à mão os ramos incómodos mas arrancar árvores inteiras que prendiam as cargas. Isso fez-se de resto progressivamente, ao acaso das ocasiões e das necessidades: um homem parava por um momento a sua besta e erguia um pouco de muro; um outro, que tinha precisamente ao ombro uma ferramenta, deslocava uma grande pedra que rolava pela encosta. Quando, com o uso, esses atalhos se tornaram caminhos frequentados e que se sentiu a necessidade de os tomar quando a chuva tinha engrossado a torrente; quando se considerou bom não se limitar aos vaus, lançaram-se sobre os preci­ pícios passadeiras de madeira e mais tarde eternas pontes de pedra. Durante centenas e milhares de anos, esses caminhos bastaram aos homens até ao dia em que o progresso técnico, acelerando as relações entre as aldeias, colocou carroças ao serviço dos transportadores. 7

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Porque, na verdade, não era brincadeira transportar o mínimo de especialidades então necessárias. Os comboios par­ tiam em plena noite, os jovens conduzindo os burros carre­ gados de feijões secos, de lentilhas ou de nozes, seguindo-se as mulheres com um cesto no braço ou por vezes mesmo um pacote à cabeça. Era preciso caminhar durante quinze horas, atravessar as montanhas, cortar os vales por estreitos carreiros pedregosos, para chegar ao cair da noite à cidade. Metiam-se as bestas nas estrebarias que ocupavam todo o espaço dos belos armazéns actuais da Place aux Aires. De manhã, vendia-se a carga, e faziam-se os recados: alguns quilos de açúcar, especiarias, dois barris de vinho carregados na besta mais forte e, ao meio-dia, o comboio voltava a partir,, fazendo em sen­ tido inverso o mesmo caminho difícil. — Era com efeito uma grande caminhada!... — Não é essa a questão essencial que nos deve prender. Tanto mais que faríamos mal em nos apiedarmos da sorte dos nossos viajeiros. Eles caminhavam quinze horas, e depois mais quinze, isso parece uma prova bastante penosa para os vossos corpos gastos de citadinos e para as vossas pernas que o automóvel e o comboio desabituaram do esforço. Para fugir ou mesmo simplesmente para brincar, para desfrutar do exer­ cício natural e harmonioso do seu corpo, a lebre salta durante horas e horas através da montanha. Os nossos viajantes par­ tiam do mesmo modo, o pé lesto e o corpo flexível, apenas quebrados à sua chegada à cidade, prontos a partir de novo algumas horas mais tarde, dignos e alegres no caminho de regresso. — Mas quanto tempo perdido em relação à rapidez dos transportes actuais? — Porquê tempo perdido?... Se se encurtassem os tempos de transporte para empregar melhor noutro lado as horas assim economizadas!... Mas fez-se realmente alguma coisa nesse sentido?... As viagens não eram em si mesmas um sofrimento nem um sacrifício. Cantava-se, ria-se, viam-se novas regiões; falava-se durante o caminho ou ao acaso das paragens nas quintas com estranhos que nos davam notícias; familiarizavamo-nos 98

com outros campos, com culturas desconhecidas. E voltávamos à aldeia com a auréola daquele que viu! Não, a supressão desse comboios não é forçosamente um verdadeiro progresso. O progresso técnico não é inevitavel­ mente um progresso humano. Ele poderia e deveria sê-lo. Por que motivo o não foi sempre? É isso justamente que pro­ curo explicar. Esses transportes não bastavam ainda para pagar aquilo que se julgava serem as exigências da civilização: os com­ boios secundaram as estradas. Depois da guerra, os aviões oferecer-nos-ão praticamente as estradas do ar... — Mas eis-nos bastante longe do nosso assunto, ao que me parece... — Se queremos que um muro seja sólida e regularmente construído, não devemos recear atacar largamente pelas fun­ dações, remover a terra e por vezes alargar desmesuradamente o cabouco para contornar, desguarnecer ou consolidar as rochas encontradas. A criança apressada diz por vezes: «Para que serve!» Escava apressadamente uma linha como se para enterrar um cão, depois deita-lhe blocos e ergue o seu muro, dizendo orgulhosamente: «Olha!» Vêm as chuvas que desguarnecem as fundações; um boi guloso coloca a pata demasiado à beira para alcançar um tufo de erva... e o muro resvala lamentavelmente. O obreiro cons­ truiu superficialmente, como se faz numa sociedade apressada, que tem pressa de arrebanhar todas as riquezas. Nós, temos o hábito de construir para a eternidade. Descobrem-se ainda mil anos depois, mais sólidos do que no primeiro dia, os muros que camponeses haviam erguido para plantar as suas vinhas ou semear o seu trigo. Assim procuro eu os fundamentos sólidos e definitivos, ainda que, tenha, para os descobrir, para os tornar falantes e utilizáveis, que empreender longos desvios. Nós não somos apressados, não é verdade? Aquilo que não dizemos hoje, guardamo-lo para amanhã e para os dias seguintes. Aventurei pois uma comparação que talvez nos permita aprofundar melhor as considerações que reputo essenciais para a questão que nos preocupa. 99

Falávamos pois do progresso técnico. Efectivamente, os transportes actuais, por automóveis, comboios, aviões, as comunicações instantâneas a longa dis­ tância pelo telefone, o telégrafo ou a rádio são progressos, e progressos que têm uma inconstestável influência sobre a vida individual e social dos homens. Pensem só: no tempo de que vos falo, um carteiro que partia da cidade passava por aqui todas as semanas, servindo toda a região... E mesmo as cartas que levava eram tão raras! Mas ele dava de viva voz, à sua maneira é certo, uma ideia da atmosfera fora do nosso vale estreito e isolado. Actualmente acontece-nos saber instantaneamente o que se passa a cente­ nas de milhar de quilómetros. Semelhantes factos, de consequências tão decisivas para a vida dos homens, não poderiam ser subestimados, e ainda menos negligenciados. Que a sua influência seja, segundo os casos, favorável ou lamentável para o comportamento comum nem por isso é menos verdade que se trata de realidades — ainda que provisórias — com as quais devemos contar. Quando cavamos as fundações do nosso muro, temos primeiro que afastar a boa terra arável recentemente caída ou acumulada ali pelas águas do Outono. Se a urgência nos constrange a erguer esse muro, não no Inverno quando a terra está nua e morta, mas na Primavera reverdejante, temos por vezes como que um remorso em pisar as ervas e as flores, ou mesmo em arrancar tufos de belo trigo que são como que uma indizível promessa. Nem por isso deixamos de procurar o sólido, o seguro, o indefectível, porque pensamos não só no dia seguinte mas no infinito do futuro. Só que, logo que conse­ guimos apoiar-nos à solidez do passado e erguemos o nosso muro, juntamos cuidadosamente no cimo e na base a terra arável: talvez transplantemos mesmo aí alguns tufos de trigo ou de aveia arrancados da sua reserva de boa terra; recolo­ camos, na medida do possível, a vida no seu lugar para que o nosso muro e os seus detritos não façam no campo sumptuoso uma feia mancha negra como uma úlcera. Assim devemos nós tentar construir no domínio da for­ mação e do espírito, sem negligenciar nada daquilo que é, mas 100

sem nos afastarmos no entanto dessa harmonia do conjunto que sentimos como uma necessidade vital. Não esqueço nem a ciência moderna, nem o pseudo pro­ gressivo. nem a marca tenaz e sombria com que eles marcaram já as nossas gerações. E no entanto, partindo daquilo que está, devemos entretanto tentar construir. Não posso decidir-me a dissociar como o fazem certos intelectuais, a cultura, ou o pensamento, ou o progresso moral de toda a formidável evolução material e técnica. A Escola não poderia estar a salvo dessa corrente aparentemente irresistível que perturba os nossos modos de vida e até o ritmo das nossas reacções humanas Tal como foi necessário alargar os atalhos, depois os caminhos de carroça para permitir finalmente a passagem dos automóveis, sentiu-se a necessidade por assim dizer material de aumentar os conhecimentos técnicos das crianças. Enquanto estávamos sós, fechados no nosso vale, a nossa cultura tradi­ cional e empírica satisfazia-nos razoavelmente, e nem sequer sentíamos a necessidade de aprender a ler e escrever. Nunca mais foi assim desde que as relações começaram a intensifi­ car-se: a um progresso material e técnico correspondia necessa­ riamente uma evolução dos destinos da Escola. Era preciso saber o francês, que se tornava gradualmente a língua comum e oficial; devíamos saber ler e escrever. Para nos defendermos honrosamente nos mercados novos, tínhamos necessidade de saber calcular com precisão e rapidez. Mais tarde quis-se, por razões de unificação política, dirigir as nossas aldeias demasiado particularistas numa França uniforme e centrali­ zada. Ensinaram-nos uma história e uma geografia especiais susceptíveis de cimentar essa unidade. E actualmente, para construir, vigiar, fazer funcionar as máquinas e as instalações novas nascidas do génio dos homens, espera-se da Escola que inicie as crianças nas noções essenciais das ciências, da física e da mecânica. Dizem-nos agora: criaram-se escolas, desenvolveu-se a leitura, a escrita e o cálculo; generalizou-se a instrução a fim de que os homens não mais sejam ignorantes e se tornem melhores. Como se se dissesse: transformamos em largas 101

estradas asfaltadas os carreiros ancestrais para que a natureza e a floresta sejam mais agradáveis e mais belas. Não são mais do que razões fúteis, inventadas depois por aqueles que têm interesse em tingir de idealismo ou de humanidade os seus vulgares cálculos materiais ou a sua sede de domínio. — Não creio no entanto que se possa levar a analogia tão longe. A Escola, como todo o organismo social, deve forçosamente adaptar-se às necessidades mutáveis do meio. Essa adaptação é uma das condições da vida: ela processa-se até no campo filosófico, o que nos vale uma espécie de humaniza­ ção permanente das técnicas, uma humanização da vida. O progresso tem sido incessantemente reajustado pelos melhores dentre os pensadores. E a evolução material pôde tornar-se, graças a eles, em certa medida, uma evolução intelectual, uma evolução moral, uma evolução humana. — É mesmo assim, salvo no que respeita aos resultados dessa impregnação que em meu entender você coloca bas­ tante apressadamente no activo do progresso. A evolução material criou estados de facto que não podiam deixar os pensadores indiferentes. Só havia então para estes duas posições possíveis: ou nadar contra a corrente, tentar reagir denunciando incansavelmente os erros e as fra­ quezas, ou os perigos dessas transformações, procurando ilu­ minar as estradas de vida onde seria mais lógico e mais pro­ veitoso embrenhar-se. Mas esta posição não conformista exige um heroísmo e uma obstinação que não são comuns nos humanos; os raros indivíduos de génio que nisso se obstinam perturbam tantas sábias quietudes, ferem tantos orgulhosos amores-próprios que eles são vilipendiados e perseguidos, ou por vezes abatidos como perigos públicos. E a massa por momentos perturbada volta-se de novo, envilecida, para a corrente. Ou então esses pensadores tomarão antecipadamente, como falsos realistas, o seu partido pela situação, e, enquanto se deixam arrastar pela corrente, esforçam-se por explicar aos homens que se se vai nesse sentido é porque se quer, porque se escolheu livremente e com perfeito conhecimento de causa a verdadeira linha do progresso. E nasce então toda 102

uma filosofia aparentemente livre, aparentemente fundada à margem de qualquer apriorismo, e que não é mais, afinal, do que uma ilusória justificação de tantos erros interessados. Os homens do poder não se enganam ao dar a esses filósofos todas as facilidades para prosseguirem a sua tarefa e vestirem de generosidade os piores cálculos mercantis. Este raciocínio, talvez simplista, explica pelo menos a minha total desconfiança em relação a um pensamento e uma filosofia mais ou menos oficiais, ou pelo menos aceites e transmitidos como sábios e «razoáveis». Em todo o caso, não me deixo já apanhar nessa astúcia das palavras que, sob a pena de hábeis argumentadores, podem provar indiferentemente o pró e o contra. Enquanto não esti­ vermos aptos a ver sob a crosta dos sistemas, quer eles sejam filosóficos ou escolares, a realidade viva e simples das coisas, poderemos «seguir»! Não conseguiremos pensar por nós pró­ prios e julgar sensatamente. ... Mas como já chegámos à aldeia, temos que suspender por hoje as nossas discussões. Outro dia as recomeçaremos; terá assim mais tempo para reflectir sobre as minhas tolices. E eu prefiro falar das coisas à medida que elas me vêm ao espírito, simplesmente. Repito sem dúvida muitas vezes as mesmas ideias. Que quer? mau grado séculos de progresso, o número dos pensamentos essenciais não aumentou como no-lo quereriam fazer crer. Sistemas para nos divertir, para nos domesticar ou explorar, isso sim, nascem todas as semanas, e as bibliotecas estão a abarrotar. Mas os verdadeiros princí­ pios de pensamento são de progresso humano, não constitui­ riam, ainda hoje, um livro muito volumoso. Confúcio, Buda, Jesus, Maomé, esforçaram-se nesse sentido e mesmo assim os seus comentadores não souberam exprimir na sua simplicidade original os ensinamentos essenciais dos mestres. Pelo menos quando os lemos, quando os meditamos, temos, ainda hoje, o sentimento duma plenitude apaziguadora. A complicação doentia e desordenada do pensamento filosófico corresponde aliás a uma perturbação da economia e da fisiologia; sendo em larga medida a sua consequência: os sábios, como sabe, consideravam a pureza do corpo e a 103

simplicidade da vida como o elemento original do pensamento sensato. Hoje, ou pelo menos ainda ontem, os barcos sulcavam os mares do mundo para porem à nossa disposição os pro­ dutos mais raros; os comboios, os automóveis, o comércio tinham universalizado os seus serviços para deleitar os nossos gostos, sobrecarregar os nossos estômagos, perverter as nossas necessidades. E numerosos são aqueles que acreditam que é necessário nada menos do que esse excesso de máquinas e de produtos para viver humanamente, que não distinguem já, nessa vaga de objectos industrializados, os que lhes são essenciais; que perderam o sentido, o instinto que dirige a ali­ mentação natural, tão eclética dos animais não domesticados. Como vocês se perdem na vaga de livros, de teorias, de sis­ temas, mais ou menos nocivos mas que, em todo o caso, não são mais do que acessórios, suplementos que não nos trazem o alimento específico de que temos fome. Quando estou nos campos, sentado na borda duma «riba» entre os cheiros subtis e mesclados de violetas, de clematites, de silvas e de feno cortado, e retiro do meu saco um desses pães que me viu cozer no forno, e um bocado de queijo de cabra seco no cesto que está pendurado à nossa janela, ben­ digo o Senhor — é uma maneira de falar — por me haver proporcionado, num quadro tão exaltante, o alimento que é para mim necessário e suficiente, e que me faz, mau grado meu, filosofar sobre a vaidade de tantas descobertas humanas. Sim, tudo está relacionado. Não pode haver simplicidade e pureza no pensamento sem um regresso à simplicidade e à pureza da vida. Sei que vos é difícil ser totalmente da minha opinião porque vocês não podem abstrair-se duma cultura que é à imagem da nossa civilização, que traz em si, efectivamente, tantas coisas excelentes, mas que tomou um mau caminho, no fim do qual só há desordem, servidão e catás­ trofe. Talvez não seja demasiado tarde para reagir!

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19.

A INSTRUÇÃO NEM SEMPRE TORNA O HOMEM MELHOR

INSTRUÇÃO E CONHECIMENTOS, MAGIA MODERNA, SUPÕEM UMA LABORIOSA E FORMAL INICIAÇÃO, QUE NÃO TEM MUITO A VER COM A FORMAÇÃO HUMANA E A VERDADEIRA CULTURA Naquele dia, era a vez do senhor Long vir à consulta acompanhado da senhora Long que, há alguns meses, tinha dado como que clandestinamente os primeiros passos. Ao escorregar na escada, o senhor Long torceu um pulso. E, naturalmente, pois que estão agora tão assidua­ mente ligados com Mathieu, nem sequer se pensou no médico. Um e outra disseram, pelo contrário, com uma convicção tranquilizadora: — O senhor Mathieu tratará disso! Mathieu acolheu os seus amigos com a sua habitual simplicidade rústica, com uma naturalidade sob a qual se adivinha uma humildade tão total. Estava precisamente ocupado a folhear, de costas vol­ tadas para a porta, os poucos livros que constituem a sua rudimentar biblioteca. Não lia: consultava de passagem alguns pensamentos que lhe são familiares, como se falasse a um amigo discreto e profundo. Há ali os Evangelhos, uma Bíblia, os pensamentos de Confúcio, as Palavras de Buda, essa divina Imitação de Jesus Cristo, as Palavras de um crente, de Lamennais, que ele tanto aprecia, Descartes, Rabelais e Montaigne, e, entre alguns livros de Vítor Hugo, pelos quais tem uma particular afeição, raras obras modernas, escolhidas não se sabe como, mas com um ecletismo que não deixa de ser surpreendente. 105

— Aí está... entram furtivamente para me surpreender, mergulhado nos livros, o que vos dará agora oportunidade para suspeitar por vezes da originalidade dos meus pensa­ mentos e da seriedade das minhas imprecações contra a cultura... Mas o que há?... Sente-se mal?... Que tem no braço? E, com essa calma e essa segurança que lhe conhece­ mos, segura no pulso ferido, tacteia-o demoradamente com os seus grossos dedos rugosos, fazendo funcionar os ossos e os músculos... — Isto não é nada... Vamos pôr tudo no seu lugar!... Enquanto a água aquece para amolecer as carnes feridas, Mathieu arruma gravemente os seus livros na estante ene­ grecida e abarrotada. — A sabedoria que certos homens têm no espírito pode muito bem estar igualmente nos livros se lá a tiverem colo­ cado. Existem incontestavelmente alguns que encerram, não digo toda a sabedoria, mas pelo menos clarões de sabedoria. Trata-se de saber distingui-los, escolhê-los e lê-los em seguida, não como passatempo, para divertir o espírito, mas para conversar, com as nossas inclinações profundas, com aqueles que os escreveram. Gosto naturalmente dum belo fruto natural, ou duma baga saborosa no momento em que ela se enruga antes de se destacar, e que é escolhida pelo bico guloso do pardal. Mas saboreio também, como vos disse, o bom pão da última fornada e o nosso queijo meio seco. Eles são já, é certo, o produto duma indústria, mas duma indústria que não conhece ainda a perversão da exploração e do lucro. O mesmo se passa com os livros. Encontram-se alguns nos quais os auto­ res, por vezes desconhecidos, puseram com toda a simplici­ dade o fruto das suas experiências e das suas reflexões. Eles são apesar de tudo um tanto afectados, polidos, menos directos do que a palavra quente; são humanos e, como tais, um pouco suspeitos, mas nem por isso deixam de ser honestos e sinceros. Mas o livro, mais do que a língua, é uma tentação ine­ briante. É já difícil falar pouco e manter-se escrupulosamente 106

apenas nas ideias cuja expressão pode ser útil a nós mesmos e ao nosso próximo. A concisão no livro é ainda mais deli­ cada. Então começa-se a escrever, sem necessidade primor­ dial, para agudizar o pensamento primeiro, depois para se impor, para dominar, para se erguer acima da sua estatura, à custa daqueles que se deixam fascinar pela verve falaciosa, Dirão que me acuso assim a mim mesmo!... É esse também o motivo por que eu queria incitar-vos a não me acreditarem sem reflectir demoradamente sobre aquilo que digo, sem criticarem as minhas ideias, e a preocupar-vos sobretudo por encontrar vós próprios a estrada real pela qual podereis caminhar. Mas a água está quente... Molhe a sua mão!... E Mathieu recomeça a mover músculos e tendões, pri­ meiro acariciando a parte doente, depois apalpando-a profun­ damente. E os seus gestos, a sua pressão, os movimentos que fazia executar pelo pulso, todo o seu ser enfim, parecem concentrar-se cada vez mais, com uma precisão espantosa, sobre a fonte da dor. — Vou-lhe fazer doer um pouco... Mas passará de­ pressa!... Uma aplicação mais minuciosa; uma contracção de sofri­ mento no rosto do senhor Long... — Já está!... Uma ligadura... Dentro de dois dias já não terá nada... — Agradeço-lhe muito... ...Mas compreende o alcance considerável, para mim, da visita que acabo de lhe fazer. Ela prova-lhe que o senhor em parte já me converteu! Não há muito tempo, antes da senhora Long ter vindo cá para essa cura que está na origem das nossas tão boas relações, eu ter-me-ia considerado deson­ rado por me entregar a um curandeiro. Não via nas vossas práticas mais do que empirismo e bruxaria. Só a ciência, pensava eu, pode fazer alguma coisa neste domínio. Agora compreendi-o, pelo menos sobre este ponto. Meço mais pru­ dentemente o crédito exacto que se deve conceder às des­ cobertas modernas... Entrevejo os perigos que me assinala... Parece-me ver brilhar algumas luzes. 107

Entretanto, no que respeita à educação que é, natu­ ralmente, a minha maior preocupação, é-me difícil admitir alguns dos seus pontos de vista; talvez, é certo, porque algu­ mas das suas afirmações e dos seus juízos perturbam em mim demasiadas ideias, demasiados hábitos, demasiadas prá­ ticas que fazem parte de mim mesmo, e das quais me não separo sem mágoa, ainda que reconheça razoavelmente a necessidade de tal separação. Como sempre nos separamos contrariados dos velhos fatos que usámos por muito tempo, e que foram primeiro fatos dos dias de passeio e impregna­ dos, por esse facto, dos acontecimentos cuja recordação não deixa de nos emocionar, e depois roupas de trabalho onde cada tarefa, cada dificuldade, cada peça produzida tem a sua história. — Você é sincero e leal consigo mesmo, e bom, o que não é menos essencial. Fará infalivelmente sérios progressos em direcção a essa iluminação que sinto em mim e da qual bem lhe quereria fazer beneficiar. — Portanto, está persuadido de que nós «seguimos» pobremente a evolução económica e técnica que os aconte­ cimentos, ou o acaso, suscitaram: que nós a justificamos depois de consumada para nos persuadirmos, a nós próprios e aos nossos discípulos, de que as nossas ideias e os nossos raciocínios estão na origem das grandes correntes que animam e dirigem o mundo. Outros produziriam a luz, ou aquilo que julgamos ser a luz, e nós iríamos apenas agitando, ali­ mentando e reforçando essa luz... Você não é nem indulgente nem optimista sobre os destinos do espírito... — Não se trata de ser indulgente ou optimista mas de ver as coisas como elas são. «Nós não somos nem anjos nem animais», diz um grande pensador... Cometemos o erro de nos querermos ornamentar com a auréola divina dos anjos, e aqueles que nos põem à prova desmascaram instintiva­ mente a usurpação e afastam-se de nós, desiludidos. — Há no entanto conquistas que estão incontestavel­ mente no activo do pensamento. A escrita e a leitura, por exemplo, não continuam a ser como dons superiores que nós oferecemos ao mundo? 108

— Elas poderiam e deveriam sê-lo... Mas que caminho está ainda por percorrer! Eis que recomeço a falar enquanto você talvez sofra e não está, desse modo, disposto a continuar tais discussões... — Pelo contrário!... Uma vez que devo repousar, onde poderei fazê-lo melhor do que ouvindo-o? — Seja... Reencontrava precisamente, ao folhear os meus livros, a opinião orgulhosa de homens que, porque a sua função foi movimentar ideias, escrever poemas, esculpir belas frases, julgaram que os seus livros iam deliberadamente modificar a face do mundo. Trata-se dum sentimento, reconheço-o, bastante natural. O camponês que contempla o seu campo de trigo amarelecido ao sol de Junho pensa igualmente que a sua função generosa é eminentemente útil à humanidade; o mineiro que sai extenuado do seu poço negro traz em si, no maior da fadiga, um orgulho natural que lhe vem da consciência que tem de ajudar de forma por vezes decisiva à marcha normal da sociedade. E naturalmente, o professor que ensina aos seus petizes a leitura e a escrita, que os vê apoderarem-se penosamente desse transmissor do pensamento, conserva uma ideia elevada da sua missão. E nós não temos o direito de os decepcionar nem a uns nem a outros, porque apesar de tudo eles têm razão em estar orgulhosos e porque não há nada de tão encorajante e de tão dinâmico como essa chama de humanidade que se obstina na fronte dos traba­ lhadores empenhados em tirar da natureza os seus tesouros e os seus segredos. Mas a leitura e escrita trazem em si as taras originais que no-las tornam suspeitas como veículos da cultura e ele­ mentos da civilização... Ah! mas sabe, nenhum falso deus encontra mercê perante a expressão daquilo que eu julgo ser o bom senso! Leitura e escrita têm estado, durante séculos, ao serviço exclusivo dos deuses, das tradições, de Deus ou dos senhores do momento. Para o povo, essas técnicas foram durante muito tempo apenas uma chave misteriosa que abria apenas aos iniciados o domínio maravilhoso do encantamento e da 109

prece. E quanto mais longa era a iniciação, quanto mais custava de esforços, de sofrimentos, de sacrifícios, mais valor tinha para aqueles que dela beneficiavam e para os que, não podendo aspirar aos seus favores, a temiam e a respeitavam. Não se tratava então de procurar ou de experimentar métodos que facilitassem essa iniciação. Isso teria sido um contra-senso. E não se iludam: a vossa escola terá muito que fazer para se libertar da crença nas dificuldades dessa iniciação, para compreender que educação e instrução não são necessa­ riamente provações, que elas são — e devem sê-lo — funções naturais, como respirar com voluptuosidade o ar fresco duma manhã de Primavera, ou subir uma montanha, ainda, e sobre­ tudo, se ela é abrupta e perigosa, porque se conserva a espe­ rança tenaz de descobrir de lá de cima uma paisagem duma amplitude e duma profundidade que nos dão a medida divina do nosso destino, e porque o homem enfim, é feito para subir, para se elevar, para triunfar virilmente sobre as dificuldades. A Igreja de resto não fez mais do que acentuar essa tendência para considerar instrução e educação como pro­ vações: o sofrimento, a dor e o dissabor são, segundo ela, as condições necessárias de qualquer aquisição e de qualquer formação escolástica. Até uma época muito próxima de nós, e que tende a terminar com as perturbações sociais e culturais consecutivas às duas guerras mundiais, a instrução continuou a ser essa chave que abria a porta do conhecimento, da inteligência, da possessão e do poder. É incontestável que aqueles que haviam passado com sucesso por essa iniciação se encon­ travam geralmente numa escala social superior, quer porque tenham tido alguns direitos a isso por razões de nascimento e da sua posição na hierarquia, quer porque tenham efectivamente ascendido a um nível superior pelo seu valor próprio que os fazia distinguir-se em todas as coisas, ou porque tenham sabido utilizar habilmente os seus conhecimentos para adqui­ rirem riqueza e poder. O facto é que, ao ver aqueles que o comandavam ou o exploravam dar grande importância à sua instrução e erguerem-se graças a ela aos lugares invejados, o povo concluiu 110

daí, mais ou menos intuitivamente, que tomava portanto o homem melhor. E no entanto não é assim: eu creio que o povo nunca foi totalmente papalvo porque ele permanece demasiado mergulhado na realidade, e os seus juízos não são nunca exclusivamente intelectuais e morais. Penso antes que os pais de família não diziam outrora, como ainda hoje, aos seus filhos: «Estuda, porque assim te tornarás melhor; serás um filho mais afeiçoado e um cidadão mais fiel»... mas muito singelamente: «Estuda, meu filho, enche-te dessa ciência que fará de ti um Senhor; sempre será menos duro, para comeres o teu pão, do que cavar a terra»... Hoje é mais simples ainda: a instrução apresenta-se como uma necessidade técnica e social. Mas essa é uma função demasiado prosaica: os escoliastas, os verdadeiros ou falsos sábios, os pensadores assalariados têm louvado as virtudes formativas da instrução, até fazerem acreditar que ela era a única e decisiva determinante do progresso, e que era pela sua exclusiva virtude que se construíam as escolas, que se educava o povo e se transformava o mundo. É como engenheiros que para exaltarem as suas funções, afirmassem: nós construímos estradas, abrimos túneis, erguemos pontes sobre os rios, e servimos assim, da melhor maneira, a frater­ nidade humana e o progresso... Repare que isso poderia ser: a instrução, bem como o melhoramento constante das vias de comunicações, deve­ riam ser elementos permanentes da marcha triunfante do homem para a conquista do ideal. O que é triste é que as coisas não se passem assim, ou tão raramente. Porque a essência mesma da instrução ou da técnica não é o aperfei­ çoamento do homem. A instrução, tal como as máquinas novas que animam as nossas fábricas, não é mais do que um meio, um utensílio. Tudo depende do espírito que pre­ side ao seu uso, do objectivo pelo qual este utensílio é empregado. — Em todo o caso, no conjunto, a generalização da instrução não facilitou, não idealizou em definitivo, as rela­ ções humanas?... 111

— Outra ilusão. Mas eu não quereria ser brutalmente categórico. Houve evidentemente progresso da socialização, domínio crescente do grupo sobre o indivíduo, e por vezes mesmo tirania cega do grupo que tende para aniquilar todas as reacções individuais. Não é porque os citadinos se amon­ toam passivamente, sem resmungar, num metropolitano ou num autocarro público, porque lêem com a mesma passividade os jornais que lhes oferece uma imprensa «dirigida», que há necessariamente progresso... Eu teria tendência para pensar o contrário... Não, não é porque conhece muitas coisas que o homem é melhor. Nós temos sido pagos — ou antes roubados — para desconfiarmos daqueles que sabem muito bem usar e abusar da distinção da sua linguagem, da habilidade do seu racio­ cínio, da subtileza dos seus escritos, da amplitude atordoante dos seus conhecimentos, e dos quais sempre fomos, e somos ainda, vítimas. Que quer? Talvez eu esteja errado, mas prefiro, a esses pretensiosos poços de ciência, a concentração do velho pastor que durante toda a sua vida frequentou os mesmos caminhos, tropeçou nas mesmas pedras, afastou os mesmos ramos, que nunca ou quase nunca falou a não ser às suas ovelhas, e cujas únicas saídas foram as suas viagens à feira, mas que conservou intacto o seu natural e lúcido bom senso. Não, a instrução, os conhecimentos não nos tomam melhores... Que eles dêem um certo verniz favorável às relações entre indivíduos, isso é outro assunto. Que o hábito de se encontrar, de trabalhar em comum, de falar a mesma língua, de conhecer as mesmas histórias lime por assim dizer as arestas e prepare, apesar de nós, uma fórmula nova de huma­ nidade, é coisa que não oferece qualquer dúvida. Que dessa interpenetração possa nascer um dia uma filosofia digna dos destinos do homem, devemos ter bastante confiança na vida para continuarmos persuadidos disso... Mas longos e peri­ gosos são os caminhos que levam a esse resultado favorável, e os perigos de extravio são por demais evidentes. 112

O nosso velho pastor é aquilo que é: não tem o hábito de dissimular a sua natureza que sempre transparece, na sua atitude, nas rugas do seu rosto tostado, nos seus gestos concisos e breves. Se alguma coisa lhe desagrada, ele mani­ festa humildemente a sua desaprovação, quanto mais não seja pelo seu silêncio; os seus entusiasmos são comedidos e dificilmente sensíveis: será uma assobiadela mais alegre ao seu cão, uma maneira mais desembaraçada de brandir o ca­ jado, uma respiração mais ruidosa aos primeiros raios de sol. Pouco lhe importa de resto a opinião que dele se tenha... Tem na sua frente um homem duma moralidadade e duma personalidade simples e naturais, mas a toda a prova. Não há verniz... O mau não procura camuflar-se sob apa­ rências enganadoras. Outrora, quando se colhia uma pêra, sentia-se só de a ver, de a apalpar, de a cheirar, se ela era boa ou má, vulgar ou suculenta. O verme que talvez se tivesse estabelecido sem dificuldade no interior não tinha podido esconder a sua passagem que permanecia como um olho acusador sobre a pele apetitosa. Hoje, nas árvores «tratadas», a nocividade está habilmente dissimulada. A vossa pêra é aparentemente pura e limpa, mas é na sua própria natureza que se dissimula o tóxico pernicioso e subtil. Um dia. esperemos, o progresso não se limitará mais a essa camuflagem mercantil. Os conhecimentos servirão então para o enriquecimento efectivo da humanidade, como para isso servirão os meios de comunicacão aperfeiçoados as des­ cobertas científicas, o cinema e a rádio. Mas essa readaptação, que constituirá uma profunda revolução, será ainda longa e penosa. De momento, julgar-se-ia antes que lhe voltamos rotundamente as costas. Não é necessário ser muito letrado para concluir dos acontecimentos actuais que há algo de gravemente falseado no processo social. Mas é ainda neces­ sário definir o mal e encontrar os remédios. Talvez me considere pretensioso, mas parece-me que poderei dar no caso opiniões cuja originalidade não garanto — o que pouco importa — mas que merecem pelo menos reflexão. E depois, nunca se sabe: o pensamento caminha 8

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por atalhos misteriosos para reaparecer por vezes, activo e dinâmico, pronto a influenciar uma acção decisiva. Devemos continuar incansavelmente a nossa tarefa de iluminação... Mas já chega bem por hoje. Você precisa de descanso. Voltaremos a encontrar-nos... — É preciso; deixo-o com pena de não poder exprimir reservas que me queimam, porque nem por isso deixo de persistir em considerar injusta e parcial a sua critica da instrução, da cultura, e também daqueles que a possuem e a dispensam... Não. não ficaremos por aqui!...

20.

CULTURA E CONHECIMENTOS

INSTRUÇÃO E CONHECIMENTOS SÃO APENAS UTENSÍLIOS — QUE ALIÁS SERIA ERRADO NEGLIGENCIAR. MAS O SEU EMPREGO NECESSITA DE UMA REFLECTIDA DIRECÇÃO QUE SUPONHA A CULTURA PROFUNDA DA PERSONALIDADE — Venha, senhor Long, uma vez que está aí de braços caídos, sem trabalhar, acompanhe-me até à ponte onde vou apanhar um braçado de erva fresca... Far-lhe-á bem. Espero que isso vá melhor... — Quase curado... Ainda uma certa imobilidade. No fim da semana já não será nada. Além disso, tenho que me pegar consigo imediatamente pois que não o pude fazer na outra noite. — Pois sim!... Isso é coisa que não poderia incomo­ dar-me. 114

— É a propósito da instrução, da qual tanto desdenha com as suas comparações mais ou menos exactas, aliás exageradamente desenvolvidas... —Oh! Mas você está hoje de humor agressivo... Ora vejamos! — Julga então realmente que a instrução é tão total­ mente inútil ao nosso progresso humano? Não quero defen­ der-me particularmente; mas conheci professores, homens de ciência, sábios, simples professores primários. Parece-me, contrariamente às suas afirmações, que esses homens para quem o conhecimento é como que uma religião exigente, são dum nível profissional, moral e social superior ao da massa que não teve o privilégio de ascender a ele. — Eu também penso que tem razão em estimar a leal­ dade e a consciência de tais homens. Mas o seu valor moral não é produto da instrução adquirida. Eles são quase todos uma elite, e não apenas uma elite intelectual, mas uma elite moral. A obstinação, o desinteresse, o idealismo de que a maior parte deles sabem dar provas na procura e na con­ quista desse conhecimento mostram bastante a excelência da sua natureza e o valor das suas virtudes. Em melhores conjunturas, talvez tivessem sido santos, ainda que ignorantes. As dificuldades de toda a espécie que tiveram que enfrentar extraviaram alguns deles; os outros prosseguiram honesta­ mente, com uma consciência escrupulosa, a sua tarefa conformista ou não, ao serviço do seu ideal. Mas o elemento activo no caso não é a instrução nem as suas hipotéticas vir­ tudes formativas. A menos que se considere apenas a disci­ plina que ela supõe e que, como todas as provas, tem as suas vantagens e os seus perigos. — Talvez!... Então vou procurar outra prova que espero seja mais evidente. Consideremos a massa das crianças que passaram pela nossa escola. Não será ela incontestavelmente dum nível moral e social superior ao dos indivíduos analfabetos? Não se veri­ fica efectivamente — e as estatísticas prová-lo-iam — que o exército lamentável da deficiência e do crime é alimentado quase exclusivamente por essa turba que nunca conheceu o 115

caminho da escola? E acha que no fundo Victor Hugo não tinha razão quando escreveu os seus célebres versos: «Tout enfant qu’on enseigne est un homme qu’on gagne! Quatre-vingt dix pour cent des gens qui sont au bagne Ne sont jamais allés à ,1’école une fois, Et ne savent point lire, et signent d’une croix 1

— O problema é aqui examinado dum ângulo visivel­ mente parcial. A coisa é muito mais complexa. É por certo exacto que a maior parte dos resíduos sociais de que me fala não frequentaram a escola. Alguns terão tentado, mas quer porque fossem por natureza indisciplinados, quer porque a sua compleição fisiológica e mental e os vícios da sua primeira educação os tenham tornado quase insociáveis, a Escola não soube nem interessá-los, nem atingi-los, nem agarrá-los e mantê-los. Por vezes tê-los-á mesmo francamente rejeitado e não tem o direito de vir prevalecer-se dessas tristes realidades para louvar os méritos da instrução de que os maus estão antecipadamente excluídos. Que, para uma proporção notável das crianças «possíveis» a escola actual seja apesar de tudo um relativo abrigo, estou perfeitamente de acordo. «Poderiam estar pior», diz-se, o que não é forçosamente um elogio para a escola. No fim de con­ tas, vale mais que as crianças frequentem regularmente a aula do que levarem prematuramente uma vida de vícios, de maus exemplos e de roubos pelas aldeias ou nas ruas das cidades. Mas isso são males menores. Ponho a questão doutro modo: do ponto de vista for­ mativo, do ponto de vista moral, e também no que respeita ao sentido vital e ao dinamismo latente das crianças, será melhor que estas se submetam à escola actual, se essa escola não é mais do que uma escola de instrução, ou que partam

1 Por cada criança que se ensina um homem quista!... / Noventa por cento dos presidiários / Não escola nem uma só vez, / Não sabem ler e assinam

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se con­ foram à de cruz.

com um boieiro compreensivo e simpático para aprenderem a fazer frutificar a terra, que acompanhem um pastor nos bosques majestosos e nos montes livres onde sentirão desa­ brochar aquilo que há de melhor nelas? Ou que se familia­ rizem, em instalações especiais que seriam mais escolas de vida do que oficinas sombrias com os métodos de trabalho que são susceptíveis de as integrar, educadas e enriquecidas, no processo da sociedade contemporânea? Se estivéssemos em condições de fazer essa prova leal, poder-se-ia julgar verdadeiramente sobre as virtudes forma­ tivas da instrução. Construir um abrigo para as crianças em perigo, é por certo melhor do que nada, ainda com a condição de que elas aceitem permanecer nele. Mas abrigar alguém não é formá-lo, não é educá-lo, não é salvá-lo. A culpa disso não cai aliás totalmente sobre a escola, e, uma vez mais, a sinceridade, a lealdade, a consciência e a devoção dos nossos educadores não poderiam estar em causa. Eles devotam-se somente por resultados que, em consequên­ cia das graves deficiências da escola, continuam aleatórios, e bem afastados por vezes daqueles que eles haviam sonhado atingir. E sofrem com isso porque são, mau grado seu, vítimas desse complexo que coloca a escola a reboque das forças sociais que eles pretendem por vezes dominar e guiar mas­ carando a sua impotência sob um amontoado de palavras sábias que não iludem toda a gente. Se nos dissessem: «A vida económica actual, o desenvol­ vimento da indústria mecânica, a intensificação das relações sociais tornaram necessária para a maioria das pessoas a posse duma certa bagagem de conhecimentos. Criámos e mantemos escolas para a aquisição dessa bagagem. Sem outra pretensão!...» Então, perfeitamente! Vocês saberiam aquilo que esperam de vós, e nós, pais, já não seríamos enganados sobre a qualidade da mercadoria que se oferece e se impõe aos nossos filhos. O proprietário duma escola de condução pretenderá edu­ car? O seu objectivo é treinar-nos o melhor e o mais depressa possível na condução dum automóvel sem perigo para nós 117

e para os nossos semelhantes. Nem isso: o seu objectivo é permitir-nos obter a carta de condução. Terá preenchido a sua função, respeitado o contrato; faremos depois do nosso automóvel o uso que nos aprouver, bom ou mau. Ele não se sentirá de modo nenhum comprometido, nem moral nem socialmente e nem mesmo nos virá ao espírito a ideia de ir eventualmente tirar despiques com ele por quaisquer consi­ derações que não sejam as que condicionam a sua função. Há uma tarefa da escola que é incontestavelmente dessa natureza: instruir, sem pretensão, sem grandes palavras inúteis, sem protestos falsamente ideológicos, mas entretanto com método, conhecendo verdadeiramente os objectivos a atingir, ainda que eles continuem mais especificamente materiais e utilitários. Sabe que não sou homem para me agarrar automatica­ mente às coisas existentes. Pelo contrário, considero, no que respeita à escola, que há conhecimentos elementares de que os nossos avós se podiam muito bem dispensar e cuja aqui­ sição é actualmente necessária, porque aquele que os não possui não pode preencher eficazmente a sua função social e encontra-se numa posição demasiado desvantajosa na luta pela vida. Ensinar esses elementos de conhecimento, é armar melhor os vossos alunos, dar-lhes maiores possibilidades de trabalho, como o faz o instrutor de condução. Nem mais nem menos. E eu censuro a pedagogia contemporânea por haver confundido tão bem os elementos da sua acção que até esse objectivo essencial nunca foi considerado com toda a aplicação realista que merece. Não se trataria, no caso, de discutir ociosamente sobre se essa aquisição é em si mesma formativa. Essa é uma preocupação secundária. A sociedade exige um certo número de conhecimentos, um mínimo de aquisições e de iniciações. A escola deve munir os seus alunos, com o máximo de eficácia, de método eficiente, mas salva­ guardando entretanto, como veremos, os direitos da vida e da humanidade. Porque esta é uma preocupação que deveria ser também essencial, não deveis, neste aspecto, imitar o instrutor de condução demasiado moderno que apenas preenche uma parte 118

da sua função social. Se ele fosse um professor completo, não poderia ficar indiferente ao uso que o seu aluno vai fazer das novas possibilidades de que ele lhe deu o domínio. Ensi­ naria a respeitar a vida e os direitos dos seus semelhantes, a cumprir os seus deveres sociais, a ser em toda a parte não apenas o automobilista inconsciente, servidor automático da sua máquina, mas um homem que sabe colocar os seus actos de harmonia com os seus sentimentos, com o seu coração, com a sua concepção da solidariedade. Dar os conhecimentos e a instrução técnica sem ter em conta essas considerações humanas seria faltar a todas as tradições da escola. Apegar-se pelo contrário a uma formação abstracta negligenciando essa iniciação, seria trair as espe­ ranças que os homens depositam na escola de hoje e na escola do futuro. É perigoso falsear o problema que acabo de apresentar instituindo precedências, hesitando entre as solu­ ções, enaltecendo o «clássico» e minimizando o «moderno», como se não fosse possível encontrar uma solução que res­ ponda harmoniosamente às necessidades da sociedade do século XX, como os séculos anteriores tinham, em certa medida, a escola que correspondia à sua estrutura social e à sua evolução económica. — A sua comparação com o professor da escola de con­ dução, aparentemente luminosa quando se trata de aquisições mecânicas, está longe de ser igualmente convincente quando se considera a massa de conhecimentos científicos que neces­ sitam não só dum exercício dos músculos e duma coordena­ ção especial dos reflexos, mas dum trabalho intelectual, a movimentação de todas as forças nobres que trazemos em nós. — Também o engenheiro teve que apelar para as suas faculdades «nobres» para construir estradas, erguer pontes, elaborar esses utensílios admiráveis que são a imprensa, o cinema, a rádio. Mas isso não impede que estas conquistas continuem a ser inteiramente relativas. As estradas tornam mais frequentes e mais continuados os intercâmbios pacíficos; facilitam a vida das populações que servem. Mas existem também estradas malditas que dão passagem aos camiões dos traficantes, aos canhões e aos tanques, até nos fazerem lamen­ 119

tar o semi-isolamento dos bons velhos tempos. A rádio é uma invenção que deveria ser divina, e não é em definitivo mais do que incoerente. Ela poderia completar idealmente o livro e o cinema para permitir ao homem escutar melhor o passado e o presente, a fim de se conduzir melhor no futuro próximo. Mas não! A instrução e as técnicas que a servem não são mais do que utensílios, veículos, meios. Podem servir o pro­ gresso humano ou contrariá-lo. Compete-nos a nós domes­ ticar esses utensílios, dirigir esse poder potencial, e desviar as tendências maléficas. — E no entanto, esse conhecimento, essa instrução, que respondem tão bem a uma necessidade inata dos indivíduos, não trazem, gradualmente, os elementos duma compreensão muito mais racional da vida? Nós erguemos pontes sobre os buracos escancarados dos mistérios da natureza; vamos alar­ gando o reino do homem, à medida que recua, como con­ sequência, o poder do erro, da magia, da religião. — Mas como em definitivo não se faz mais do que recuar o mistério, o homem encontra-se para acabar na outra margem do buraco escancarado, para contemplar com o mesmo pavor inquieto, outros buracos escancarados. Vocês fazem efectivamente recuar um erro, ou a magia, ou a religião, mas para esbarrar com a mesma violência contra outros erros, contra as magias modernas de veneno mais subtil... Tudo isso são miragens! O problema educativo, tal como o problema social, merece ser examinado sem falso amor próprio, sem pressu­ postos, mas com a preocupação constante de descobrir as verdadeiras forças, de alcançar a hierarquia dos poderes. Não digo que o utensílio do conhecimento deva ser negligenciado. Penso — já lho disse — que se lhe não tem concedido, no processo da formação e da cultura, o lugar apesar- de tudo eminente que lhe compete, mas instrução e conhecimento têm necessidade de ser dirigidos, submetidos às necessidades do indivíduo e do grupo. Para isso, o essen­ cial continua a ser hoje como o era dantes reforçar essa direcção, fortificar a personalidade, reencontrar e animar nela o sentido da vida e do equilíbrio. 120

Digamos, se assim o quiser, que a instrução, que a acu­ mulação dos conhecimentos, como tantas outras invenções humanas, poderiam ser um elemento decisivo do verdadeiro progresso... Tal como a língua: a melhor e a pior das coisas!... — Seria necessário que fizéssemos dela a melhor das coisas!... A ferramenta vale geralmente aquilo que vale o ope­ rário. Vocês julgaram que se podia inverter esta asserção e que o aperfeiçoamento da ferramenta aperfeiçoaria o ope­ rário. Demasiadas vezes faz dele o escravo. Aí reside o grande drama da nossa civilização capitalista. Sob a vaga incessantemente crescente dos conhecimentos, o homem declina porque tudo, à sua volta, o arranca a si próprio e contribui para o destacar dos seus pensamentos íntimos. Como se o centro do mundo fosse o conhecimento e as realizações que ele suscita. Quanto a olhar para si mesmo, a reflectir sobre a natureza e o devir dos seus actos, a fazer pesar o próprio pensamento pessoal sobre os destinos de que participa, quanto a dirigir a sua própria vida, são coisas que o homem tenta cada vez menos. E a escola tem a sua grave responsabilidade nessa superfiscalização» da natureza humana; ela tem a sua revolução a realizar, no quadro das realidades ambientes, se verdadei­ ramente quiser avançar, como o pretende, para a verdade e para a luz. — A acusação é injusta, senhor Mathieu. Nós sofremos mais do que quaisquer outros com essa superficialidade e fazemos, acredite, tudo o que nos é humanamente possível para a corrigir. Se, forçosamente, a Escola atribui uma grande importância à instrução, nem por isso negligencia o exercício regular de todas as faculdades: cultura da memória, desen­ volvimento da compreensão lógica e da interpretação racional dos factos, exaltação do sentido da beleza, elevação enfim da espiritualidade... — De facto... Esses são bons cabeçalhos para capítulos dos vossos livros de pedagogia e de moral. São grandes pala­ vras. Os acontecimentos actuais dizem que vocês não conse­ 121

guiram dar-lhes um conteúdo susceptível de influenciar a for­ mação das gerações contemporâneas. Espere um momento, e já lhe darei a minha opinião sobre esse aspecto...

21.

A MEMÓRIA

A ESCOLA NÃO CULTIVA A MEMÓRIA: SOBRECARREGA-A. COMO REAGIR? — Quer saber porque é que eu sou tão céptico sobre as vossas possibilidade de cultura profunda? Você fala-me por exemplo de exercícios regulares da memória. Já lhe disse que me parece que a Escola contribui para um enfraquecimento catastrófico dessa faculdade. Sabe, há toda uma arte para dar de comer, no Inverno, aos burros e às vacas. Não falo dos proprietários cuja provisão é tão reduzida que pelo S. José se toca já na abóbada inferior do celeiro, mas dos mais opulentos, que têm à sua disposição medas de feno, altas e comprimidas, que é preciso cortar com uma foice como quem corta um bolo generoso. Esses poderiam lançar aos animais belos braçados que forneceriam incessantemente uma manjedoura nunca totalmente vazia. Mas os animais habituam-se a essa profusão; e têm um apetite reduzido porque não saem nem trabalham. Assim essa abun­ dância de alimento acabaria por fartá-los antecipadamente, por fatigá-los; eles mordiscam com a ponta dos dentes, reme­ xendo sem motivo com o nariz demasiado glutão, para pro­ curarem não se sabe o quê. E arrastam, sujam, entornam o feno que acaba por se transformar em inútil desperdício. 122

Dê-se-lhe pelo contrário exactamente aquilo que é indis­ pensável às suas necessidades corporais, o que o seu apetite deseja; ensine-se-lhes a esperar, a desejar, a comer depois sem desperdício. Teremos assim animais mais saudáveis. Vocês têm sido muitas vezes como esses patrões orgu­ lhosos da riqueza do seu celeiro e que dela quereriam fazer beneficiar ao máximo os indivíduos que têm a seu cargo; que se felicitam pela generosidade dos braçados que caem na manjedoura, sem se preocuparem nem com o desperdício nem com a saciedade prematura. O vosso celeiro está cheio e vocês têm que esvaziá-lo antes de Agosto para a próxima colheita. Mas lamentam-se mesmo assim da inapetência dos vossos alunos, da fraqueza duma memória que fatigam com um exercício exagerado, conduzido em condições defeituosas. Não ignoro que a questão preocupa os pedagogos que se deram conta de que, querer apenas forçar a memória como um vaso que se enche suscita uma fadiga que não é mais do que a reacção defensiva do organismo maltratado, e que essa fadiga desaparece logo que a criança se interesse por aquilo que se lhe apresenta sob uma forma que responde às suas necessidades profundas. Mas a escola dificilmente se rende a essa evidência; ou antes, não a admite. Porque, mau grado essa inapetência, mau grado essa fadiga, as crianças do nosso século conhecem incontestavelmente muito mais coisas do que as crianças de há cem ou duzentos anos, conclui-se daí que a escola desenvolveu em todo o caso a memória, e que tem razão em não voltar as costas a técnicas que deram as suas provas. Ora eu interrogo-me, por meu lado, se a memória é verdadeiramente uma faculdade que seja susceptível de se aperfeiçoar e de se melhorar, pelo menos pelos meios directos habituais. A memória apresenta-se como uma possibilidade individual que é uma função por assim dizer pré-estabelecida pelas condições fisiológicas e mentais que trazemos em nós. Se essas condições são desfavoráveis, se elas prejudicam o funcionamento harmonioso do organismo, há quase sempre uma redução da memória. Inversamente portanto, uma saúde 123

sólida, modos de vida e de trabalho que se desenvolvam no sentido do devir humano, facilitam o funcionamento dócil e fiel da memória. Podemos pois melhorar e reforçar essa memória influenciando, do exterior e do interior, sobre o modo de vida, sobre a saúde, sobre as funções essenciais do indivíduo, sobre a lógica das suas relações com o meio ambiente. Mas considerar um determinado indivíduo e preocupar-se em fazer funcionar a sua memória na esperança de a enriquecer e de a aperfeiçoar, não é em meu entender mais do que uma perigosa ilusão. É como se afirmássemos que um atalho melhora tanto mais quanto mais assiduamente for frequentado. E isso é o principio exacto: ele alarga-se com a passagem, as pedras afastam-se uma a uma, a própria erva é repelida para as bermas. Mas a partir dum determinado momento, se for martelado por demasiados pés, se passarem por ele animais pesados, as bermas desmoronam-se, abrem-se buracos e será forçoso prever a construção de muros ou de sólidos aterros, o empedramento das passagens movediças, a consolidação profunda do caminho maltratado. Ilusões, digo eu. Aquilo que vocês podem desenvolver — e daí vem sem dúvida o equívoco — é uma certa mecânica mental, uma técnica mais ou menos mnemónica; é a utili­ zação mais racional e mais avançada dos sinais de corres­ pondência ou de lembrança, quer se trate de nós no lenço, de varinhas entalhadas, de caracteres primitivos de escrita ou de fórmulas modernas mais evoluídas e mais complicadas, que materializam por assim dizer, e fixam certas etapas da recordação. Esta é uma forma como qualquer outra de palia­ tivo para as insuficiências da memória, de ajudar o seu funcionamento laborioso. Há pois mais um reforçar indirecto da memória que se arrisca a resultar na preguiça e no atrofiamento duma função que se descarrega a pouco e pouco nos apoios formais que vocês lhe deram. O que desenvolve incontestavelmente a memória, o que permite pelo menos arrumar nela com ordem e segurança um maior número de factos e de noções, é essa precisão 124

crescente que os homens tentam introduzir na sua concepção do universo, as relações de causa e efeito que eles descobrem, a lógica com a qual armazenam os elementos do conhecimento. Mas estamos longe, como vê, do vulgar exercício escolar da memória, dos catecismos ou dos resumos para decorar sem os compreender, das listas de palávras ou de noções a ingerir sem que se apreenda nem o seu alcance profundo nem as suas relações — o que as torna por vezes deliciosamente intermutáveis. Não vos falta que fazer neste domínio, não é verdade? Antes de mais, tomar consciência das vossas fraquezas e inconsequências para se libertarem enfim de práticas que só se mantêm por empirismo e comodidade. É tão simples fazer aprender de cor uma lição de catecismo, de moral ou de história que se seria de resto incapaz de explicar! E depois, são de tal modo ilusórias as palavras que se repetem para afirmar a sua ciência, enquanto que as verdadeiras ope­ rações intelectuais conservam algo de íntimo, que é muito difícil, e por vezes impossível de exteriorizar, que se manifesta talvez apenas por um brilho mais seguro e mais positivo do olhar, com uma fugidia iluminação. É urgente essa correcção. Ainda há pouco, quando a vida corria como um rio tranquilo e paciente, podíamos permitir-nos um certo luxo irracional no uso automático da memória. A solicitação per­ manente das nossas faculdades de recordação, que nos é actualmente imposta pela aceleração vertiginosa do processo vital e técnico, exige também para o indivíduo uma economia nova, sem a qual a nossa memória cansada e sobrecarregada se vai degenerando como um vaso que rebenta. É como se sofrêssemos sobre o nosso espírito o domínio dum filme assombroso, que fosse apresentado a um ritmo sempre acele­ rado, com imagens justapostas e encavalitadas, sem ligação sensível entre si, sem uma unidade psicológica susceptível de as animar. Não seria loucura aumentar ainda inconsiderada­ mente o número, a natureza, o ritmo das imagens, sem pensar na sua coesão e na harmonia do seu desenrolar? Não será 125

tempo de acentuar a ordem, o ecletismo, a ligação funcional que faz com que um elemento recorde automaticamente um outro, com que uma imagem suscite uma outra imagem, o que dá então à nossa memória possibilidades ilimitadas de poder e de precisão? E a minha comparação não é mais do que a tradução angustiante da realidade: é um facto que as nossas gerações têm a memória desordenada e gasta. O meu pai tinha feito o serviço militar em Bordéus, há mais de sessenta anos. Pois ainda se recordava, algum tempo antes da sua morte, e com os mínimos pormenores, dos lugares onde tinha vivido, do número de arcos das pontes que tinha atravessado. Nós nem sequer nos recordamos dos nomes das aldeias nem do aspecto preciso das paisagens onde lutámos e sofremos durante a grande guerra. Não, não! Os vossos métodos actuais de instrução não cultivam a memória. Eles abastardam-na. E vocês bem se apercebem disso. O remédio não deve ser procurado no reforçar da disciplina escolástica, nem mesmo em pro­ cessos engenhosos para atrair fortuitamente aquilo que resta de possibilidades latentes de aquisição. Vocês bem sentem que é necessária uma rude correcção. A Escola deve realizá-la se quiser dar a sua parte de luz e de dinamismo às lutas futuras.

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22.

O ESFORÇO, O PRAZER E OS JOGOS

EXISTEM PRECONCEITOS TENAZES, COMO O DA NECESSIDADE DO ESFORÇO PENOSO, DA OBRIGAÇÃO E DO SOFRIMENTO. COMO REACÇÃO, ALGUNS PREGARÃO AS VIRTUDES EDUCATIVAS DO PRAZER E DO JOGO. EXISTEM, FELIZMENTE. LINHAS DE ACÇÃO MAIS EFICAZES E MAIS HUMANAS Mathieu pousou a gadanha e sentou-se à beira do caminho, como se tivesse necessidade dum pouco mais de concentração e de calma para continuar a sua crítica: — Você falou, senhor Long, de compreensão lógica dos factos e de cultura do sentido crítico. Nesse campo sou ainda mais categórico: os vossos méto­ dos actuais são absolutamente errados. Vocês persuadem as crianças de que devem aprender determinada coisa cuja utilidade elas não distinguem; trei­ nam-nas em recitar resumos, em resolver problemas duma lógica mais ou menos duvidosa e que são demasiadas vezes, para não dizer sempre, problemas especificamente escolares; empanturram-nas de palavras e de noções das quais nem vocês mesmos sentem as relações íntimas e que são para elas como peças arbitrariamente justapostas. Nunca lhes dão a possibilidade de reflectir, de julgar, de decidir... Estão sempre com a mesma pressa para «ver» todo o programa! E susten­ tariam que os vossos alunos estão assim melhor armados para compreender, reflectir, escolher e julgar!... Os educadores que, há vários séculos, tinham imaginado os métodos de que vocês não conseguem libertar-se não tinham tais ilusões. Não se tratava, para eles, de compreender, de reflectir ou de julgar, 127

mas simplesmente de se iniciar em certas práticas, de possuir uma técnica, de conhecer palavras e sortilégios. A Escola ainda não se desembaraçou desse espírito de feitiçaria e dessa mecânica intelectual que presidiu ao seu nascimento. E falamos de progresso!... Seria antes de crer que a quase generalidade das técnicas culturais actuais concorre diabolicamente, pelo contrário, para o aniquilamento progressivo das faculdades de com­ preensão, de juízo e de crítica das novas gerações. A socie­ dade— e à escola que a serve — subjugam e absorvem cada vez mais os indivíduos, mas não sem previamente os haver tornado amorfos e sem defesa, como esses insectos que sabem tão misteriosamente, por meio duma picada bem colocada, tornar inerte e passiva a presa cobiçada. Exagero?... Vejamos: saberão vocês, permanentemente, fazer com que os vossos alunos trabalhem e reflictam sobre as condições e as peripécias da vida que os cerca — a única coisa real que os apaixona em mais alto grau, e muito justamente? Não: vocês pensam que eles devem primeiro ler livros que serão para eles os santos e os profetas, mas que dissociam a sua personalidade, e os conduzem a subesti­ mar as suas próprias possibilidades perante o poder impera­ tivo dos vossos manuais. Vocês ensinam-lhes a história dis­ tante de povos que se perdem aos seus olhos na bruma indecisa dos mitos e esquecem-se de que eles têm ali. sob os olhos, um passado próximo ou distante que deveria ser o seu primeiro e elementar livro de história. À criança que, nos campos, à beira do canal, no lavadouro, sobre o para­ peito da ponte, se entrega a contínuas experiências e compa­ rações, os vossos manuais de ciências impõem leis acabadas, afirmações para eles incontroláveis, que falseiam na origem os próprios princípios, e os únicos salutares, das verdadeiras ciências humanas. Ao longo do dia, na quase totalidade das escolas, a instrução e a aquisição formais ultrapassam e sufocam essa formação lógica, que é também instrução, mas que é mais do que instrução, que é o orvalho que banha o botão frágil, a brisa que agita as folhas e as faz sucessivamente cantar 128

ou chorar, o sol que faz desabrochar flores que trazem em si, todas, uma promessa de fecundidade. E infelizmente, essa loucura de aquisição «capitalista», ilógica, irracional e desordenada nem só na escola produz as suas devastações. Vocês pelo menos tentam reagir por vezes, eu sei. Mas, na sociedade, o hábito parece definitivamente adquirido: a aquisição a que eu chamaria exterior aos indivíduos é actualmente soberana, e apresenta-se sob formas tão insidio­ samente aderentes que domina, e de alto, a cultura das gran­ des massas humanas. Aquisição pelos jornais e revistas, aqui­ sição pela tendência enciclopédica na escolha das leituras, enciclopédia igualmente do cinema e da rádio. Sobretudo na cidade, o adolescente, o homem, em breve não terão um só momento de encontro com o seu entendimento e a sua consciência; já não têm tempo para reflectir; não fazem mais que registar, ver e ouvir... Esta orientação deplorável não é de resto mais do que uma consequência das concepções sociais dominantes — e é isso que torna ainda mais difícil a nossa reacção aos seus malefícios. Ela é a resultante do famoso «Enriqueçam»! que marcaria todo um século da nossa história, o reflexo inevi­ tável das teorias e das práticas «capitalistas» que resultariam na acumulação insensata até ao caos e à catástrofe, das matérias primas e dos meios de produção. Esta justificação histórica atenua certamente as vossas responsabilidades, mas o dever daqueles que vêem não será advertir do perigo mortal antes que seja demasiado tarde e abrir caminho aos últimos sobressaltos de bom senso e de humanidade? Porque o perigo é patente: os resultados dessa genera­ lização de técnicas anti-naturais, que substituem a vida pela mecânica, não podem ser mais do que uma atenuação sensí­ vel, ou antes, para usar uma expressão na moda, um sábio embotamento das faculdades de raciocínio, de crítica e de criação dos indivíduos. Só parecem escapar-lhe, pelo menos provisoriamente — mas não por esse motivo olhados como perigosos perturbadores — os homens verdadeiramente cultos, que deram por assim dizer a volta às coisas, que mediram 9

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a vaidade desse falso conhecimento e o erro duma cultura que infelizmente perdeu em profundidade e em aderência aquilo que ganhou em estonteante difusão superficial. Esses sábios juntam-se aliás, no seu não-conformismo deliberadamente pensado e motivado, aos homens, cada vez mais raros, que ainda não «beneficiaram» dessa cultura, aqueles que, na paz anacrónica de algum vale ainda não conquistado pela civilização, esqueceram o pouco que apren­ deram na escola ao contacto com a natureza e com a tra­ dição, que permanecem cépticos ao espectáculo falacioso das, invenções modernas, que se recusam a ler os jornais, que só sentem fadiga e tédio com as lengalengas fanhosas da rádio, e têm ainda menos necessidade da magia cinema­ tográfica. Ouça o seu raciocínio intuitivo, tente penetrar na sua obstinada e altiva originalidade, e sentirá a profundidade do fosso que os separa dessas massas amorfas, aviltadas e amolecidas pela técnica. — Mas, como você próprio disse: que podemos nós contra isso? — Não se limitar a seguir participando no embruteci­ mento comum, mas orientar, dirigir, esclarecer... Não será esse o vosso papel de sempre e não deverão vocês aplicar-se nele, ainda que isso vos seja difícil? — Nós reagimos à nossa maneira, sem grande sucesso, reconheço. Na concepção do nosso ensino há uma grande parte de exercício que você não tem em consideração. Os nossos mestres, psicólogos, filósofos e pedagogos constataram que todas as faculdades do homem são aper­ feiçoáveis, e que nada as desenvolve melhor, nem mais efi­ cazmente, do que o exercício: a memória, a imaginação, o raciocínio, o sentido moral, o sentido social, a bondade, a caridade, o altruísmo, melhoram ao ser explicados, com­ preendidos e desenvolvidos por um esforço regular e inte­ ligente. — Se o esforço não for apenas regular, mas inteligente... E ainda assim!... No exame e no estudo dessas questões, os vossos mestres, e também vocês, seus discípulos, foram 130

vítimas duma espécie de deformação profissional. Porque foram treinados em trabalhar exclusivamente no terreno do pensamento mais ou menos abstracto e da especulação esco­ lástica, não sabem já encarar os diversos problemas culturais e humanos senão por esse ângulo, na verdade bastante estreito e nem sempre racional. Vocês raciocinam muito bem sobre o exercício dessas faculdades pelo estudo intelectual; e nem sequer vos vem ao espírito a ideia de que possam existir outras formas de exercício e de cultura da memória, da ima­ ginação, do raciocínio, e das virtudes sociais. E é aí que reside o vosso erro, é daí que vem a impotência dos vossos esforços perante exigências incessantemente crescentes duma vida que ultrapassa os quadros da vossa função. Já lhe dei o meu ponto de vista no que respeita à memória. O problema deveria ser reconsiderado do mesmo modo para todas as outras faculdades. A imaginação? As técnicas actuais, a voga crescente de narrativas, e depois dos filmes de aventuras, fizeram de facto da imagi­ nação a «folie du logis» 1 Já lá vai o tempo em que a escola devia esmerar-se em cultivá-la! Agora é como uma torrente desencadeada: trata-se de se defender dela, de ten­ tar domá-la, de a dominar e de a disciplinar para lhe restituir o lugar importante, mas não preponderante que ela deve ter na vida. A vossa escola, ainda que o quisesse, seria agora impotente, reconheço-o, para conseguir esse objectivo. Era necessária para isso a colaboração de todos os organis­ mos sociais que participam directa ou indirectamente nessa exasperação duma tendência. E não haveria tempo a perder, porque a imaginação hipertrofiada e desregrada produz no indivíduo como que uma espécie de embriaguês, eufórica à superfície mas, em profundidade, destruidora de todos os elementos de equilíbrio e de harmonia. Deveremos deses­ perar perante o espectáculo duma sociedade que tem ainda

1 Folie du logis: designação dada por Malebranche à imaginação, que se tornou de uso comum (N. do T).

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tanta necessidade de estupefacientes para dominar e submeter os indivíduos, e que utiliza, para esses mesmos fins, a em­ briaguez enganadora duma imaginação nunca satisfeita? E não deveremos ver nessa deformação interessada uma das causas da degenerescência dos povos que parecem ter des­ coberto demasiado cedo a árvore da ciência? Gostaria de voltar a falar-lhe um dia do cinema e dizer-lhe o que penso dele. Sei que é delicado criticar as realizações das quais o homem moderno retira tantos prazeres, do mesmo modo que é perigoso dizer mal do vinho diante dum alcoólico, ou insistir nos perigos da gastrono­ mia na presença de um comilão sensual. De nada serve mos­ trar complacentemente aos humanos o abismo medonho que se abre a seus pés. Eles fecham os olhos porque a vida os empurra e porque não são já senhores dos seus destinos. Mais vale tentar religá-los ao passado e à tradição por um lado, às realidades fecundas por outro, obrigá-los e habi­ tuá-los a reflectir, dar-lhes o sentimento de formas de vida mais dinâmicas, mais apaziguadoras e mais fecundas. Não abordemos o capítulo das virtudes morais e sociais, nem dessas outras recomendações de que as religiões quere­ riam fazer regras de vida: a bondade, a caridade, o altruísmo. Que podem vocês fazer nas vossas aulas, senão dar expli­ cações teóricas, definições e preceitos, objurgações, que de resto estão quase sempre em contradição, na prática, com os ensinamentos imperativos duma vida que se toma cada vez mais feroz e desumana? Durante tantos milénios, pagou-se aos homens com palavras prometedoras; pregou-se tanto nas igrejas e nas escolas; filosofou-se tão demoradamente nas faculdades e nos livros, e em vão, que o povo desiludido começa a com­ preender. Não há como os grandes cataclismos para provar as teorias e os sistemas. Sob o seu peso se desmoronam e se aniquilam as ideias que não haviam sabido beber forças e raízes na própria essência dos seres. A única vantagem que nós temos a retirar da evolução actual das sociedades, dos indivíduos e dos acontecimentos 132

que os conduzem, será talvez essa reconsideração da cultura, que se faz por assim dizer partindo da base, mau grado os pontífices de toda a espécie. Vão-se alguns valores, outros subsistem ainda um instante, aos quais tentam agarrar-se os fracos e os indecisos. Compete-nos a nós evitar, no naufrágio, as jangadas que metem água por todos os lados e orientar-nos para os refúgios que consideramos suficientemente ricos e sólidos para nos reconduzir à salvação. — Sinto bem a necessidade dessa tarefa, e estou-lhe grato por me haver estimulado a isso. Nós carecemos sem dúvida de audácia e de entusiasmo, mas até as nossas apreen­ sões, não serão elas humanas? Nós nunca abandonamos de bom grado a casa que nos formou, onde vivemos e traba­ lhámos, ainda que queiram persuadir-nos de que nada fize­ mos aí de bom. Tal como só com pesar abandonamos o barco que naufraga enquanto o não vemos mergulhar verda­ deiramente nas vagas. Pois para quê correr o risco, aban­ donar o pouco que se tem por um futuro ilusório? — Do mesmo modo, o esforço construtor daqueles que crêem saber e ver estará menos em pregar e realçar miragens do que em erguer, sobre terreno firme, o arco que salva... É necessário, será necessário, tirar o casaco e começar a construir... ou filosofar e morrer... Nós tentaremos construir, se assim você o quiser. — Nem sempre basta saber, Senhor Mathieu, nem mesmo distinguir um objectivo desejável. É também necessário que­ rer. Tem-se dito e com razão, creio eu, que a actual crise social é uma crise de vontade. E não nos farão a acusação de o haver esquecido. Enquanto que a sociedade evoluía molemente para a facilidade, a Escola exaltava incessante­ mente o poder criador da vontade, e os nossos mestres erguiam-se muitas vezes contra tendências pedagógicas que, sobre a base do jogo ou do interesse, minimizavam esse esforço pessoal que, estamos de acordo, continua na base de todas as vitórias. Sabemos bem que as crianças se interessam pela vida do seu meio, pelas flutuações da natureza e dos trabalhos, e que gostariam de estudar principalmente aquilo que lhes 133

diz respeito. Você acusa-nos de os arrancarmos às suas ten­ dências para os encerrar estoicamente em salas austeras à entrada das quais há necessariamente choros e ranger de dentes. Questão de pontos de vista. Se a Escola nem sempre tem sido tão apaixonante como o pederia ser, isso é em boa parte porque ela o não tem querido, porque não cedeu sem luta a essa corrida aviltante para o gozo estéril e a passivi­ dade. Ela teria querido habituar os seus alunos a reprimirem os seus desejos, a recalcarem todos os pensamentos estranhos às questões essenciais que a escola valoriza, a dominarem-se desde cedo para se entregarem aos estudos justamente porque estes são difíceis e porque o esforço de vontade assim susci­ tado traz em si mesmo a sua recompensa e o seu proveito. Mas isso não vai por si só: são precisas incessantes censuras, ameaças, promessas, punições, o aguilhão permanente que estimula e sacode, todo um aparelho de barreiras e de exci­ tantes que alguns quereriam banir da escola. Atiram-nos sempre à cara com a expressão de Montaigne: «cárceres de juventude cativa»!... Mas quais são as grandes coisas que se alcançam sem esforço e sem sofrimento? Não é esticando os músculos, de cabeça para a frente, que o boi abre o rego? Nós ensinamos a criança a dominar-se, a «querer», a redo­ brar a sua energia para se elevar à acção viril e razoável. Deveríamos nós fazer esse supremo sacrifício e, com­ prometendo-nos na sequência de tantas tendências menores, deixar-nos arrastar também ao sabor da corrente? — Felicito-o, porque esta é talvez a primeira vez desde que discutimos que você marca uma tão nítida vontade de ataque, que procura, não desculpar as fraquezas da escola, mas fazer valer a lógica das suas concepções. Aliás você formula, sobre o interesse, a obrigação, o esforço e a cultura da vontade paradoxos persistentes, sobre­ tudo nos meios intelectuais. Permita-me no entanto que não seja da sua opinião. O primeiro erro vem ainda, naturalmente, dos excessos verbais e analíticos da vossa cultura. Nas suas investigações, que nem sempre deixam de ter o seu valor, os vossos mestres de psicologia têm sentido a necessidade de distinguir certas 134

funções, certas tendências da pessoa humana, cujos diversos elementos arbitrariamente isolaram nos seus livros. Reser­ varam naturalmente um compartimento, ou um capítulo, à Vontade. Eles nem sempre se iludiam; sabiam bem que, mau grado o rigor da sua classificação, estavam longe de haver atingido as luminosas ideias simples e que a natureza nem por isso deixava de conservar a sua misteriosa com­ plexidade. Mas os seus discípulos — ou antes os seus alunos e os seus leitores— viram principalmente a palavra e a abstracção que ela de certo modo materializa; julgaram então que havia em nós uma força, em certa medida autónoma, a que se chama vontade, que nos dá o poder de dirigir os nossos pensamentos, de disciplinar o nosso espírito, de comandar o nosso corpo. Se assim fosse, bastaria por certo cultivar e fortificar muito especialmente essa faculdade para dar ao homem um poder superior, que o faria dominar o seu corpo e o seu espírito, e, para além e através deles, os próprios elementos do seu dever. Basta, pensam esses primários, querer para poder, sem duvidarem de que um sábio da índia sustentava, com muito mais bom senso e humanidade, que é preciso poder para querer. Assim naturalmente, vocês na escola acham bom exercitar os vossos alunos em querer... Trata-se, em vosso entender, de ensinar as crianças a dominarem a sua natureza, a submetê-la a uma regra e a pensamentos que lhe não são naturais. Com efeito, desse ponto de vista, quanto mais penoso é o estudo, quanto menos responde às necessidades imediatas do indivíduo, quanto mais esforços supõe, mais salutar é porque habitua a actividades que só são realizadas então pela tensão da nossa vontade. Eu sei que há personalidades na história que chegaram assim, pela vontade, a um surpreendente desprendimento das contingências, em quem só a vontade parece ter inspi­ rado actos extraordinários. Antes de mais, não gosto de discorrer sobre essas excepções: é como se, para encorajar homens a cultivarem a música, se lhes oferecesse o exemplo dum Mozart ou dum Beethoven, e para os incitar a desenhar 135

e a pintar, a vida e a obra de Leonardo de Vinci. Esses génios estão tão longe das possibilidades médias da massa dos homens que antes são considerados como inimitáveis semi-deuses. E se me dizem que um Sócrates bebeu a cicuta sem tremer, que determinados heróis contemporâneos cami­ nharam para a morte com pé firme dizendo como o outro: «Tu tremes, esqueleto!»1, eu objectarei que a explicação não me parece suficiente, e que não é tanto a vontade que os sustenta como uma ideia generosa que é para eles mais do que a vida e pela qual é talvez menos difícil sacrificar-se do que julgamos. Não, os actos dos homens não se realizam nunca pelo simples esforço da vontade, mas porque são a consequência, a resultante, de todo um comportamento. Se a torrente que desce furiosa da montanha arranca as pedras e as árvores nas Suas margens, não é porque traga em si, como um génio do mal, a vontade e o poder de fulminar os obstáculos. Essa força de destruição que é impossível de isolar, a não ser arbitrariamente, não é mais do que uma componente no conjunto em que intervêm o débito, a inclinação, a queda, as condições atmosféricas e mesmo o acidente que lançou na torrente algum penedo ou cepo nodoso que agem aqui como invencíveis escavadoras. O mesmo se passa connosco: se Sócrates bebe calma­ mente a cicuta, é porque o conjunto dos acontecimentos que o levaram a esse acto tornaram a sua atitude necessária: crença no valor superior da sua filosofia e do seu ensina­ mento, concepção elevada da sua dignidade de homem, e também o hábito de dar o exemplo, e de o dar até ao fim, orgulho talvez e mesmo gozo interior de sofrer por uma causa que o eleva e o diviniza, eis outras tantas razões que fazem com que Sócrates não pudesse, sem decair, ter uma outra atitude; uma hesitação, um lamento, teriam sido a

1 «Tu (N. do T.)

136

trembles

carcasse!»,

Visconde

de

Turenne,

1611-1675

negação de toda uma vida; a coragem era o seu resultado natural. Aquilo que se pode dizer de Sócrates aplica-se melhor ainda às pretensas manifestações de vontade nos homens médios. Examine-se a si próprio e verá se lhe acontece muitas vezes fazer uma acção exclusivamente pela vontade. Aparentemente talvez; mas você procurará lealmente ir mais fundo dentro de si próprio e discernir as razões flagrantes ou ocultas que foram como que as determinantes efectivas desse acto; interesse, amor próprio, orgulho, necessidades fami­ liares e sociais, concepções intelectuais, tendências psíquicas, sem contar com essa necessidade tão geral de se ultrapassar para dominar a vida e os seres. E verá que a vontade pura, como força por assim dizer independente, que poderíamos, sob o comando do nosso espírito e do nosso cérebro, intro­ duzir como uma cunha no nosso comportamento para agir num sentido exclusivamente intencional, como que do exte­ rior, essa força não existe. Portanto se essa forma escolástica e filosófica da von­ tade não é mais do que uma criação cómoda dos investi­ gadores, não podemos pretender cultivá-la directamente pelo exercício. E isso explicaria a generalidade lamentável dos vossos fracassos. Porque, neste domínio, mais ainda do que para a memória, é um fracasso completo. No conjunto, vocês pra­ ticam mais o adestramento do que a exaltação efectiva de certas possibilidades de acção original. Repare que ao pre­ tender habituar os seus alunos a sofrer, a suportar, a enfren­ tar tarefas áridas para as quais não sentem nenhuma incli­ nação, não só não lhes reforça a vontade, como os impele para a passividade, para o desdobramento da sua persona­ lidade, e, em definitivo, para uma temível incapacidade de agir. Não julgue, por isto, que nego a existência de disposições activas que se tem insistido em caracterizar porque são talvez elas que nos dão melhor o sentimento da nossa dignidade e a ilusão pelo menos do nosso livre destino. Mas é pre­ ciso ir procurar a origem e a natureza dessa força ao mais 137

profundo do indivíduo, na sua própria compleição, no seu comportamento normal, e também no seu subconsciente. Como já lhe disse: é tudo uma consequência. Como o calor ou a luz, e a força eléctrica que dão intimidade e vida aos diversos andares da casa. Não são elas que erguem o edi­ fício nem mesmo o tornam acabado e habitável; a sua utili­ dade, a sua doçura, o seu brilho, são principalmente função da arte do pedreiro que construiu muros espessos e bem traçados, da habilidade do carpinteiro que colocou o tecto, da aplicação do marceneiro que colocou portas e janelas, sem contar todos os operários anónimos que, no passado e no presente, colaboraram na perfeição dessa obra. Ensinem principalmente o trabalho consciencioso que, no quadro dum meio simpático e educativo, constrói pacien­ temente o edifício; não peçam tanto à criança para querer como para se inclinar às regras normais da vida, e para se aplicar inteligentemente a construir a sua casa. Será tão simples depois iluminá-la. Um bom conselho: não falem demasiado de vontade na escola, como de resto na vida. É uma palavra definiti­ vamente gasta porque trai as esperanças que puseram nas suas virtudes. — No entanto, não é por essa mesma vontade que o homem se eleva acima dos animais? — Aí estão palavras que são resíduos desse catecismo que os filósofos atiraram como pasto àqueles que queriaip a todo o custo ter certezas... Palavras... Encontrei certo dia um homem cujo nome ainda se cita mas com certo cepticismo, que, durante a sua vida, aliviou muitas aflições, o que seria, parece-me, um título suficiente de glória. Ele não havia ocupado a sua juventude em estudos transcendentes, tendo feito simplesmente algumas constatações elementares sobre as quais se apoiava para ensinar às pessoas a viverem melhor. Ora ele afirmava, e provava com exemplos, que cada vez que há oposição entre a vontade e a imaginação, é sempre a vontade que sai ven­ cida. Suponha que está a aprender a andar de bicicleta e que lhe aparece uma pedra pela frente... Claro que a quer evitar; retesa os músculos, a atenção, a vontade para evitar o obstá­ 138

culo... É seguro que lhe vai cair em cima... Esqueceu-se duma palavra e faz um esforço para se recordar dela. Mis­ tério! Quanto mais intensamente quer mais a recordação se obstina em não lhe revelar o seu segredo. Deixa de querer, e a palavra surge por si, sem esforço, ao cabo de alguns instantes. Não lhe imponho que acredite nas virtudes de seme­ lhante teoria, que é talvez muito simplista e que retirava o seu valor curativo e humano sobretudo da inteligência, da fé e da bondade com que era elaborada pelo seu promotor. O que acabo de lhe dizer mostra-lhe pelo menos que o pro­ blema da vontade — e portanto o da educação da vontade — deveria ser reconsiderado integralmente. É igualmente um grave erro pensar que não poderia haver educação poderosa da vontade sem esse desumano recalcamento de todas as tendências eufóricas do indivíduo, como se o dever tivesse em toda a parte, e sempre, essa máscara sombria de obrigação violenta, de privação e de dor. Trata-se aí de resquícios da velha concepção cristã do pecado original. Se, efectivamente, o homem é lama e corrupção, é lógico empreender uma luta permanente contra a sua própria natureza, domar as suas tendências, reprimir as suas paixões e os sus desejos, constrangê-lo a fazer exactamente aquilo que custa porque só o sofrimento e o sacrifício são redentores. Mas chegaremos assim, efectivamente, a uma moral mais elevada? E não se teve que atenuar e justificar esses sacrifícios oferecendo em compensação a recompensa da iluminação divina e a esperança duma felicidade eterna? De modo que, em definitivo, esse sofrimento e esses sacri­ fícios, para serem efectivos, não deixam de ser um tanto interessados? É tempo de agir com mais lealdade e também com mais generosa humildade. Seria para nós uma calúnia conti­ nuar a crer que as nossas tendências, as nossas impulsões, as nossas acções sejam todas tão diabolicamente inspiradas que tenhamos que reprimi-las desde logo. Se olharmos à superfície, talvez. Mas conservamos contudo outras esperanças se considerarmos a chama que arde, não digo já em 139

todos os homens, porque ela se tem por vezes apagado mise­ ravelmente, mas em todas as crianças. E não julgue que designo por chama qualquer iluminação sobrenatural que suporia também ela uma religião e uma fé. Quero apenas dizer que a vida na sua origem manifesta-se poderosamente em todos os indivíduos, e que nós podemos distinguir neles tendências naturais em potência sobre as quais nos é possível apoiar-nos para ir para a frente... Para onde? — dirá você. E eu respondo com Victor Hugo: Vous dites: Ou vas tu! Je 1’ignore, et j’y vais. Quand le chemin est droit, jamais il n’est mauvais. J’ai devant moi le jour et fai la nuit derrière, Et cela me suffit... 1

Nós, camponeses, não afirmamos: esta terra é improdu­ tiva porque é essencialmente má e habitada pelo demónio. Antes de a semear, é preciso esconjurá-la e transformar a sua natureza. Não, nós sabemos por experiência que qual­ quer parcela, por mais estéril que aparentemente seja, nem por isso deixa de ter em si extraordinários elementos de vida. Só que primeiro é necessário descobri-los, e depois, em vez de contrariar e impedir a sua acção, utilizá-los racio­ nalmente, ajudá-los no sentido das suas virtudes e das suas possibilidades. O nosso rochedo não alimentaria por certo o trigo de raízes franzinas, nem o pessegueiro sedento. Isso não o impede de se ornamentar neste momento, como vê, com a capa dourada das giestas em flor; nas cavidades, entre as rústicas azinheiras, crescem algumas figueiras opulentas cobertas de figos no Outono, se bem que, é verdade, sejam bons apenas para os pássaros; até algumas vinhas se lhe agarraram e frutificam, encontrando sem dúvida na fenda árida da pedra, o alimento suficiente.

1 Perguntam-me onde vais? Não o caminho é mau quando é direito. / dia e a noite atrás de mim, / E isso me basta...

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sei, mas vou. / Nunca Tenho à minha frente o

A natureza não foi mais madrasta connosco. Cada indi­ víduo, por mais deserdado, pode produzir igualmente a sua parcela de vida e de verdade. Mas não devemos pedir à pedra dura que acolha plantas delicadas para concluirmos apressadamente pela esterilidade. E é isso que deve ser essencial em educação: todo o homem, toda a criança sobretudo, traz em si incríveis vir­ tualidades de vida, de adaptação e de acção. Têm-nas conhe­ cido mal até hoje; têm-nas reprimido em nome da tradição pedagógica, das crenças metafísicas ou das descobertas racio­ nais e científicas. Devemos redescobri-las, deixá-las germinar para assentar sobre essas virtualidades todas as nossas inter­ venções educativas. A questão de prazer e de sofrimento é secundária: uma coisa não é forçosamente má pelo facto de proporcionar prazer, e a experiência prova que, para satisfazer as nossas grandes tendências vitais, estamos em condições de aceitar virilmente, de enfrentar e mesmo de procurar o sofrimento e o sacrifício. Mas, tal como a alegria suscitada do exterior, como excitante interessado, corre o risco de desequilibrar as personalidades, o sofrimento imposto do exterior, como uma maldição e uma injustiça, é sempre inibidor e não poderia, desse modo, deixar de contrariar uma educação normal. A satisfação dos grandes instintos que conduzem os indivíduos são sempre acompanhados dum prazer orgânico que lhes é como que substancial. E os próprios crentes seriam sem dúvida menos fanáticos se não tirassem das suas práticas místicas gozos delicados mas intensos, que são como um antegozo da beatitude divina. «A aurora, diz V. Hugo, vem cantando e não resmun­ gando». Só que, aí está: vocês falsearam tudo com a superfi­ cialidade das vossas práticas e das vossas concepções. A Escola não deve procurar sistematicamente o prazer, do mesmo modo que não deve cultivar o sofrimento. Prazer e sofrimento não são nunca forças profundas; são simples­ mente manifestações, indícios, como o funcionamento frou­ xamente lubrificado dum motor harmonioso ou os estalidos 141

e os sacões surdos que assinalam o esforço anormal e o desgaste perigoso que daí resulta. Não julgue resolver o grave problema da educação substituindo arbitrariamente a escola austera e anti-natural por aquela a que alguns contemporâneos chamaram a Escola sorridente ou a Escola alegre. Isso é muito simplesmente pintar uma máscara enganadora sobre uma realidade que nem por isso deixará de persistir, talvez apenas ligeiramente deformada. E correrá o risco de habituar as crianças a pro­ curarem o prazer pelo prazer, a fugirem de um sofrimento que não seria mais do que a antítese do prazer. — Diz no entanto que se devem utilizar todas as ten­ dências susceptíveis de levar as crianças a pensar e a agir. Ora a necessidade do prazer, de alegria, e, particularmente, a procura do jogo são tendências naturais, e talvez entre as mais fortes, pois que as crianças brincam por toda a parte e sempre, com uma dádiva tão total de si mesmas. — É errado ligar o jogo ao prazer e à dor, senhor Long. A criança joga por vezes com uma grande seriedade, e é então capaz de enfrentar o perigo e o sofrimento. O pra­ zer e a dor, quaisquer que sejam as aparências, não são manifestações profundas. Ou antes, não são nada mais do que manifestações. E nós devemos atingir o mecanismo essencial se queremos influenciar de forma decisiva sobre o seu funcionamento. Precisamos de reencontrar essa seiva misteriosa que fecunda as terras férteis, mas que as rochas mais ingratas, mais subtis, mas extraordinariamente dinâmicas, também des­ tilam; essa parcela de vida que produz em cada Primavera o milagre da renovação, e também no Outono esse mistério da fecundidade. Insisto um pouco em todas estas coisas, não sem desa­ jeitadas repetições, bem o sinto. É porque não estou fami­ liarizado com os sistemas complicados, e que se impõem com autoridade, dos vossos professores e dos vossos sábios. Há pensamentos que me agitam, mas que só muito dificil­ mente consigo exprimir com uma precisão bastante. Mas o que não obstante compreendo é que a Escola passa sempre 142

ao lado das verdadeiras questões para seguir finalmente uma tradição irracional que talvez deleite o espírito, mas que atrai a vida. Não é obrigando a criança a praticar actos que não compreende, pelos quais não sente nenhuma atracção, que a habituaremos a querer com força e decisão. Pois querer o quê? Não basta dizer: «É preciso querer!» É necessário distinguir em que sentido se vai exercer a vontade. Há, como sabe, homens de vontade tanto para o bem como para o mal; há mesmo alguns que dão provas, no mal, duma perse­ verança e duma vontade espantosas. A função da vontade não pode separar-se da função misteriosa da vida, e só cultivando uma se pode vultivar a outra. O que é preciso, não é aprender a querer, mas aprender a viver. Reconheço que essa é uma arte muito mais delicada do que dar um exercício ou seguir a recitação duma lição. Só se poderá de resto consegui-lo se para isso concorrerem três componentes: a persistência dessa vontade de viver, de crescer, de subir, apesar dos riscos, das dificuldades e dos sofrimentos, vontade que anima até o ser mais deser­ dado, e que é uma poderosa obstinação na criança pequena; — a colaboração benevolente e a participação educativa do meio ambiente — e finalmente a intuição e a compreensão inteligente, simpática e activa dos educadores. Voltaremos a falar de tudo isto, não é verdade?

143

23.

À PROCURA DUMA FILOSOFIA

DADA A NOSSA IGNORÂNCIA DA NATUREZA HUMANA, A EDUCAÇÃO APARENTEMENTE CIENTIFICA E OBJECTIVA, DO EXTERIOR, NÃO É AINDA MAIS DO QUE UM LOGRO. É NO PRÓPRIO INDIVÍDUO QUE IREMOS PROCURAR OS FUNDAMENTOS E AS LINHAS DA NOSSA ACÇÃO — Eis-nos no nosso elemento, constatou o senhor Long esfregando as mãos. — Uma manhã como esta, entre as verduras onde se adivinha já a sumptuosidade das colheitas, é propícia para nos dar um pouco desse optimismo indispensável a qualquer acção desinteressada. Aqui esquecemos os homens e a sua loucura, e comunicamos com as forças que estão e conti­ nuarão a estar na origem de todas as transformações. —Sim, mas como inspirar-nos, praticamente, na nossa escola, dessa atmosfera, apelar para essas forças? Que pro­ blema angustiante! — Já lhe falei no grave erro da instrução, do «enchi­ mento», como fim normativo da nossa cultura moderna, e de como uma filosofia que deveria, a partir do conhecimento e da técnica, fazer ascender o mundo para o ideal, o conduziu miseravelmente para o impasse trágico em que ele se debate. Deverá necessariamente encontrar-se outra coisa. Haveria certamente uma concepção da escola que pare­ ceria racional: a concepção do professor da escola de con­ dução de que já lhe falei. Teríamos então um desdobramento na natureza, nos objectivos, nas funções dessa escola: um ciclo técnico renunciaria a quaisquer pretensões de formação, de cultura e de moralização, para se limitar ao seu papel de preparação técnica pré-profissional e profissional. Os profes­ 144

sores considerar-se-iam satisfeitos quando tivessem, nesse ciclo, formado operários hábeis e competentes na sua especialidade, do mesmo modo que basta ao instrutor de condução, para adquirir um certo renome, formar, num tempo «record», automobilistas susceptíveis de enfrentarem o exame com sucesso. Não haveria qualquer ilusão sobre semelhante função que nem por isso deixaria de ter as suas repercussões sobre o comportamento dos indivíduos, a evolução da economia e a harmonia das sociedades. Haveria paralelamente um ciclo formativo, com educa­ dores que se ocupariam separadamente da indispensável pre­ paração humana. Porque não basta ser um operário hábil e competente; não basta ser capaz de trabalhar com eficiência, como uma roda neutra e indiferente da grande máquina industrial. Também no nosso corpo, cada órgão desempenha principalmente a sua função, mas há ao mesmo tempo uma harmonia geral que os toma funcionalmente dependentes uns dos outros e que é ao mesmo tempo a motivação, o regulador e a razão de ser da sua acção particular. O conhecimento e a competência técnica não são igual­ mente mais do que um elemento da complexa função social. Trabalhar inteligentemente e com um máximo de eficiência é indispensável. Entregar-se com consciência e entusiasmo às diversas tarefas sociais, sentir-se como um mecanismo nor­ mal da comunidade é uma das próprias condições da vida, e portanto igualmente indispensável, sem que seja possível indicar uma preferência nem prever qualquer precedência. Aqui temos especificadas as duas funções fundamentais da escola, ambas necessárias e complementares uma da outra. Deverão os indivíduos ser preparados para elas simultanea­ mente, ou concorrentemente? Na mesma escola, ou em ins­ tituições diferentes? Com que objectivo e em que ritmos? — Essa distinção entre os dois fins necessários da edu­ cação faz-se cada vez mais pois que se fala correntemente hoje — e não apenas no ensino secundário — de formação técnica e de cultura geral. 10

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— Mas é preciso que se tenha uma ideia exacta das suas mútuas reacções. Até ao presente, este problema tem sido perturbado pela mais lamentável confusão, e a massa dos pais está ainda inteiramente desorientada a esse respeito. A velha tia Toinette dizia-me ainda ontem à tarde, falando do seu filho René que tem agora o mais belo rebanho da aldeia: «Ele sabe contar muito bem, e escrever em bocados de papel para os clientes retalhistas aquilo que lhe envia. A ciência sempre serve de alguma coisa!» Pois bem! É preciso que se saiba que a ciência nem sempre serve; que, mal orientada, pode conduzir à exploração, ao roubo, à guerra e à derrota. Conhecer o mal é a primeira condição da correcção e é esse o motivo por que me vê insistir demoradamente em distinções cujo alcance ordina­ riamente se subestima. Mas voltemos à nossa ideia: como harmonizar prepa­ ração técnica por um lado, formação moral e social por outro? Só uma instrução de origem mágica, concebida exclusi­ vamente na sua função de iniciação, e mais tarde uma edu­ cação para classes inactivas puderam ignorar a esse ponto a natureza social e formativa do trabalho, e conceber uma preparação humana, ou mesmo humanista, no quadro arti­ ficial das faculdades, das universidades, dos colégios e dos conventos. Tal como as abelhas alimentam com um alimento especialmente escolhido as larvas que estão destinadas a tor­ nar-se rainhas, os escoliastas preparavam nesses lugares fecha­ dos, por uma cultura particular, a elite que saberia aproveitar o trabalho dos outros e regular em seu próprio, proveito os assuntos comuns. E mesmo aí, palavra, dada a concepção social da época, o projecto não era fundamentalmente ilógico, salvo que o alimento nem sempre era inteligentemente escolhido nem habilmente administrado, e apenas formava, no total, abortos de rainhas. Mas estender indiferentemente, depois disso, os princí­ pios particulares duma educação à massa dos trabalhadores e dos produtores, pretender alimentar as crianças desse suco 146

híbrido e degenerado, preparado para aquilo que se julga ser uma elite intelectual ou social e negligenciar a função mesmo do trabalho e do trabalhador, não será pura loucura? Dir-me-á que a escola actual, recuperando pouco a pouco dos seus erros, glorifica como deve ser esse trabalho e esses trabalhadores. Não se trata de glorificar mas de formar; não basta cantar a nova dignidade do trabalho; é necessário conceber e realizar uma pedagogia que seja verdadeiramente a ciência da formação do trabalhador na sua dupla função de trabalhador e de homem. É verdade que esta dupla dignidade mal começa a im­ por-se — e nem a todos os espíritos ainda. No tempo — que não está assim tão distante — em que a elite se perguntava seriamente se o camponês, o artesão ou o operário tinham uma alma e uma razão, as pessoas interessavam-se exclusi­ vamente pelas possibilidades de produção dos homens. A pedagogia da pessoa humana, trabalhando e penando, está inteiramente por construir. Dir-lhe-ei as minhas ideias sobre esse ponto. Elas chocarão muitas vezes as suas concepções, bem o sei. A culpa disso pode não ser inteiramente minha, porque, pela vossa formação, pela vossa preparação, pela vossa prática diária, vocês estão embrenhados numa via tão diferente, tão insidiosamente ornamentada de perigosas ilusões. — Essa orientação que critica era conscientemente dese­ jada; ela era o resultado duma concepção diferente da for­ mação humana. Com efeito, os nossos mestres do princípio do século procuraram as bases duma escola por assim dizer ideal, que estivesse acima das situações, das castas e das classes, uma escola que não fosse nem uma escola de inte­ lectuais, nem uma escola para a elite dirigente, nem uma escola para os trabalhadores. Para além das condições sociais variáveis e diversas, eles quiseram dar forma a uma peda­ gogia superior, unindo pelo topo, pelo espírito e a inteli­ gência, todas as categorias de cidadãos. Não estamos de modo nenhum contra os trabalhadores pois que nós próprios somos trabalhadores; reconhecemos as injustiças de que eles sempre foram vítimas, mas consideramos apenas essa emi­ nente dignidade humana e recusamo-nos a contentar-nos com 147

uma inversão automática de vapor, que não faria mais do que suscitar outras vítimas e novas injustiças. Elevando-nos, elevando para o seu destino de homens as crianças que nos são confiadas, exaltando nelas os pensa­ mentos nobres e os sentimentos generosos, caminhamos com uma mais completa segurança para a cidade da justiça onde cada um terá enfim o seu lugar. — E não vos apercebeis a que ponto a vossa justificação é verborreia estéril e perigosa construção do espírito. É bem isso: os filósofos do final do século passado vagueavam bea­ tamente no seu sétimo céu, construindo arbitrariamente, sobre dados teóricos, um mundo à sua medida, orientando a edu­ cação segundo os caprichos do seu raciocínio, enquanto se organizava tecnicamente, fora deles e apesar deles, o mundo novo; enquanto se desenvolviam, como cogumelos prolíficos, as fábricas monstruosas e as cidades tentaculares; enquanto o comércio tecia, sobre os nossos campos e as nossas provín­ cias, a rede cada vez mais impiedosa da concorrência, e a oposição crescente entre os diversos elementos sociais que­ brava o frágil equilíbrio da cultura nacional. Esta realidade valeu-nos duas guerras, e as teorias filosóficas não souberam nem explicar nem impedir o seu desencadeamento, nem ao menos atenuar os seus efeitos. Então, começamos a ver claro: as teorias, mesmo as mais generosas, são mortais para òs indivíduos e para os povos se não forem mais que perigosas construções do espírito, sem bases suficientemente sólidas assentes nas realidades. O pen­ sador moderno, e menos ainda o pedagogo — não podem já refugiar-se numa torre de marfim donde caem os oráculos; têm que viver com o seu tempo, pensar e sofrer com os seus congéneres, sentir e compreender as situações individuais e sociais tais como são, na sua inextricável brutalidade por vezes, ver aquilo que se passa e, sobre esses dados efectivos, construir uma técnica de vida. Negligenciar assim todas as preocupações que, nobres ou não, nem por isso deixam de constituir a trama normal das nossas duras existências, é desconhecer totalmente o fundo da natureza humana. Só funcionários regularmente pagos e 148

que, depois de haverem filosofado durante todo o dia em salas isoladas da luz e dos ruídos exteriores, regressavam à noite a uma casa certamente modesta mas onde nunca faltava o indispensável, puderam acreditar na legitimidade dos pro­ blemas ideais que forjavam. Não é segundo as mesmas normas, nem aos mesmos ritmos, nem ao mesmo nível que pensa a massa dos homens. Não porque ela careça tão total­ mente como por vezes se julga de personalidades inteligentes, generosas e de bom senso; mas os problemas não se lhes apresentam da mesma maneira. E é isso que é determinante: o mineiro, o ferroviário, o metalúrgico, o empregado de balcão, o vinhateiro, o pastor, o camponês, vivem e pensam principalmente como trabalhadores. O que caracteriza e deter­ mina a sua vida, é o seu trabalho, são os gestos a que o esforço quotidiano os habituou, as suas reacções comuns perante dificuldades da existência ou caprichos da natureza, a sua forma principalmente prática de responder às necessi­ dades imperiosas duma existência madrasta. Tudo isso faz parte da sua natureza, quer o queiramos quer não, e não penso que vocês queiram editar regras morais sem terem em conta essas realidades complexas da humanidade contem­ porânea. É isso no entanto o que vocês têm tentado nas vossas aulas: vocês educadores, julgaram possível a realização duma escola semelhante ao curso do professor isolado da vida, duma escola que, negligenciando todas essas questões que vocês consideravam como demasiado terra a terra, preten­ deria, como sob o efeito duma varinha mágica, transportar dum lance os indivíduos para uma zona ideal onde reina o puro espírito. Mas compreenderam, espero, a vaidade e os riscos de semelhante «transposição». A criança, menos ainda que o adulto, não poderia ser considerada na origem como um ser pensante e filosofante. A sua função, a sua razão de ser, é antes de mais viver; e onde poderá ela viver senão no presente, ao sabor das contingências nascidas da vida e do trabalho dos pais e da organização social? Essas contingências são determinantes: quer queiram quer não, é a partir delas que é preciso cons­ 149

truir. Ah, eu sei! Isso será mais difícil e mais complicado do que mover-se logicamente no plano do ideal e do espírito; esbarrar-se-á com tantos obstáculos... Mas não é disso que se trata: pensam vocês ou não que a escola deve operar a partir da criança real e do meio que decide da sua vida? Ou, minimizando a influência desse meio, tentará ela prema­ turamente modificar, transformar, por cima, uma natureza humana tão delicada de influenciar e de dirigir? A ciência tinha dado aos homens a possibilidade de se deslocarem a uma velocidade vertiginosa, de comunicarem a longa distância, de produzirem artificialmente luz e calor, de escrutarem o céu e de iniciarem a sua conquista. Julgou-se que com tais resultados no seu activo, o investigador do século XX podia sondar com a mesma eficácia e a mesma perspicácia a natureza humana, moldá-la, dominá-la, como molda e domina as forças físicas. Mas o homem é a mais complexa e a mais misteriosa das máquinas e terão ainda muito que fazer para estarem familiarizados com o seu meca­ nismo. Até lá, confessemos humildemente a nossa ignorância, renunciemos, pelo menos de momento, a agir sobre os indi­ víduos pelos métodos absolutamente lógicos, que supõem análise e conhecimento do indivíduo, e, por vias que consi­ dero mais eficazes, procuremos atingir até os elementos activos da formação. Insisto talvez demasiado para vosso gosto. É porque nós estamos no nó do drama, porque tocamos nas razões pro­ fundas do erro escolástico e pseudo científico cujas conse­ quências suportamos. Vamos reconsiderar lealmente o problema, tomar a criança não no domínio hipotético e ideal que nós nos comprazemos a imaginar, mas tal como ela é, com as suas impregnações e as suas reacções naturais, e também com as suas virtualidades insuspeitadas, nas quais deveremos funda­ mentar o nosso processo educativo. Tenho reflectido muitas vezes sobre esta questão: tenho observado à minha volta as crianças da aldeia vivendo, brincando e trabalhando; tenho estudado sem nada dizer o seu comportamento perante práticas, métodos, e ensinamentos 150

da vossa escola. Tenho mesmo encontrado nos meus livros, aqui e acolá, alguns pensamentos que me ajudaram a apro­ fundar e a medir incessantemente as minhas observações. — Folgo muito com isso, senhor Mathieu, se bem que desconfie um pouco do seu zelo reformador. Desculpe-me a franqueza: é relativamente fácil criticar, passeando por aí, à sombra das árvores, entre os perfumes subtis que nos vêm dos trigos tenros e dos prados em flor. Mas as coisas são mais delicadas, asseguro-lhe, quando estamos na aula seis horas por dia, para romper com hábitos que nos formaram — ou deformaram, admito —, modificar o modo de utilização dum material escolar que é como que o instrumento aper­ feiçoado por um século de experiências, suspeitar dos livros que são, apesar de tudo, uma súmula. — Não me esqueço de tudo isso, e é mesmo esse pen­ samento que condiciona a minha atitude, que já conhecem, em relação aos educadores conscienciosos que seria errado tornar responsáveis por tudo quanto há de defeituoso na formação das jovens gerações. Examinarei o problema, como lhe disse, partindo daquilo que existe, e a realidade não poderia ser negligenciada. Mas eu sei também até que ponto os educadores continuam a ser investigadores; eles estão ainda, como nós, mergulhados na vida; sofrem com o divórcio consagrado pela escolástica, e, no dia em que tiverem entre­ visto a iluminação da ideia fecunda, saberão fazer o esforço e os sacrifícios que se impõem. E depois, que quer, nem sempre se faz aquilo que se deseja. Há momentos na vida dos povos tal como na vida dos indivíduos, em que tudo parece unido e fácil, em que «se vai de vento em popa», como se costuma dizer. Tudo resulta então, como se se tivesse realizado a adaptação ideal às circunstâncias, como se se estivesse em acordo fecundo com as forças que abrem os destinos. Nós vivemos, depois da outra guerra, um desses períodos de branda euforia. E depois a roda volta-se. O acidente, previsível ou não, evitável ou fatal, produz-se. Rolamos para o fundo do preci­ pício. É então necessário, se queremos salvar-nos, retesar os músculos, mobilizar os nervos, vencer a dor por um sobres­ 151

salto viril de energia, romper com as normas de vida dum período passado e tentar subir novamente a encosta agarran­ do-nos a todos os rebentos vivazes que encontramos. A escola de amanhã não deve ser já a escola de ontem. Mas não basta modificá-la. Também precisamos de reencon­ trar os rebentos vivazes onde nos agarramos para ajudar a geração ascendente a fazer face, corajosamente, com eficá­ cia e honra, aos terríveis deveres que lhe legámos. Mas eis que já acabou a missa... O padre volta para a aldeia vizinha... Como outrora... Como se nada tivesse mudado! Aperceber-se-á ele ao menos da inutilidade crescente do seu sacerdócio?... De nada serve pregar o regresso a práticas, a um ritmo de vida que não são já possíveis porque há condições materiais, económicas, sociais, que evoluíram de forma decisiva, e será necessário contar, que isso nos agrade ou não, com essa evolução. Uma vez mais, a vida é o que é; nós devemos construir com ela e por ela.

24.

UMA EDUCAÇÃO PELO TRABALHO

À PROCURA PRÁTICA DUMA CONCEPÇÃO DE EDUCAÇÃO POPULAR INTERESSANTE, EFICIENTE, HUMANA. O TRABALHO SERÁ AO MESMO TEMPO A SUA BASE E O SEU MOTOR Aproximava-se o S. João. Todo o vale resplandecia no mais eufórico dos esplendores. Por toda a parte havia o verde tenro, o verde escuro, o amarelo claro, o azul, sem esquecer a fita luminosa da ribeira que se perdia aqui e acolá no brando cortejo dos prados e dos salgueiros. 152

Manhãs deliciosas, frescas e sonoras, noites suaves ,que pareciam estabelecer uma ponte apenas amortecida entre a tarde que morre e a nova madrugada que se apressa. Tudo é promessa: as hortas férteis onde a folhagem invasora das batatas e dos feijões eclipsa as cercaduras de cravos e de maravilhas; os prados ceifados de espaço a espaço, brechas de morte entre os largos espaços brancos, dourados ou verdes; os frutos nascentes sobre as árvores frondosas, a ramagem majestosa da floresta. Agitação na aldeia: Ontem tosquiaram-se os animais. Durante toda a manhã, pelas ruelas atravancadas, dominaram os ruídos das tesouras cortando a lã e os balidos inquietos das vítimas que iam. esguias e envergonhadas, esfregar a sua nudez contra os muros ou no fundo dos currais. Era também a operação ritual da marcação do gado: a marca com piche, sobre a lã, com a ajuda dum carimbo de iniciais de ferro era uma ope­ ração simplesmente curiosa. Mas a marcação nas orelhas era de uma outra crueldade. Com um golpe de tesoura, fazia-se numa orelha, ou nas duas, a marca particular do proprietário: orelha cortada, ou furada, chanfrada à direita, ou à esquerda, ou dos dois lados. Os animais baliam e depois fugiam sacu­ dindo a cabeça dolorida cujo sangue escorria sobre a camada de palha dos currais, contra os muros ou as tábuas das mangedouras. Esta manhã, muito cedo, todo o rebanho vai para a montanha, onde permanecerá até ao S. Miguel. Todas as crianças estão a pé, na meia-luz da aurora nascente, os olhos ainda inchados do sono. Acompanham, misturadas ao rebanho onde se perdem, os seus cordeiros favoritos, que tanto cuida­ ram e acariciaram, a sua grande cabra familiar e «sabedora», os cabritinhos pretos e brancos, de um modo geral tão agra­ davelmente cabriolantes, e que, nesta manhã, parecem, tam­ bém eles, mal acordados, ou talvez, quem sabe, meio cons­ cientes da aventura em que estão já metidos. O rebanho volteia por momentos na praça como água redemoinhante, antes de meter pelo caminho que leva à floresta. 153

E agora, ali estão as pessoas, de braços pendentes, como os viajantes que, no cais das estações, se olham por momen­ tos enquanto o comboio desaparece na curva da via. Uma emoção comum acompanha os ritos da separação. Depois, uma criança chama, um homem move-se, uma mulher volta em direcção a casa. Rompeu-se o encanto; o grupo move-se; regressam os pensamentos individuais, afastando a mágoa comum. Um silêncio anormal transformou agora o aspecto das ruas da aldeia; os estábulos estão vazios e sonoros como casas depois duma mudança. O sol começa a despontar no cimo da montanha, os pássaros despertam no flanco do roche­ do... Lá adiante, do outro lado, estende-se pelo caminho de Faoul a fita móvel do rebanho que se afasta. O cão pastor ladra alegremente, e o ruído mortiço dos guizos detém por muito tempo ainda, junto ao parapeito, as crianças agora desocupadas, um tanto desgostosas e desorientadas. Mathieu enviou também o seu rebanho e demora-se, como os outros, indeciso, na praça vazia. À esquina do edifício municipal apercebe o senhor Long que, nessa manhã de quinta-feira, quis gozar o espectáculo como curioso e como poeta. — Tenho que ir ceifar para Graneirée, diz-lhe. Se quiser acompanhar-me terei muito gosto nisso. Não se esqueça de trazer um cesto; há lá cerejas muito maduras que são presa dos pássaros... Poderá aproveitar... É só o tempo de almoçar... Já me ouvirá passar com o meu burro... Nunca se recusa um convite tão aliciante! A natureza é tão rica em promessas íntimas, ao longo dos caminhos frondosos, que o senhor e a senhora Long nem pensam em interrogar Mathieu, que sem dúvida também pensa nisso: pensar não é a sua função. A sua função é viver no quadro da sua família, da aldeia, da natureza, permanentemente integrado nessa ambiência da qual participa. Foi só a meio da manhã, depois de haver ceifado uma bela colecção de paveias e dos seus convidados terem colhido e comido cerejas até se fartarem, quando o sol já quente 154

tinha reduzido e tomado mais lentos os ruídos e os aromas, que Mathieu veio sentar-se e que nele subiu de novo a vaga das suas meditações. — Encontraram ainda ao menos o bastante para se satis­ fazerem? — Seria preciso ser muito exigente... — É que as crianças já por lá passaram... com os pássa­ ros... A natureza pertence-lhes e eles aproveitam-se dela... Se os vissem subir à árvore e insinuar-se por entre os ramos; se os ouvissem chilrear e rir! Decerto nunca assistiram a uma tal animação nas vossas aulas!... — As coisas não se podem comparar... — E porque não? Acham que o desejo de conhecer e de agir não possa ser, em certos momentos da vida, tão imperioso, tão dinâmico como o desejo de satisfazer a gula? Não digo que um possa e deva substituir o outro, e não é certamente assim que devemos pôr o problema. Diante duma bela cerejeira carregada de frutos maduros, a tentação é irresistível. Mas a criança satisfeita fisiologicamente tem no entanto consciência de não haver cumprido o seu destino. Para aumentar o seu poder, para levar ao máximo de inten­ sidade a sua natureza exigente, ela é capaz de fazer muitos sacrifícios. Só que, para nós, o segredo consiste em não amor­ tecer esse desejo, em não arrefecer esse entusiasmo porque um e outro serão as alavancas decisivas da nossa educação. Imitemos a natureza: não quero naturalmente dizer que ela tenha disposto tudo de propósito para nosso uso e prazer. Longe disso. Mas ela é monotonamente impertinente e austera como entre vós sucede no estudo e no trabalho. Por toda a parte onde a terra é habitável oferece ela as suas alegrias: — alegrias dos olhos, dos ouvidos, do gosto — ou as suas promessas. Parece que nem o homem, nem a criança, pode­ riam viver sem o florescimento desses benefícios que dão sentido aos seus dias. Não é dessa acentuada uniformidade que vocês lhes oferecem nos vossos livros que os alunos têm sede, mas de calor, de frio, de brilho, de choques, de gritos, de cantos, de esforços... Eles são como uma corda cuja natu­ reza está em vibrar. Vocês receiam que ela se parta e vão 155

reduzindo as reacções, diminuindo as coisas, poupando até ao excesso as transições inúteis. Isso é, creio eu, um grave desconhecimento da íntima compleição das nossas crianças. Falta-lhes amplitude: a bran­ cura deslumbrante da neve no Inverno e a tenra verdura da Primavera, o frio que pica e o sol que queima, a espessura das folhagens e o azul profundo de um céu que se reflecte na pureza cristalina da água, os ramos de cerejas como gotas de sangue sobre um fundo de folhagem, o ribombar do trovão que se segue ao silêncio suspeito duma atmosfera finalmente desanuviada. E amplitude neles também... O homem envelhecido ou prematuramente gasto a quem esses contrastes irritam e fatigam, que foge da neve, calafe­ ta-se contra o frio, atenua as oposições, persuadido de que é prudente e natural caminhar gravemente, corrigindo os ex­ cessos duma natureza exigente. Diminui as distâncias, reduz as encostas, inventa aparelhos para evitar correr, trepar, transportar, forçar os músculos e esticar os nervos. A criança não entende assim. Vejam-na a passear: faz como os cabritos caprichosos que não sabem seguir calmamente um rebanho. Detêm-se simulando mordiscar um rebento, sobem a um tronco, sentem como que um prazer malicioso em ver o grupo afastar-se até desaparecer na curva, depois deitam a correr e ultrapassam-nos numa farândola... O mesmo se passa com a criança. Nós seguimos lenta­ mente pelo meio do caminho; ela tem necessidade de correr da direita para a esquerda, de deslizar para a vala, de saltar para o parapeito duma ponte, de medir a profundidade duma poça de água, de se perder na cabeleira florida dum campo. Precisa de amplitude: cantos e choros, alegria delirante e tristeza profunda, apego doentio e repulsa violenta... Tudo isso está perfeitamente à medida duma natureza que ignora a nossa falsa ponderação. Nós temos tendência para considerar como anormais essas vibrações, essa agitação, esse desgaste inconsiderado de energia que é um sofrimento para as nossas almas de avaros. Por pouco exigiríamos que a criança economizasse 156

as suas pernas, os seus gritos, a sua força, o seu calor. Cálculos de comerciantes míopes que esquecem que se trata no caso duma mercadoria maravilhosa: quanto mais se gasta mais se tem! A vida é prodigalidade... A economia mal com­ preendida, é a morte. Nós somos como águias envelhecidas e impotentes que se arrastam lamentavelmente nas cavidades das rochas, não ousando já enfrentar nem o ar do largo, nem a presa distante, nem a corrente temida e que consideram loucos, excessivos e presunçosos os audaciosos que partem como que jogando-se de vale em vale, passando por cima das nuvens, mergulhando sobre a sua presa, indiferentes ao perigo. Porque não podiam voar, os escoliastas tentaram cortar as asas às suas vítimas. O mais triste é que o tenham parcial­ mente conseguido, que tenham declarado uma guerra por vezes vitoriosa à actividade, à alegria, ao entusiasmo; que eles tenham persuadido os filhos dos homens de que devem ser prudentes, comedidos, humildes, dóceis ao dever; que os tenham detido à beira do ninho onde eles se preparavam para tomar o seu vôo e os tenham destituído, em nome da sua ciência, da audácia física e intelectual que traziam na sua natureza generosa. Este é mais um aspecto do grande crime permanente contra os nossos povos mal civilizados, uma das razões da sua decadência, resultado dum falso cálculo científico e econó­ mico que ignora e contraria a vida. Felizmente, algumas naturezas mais rudes, ou mais solidamente marcadas pelo destino, e que escaparam à grande empresa de morigeração — não apenas os génios, mas também os vossos cábulas por vezes, os vossos ignorantes, os indisci­ plinados — puderam ainda voar, escapar à direcção ciosa dos seus mestres e partir para a frente, testemunhas obstinadas da perenidade do nosso ideal. — Você exagera, senhor Mathieu, e generaliza muito depressa algumas observações infelizes e lamentáveis. Nós, que pretendemos precisamente dar asas, só conseguiríamos, na prática, quebrar o impulso daqueles que devem subir e agir! — E no entanto assim é, meu amigo: a velha águia. 157

sobre a sua rocha, está ainda orgulhosa do seu destino. Ela tem a experiência e a astúcia que suprem, em parte pelo menos, as virtudes de juventude que a abandonaram. Cada geração defende-se como pode e justifica a sua atitude! — E a Escola, pelo que diz, não seria mais do que um organismo de defesa das gerações instaladas na vida?... — Não irei mais longe na minha justificação porque isso seria inútil ao assunto que nos preocupa. Eu disse apenas que a Escola tinha, intencionalmente ou não, subestimado, ignorado, negligenciado às verdadeiras forças que, na criança, vão no sentido da cultura e da vida; que ela contrariou essas forças para as substituir por outras normas de comporta­ mento, outras disciplinas, com as suas justificações mesqui­ nhamente especulativas. E a Escola está longe de haver fracassado completa­ mente; talvez ela tenha sido mesmo mais bem sucedida do que se crê. A nossa juventude é hoje uma geração demasiado ponderada, demasiado sujeita ao ritmo dos velhos, uma gera­ ção ela própria envelhecida antes do tempo e tem natural­ mente tendência para educar à sua imagem a geração seguinte. A menos que haja um improvável sobressalto, uma rectificação inesperada? A menos que as gerações actuais con­ sintam num esforço de compreensão sustentado por um imenso sacrifício de amor-próprio; a menos que elas admitam ser incomodadas nas suas comodidades passivas, na sua vida ordenada de burgueses cuidados e egoístas, por uma juventude que reencontrasse primeiro o seu impulso em direcção à vida, depois o seu gosto pelo trabalho, e também a possibilidade técnica de realizar os seus sonhos de elevação e de conquista. — Acho então que faria bem em apresentar e realizar o seu programa começando pelo fim e convertendo aos seus pontos de vista os homens que dispõem da autoridade. No que nos diz respeito, não é a primeira vez que nos pedem um rude esforço, sacrifícios de amor-próprio, uma completa devoção ao futuro da nação, em nome do ideal, do progresso, da razão ou da humanidade. Aquilo que nós temos dado generosamente não tem tido grandes efeitos salutares pois que você nos demonstra mesmo que não fizemos outra 158

coisa senão mergulhar ainda mais no erro. Assim, compreen­ derá que os educadores por sua vez possam estar um tanto desiludidos, que se embote o seu entusiasmo, que nasça neles um cepticismo resignado que é, para a nossa corporação, o mais grave dos perigos, pois que supõe a morte do nosso idealismo e a evolução para funcionarismo do sacerdócio a que, de princípio, havíamos tentado entregar-nos. Tudo isso porque nos lançaram para a frente como se o ideal, a devoção, o amor pelas crianças bastassem para o sucesso duma educação generosa e sensata. Apenas se viu o problema educadores, sem considerar em si mesmos os problemas crianças e escola, e recusando-se aos sacrifícios materiais, financeiros e sociais que teriam tornado férteis a nossa boa vontade e a nossa devoção. Como um lavrador que fosse colocado autoritariamente diante do seu campo e deleitado com grandes palavras sobre a nobreza da missão de semeador, sobre o esplendor das searas louras, e a quem se não desse nem estrume para fertilizar e beneficiar uma terra ingrata, nem arado aperfeiçoado, nem atrelagem sólida para abrir a terra à semente, para a arejar e fecundar. Melhoremos a terra, realizemos os instrumentos necessá­ rios, ou exijamos que se faça um esforço — possível — para no-los fornecer; que nos interessemos finalmente, positiva­ mente, pelas crianças, pela sua saúde física e moral, pela satisfação das suas necessidades construtivas. Então, nós reco­ meçaremos com confiança uma tarefa de que sentiremos a eficácia e o alcance; depois dos primeiros sucessos, desde o primeiro aparecimento duma colheita que será a nossa recom­ pensa, redobraremos de esforços entusiastas. Alguém disse que não é necessário ter êxito para perse­ verar. Não tinha razão: não poderia haver perseverança sem um princípio, pelo menos uma ilusão de êxito. O que é normal, pois como não duvidar duma actividade sem resso­ nância, dum esforço que não conduz a nenhum resultado sensível? — Reconheço que levantou muito bem um certo número de problemas que eu nunca tinha examinado sob essa luz de bom senso e de simples humanidade. Mas devolvo-lhe 159

agora a sua argumentação. Não basta dizer: seria necessário modificar os vossos objectivos, reformar os vossos métodos, dar à criança um lugar muito mais eminente no vosso sistema de educação, dar mostras de dinamismo e de animação para suscitar e despertar dinamismo e entusiasmo. Isso é atribuir uma importância exagerada ao poder reformador do verbo, dos nossos desejos, das nossas recomendações ou mesmo do nosso exemplo. Não será por ter assobiado ou rezado enquanto lavrava que o semeador verá crescer uma melhor seara. Espe­ ramos que nos ajudem efectivamente a escolher melhor o grão, a melhorar o solo, a aperfeiçoar as nossas formas de cultura. Poderão então vir exaltar o nosso sacerdócio. Seria demasiado falso, sobretudo quando a situação é crítica, limi­ tar-se a apresentar-nos planos de reforma, a denegrir o passado para justificar as teses que muitas vezes não têm por si mais do que a sua paradoxal arrogância. — Bem quisera eu não merecer as suas acusações tão pertinentes. Nos bons anos, a natureza é tão generosa que a opulência das colheitas nos campos favorecidos compensa a esterilidade total ou parcial dos terrenos magros ou mal trabalhados. E, palavra, parece então que tudo está bem no conjunto e que temos algumas razões para nos acomodarmos com esse aparente equilíbrio. É nos anos de crise, tem você razão, que descobrimos de repente a gravidade dos erros e das insuficiências. E, muito naturalmente, é ao lavrador e ao semeador que acusamos. É mais simples assim, e isso dá àqueles que sofrem um apaziguamento provisório e a ilusão de que alguma coisa vai mudar. Há uma expressão moderna que resume cinicamente essa maneira de proceder: «Accuser le lampiste!...» Sim, nesse momento acusa-se de bom grado o lampiste... 1 e continuar-se-á. — Questão de humanidade e também de bom senso, não lhe parece?

1 Subalterno bilidade. — N. T.

160

sobre

o

qual

se

faz

recair

toda

a

responsa­

Você recordou-me, ao longo das suas interessantes dis­ sertações, que os problemas sempre ganhavam em ser bem postos, que era bom distinguir os dados exactos é colocar as dificuldades segundo a sua ordem de importância activa relativamente ao objectivo procurado. Já lhe indiquei as nossas exigências: crianças primeiro — técnicas de educação depois — e, finalmente, educadores e meio. — Que eu saiba, aliás, não há nem que as colocar em série nem que as classificar; devemos colocá-las todas no mesmo plano, porque elas são todas igualmente necessárias e dependentes umas das outras. A questão da criação, da saúde, da actividade e da receptividade das crianças ultrapassa-nos um pouco e o nosso papel nesse campo poderia muito bem resumir-se a recordar à sociedade e aos pais responsáveis os seus deveres mais ele­ mentares. O que não seria de resto inútil! As possibilidades técnicas são em contrapartida o nosso verdadeiro domínio de acção. O material, os locais, devem ser realizados não objectivamente, poderia dizer, mas em função principalmente das crian­ ças que os utilizarão; e não das crianças tais como nós as desejaríamos, mas tais como elas são realmente; não num meio particular, imaginado e organizado do exterior, mas no meio natural e verdadeiro das crianças. Os imóveis que abrigam as indústrias modernas não são concebidos e reali­ zados em função das máquinas que deverão receber? E o pró­ prio material não é aí essencialmente função — e exclusiva­ mente — do objecto prático que se tem em vista? Tinha-se pensado que, para as crianças, uma grande sala rectangular ou quadrada, de tecto alto, uniforme para toda a França, para todas as idades, com alguns livros igualmente intermutáveis, era um quadro bastante. Deixava-se ao profes­ sor o cuidado de remediar com o seu engenho a pobreza material, o desconforto dos locais e de adaptar bem ou mal as suas técnicas às exigências do meio e à penúria de instru­ mentos de trabalho. Só o podiam conseguir algumas persona­ lidades de elite, colocadas em circunstâncias particularmente favoráveis. No conjunto, era o malogro. Alguns técnicos dir11

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-vos-iam: malogro previsto, materialmente certo, consequência normal de condições de trabalho fundamentalmente ilógicas. Em semelhante ocorrência, não é numa reforma dos edu­ cadores que se deve insistir: no dia em que a Organização da escola, o seu equipamento, o aperfeiçoamento das técnicas permitirem uma actividade agradável, dinâmica e produtiva como nas fábricas modernas mais bem instaladas, nesse dia o vosso papel será consideravelmente simplificado e normali­ zado. Você será então o engenheiro atento que olha pelo bom funcionamento da empresa comum, que nota as deficiências e os erros para tentar remediá-los, e procura a harmonia dos esforços individuais e colectivos. Não temam ser forçosamente arrastados, por isso, numa excessiva mecanização: a vossa tarefa seria ainda suficientemente atraente; ela nada perderia da sua grandeza porque a máquina humana é ainda um mis­ tério tal que ficarão por muito tempo bastantes imponderáveis a resolver, adaptações a prever e a realizar, um pensamento vivo a fazer circular no mecanismo dinâmico e flexível da nova organização. Mas a partir do momento em que uma tal transformação material e técnica da escola fosse iniciada, teriam por certo que modificar os vossos métodos, a vossa atitude, e em geral todo o vosso comportamento que vos seria necessário colocar ao serviço do novo trabalho. Vocês têm sido até aqui o tarefeiro sobre quem assenta toda a responsabilidade do funcionamento da empresa, e que «se desenrasca» como pode com um material insuficiente ou inadaptado, e operários incompetentes; você era o pequeno patrão que tem que realizar tudo com as suas mãos e a sua vigilância, ordenar tudo, instalar e deslocar máquinas e pes­ soal segundo as necessidades urgentes da empresa, e que se considera por esse motivo, com alguma razão, como o semi-deus sem o qual nada funcionaria, sem o qual, com efeito, dadas as condições da organização, não haveria mais que desordem e precipitação, na falta de se haver previamente introduzido uma ordem natural e inelutável nas coisas, no material, na simultaneidade ou na sucessão dos trabalhos. 162

O que vos pedirão, será então orientar diferentemente a vossa própria actividade. não pretender dirigir directa e indi­ vidualmente as próprias crianças, como o engenheiro moderno que não se preocupa em vigiar em pormenor cada máquina. Terão que organizar um meio de actividade, de vida, no qual a criança se encontrará como que automaticamente enqua­ drada, arrastada, animada, entusiasmada. Quando a seara está aí loura e perfumada e o tempo ameaça, toda a gente, pequenos e grandes, se afadigam espon­ taneamente, com uma espécie de avara voluptuosidade. Será preciso que vocês consigam realizar essas mesmas condições materiais, técnicas, comunitárias, morais e sociais que serão por si mesmas o motor discreto mas decisivo de todo o vosso sistema educativo. A esse trabalho de preparação, de ordena­ mento, de aperfeiçoamento, tão totalmente negligenciado até ao presente, deverão vocês dar o máximo de minuciosa atenção. — Estou a ver: uma espécie de fábrica em miniatura, com trabalho em cadeia, onde o indivíduo será tragado pela máquina, dominado pela organização, subjugado e embrute­ cido... Uma educação mecânica que será a morte do espi­ rito!... Mais vale ainda a nossa anacrónica educação filosó­ fica, por mais imperfeita e desordenada que ela seja... — Ainda não me compreendeu... Não me vê a mim, o feroz e livre trabalhador dos campos, partidário duma escola em cadeia para os meus filhos!... Ah não! Antes os mandaria hoje mesmo correr atrás das vacas e das ovelhas!... Se nem tudo é mau no progresso actual, a Escola deve empenhar-se em tirar proveito das conquistas que tomarão mais eficiente o seu funcionamento harmonioso. Se, condições iguais aliás, eu tivesse um estábulo mais limpo e melhor arejado para os meus animais, com água em abundância, se dispusesse de belas estradas largas e cómodas para ir aos campos; se possuísse boas ferramentas mais práticas do que o velho arado dos nossos pais, faria infalivelmente melhor trabalho que me traria mais alegrias e mais lucro. É um casamento, bem sei, difícil de conformar. Do nosso sucesso depende no entanto a renovação da nossa escola popular. 163

a igual distância entre a reacção cega e obstinada, e um árido e falso materialismo. Não deveria ser evidente para os pais, para os educa­ dores e os administradores que a Escola de meados do sé­ culo XX não pode ser, nem na sua organização material, nem nos seus métodos de trabalho, nem na sua atmosfera, aquilo que era há apenas 50 ou 70 anos? O meio modificou-se; temos outras obrigações, uma experiência — ai de nós! — dolorosa, mas também possibilidades virtualmente incomparáveis. A adaptação é uma das grandes leis da vida: a Escola não poderia subtrair-se-lhe sem faltar à sua própria razão de ser. Insisto ainda porque sinto que reside aqui uma das essenciais mudanças de frente que nós pediremos aos edu­ cadores. Vocês eram até agora como o jardineiro ou o florista que só começasse a ocupar-se do seu jardim quando as flores estivessem prestes a desabrochar. Ele espantar-se-ia por encon­ trar tão poucas bem nascidas; tentaria empurrar e corrigir as outras; arrancaria com obstinação as ervas daninhas que voltariam a crescer incessantemente num terreno envenenado; sobrecarregaria com adubos inúteis plantas que já não esta­ riam em condições de aproveitar deles. E dar-se-ia conta então até que ponto a sua intervenção tardia é ilusória: não foi ele que fez crescer, que enriqueceu e dirigiu essas plantações; e agora o sol oprime-as, a seca gasta-as, a erva abafa-as. Num outro ano, o camponês prevenido preparará cuida­ dosamente a sua terra; cavá-la-á e estrumá-la-á em devido tempo; escolherá as sementes, alinhará as plantações, preo­ cupado nessa altura menos com a própria planta do que com o meio onde ela irá beber os elementos de crescimento e de vida. Saberá ele ao menos, no fim de contas, por que milagre eclodiu sobre o estrume uma flor esplêndida? E soubesse-o ele, que o sentido dos seus cuidados não seria por isso alte­ rado: ele compreendeu que pode ajudar ao desabrochamento dessa vida e obter, pela sua atenção minuciosa, que a seiva suba abundantemente pelos caules vigorosos. Isso basta-lhe: ele sabe por experiência que a planta saudável, harmonio­ samente constituída, convenientemente alimentada, arejada, 164

dirigida, dará as suas mais belas flores, mas sempre, e exclu­ sivamente, à imagem da espécie melhorada da qual ela não faz mais do que continuar a linhagem. Assim farão vocês quando compreenderem o vosso erro passado: prepararão o terreno, oferecerão o alimento espe­ cífico que a jovem planta invencivelmente deseja e procura, afastarão cuidadosamente as ervas daninhas ou os rebentos inúteis, ou mesmo as folhas e ramos supérfluos, para intro­ duzir o máximo de luz, de ar e de sol. E as vossas pequenas plantas viverão, crescerão, desabrocharão, não, é certo, se­ gundo os caprichos da vossa vontade, mas segundo as linhas misteriosas da sua compleição, cumprindo cada uma delas, do melhor modo, o apelo profundo do seu destino. Ser-vos-á necessário aprender com o jardineiro e o florista essa integração da vossa acção na harmonia natural, e sobretudo, essa impressionante confiança na vida, essa pa­ ciência exemplar em presença do lento processo pelo qual se elaboram a riqueza da Primavera e do Verão, a fecundi­ dade do Outono, a calma quietação do Inverno. É esta filosofia que vos falta, sobretudo nas vossas prá­ ticas diárias. Vocês dão uma lição aos vossos alunos, impõem-lhes um exercício, e vão verificar imediatamente, com uma miopia de burocrata, o efeito que daí resultou, como esses citadinos que espetam uma estaca na terra, regam-na apressa­ damente, e vêm no dia seguinte ver se os frutos cresceram. Vocês gritam, aterrorizam, punem, porque a vossa palavra, os vossos raciocínios, as vossas demonstrações não provocaram uma modificação imediata no pensamento e na acção daqueles que vos escutam. O operário pode medir, minuto a minuto, o andamento do seu trabalho; o pedreiro pode assobiar en­ quanto constata que, pedra a pedra, o seu muro não pára de subir. Eu sei que é confortante, que é encorajante teste­ munhar em cada instante, em cada dia, o resultado do nosso esforço inteligente. Nós não somos, nem vocês nem nós, esses trabalhadores à peça, e depressa desistiríamos de tudo se não tivéssemos uma luminosa certeza: que, lentamente, paciente­ mente, com a nossa ajuda, pela nossa intervenção generosa, as flores nascerão e a seara adquirirá o tão desejado tom dourado. 165

É assim: nós não somos mais do que os humildes servos duma natureza cuja menor preocupação é satisfazer o nosso amor próprio e as nossas ambições, que apalpa, escolhe, adapta, digere lentamente, ao seu ritmo e segundo as suas leis. Ah, eu sei: essa lenta frutificação da nossa solicitude é por vezes desesperante. Cuidamos durante todo o Inverno esse mísero cordeiro e ele mal se tem nas pernas que é uma ver­ gonha... Podámos, estrumámos, vigiámos essa árvore, e ela continua enfezada e pálida que não se compreende... E depois o cordeiro segue o rebanho para a montanha e três meses depois já não o reconhecemos, de tal modo se fortaleceu; depois de ter vegetado durante dois anos, por vezes três, a árvore começa a crescer vigorosamente, a «aproveitar» final­ mente, e produz as belas colheitas de que já havíamos deses­ perado. Como querem vocês que as vossas lições possam apro­ veitar instantaneamente aos vossos alunos? É necessário que os elementos que vocês lhes fornecem sejam pacientemente apreendidos, dissolvidos, lentamente filtrados, incorporados à seiva, e que enfim esta suba, enriquecida. E de resto, nesse momento, não distinguirão sequer já no crescimento a parte especial da vossa intervenção. Mas o essencial não será que o crescimento corresponda aos vossos desejos, quaisquer que sejam os seus autores anónimos? A Escola é apressada, demasiado apressada. É verdade que ela é ciosamente vigiada por contramestres que, tal como na indústria, exigem normas de produção e uma certa regula­ ridade do esforço. É um pouco como um engenheiro que quisesse medir a metro o seu consumo de electricidade — tarefa vã. Então, na falta dessa medição do enriquecimento humano, a Escola vai limitar-se à medição da aquisição, como se mede um vaso que se enche... Mas até essa aquisição escaparia muitas vezes ao vosso controlo desconfiado se vocês não tivessem as palavras que são os sinais e a expressão dela. Enchem-se os livros com essas palavras, impõe-se a sua memorização. Descobriu-se finalmente o remédio: um resumo, como dizem velhos mestres, sabe-se ou não se sabe; não há meio termo, e a sanção pode seguir-se imediatamente. Apenas 166

se obtém, com esses processos, frutos precoces e degenerados, que apenas por momentos podem iludir. Como o horticultor que «empurra» a sua planta, quimicamente, para a «forçar» a produzir contra a natureza um fruto enganador que a esgota. Os vossos alunos não digeriram os alimentos, a seiva não foi enriquecida com eles. Vocês fizeram apenas um trabalho de superfície, não só útil, mas perigoso porque a natureza terá que quebrar essa crosta que incomodará e desviará o seu desabrochamento, e ficará finalmente reduzida a procurar, mau grado vosso, as linhas normais e salutares do seu cres­ cimento. Eu sei que os belos frutos feitos crescer à força, apressa­ damente, fazem vista nos mercados, e que a cultura da Escola, por mais falsa e superficial que seja, nem por isso deixa de ser apreciada, medida, sancionada nos exames, nas administrações, no jornalismo. Mas o erro não pode ser impunemente repetido, porque então a árvore estiola-se e morre, a menos que nos coloquemos a tempo na única sal­ vadora Escola da Vida. — Adivinho o seu pensamento. Mas a nós, tal como ao agricultor, põe-se-nos este grave caso de consciência: produzir honestamente, por processos naturais, frutos saborosos e sãos, mas que nem sempre têm bom aspecto e não deleitam bas­ tante o gosto — ou usar dessas criações artificiais da química moderna que intoxicarão os consumidores e acelerarão a sua degenerescência, mas que lhes levarão pelo menos, de mo­ mento, o prazer que eles cobiçam. Nós apercebemo-nos de que somos injustamente impa­ cientes com as crianças e que negligenciamos as tarefas ver­ dadeiramente vitais e profundas. Mas aí estão também os pais, à espreita dos progressos visíveis e mensuráveis; os inspectores, que representam o Estado, entendem igualmente julgar por peças o resultado — positivo — do nosso trabalho... é preciso produzir, e imediatamente!... Cruel dilema!... — Bem me apercebo dele. Por isso me abstive de o acusar a si particularmente. As coisas podem de resto mudar. O cataclismo actual é para nós um trágico ensinamento; ele faz sentir a todos, pais, educadores e controladores, que qual­ 167

quer coisa foi irremediavelmente falseado no funcionamento da máquina social, e portanto da máquina administrativa. Continuo persuadido de que se vocês conseguirem elaborar um sistema educativo melhor assente na vida, melhor adap­ tado às descobertas científicas e às condições económicas; se tornarem a vossa escola mais eficiente não só no plano inte­ lectual, mas também no vasto e complexo domínio do tra­ balho, terão mais adesões e apoios do que pensam. Só que, compreendem-no agora, já não bastam algumas transforma­ ções formais; é uma renovação profunda e eficiente da for­ mação das jovens gerações que é necessário realizar. O público está preparado para isso. Está-o pela degra­ dação crescente duma cultura que se aviltou pela sua submis­ são aos movediços e exigentes poderes temporais. Os homens instruídos, os escritores, os sábios, já não são universalmente apreciados e estimados como no princípio do século A pró­ pria instrução, tal como a escola a dispensa, revelou-se hoje menor. Está rompido o encanto. A magia que idealizava a cultura escolástica deixou entrever os seus ouropéis fora de moda e os seus truques... Outras estrelas sobem no céu, cuja luminosidade é duma outra natureza: a estrela de cinema, talvez iletrada, mas excepcionalmente apta para sentir e expri­ mir a pungente intelectualidade das situações; o cantor de renome, que continua o trovador na exteriorização dos desejos duma multidão ainda primitiva nas suas reacções; o campeão desportivo, que mantém e renova as tradições de luta, de triunfo e de heroísmo; o cinema em geral que fala ao mundo uma linguagem inteiramente intuitiva que, de certos pontos de vista, é a antítese exagerada, e igualmente perigosa, do intelectualismo. Pode dizer-se que, mau grado a aderência tenaz duma tradição secular, a escolástica terminou o seu reinado. O que não quer dizer que não haja perigo em prolongar a sua agonia. Vocês devem substitui-la sem demora por uma for­ mação que mergulhe finalmente no povo, nas suas necessi­ dades, nos seus modos de vida, nos seus hábitos de agir, de trabalhar e de pensar, as raízes vivazes que assegurarão o poder da sua seiva. Mas tereis ao mesmo tempo que ligar 168

essa formação ao grande pensamento humano, a tudo quanto o progresso nos trouxe de positivo e de definitivo, e às grandes correntes de civilização que, através dos séculos, por intermé­ dio da. religião e da tradição, começam esse movimento para a frente que nós temos por missão reforçar e continuar. O que suscita e orienta os pensamentos dos homens, o que justifica o seu comportamento individual e social, é o trabalho em tudo quanto ele tem actualmente de complexo e de socialmente organizado, o trabalho, motor essencial, elemento de progresso e de dignidade, símbolo de paz e de fraternidade. Mas atenção: eu não me limitaria a ligar essa escola ao trabalho pelo falacioso intermédio das palavras e dos livros. Não renovaria essa tradição, mas colocaria efectivamente o trabalho na base de toda a nossa educação. — Alguém disse: «Pensar com as mãos»! — Não exagere num sentido demasiado «operacional» a acepção que eu dou à palavra trabalho. Devemos partir do princípio, do esforço humano e normal e não da sua inter­ pretação prematuramente intelectualista, da sua transposição artificial para um plano aparentemente superior que consagra, na origem, o divórcio ancestral entre as diversas formas de actividade, mais ou menos nobres, mais ou menos úteis. Eu faria da minha escola como que uma rosa dos ofí­ cios, efectivamente praticados, adaptados ao mesmo tempo às possibilidades infantis e às necessidades sociais, nos campos e nas quintas, nas lojas, e mais frequentemente, nas oficinas que seriam as células vivas do nosso centro de educação. — Então, uma escola de aprendizagem? — Entendamo-nos bem. Não se trata aqui de modo ne­ nhum de aprendizagem nem mesmo de pré-aprendizagem. Nós constatamos que o trabalho, que os ofícios estão, quer quei­ ramos quer não, no centro da vida das nossas crianças; eles constituem o substracto comprovado sobre o qual nós vamos construir todo o nosso edifício cultural. Disse-lho já: é pre­ ciso ver primeiro o que existe e construir sobre o sólido e o real. 169

A escola aristocrática, da qual a nossa escola popular actual não é mais do que má deformação, tinha negligen­ ciado menos do que se pensa esse real. Ela tinha, na origem, que formar o homem do mundo, o funcionário, para quem importavam antes de mais esse verniz, essa especulação inte­ lectual, esse malabarismo das palavras que eram elementos indispensáveis da sua futura condição. O erro foi aplicar essas mesmas normas àqueles que nada tinham que fazer delas, tendo outras necessidades, e chapear sobre as suas vidas um adorno de empréstimo, inútil e incómodo. Como alfaiates oficiais que tivessem concebido fatos aparatosos, em­ baraçados de ouro e de folhos para filhos de operários e de camponeses que depressa trocariam, sem o vosso conheci­ mento, pelos trapos descorados mas justos à sua condição. Evitemos no entanto a excentricidade oposta e abste­ nhamo-nos de talhar apenas librés de carregadores, como se o conforto e a beleza fossem o privilégio definitivo daqueles que não conhecem o esforço. Não despojemos o trabalho daquilo que ele tem de subjectivo e de humano para con­ servar apenas aquilo que tende para mecanizar e domesticar o esforço. Não quero discutir aqui a questão de saber em que medida, nas nossas sociedades capitalistas, a selecção do gesto, a estandardização do trabalho são uma necessidade da nossa economia contemporânea. Só receio que selecção e estandar­ dização voltem as costas ao espírito, entorpeçam o pensa­ mento e prejudiquem, desse modo, a concepção formativa do trabalho. Nós praticaríamos principalmente os ofícios na sua sim­ plicidade original, aqueles que estão por assim dizer na base do verdadeiro progresso humano, e praticá-lo-íamos na forma que melhor permitisse a sua integração no processo normal da vida. Não negligenciaríamos o contributo notável da técnica actual, mas deveríamos desconfiar dessa espécie de embria­ guez com a qual as crianças subjugadas se entregam à magia da máquina. — Também não seria conveniente, por pura preocupa­ ção de lógica, sistematizar demasiadamente. Você fala em 170

colocar o trabalho no centro de toda a educação como se a primeira preocupação da criança fosse o trabalho, e não o jogo. Nós temos actualmente, sobretudo pará os nossos prin­ cipiantes, excelentes métodos e um material engenhoso exclu­ sivamente baseados no esforço criador pelo jogo, e que deram as suas provas, asseguro-lhe... — As suas provas?... Que provas! A não ser que seja o fracasso mais total duma fórmula de educação que resultou nesse envilecimento da juventude, nessa passividade de todo um povo que parece ter esquecido para sempre as vias de dinamismo e de virilidade. Sim, eu quereria que fosse lealmente tentado um dia esse método de educação pelo trabalho, e então se veria se ele não formaria melhor a nossa infância, se ele não interessaria mais profundamente os alunos do que as vossas práticas mais originais... demasiado originais! Porque eu não aconselharia a procurar o original, mas antes o normal, o natural, o simples, aquilo que é tão normal, tão natural, tão simples que nem sequer poderia vir à ideia de todos os fazedores de sistemas que, tal como os sistemas filosóficos, se contradizem e se destroem reciprocamente. Eis-nos agora empenhados na prática. Deixe-me estender as minhas paveias para aproveitar do bom sol. E rumine como eu o grave problema a que estamos agarrados e sobre o qual estou um tanto impaciente de dizer todo o meu pensamento.

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25.

MAS QUAL TRABALHO?

SEGURA, SÓLIDA NAS SUAS FUNDAÇÕES, MÓVEL E FLEXÍVEL NA SUA ADAPTAÇÃO ÀS NECESSIDADES INDIVIDUAIS E SOCIAIS, A EDUCAÇÃO ENCONTRARÁ O SEU MOTOR ESSENCIAL NO TRABALHO — Trabalho e Jogo! Dois pólos, ao que parece tão opostos, duma formação que a autoridade excessiva e a exploração desviaram, um e outro, do seu verdadeiro sentido. Trabalho é igual a sofrimento e pesar, condição modesta, situação envilecida de que a dignidade nos manda sair o mais depressa possível. Jogo, compensação do esforço servil, raio de luz na noite, objectivo último da engenhosidade daqueles que não vêem mais do que o gozo que ele pro­ porciona. .. A minha mãe não carecia certamente de virtudes peda­ gógicas. Ela colocou-me desde muito cedo no trabalho efectivo e recordo-me ainda hoje com emoção das profundas satisfações que isso me fazia sentir. Quando nasciam os cabritos, ela dedicava-me sempre um: era o meu cabrito! Eu devia naturalmente trabalhar para o cuidar e alimentar. Recordo-me de que quando a minha mãe queria retirar algumas gotas de leite às cabras para deitar no meu café da manhã, eu sentia uma espécie de remorso à ideia de que era o meu cabrito que ia ser privado desse leite. Quando, na Primavera, apareciam os primeiros amentilhos, com que amorosa solicitude eu levava frescos molhos de vime ao meu cabritinho de orelhas caídas! Quando, pelo S. João, o rebanho se dirigia para a mon­ tanha, eu tinha um grande desgosto por me separar dele, abra­ çava-o e fazia-lhe mil recomendações! Durante todo o Verão, informava-me sobre ele. E quando, no S. Miguel seguinte, 172

o rebanho regressava enfim à praça, o meu primeiro pen­ samento era para o meu cabrito, que encontrava crescido, rude e forte, já com cornos longos e batalhadores. Ele tinha trocado o seu curto pêlo branco e preto, fresco e brilhante como cabelos de bebé, por um vestido fulvo, de longos pêlos ruçados pelo sol e pelas chuvas. E se ele me reconhecia, se voltava a cabeça quando eu o chamava, se parecia recordar-se do caminho do curral, era para mim como uma indizível felicidade. Recordo-me também dum Verão em que eu estava encarregado, quando se debulhava o trigo, de calcar até junto às traves a palha que saía da eira. Eu devia ser ainda muito novo, pois era preciso ser pequenino para correr como um rato sob as telhas. Eu saía dali suando, extenuado, com a garganta seca, o nariz e os olhos mortificados pela poeira, mas estava tão orgulhoso desse trabalho que esperava com impaciência o dia seguinte para recomeçar. Parecia-me que essa vitória me dava novos direitos à sociedade e também uma maior dignidade à mesa dos trabalhadores. Quando chegava o tempo de cortar a alfazema, a minha mãe pendurava-me ao pescoço um saquinho de tela; tinha-me arranjado uma foicinha não muito aguçada, e eu partia, como os crescidos, para ir cortar as flores perfumadas. Da primeira vez, ainda me lembro, tinha cortado não só os rebentos azulados mas também, mais abaixo, os caules lenhosos e grossos com os seus tufos de folhas... O que era trafulhar. Por piedade para comigo, e também para me encorajar, o destilador tinha mesmo assim aceitado a minha carga: 2 quilos... Tinha ganho vinte soldos! Mais tarde, num certo Outono, tinha empreendido colher toda uma folha de batatas. Foi uma dura tarefa! Por mais que eu medisse a todos os instantes o trabalho feito e o que restava por fazer, aquilo não tinha maneira de avançar. Pela dificuldade que esse trabalho me havia custado, pela obstinação paciente que tinha exigido de mim, meço agora a intrepidez do esforço. Recordo-me de todos esses trabalhos como dum sol excepcional que tivesse iluminado a minha infância, enquanto 173

que a vossa escola foi para mim como as gotas de chuva que caiem sobre as pedras planas e lisas da ribeira. Não, o animador da vida desde a mais tenra idade, o melhor fermento de satisfação sã e dinâmica no quadro moral da família e da comunidade, não é o jogo, mas o tra­ balho! — No entanto, o jogo é tão natural na criança, suscita uma tal dádiva de si, um entusiasmo e um ardor tão dinâ­ micos que é susceptível de animar superiormente uma peda­ gogia que lhe compreendesse o processo e o verdadeiro sentido. Todos os observadores modernos estão de resto per­ feitamente de acordo neste ponto: a criança está na idade do jogo que corresponde às suas necessidades ancestrais de actividade instintiva, muito melhor do que um trabalho que supõe já nela uma certa concepção dos seus deveres e uma força de vontade que lhe não é costumeira. — Pois bem! Os vossos pedagogos, por mais célebres que eles sejam, estão errados! — Oh, Oh!... Senhor Mathieu, você fala a sangue frio, enquanto ignora certamente as razões profundas, as obser­ vações e as experiências que os fortaleceram nessa certeza. — É possível. Mas você sabe que opinião das autori­ dades não me comove. Os vossos pedagogos observam, expe­ rimentam, comparam e julgam com as normas do seu espí­ rito prevenido, um pouco como os juízes consideram um inculpado falando dele com uma tão desumana indiferença como o mecânico duma peça destacada da sua máquina. Eles afirmam solenemente; julgam ter descoberto verdades excepcionais, e definitivas... que duram por vezes tanto tempo como a sua geração e que amanhã serão substituídas por outras opiniões igualmente fundamentadas e igualmente definitivas... Vemos aparecer de longe em longe homens em quem a cultura não aniquilou o sentido do humano, nem esse recurso permanente, para além da ciência objectiva, às fontes profundas da vida individual e social. Esses bem quereriam raspar a crosta das palavras com que se embe­ bedam os escoliastas para atingirem a perenidade das ideias. 174

Essa audácia vale-lhes comummente o serem combatidos, vili­ pendiados, torturados... Eles atreviam-se a abalar a medio­ cridade dos falsos pensadores. Não. o que é preciso é tomar o espírito do homem por aquilo que ele é, essencialmente sujeito aos juízos pre­ maturos e aos erros, caçador obstinado de amor próprio e de gloríola, tão apressado em comparar-se à majestade dos deuses que imagina à sua medida... Nós não escapamos de resto à obliquidade. É esse o motivo por que não devemos pretender a perfeição das teorias que formulamos e dos métodos que preconizamos. Não mal­ digamos mesmo dos sistemas que nos precederam. Eles eram quase sempre o fruto, apesar de tudo, duma boa vontade generosa que nós não queríamos subestimar; estiveram à imagem da sua época com as virtudes e as fraquezas que lhes eram como que congénitas. O nosso erro está apenas em acre­ ditar que técnicas de educação aceitáveis, ou mesmo boas há cinquenta anos, possam adaptar-se com as mesmas vantagens ao mundo instável de hoje. E cometeríamos o mesmo erro se supuséssemos que métodos que tentamos à medida da nossa época nos possam servir numa forma imutável, rapidamente desactualizada em relação a um mundo que avança a um ritmo desconcertante. Houve tempo, tempo que não está tão longe como isso, em que o homem tinha consciência duma estabilidade que não deixava de ter uma certa grandeza. A evolução social media-se de século a século e não era sensível de geração para geração. Podia-se então operar com a calma segurança do homem que constrói um muro e que sabe que não o verá des­ moronar-se. Ele tem então um orgulho na sua obra que lhe vem desse sentimento de perenidade exaltada pela sua sede doentia de imortalidade. Mas hoje, os muros desmoronam-se ainda antes mesmo de estarem terminados; os jovens morrem antes que os velhos se extingam e assistimos, mesmo no decurso da nossa vida, a mudanças que perturbam a face da terra. A moda pertence à relatividade. Até a nossa educação deve estar um tanto impregnada dessa relatividade. 175

Digo «um tanto» apenas, porque seria deplorável que a educação fosse também ela um mundo inconsistente à mercê do capricho de hábeis mercadores ou de perigosos políticos. Seria mortal para o homem — e para a sociedade — que se deixasse de construir bons muros espessos sobre sólidas fun­ dações, lenta e penosamente cavadas, e que nos limitássemos a erguer muros fictícios, à superfície, para ostentação, e que aguentarão... tanto como nós, sob pretexto de que o mundo muda tão depressa. Isso seria o perigo oposto, mais temível ainda talvez do qué a imobilidade majestosa da tradição esco­ lástica. Que aconteceria se nós começássemos também a trabalhar o solo à superfície, esgotando a terra com culturas e processos que talvez nos enriquecessem provisoriamente, mas que nem por isso deixariam de tornar as nossas propriedades definitiva­ mente estéreis! Se deixássemos de plantar árvores que não crescem mais depressa do que as crianças e das quais não aproveitaremos? Isso seria destruir a cadeia mística que cria a dependência das gerações e assegura a continuidade da vida. Enquanto conservarem o sentimento da sua eminente digni­ dade os homens não poderão decidir-se a uma tal falência do seu destino. A Educação deve ser móvel e flexível na sua forma; deve forçosamente adaptar as suas técnicas às necessidades variáveis da actividade e da vida humanas. Mas nem por isso deve deixar de cumprir plenamente o seu duplo papel: exal­ tar no indivíduo aquilo que ele traz em si de especificamente humano, essa parcela de ideal que ilumina uma razão de viver, mesmo nos piores infortúnios; enriquecer e reforçar o fundo comum de conhecimentos que é como a nossa terra nutriente o substrato essencial do nosso devir. A educação deve, além disso, no quadro dessa dignidade, preparar digamos tecnica­ mente, o indivíduo para as suas tarefas imediatas. Uma coisa depende da outra. Fundações sem construção que as supere serão rapidamente tapadas pelo tempo impiedoso que aniquila o inútil, nivela e cobre os cadáveres; construções sem conscienciosas fundações dissipam-se igualmente às primeiras arremetidas do tempo. São necessárias raízes à árvore, mas 176

não se poderia conceber a planta sem caule vivo que as con­ tinua e leva uma razão de ser às suas funções obstinadas. E é esse o motivo por que insisto tanto na necessidade que temos de reencontrar primeiro as grandes linhas de vida que assegurarão os nossos fundamentos e nos permitirão cons­ truir em seguida com audácia e dinamismo. Foi porque haviam adivinhado, atingido, explorado essa trama de bom senso, essa revelação duma centelha de eternidade que pen­ sadores e pedagogos — como Rabelais, Montaigne, Rousseau. permaneceram actuais para além dos séculos. Compete-nos a nós entrarmos para a sua escola, reencontrar essa centelha, amplificá-la se possível para que ela anime as obras e as vidas.

26.

UMA PODEROSA NECESSIDADE DE TRABALHO

SE É EXACTO QUE NÃO HÁ NA CRIANÇA UMA NECESSIDADE NATURAL DE JOGO, MAS APENAS UMA PODEROSA NECESSIDADE DE TRABALHO. CONSEQUÊNCIAS QUE DAÍ RESULTARIAM PARA O EQUILÍBRIO E A HARMONIA DAS NOSSAS VIDAS — Eis-nos agora no nosso verdadeiro elemento, conti­ nuou Mathieu. Vamos, mais uma mancheia de cerejas; isto dar-vos-á coragem para o regresso, e a mim saliva para con­ tinuar a minha demonstração. O meu trabalho está adiantado; posso bem dar-me o luxo de filosofar. Dizia eu que não acredito que a infância possa ser caracterizada por uma necessidade exclusiva de jogo. Ou antes, há um mal-entendido sobre a própria concepção dessa noção de jogo. Vou destrinçá-la à minha maneira, aliás sem pretensão. 12

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Porque vemos o gatinho e o cãozinho brincarem demora­ damente quando têm a barriga cheia, e depois dormir, admi­ te-se por comparação que, fora da alimentação e do sono, a maior parte da vida da criança deve ser consagrada ao jogo. Raciocínio superficial que constitui um ponto de partida sim­ plesmente deplorável. Há um jogo por assim dizer «funcional», que se exerce no sentido das necessidades individuais e sociais da criança e do homem, um jogo que mergulha as suas raízes mais ou menos profundamente no devir ancestral, e que, talvez indirectamente, permanece como uma preparação essencial para a vida, uma educação que se processa misteriosamente, instin­ tivamente, não no mundo analítico racional e dogmático da escolástica, mas num espírito, por uma lógica, segundo um processo que parecem ser específicos da natureza da criança. Esse jogo, que é essencial, tanto ao jovem animal como ao jovem homem, é, em definitivo, trabalho, mas trabalho de criança, cujo objectivo nós nem sempre apreendemos, que nós de modo nenhum reconhecemos porque ele é menos terra a terra, menos baixamente utilitário do que nós comummente o imaginamos. Para a criança, esse trabalho-jogo é uma espé­ cie de explosão e de libertação, como ainda o sente, nos nossos dias, o homem que consegue entregar-se a uma tarefa profunda que o anima e o exalta. Sei que se tem formulado a propósito do jogo toda a espécie de sistemas explicativos que, tal como os sistemas filo­ sóficos, se contradizem e se destroem reciprocamente. Ainda aqui se examinou superficialmente, sem agarrar o problema real, ligado a todo o processo dinâmico da criança, motivado pelo passado ancestral, iluminado pelos clarões subconscientes do futuro. Nesses estudos, que não nego que possam ser conscien­ ciosos, esqueceu-se, em minha opinião, o essencial — tão mis­ terioso, é verdade — para deslizar preguiçosamente para uma concepção degenerada do jogo-trabalho. Negligenciou-se, no jogo, esse impulso de adaptação e de libertação para conser­ var apenas o prazer eufórico que ele proporciona. 178

E foi sobre esse prazer, sobre essa euforia, que os peda­ gogos escoaram as suas teorias. Quase se poderia dizer que, desde então, essa pedagogia moderna de que me fala foi basea­ da não no verdadeiro jogo, mas no prazer, o que é uma coisa muito diferente. O jogo tradicional da criança é criador e dinâmico. O prazer que ele proporciona é duma qualidade especial, que não deixa no entanto de ter uma relação com o gozo orgânico, quer digestivo quer sexual. É como uma vibração que sacode o indivíduo e tende a dar-lhe uma maior amplitude, que lhe faz tomar consciência das suas possibilidades e do seu poder que lhe permite medir-se com o mundo ambiente. Não consi­ dero aqui os jogos recentemente inventados por homens per­ vertidos no sentido de que perderam o contacto com os des­ tinos profundos dos indivíduos, hipertrofiaram e deformaram tendências cuja exasperação serve os seus apetites de explora­ ção egoísta. Talvez não compreendam suficientemente a distinção que insisto em fazer e que é no entanto indispensável a qualquer estudo racional dessa questão do jogo. Você ainda é jovem, mas disse-me que tinha sido educado numa aldeia. Sabe por­ tanto que os jogos estão entre os costumes que melhor têm desafiado o tempo; eu diria mesmo que são os únicos que se transmitem maravilhosamente, e sem alteração notável, através dos séculos. Folheava outro dia Um livro que reproduzia uma gravura de crianças brincando na Idade Média. Pois reconheci nesses jogos os mesmos que apaixonaram a minha infância no prin­ cípio deste século. E estou certo de que nada lhes falta, nem mesmo as fórmulas de desencadeamento, de sortilégio e de disputa que os acompanham. É essa permanência que se deveria também considerar se se quer conhecer e precisar as verdadeiras reacções da criança perante o jogo. Vou fazer algumas observações que não têm qualquer pre­ tensão de explicação mas que nem por isso contribuirão menos para nos fazer sentir os erros comummente cometidos na actualidade por todos aqueles, educadores ou não, que exploram 179

o jogo tal como exploram a preguiça, o amor malsão, ou o gosto doentio pelas aventuras. Gosto muito de pensar nos jogos da minha infância e não posso abster-me de uma ponta de emoção quando os vejo praticados ainda hoje na praça da aldeia, de preferência a todos os jogos aperfeiçoados que os vossos livros ensinam. Falava eu certo dia com um dos vossos predecessores que me dizia: o jogo é uma preparação para a vida, uma espécie de aprendizagem inconsciente. Isto é, parece-me um pouco inconsciente. Esta explicação decorre da necessidade maníaca dos homens de darem uma razão, boa ou má, para todos os nossos actos. Jogar faz parte da vida da criança tal como dor­ mir, beber, exprimir-se, amar. Poder-se-ia dizer igualmente: a criança come para crescer... para se tomar forte perante a vida...; se ela dorme, é para recuperar a força gasta. Trata-se, como compreende, de pobres justificações superficiais. A criança joga, e joga mais do que o adulto, porque tem em si um potencial de vida que a faz procurar uma maior ampli­ tude de reacções: ela grita facilmente em vez de falar, corre incessantemente em vez de caminhar, depois cai num sono profundo, com uma colherada de sopa na boca, e nada a despertará até à manhã seguinte. A actividade que lhe per­ mitem, ou que lhe toleram os homens e os elementos não basta para gastar a totalidade de vida; precisa dum deri­ vativo que não pode imaginar em todos os pormenores, e que se limita a copiar da actividade dos adultos, adaptando-se à sua medida. Nós regressamos do trabalho; estamos cansados; o nosso corpo e o nosso espírito só aspiram ao repouso. Sentamo-nos calmamente diante do fogo a olhar os carvões que crepitam, a escutar o brando cantarolar da panela, e proferimos de vez em quando, para aqueles que estão como nós cansados e calmos, algumas palavras rituais, que não fatigam... Não temos naturalmente qualquer vontade de brincar. O rapaz está menos cansado do que nós, mas está no entanto um pouco quebrado já. E vai à noite conversar com as raparigas da região, à soleira das portas... É a sua idade... 180

A criança, é como um motor poderoso que se dá até ao extremo limite. Resta-lhe ainda alguma vida para gastar e não pode limitar-se a estar ali sentada, connosco, a escutar o correr do tempo. Vai novamente brincar e será preciso chamá-la repetidas vezes para a arrancar à sua nova actividade... Mal regressa, acabou-se! Adormece... Reacção natural... E se vir uma criança sossegadamente sentada à noitinha ao pé dos pais, enquanto se ouve na penumbra da praça os gritos de grupos endiabrados, pode afirmar: «Aí está uma criança doente!». E se isso for seu costume: «Eis uma criança anormal, gasta, sem vitalidade, velha antes do tempo, que apenas suporta uma amplitude reduzida; a quem a corrida, os gritos, as pancadas, o medo, fatigam e obsidiam. Não se trata dum modelo de criança sossegada, como por vezes se diz; é uma criança velha, que está, desde o nascimento, no declínio da vida». Eu alegro-me sempre quando os meus filhos brincam; é sinal de que o seu sangue circula vigorosamente, e de que têm vida em abundância... E é-lhes necessário! É com efeito próprio da criança, tal como para a tor­ rente, exceder sempre a medida: ora em seco, ora transbordante e ruidosa. Quando ela é calma e regular, é ribeira mas já não torrente. O que acabo de dizer ajudar-lhe-á a compreender a liga­ ção, e as diferenças, que podemos descobrir entre esses dois elementos essenciais de actividade: o trabalho e o jogo. Se a minha teoria — neste domínio, depois de tantos outros, temos que limitar-nos a teorias — se a minha teoria é exacta, se o jogo não é mais do que exautório duma acti­ vidade que não encontrou utilização, poderíamos conside­ rá-lo como um sucedâneo, um correctivo e um complemento do trabalho, e formular que «a criança brinca quando o tra­ balho não bastou para esgotar toda a sua actividade». — Então, o jogo que é comummente considerado como uma distracção seria em seu entender uma forma especial de trabalho, procurado, e se necessário inventado pela criança para gastar o seu excedente de forças. Mas então como se 181

explica que todos os homens, em todas as idades, procurem o jogo com tanta avidez, e muitas vezes à custa do trabalho, a tal ponto que somos obrigados, na escola e na sociedade, a defender-nos dele como do inimigo, um inimigo que tenta­ mos actualmente engodar para o fazer entrar ao nosso serviço? — Você está a ver as coisas do seu ponto de vista de adulto, do ponto de vista duma sociedade que nunca se preo­ cupou com aquilo que a criança deseja e procura, dominada como está pela preocupação de formar prematuramente essa criança em função das suas próprias necessidades do momento. Tentemos raciocinar com um pouco mais de bom senso, colocando-nos lealmente, e com toda a generosidade de que somos capazes, do ponto de vista da criança. Não para deixar crer que este deva ser o novo ídolo diante do qual se incli­ narão adultos e sociedade, mas apenas para ver as coisas como elas são, e não como nós as conhecemos ou as desejamos. Ver com justeza é, na nossa circunstância, a etapa pri­ mordial. Recordemo-nos da nossa infância e vejamos se não havia certos trabalhos que eram para nós mais apaixonantes do que jogos, e que nós não teríamos querido abandonar pelo mais tentador dos divertimentos. A grande alegria da neve no Inverno. De manhã, ao des­ pertar, um luz mais áspera do que o habitual incitava-nos a gozar melhor do silêncio misterioso duma atmosfera acol­ choada: os passos eram abafados; a água da fonte parecia morta e a sineta da escola soava com um som bafado de ferro rachado. Era preciso andar depressa para abrir o caminho para ir à água, antes de ir para a escola. Trabalho? Jogo? A verdade é que eu não teria querido dar o meu lugar a ninguém. Fazia frio, e a neve continuava a cair, o que tornava o traba­ lho lento e difícil, mas eu teimava em terminar a minha tarefa. No Inverno, nos dias feriados, ia com o meu pai recons­ truir muros. É um trabalho penoso: a terra está húmida e cola-se aos sapatos; as pedras estão geladas e de resto tem-se uma certa apreensão em virá-las em consequência dos escor­ 182

piões que se escondem debaixo delas. Mas vemos subir meto­ dicamente o nosso trabalho; regozijamo-nos antecipademente pelos serviços que ele prestará... Os passantes exlamarão: «Olha que lindo muro!» E vamos, e construímos. As horas passam e o trabalho apenas é interrompido até ao pôr do Sol pelo intervalo do jantar. Sentávamo-nos então junto ao muro, ao abrigo dum velho tronco. Acendia-se uma pequena fogueira perfumada sobre a qual se assava um chouriço. Depois recomeçava-se o trabalho. Mas se o meu pai, como o fazem infelizmente numerosos pais inconscientes, se tivesse reservado exclusivamente o papel interessante, obstinando-se em erguer sozinho o muro e utili­ zando-me apenas como servente: «Dá cá essa pedra!... Passa-me essa lasca!... Vai buscar a pá!... Onde é que está o martelo?...» Naturalmente, então eu teria ficado rapidamente cansado, e, lamentando a partida de botões perdida e desinteressando-me com todo o direito dum muro que não era obra minha, ter-me-ia limitado a procurar entre as pedras os cara­ cóis «secos» que trazia à noite para os assar na brasa com uma pitada de sal. Não encontrando satisfação no trabalho, teria aspirado a um derivativo, e o jogo ter-se-ia então imposto. Mas o meu pai tinha uma obscura consciência desse processo favorável. Fazia-me trabalhar a seu lado, «como um homem», dizia ele, com esforços idênticos, as mesmas responsabilidades, e também as mesmas satisfações. Reserva­ va-me uma ponta de muro, que eu reconstruía o melhor que podia. Sem dúvida, só muito imperfeitamente o conseguia, porque erguer um muro é mais complicado do que se julga: ora lhe cresce uma barriga, ora, pelo contrário, fica exageradamente encovado; uma pedra que tínhamos colocado com tantas precauções bascula e cai com o risco de nos magoar os pés; «metemos» o dedo entre as pedras e a unha fica imediatamente toda negra. Ah! não, não há apenas pra­ zer em semelhante tarefa! Mas como se fica orgulhoso por trabalhar como um operário, por pensar que o muro acabado ficará durante dias e anos como um símbolo do nosso poder.. 183

«Olha o que eu fiz sozinho!», diremos mais tarde aos amigos invejosos!... E à noite, regressamos também «como um homem», o casaco ao ombro, satisfeitos como o estamos quando comemos à medida da fome e dormimos à medida do sono. Come-se como um homem, com gestos de homem. E aper­ cebemo-nos então que, em todo o dia, não pensámos em brincar... Se ao menos todos os dias pudessem ser ocupados por trabalhos tão apaixonantes! Quando chegava a altura de apanhar os fenos, o meu trabalho — teria os meus cinco ou seis anos — era espalhar as paveias para que a erva secasse. Também nesses dias o mais prometedor dos jogos não me teria retido na aldeia. O meu pai andava a ceifar desde o romper do dia. Eu che­ gava com o sol, trazendo o almoço. Logo que o orvalho havia secado um pouco sobre as paveias, começava a minha tarefa. Eu era pequeno, não precisava de me abaixar muito para que os meus braços, como braços mecânicos, espalhassem à direita e à esquerda a erva humida que cheirava a terra molhada e onde se debatiam, desesperados, os grilos desa­ jeitados, espantados pelo ruído da gadanha e embaraçados no inextricável amontoado das paveias. Só tinha algum descanso quando havia alcançado o cei­ feiro. Podia então sentar-me e respirar, esperando que meu pai chegasse ao fim do seu trajecto. Admirava a minha obra: graças a mim, a erva ia secar rapidamente... As pessoas que passavam pelo caminho admiravam-se: — Foi este pedaço de gente que fez tanto trabalho? Outras crianças bem poderiam ter vindo solicitar-me para uma partida! Nada no mundo me teria feito abandonar uma ocupação que estava à minha medida e cuja utilidade eu sentia plenamente. Está a ver, tal como para a construção do muro, esses mesmos sentimentos que nós deveremos ter na maior conta quando tivermos que precisar as normas da actividade infan­ til: objectivo procurado nitidamente visível, avanço facilmente mensurável, autonomia relativa na realização, tendo em 184

conta as exigências adultas, satisfação de si próprio e apro­ vação daqueles que nos rodeiam. E poderia citar-lhe exemplos semelhantes! Acha que eu teria trocado o meu lugar pelos jogos mais tentadores que possam imaginar pedagogos e comerciantes, no dia em que começávamos a ceifa? Eu tinha assistido durante toda a Primavera ao lento crescer do trigo e à sua frutificação nos caules vigorosos que o vento faz ondear e que se douram insensivelmente ao calor de Julho. Agora as espigas estavam definitivamente formadas e os grãos endurecidos. Apenas discutíamos a ordem pela qual íamos operar, desde os campos melhor situados até aos mais frios, onde a seara ainda podia esperar. Eis finalmente chegado o grande dia. Partíamos ao alvo­ recer. E não era preciso chamar-me duas vezes! Eu tinha a minha foicinha, mas não podia seguir os ceifeiros. Então, mandavam-me para um canto: junto às estremas onde os espinheiros se misturavam desagradavelmente aos caules ama­ relecidos, ou nas margens do campo, onde o trigo, dema­ siado fraco, ficou ralo e enfezado. Era o meu quinhão, que não me encantava. Mas nem por isso era menos feliz. Quando o sol começava a aquecer e que nós nos sentávamos para o almoço, eu estava orgulhoso por ter ganho o meu pão. À noite, depois de feito o roleiro — e eu tinha tanta dificul­ dade para arrastar os molhos! — regressava, satisfeito com o meu dia. Nem por um momento a ideia do jogo tinha aflorado ao meu pensamento. A realidade do trabalho era bem mais apaixonante! E no São Miguel, quando chegavam as chuvas e, nas noites frias, pastor e rebanho não mais podem dormir ao ar livre, os animais regressavam aos seus currais respectivos na aldeia. Então, durante alguns dias, enquanto se espera a designação dum novo pastor, e também para habituar os animais ao seu redil, cada qual ia guardar o seu rebanho — o que fazia toda uma procissão de pequenos pastores disseminando-se de manhã entre restolhos e alqueives. Eu esperava esse dia como uma festa. Partia sozinho com o meu saquitel do jantar. Pouco importava o que o 185

saquitel poderia conter; não era essa pelo menos a minha maior preocupação, longe disso! Mas eu era o único senhor do meu rebanho, umas trinta ovelhas e cabras. Levava o meu cão. Não era um cão de pastor nem compreendia nada do que teria sido preciso fazer-, sabia, quando muito, por minha ordem, morder ao acaso os jarretes das ovelhas; e se uma delas se voltava, ameaçadora, o cão punha-se a salvo... Isso não impedia que eu fosse o senhor do meu reba­ nho, como um verdadeiro pastor. Levava-o para locais que havia referenciado e que sabia serem ricos em erva deliciosa. Sentava-me; falava às minhas ovelhas e ao meu cão; comia quando as ovelhas ruminavam sossegadamente à sombra; e regressava muito tarde, tão tarde que a minha mãe se impa­ cientava por vezes e mandava o meu irmão à minha procura. Eram dias inefáveis, que me deram talvez as mais puras satisfações que marcaram a minha infância. E quantos dias semelhantes lhes poderia descrever! Observe bem que não se trata, de modo nenhum, de trabalhos exclusivamente agradáveis, apresentando as características principais do jogo, desses trabalhos no decorrer dos quais se ri, se canta, se distrai, sem sombra de dificuldade ou de aborrecimento. Não. Trata-se de verdadeiros trabalhos humanos comportando, como todos os trabalhos necessários à vida, a sua boa parte de fadiga, de preocupações, por vezes de sofrimento: dedos picados pelas silvas ou entalados nas pedras dos muros, monotonia na apanha dos fenos com o calor e o cansaço, espinhos misturados ao trigo, golpe desa­ jeitado da foice nos dedos, que ficam feridos e sangram abundantemente, dias longos e cansaço à noite, responsabi­ lidade por vezes lancinante do pequeno pastor que teme pelas suas ovelhas, pelo cão que as morde, pela ovelha que se afasta sempre e que em vão chamamos, pelos danos possíveis... As compensações são, por outro lado, difíceis de preci­ sar. É antes um conjunto, uma atmosfera, que nos estimulam, que sacodem em nós o que aí há de mais activo, de mais audacioso, e também de mais generoso. Isso não tem qual­ quer relação com o prazer que se julga ser muito especificamente infantil duma boa sobremesa ou duma promessa 186

aliciante: satisfação de cumprir dignamente o seu papel de homem, de fazer um trabalho que «se veja», que seja útil a si próprio e aos outros, ajustado até nos próprios gestos dos adultos, e que realiza como que uma grande vitória sobre si próprio e sobre os elementos. Que importam, à vista de tais satisfações, os cuidados, a fadiga e mesmo os sofri­ mentos! Apenas dão mais valor a uma vitória que nos eleva e nos idealiza. Depois de dias como esses, como já lhe disse, não sentia qualquer necessidade de brincar. Estava satisfeito e cansado. O jogo não se apresentava já como uma distracção, porque se os meus músculos estavam fatigados, o meu espírito, pelo contrário, estava mergulhado numa profunda calma. Se as minhas observações são justas, delas resultaria que os psicólogos cometem um grave erro quando consideram o jogo como um recreio natural e necessário depois do tra­ balho. — No entanto, isso é verdade, até para os homens... Não temos nós necessidade de distracções?... — Isso só é exacto, acredite-me, para aqueles que se entregam a uma certa forma de trabalho, a quem faltam exactamente essas actividades «funcionais» de que lhes dei alguns exemplos. Procure você, por sua vez, nas suas recordações. Encon­ trará certamente momentos, dias, durante os quais se entregou plenamente, totalmente, a uma tarefa que se bastava, que não tinha nenhum desses aspectos de penosa obrigação que são em si mesmos uma penetrante e obsidiante fadiga. Sem­ pre me espanta que a Bíblia dê como divina esta expressão ímpia: «Comerás o teu pão com o suor do teu rosto», lan­ çando assim como que um opróbio e uma maldição sobre a função sagrada do trabalho, e sem nos recordar ao menos que, em certas conjunturas favoráveis, o pão ganho com o suor do rosto tem um sabor mais enobrecedor do que o ali­ mento não merecido; que, numa comunidade bem compreen­ dida o trabalho pode, e deve, ser uma bênção, que ele é a função salvadora susceptível de dar um sentido ao esforço, de iluminar as nossas penas, de medir o nosso poder cuja 187

exaltação vitoriosa ilumina a nossa alma de clarões que participam da majestade dos deuses que nós imaginamos. — Conheci com efeito horas assim, que nos deixam esse sentimento tranquilizador de dignidade e de elevação, mas apenas acidentalmente, ao longo da minha infância. Depois, o trabalho foi para mim, na maior parte dos casos, o trabalho esforço e pena de que fala a Bíblia. Acontece-me, de quando em quando, sentir-me como em comunhão com os meus alunos, em momentos em que se compreende que a vida cir­ cula miraculosamente de um a outro, que o pensamento vibra e se agita como a vossa seara com a brisa da manhã. Mas isso é tão raro e pago por um preço tão alto, pelas horas extenuantes, e, no fundo, estéreis, que no entanto temos que suportar. E nós não somos dos mais desfavorecidos, longe disso. Você próprio considera o seu destino um tanto como um poeta, hoje, mas não ignora que, para tantos infelizes camponeses, o trabalho continua a ser a esgotante maldição... Que dizer então dos operários da fábrica ou dos trabalha­ dores da mina? — Mas não! A mais esgotante das maldições não vem do próprio trabalho, mas da miséria que muitas vezes o acompanha, do sofrimento inútil e injusto, das aflições insuspeitadas dos homens, das mulheres, e das crianças, a quem se rouba esse pão que eles no entanto ganharam, e que sofrem isso na sua carne e no seu coração. O povo não tem ilusões sobre isso. Ele sente que o trabalho é, pelo contrário, o seu único refúgio, a única possibilidade de manter até ao fim esse mínimo de dignidade, de confiança na sua força e na sua utilidade social sem as quais a própria vida seria ina­ ceitável. Vê na aldeia os camponeses cansados, gastos, arruina­ dos; é verdade; os pardieiros que são as nossas casas metem-lhe piedade, e por vezes pergunta-se a si próprio, não sem razão, como é que seres humanos podem conformar-se assim. Mas acompanhe esses homens aos campos como hoje me acompanhou a mim. Vê-los-á então transfigurados. É talvez com efeito o melhor de si mesmos que eles dão às suas ter­ ras, às suas culturas, aos seus animais; ficará espantado com 188

a sua paz quando, depois de terem comido uma bucha de pão e bebido mesmo pela garrafa umas gotas de zurrapa, acendem o cachimbo antes de recomeçarem a trabalhar... E é mesmo assim: se não tivessem esse trabalho, com as satis­ fações que ele lhes dá e a sua útil dignidade, os nossos cam­ poneses não poderiam suportar a sua miserável condição. E os operários? Julga que, mau grado a desumana dureza da sua con­ dição, não há muitos que gostam do seu trabalho? E que gostam dele não só pelas vantagens que lhes dá, a eles e às suas famílias, ou pelos ócios que lhes deixa, mas pelas satis­ fações profundas que dele retiram. Ouvi torneiros falarem com calor da magia que, sob os seus dedos inteligentes, dá forma ao metal; vi operários servirem com um orgulho aliás compreensível as máquinas que compõem, manipulam, impri­ mem e dobram livros e jornais; conheço a paixão do mecâ­ nico pelo seu automóvel com o qual constitui corpo, cujos sofrimentos e fraquezas sente em si mesmo, cuja potência é o prolongamento e o fruto da sua própria potência. E ainda que, em certas circunstâncias, o homem haja pervertido o seu sentido do trabalho, será isso uma razão para continuar com as crianças numa via onde não encontraría­ mos mais que baixo materialismo, exploração e sofrimento? Não discutamos também, por agora, a questão de saber se, mais tarde, a criança terá a sorte de encontrar no trabalho que a sociedade exigir dela uma sombra que seja dessa satisfação profunda que é uma das necessidades da vida. Porque supomos que amanhã a criança tornada adulto deverá privar-se de alimento e recusar por vezes o seu corpo às reparações que este reclama, vamos submeter desde já o jovem ser a uma fadiga e a uma subalimentação que seriam a sua perda? Isso acontece, dir-me-á. Mas a sociedade não se gaba por isso. Ela reconhece, pelo contrário, a necessidade humana, mesmo na confusão geral, de pensar muito especial­ mente na criança, no seu desenvolvimento, para que ela adquira apesar de tudo a saúde e a força sem as quais não poderia cumprir mais tarde o seu papel de homem. 189

Se pensamos, pois, que a alegria do trabalho é essen­ cialmente vital, e mais do que o jogo; se pensamos que é possível oferecer às crianças actividades que as interessem profundamente, que as empolguem e as mobilizem por com­ pleto, é nessa via que devemos embrenhar-nos. — Você pretende verdadeiramente restituir ao trabalho uma total soberania! Mas não vê então as nossas crianças brincarem? — Elas brincam, já lho disse, quando não podem traba­ lhar. Sendo entendido que chamo exclusivamente trabalho a essa actividade que sentimos tão intimamente ligada ao ser que se lhe toma como que uma função cujo exercício é por si mesmo a sua própria satisfação, ainda que exija fadiga e sofrimento. Fadiga e sofrimento não são, de resto, como sabe, inimigos irredutíveis da felicidade; pelo contrário, são por vezes a sua condição prévia. Acredita que se o gatinho tivesse constantemente à sua frente um rato hábil em fugir, em esconder-se, em saltar, pensaria em brincar com a rolha pendurada duma cadeira ou com a folha levantada pelo vento? Naturalmente, na falta do rato, ele exercita os seus jovens músculos vibrantes no sentida das actividades que lhe são naturais. Se não pode trabalhar verdadeiramente, a criança usa igualmente o seu potencial de vida em actividades a que a sua imaginação ingénua e fresca dá todas as aparências e virtudes do trabalho que deseja. Como se opera essa espécie de transferência? O gato imita nos seus jogos o gesto de agarrar os ratos; não irá de modo nenhum divertir-se como o cão, a mordiscar os jarretes dos cordeiros. Ele não inventa o objectivo da sua actividade; apenas sabe imitar. A criança imita do mesmo modo as actividades dos adultos. Imita-os por assim dizer na sua finalidade. Toma o tema do adulto, mas adapta-lhe as normas de execução às suas possibilidades. Procura reali­ zar, no seu meio íntimo, o trabalho que não pode concretizar no quadro social. Vemos assim a ligação que dá ao jogo as qualidades essenciais que reconhecemos no trabalho funcional e profundo. 190

Isto explica já que, contrariamente ao que muitas vezes se crê, o motor principal do jogo, tal como o do trabalho, não seja nem o prazer nem mesmo a alegria. Esse é um desvio menor da concepção corrente do jogo. Os jogos das crianças, pelo menos os jogos ancestrais, aqueles que são por assim dizer específicos à nossa espécie, como o é o jogo do gato com a folha que se arrasta e que simboliza o rato, esses jogos são frequentemente graves, sérios, por vezes nostálgicos; nem sempre são acompanhados de grandes gargalhadas, mas com mais frequência de emoções violentas, de sofrimentos, mesmo de choques de tensão extrema por merecer a vitória. Os jogos são principalmente, tal como o trabalho, satis­ fação dessa necessidade de vida e de actividade que é como que o barómetro do nosso poder específico. Seria interessante estabelecer psicologicamente se aquilo que eu afirmo adiante não é exacto: não há na criança necessidade natural do jogo: mas apenas necessidade de tra­ balho, quer dizer, a necessidade orgânica de usar o potencial de vida numa actividade ao mesmo tempo individual e social, que tenha um objectivo perfeilamente compreendido, à medida das possibilidades infantis, e apresentando uma grande ampli­ tude de reacções: fadiga-repouso; agitação-calma; emoção-apaziguamento; medo-segurança; risco-vitória. É além disso necessário que esse trabalho salvaguarde umas tendências psíquicas mais urgentes, sobretudo nesta idade: o sentimento de poder, o desejo permanente de se superar, de ultrapassar os outros, de alcançar vitórias, grandes ou pequenas, de domi­ nar alguém ou alguma coisa. Considero e reconsidero a questão, porque ela me parece essencial ao nosso raciocínio: segundo considerem estes dois elementos, trabalho e jogo, vocês comportar-se-ão de maneira diferente nas vossas reacções com as crianças, como de resto na realização dos vossos livros de leitura, do vosso material de ensino, dos vossos métodos de educação. — Você não é o inventor dessa vontade de poder. Um grande filósofo alemão faz dela a base de todo um sistema intelectual e social, mas nem sempre se tem feito um uso muito encorajante dela. 191

— Não sei o que terá dito esse filósofo, nem a interpre­ tação que se terá dado das suas teorias. Trata-se apenas de saber se as minhas reflexões são exactas e se esta teoria que eu também apresento é válida. Porque neste domínio não há de momento mais que teoria, uma vez que não pode haver ainda explicação cien­ tífica ou matemática certa. É uma tentativa de explicação que se faz, depois de tantas outras, não discordo. Se ela se revela eficaz para a compreensão da nossa natureza pro­ funda, das nossas reacções individuais e sociais; se se nos revela como eminentemente útil ao nosso comum conheci­ mento e ao nosso comportamento, essa tentativa não deixará de ter valor, enquanto se não encontra melhor — o que é sempre desejável. ...Mas agora tenho que carregar a minha besta. Vocês também devem ter pressa de regressar. Em breve voltaremos a falar de tudo isto... — Teríamos uma grande curiosidade em saber, com efeito, como é que você pensa encontrar uma explicação geral dos actos humanos nesse sentimento de poder. A natureza é tão complexa!... A individualidade humana é como esses peixes que sempre julgamos agarrar e que nos deslizam das mãos no momento em que os vamos atingir. É talvez neces­ sário que seja assim e o mistério é, sem dúvida, mais favo­ rável do que o conhecimento imperfeito à realização, pela natureza, dos desígnios secretos de que nós não somos mais do que joguetes. — Talvez... E no entanto, se nós soubermos analisar, compreender e construir humildemente, Sem querer dominar prematuramente o comportamento vital, sem pretender subs­ tituir os seus fins dinâmicos pelas nossas concepções preten­ siosas e caducas, então talvez consigamos levantar pelo menos uma ponta do véu. — Vão assistir esta noite a um divertimento marcante na vida dos nossos aldeões... — As fogueiras de S. João? — Olhe... Escute... Procure dissecar esse entusiasmo, esses gritos, esse espectáculo digno das cenas pré-históricas. 192

Por mim. dar-lhe-ei de seguida uma primeira explicação com esta chave: o sentimento de poder. — Procurarei recordar-me de tudo quanto foi dito desses costumes por aqueles que se têm apaixonado pelas investi­ gações folclóricas. Confesso-lhe desde já que as explicações que conheço me parecem superficiais e contraditórias, e não duvido de que você nos ofereça ainda alguma ideia original. ...Nós não sabemos verdadeiramente o que nos dá mais prazer: se comer as suas cerejas, se tirar das suas lições ensi­ namentos tão úteis... Regressemos então... Nós sentimos uma certa vergonha em fazer-lhe perder assim o seu tempo... — Acham que eu tinha vindo aqui para ceifar sem des­ canso, como uma máquina, ou como os servidores das máqui­ nas? São os citadinos sem compreensão nem filosofia que têm essa concepção do trabalho. Eles começam a bater, a serrar ou a ceifar sem descanso, para acabarem mais depressa, porque têm o hábito dum trabalho árido e morto, que é pre­ ciso despachar o mais depressa possível, como essas purgas que se bebem nervosamente, fechando os olhos... Um mau bocado a passar... Cansamo-nos mais, é certo, mas logo que se acabe será possível ter outra ocupação... Ter outra ocupação! Distrair-se, divertir-se! Estas são mesmo características, na nossa civilização, dessa separação entre o trabalho e a vida, do esforço considerado como uma punição, com uma lamentável necessidade cuja acção nos devemos empenhar em reduzir. ...Vamos, a caminho! O caminho é mau, mas como o nosso burro vai devagar, temos possibilidade de conversar, abandonando apenas as questões árduas que nos tomam tão totalmente que esquecemos tudo o resto. Sim... Um citadino diria: «Espere-me à saída, para conversarmos...». O camponês leva-vos consigo para os cam­ pos e conversa enquanto trabalha. Duas concepções do ritmo do mundo. Nós, camponeses, não nos submetemos ainda à mecâ­ nica; vivemos e trabalhamos ao ritmo da natureza. E não há motivo para ser impaciente com ela. O trabalho aqui não tem 13

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imediatamente a sua recompensa; os êxitos, ou os fracassos consecutivos de erros só se revelam depois de meses de imperceptível evolução. A erva cresce lentamente, e este trigo, que diríamos quase maduro, que você julgaria pronto a ser cegado, tem ainda que endurecer o grão durante várias semanas. Se algum dia encontramos nos campos um desses tra­ balhadores de ocasião que cavam com uma obstinação ani­ mal, sem erguer a cabeça, que estimulam exageradamente o burro que vai troteando sob o chicote em vez de avançar com o seu passo indolente, ou que nem deixam respirar os bois no final do rego, podemos dizer: Aí está um novato nestas andanças, que quereria ver o campo dominado e disciplinado como as máquinas das cidades... Mas ele encontrará a tarefa árdua e acabará por chegar à razão! Você sabe como os nossos camponeses são trabalhado­ res. No entanto, veja-os seguirem o burro carregado, como nós o fazemos neste momento, com o vagar bastante para estudarem à direita e à esquerda o desfile das culturas e o andamento dos trabalhos. Quando cavamos, a nossa ferra­ menta é manobrada ao ritmo da respiração, e, de vez em quando, sentamo-nos um pouco na corte ou erguemos a cabeça para admirar o céu, calcular a ameaça das nuvens, concentrar-nos um momento sobre uma flor que apercebemos de repente como se tivesse acabado de surgir numa explosão, para seguir o grito saltitante do melro, o canto distante do cuco ou o voo dos pombos bravos. Depois retomamos o trabalho. Mas a este ritmo, podemos aguentar-nos doze ou quinze horas onde o trabalhador impaciente se esgotaria em meio dia. ...Os motores mais lentos são os que duram anos e anos, com rendimento uniforme... Um motor nervoso é muito mais delicado! ...A nossa função é trabalhar. Por vezes os domingos são mesmo para nós um incómodo e preferimos à mândria soporífera das tardes passadas na soleira das portas um tra­ balho ligeiro e fácil nos campos familiares: podar uma árvore, regar feijões, acompanhar os animais ao prado. Só paramos de trabalhar para comer e dormir. Mas divertir-nos-emos 194

durante horas a embelezar um canteiro recentemente plan­ tado. a arranjar uma vedação, a abrir um canal, a erguer um muro, a colher frutos, ou muito simplesmente a conversar demoradamente com um vizinho que parou à beira do campo sem se preocupar com o sol que sobe e que começa a dar a volta... Então, quando discutimos assim sobre o nosso futuro, no quadro deste ritmo natural em que nos banhamos, é como que o nosso trabalho que prossegue. Ou antes, isso faz parte da nossa vida de trabalho e não se opõe de modo nenhum à paciente continuidade do nosso esforço. Para nós não há o trabalho e as penas por um lado, e por outro o prazer pelo pensamento e pelo gozo. Não: tudo isso se funde para cons­ tituir um todo, e o pensamento nasce do trabalho, modela-se e esculpe-se ao seu ritmo, vivifica-se com os seus ensina­ mentos. E depois, temos uma inquebrantável mas humilde paciên­ cia. O nosso trabalho não faz mais do que ajudar a natureza a produzir; não temos essa ilusão do homem demasiado civi­ lizado que se persuade de que a sua indústria produz por si mesma objectos e benefícios. É da natureza que nós espera­ mos o fruto maravilhoso dos nossos esforços; é a vida, da qual pretensiosamente nos julgamos por vezes senhores, que detém o segredo. Que o nosso pensamento se misture vigorosamente a esse permanente devir, mas deixemos este seguir o seu caminho misterioso, para os seus objectivos que são sempre a exaltação da vida, o triunfo do equilíbrio e da harmonia. — É realmente preciso um optimismo bem camponês para raciocinar assim, em tempos tão decepcionantes! — A desordem de que nós somos vítimas só faz apreciar melhor, e lamentar, o bom senso que desprezámos. Os homens quiseram separar o pensamento da natureza e do trabalho; é a isso que eles chamam por vezes ser objectivo! Pretenderam criar, segundo normas suas, para além dum ritmo que con­ sideravam ultrapassado. Foram desequilibrados e desequili­ braram as suas obras por uma falsa concepção do trabalho e do prazer. E é esse o erro que também vocês cometem nas 195

vossas escolas... Porque todos nós somos, de algum módo, responsáveis... Quando o cancro rói uma parte no entanto bem locali­ zada do nosso corpo, é em geral demasiado tarde para reagir. Todos os nossos órgãos participaram, durante meses e anos, na anarquia celular de que o mal é a manifestação violenta. De nada servirá mesmo extirpar a parte doente se não fizer­ mos um esforço supremo para reencontrar o sentido das nossas reacções e da nossa vida. É com razão que a Igreja coloca o orgulho entre os mais perigosos dos pecados. Não é ser tímido, nem retarda­ tário, nem impotente, considerar digna mas humildemente aquilo que nós somos, o que é a natureza à nossa volta, medir as nossas possibilidades e agir virilmente no quadro do nosso destino. Nós não somos nem anjos nem animais, e quem se quer fazer anjo faz-se besta!... Nunca este pensamento me pareceu tão pertinente como no momento actual... ...Mas cá estamos na aldeia... Já os miúdos preparam os molhos para a fogueira! Até logo!...

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ÍNDICE

PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO ----------------------- --------------- 7 INTRODUÇÃO --------------------------------------------------------- --------- 9 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18.

O encontro de duas culturas ----------------------------- --------------- 13 Reencontrar as fontes claras -------------------------------------------- 17 Uma consciência clara e viril --------------------------------------- -- 20 A permanência humana------------------------------------------------- 25 A fonte deve tornar-se torrente, ribeira e rio ------------------------ 23 Os erros humanos da ciência ---------------------------- -------------- 31 Perigos de degenerescência -------------------------------------- --- - 37 O falso brilho — o ouro e a prata ------------------------------------- 43 Reencontrar as linhas de vida ----------------------------- ------------ 46 Conhecimento e sabedoria ------------------------------------------- 52 Os ritmos perdidos ------------------------------------------------------ 54 O progresso ----------------------------------------------------- — 59 A criança desenraizada ------------------------------------------------- 64 O ensino do passado ----------------------------------------------------- 70 Os camponeses poetas -------------------------------------------------- 78 Os perigos da escolástica ----------------------------------------------- 81 A cultura profunda ------------------------------------------------------- 88 O progresso técnico será forçosamente um pro­ gresso humano? ---------------------------------------------------------- 96 19. A instrução nem sempre torna o homem melhor 105 20. Cultura e conhecimentos ---------------------------------------------- 114 21. A memória --------------------------------------------------------- ------ 122 22 O esforço, o prazer e os jogos ------------------------------------- ------ 127 23. A procura duma filosofia ---------------------------------------- ------ 144 24. Uma educação pelo trabalho ------------------------------------ ------ 152 25. Mas qual trabalho? ------------------------------------------------------ 172 26. Uma poderosa necessidade de trabalho ----------------------- ------ 177

Este livro acabou de se imprimir em 19 de Fevereiro de 1974 para a EDITORIAL PRESENÇA, LDA. na Tipografia Nunes, Lda. Rua D. João IV, 590 Porto

Os erros humanos da ciência. Conhecimento e sabedoria. Os ritmos desaparecidos. O progresso. A criança desen­ raizada. O ensinamento do passado. Os perigos da esco­ lástica. A cultura profunda. O progresso técnico será necessariamente um progresso humano? Cultura e conhe­ cimentos. A memória. O esforço, o prazer e os jogos. Em busca de uma filosofia. Uma educação pelo trabalho. Mas que trabalho?