A Conquista de Lisboa aos Mouros - Relato de um Cruzado [First edition] 972669683X

Sob o título de A Conquista de Lisboa aos Mouros — Relato de um Cruzado, dá-se a público uma nova tradução da narrativa

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A Conquista de Lisboa aos Mouros - Relato de um Cruzado [First edition]
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15()(M)() I Lisboa Codex

A Conquista de Lisboa aos Mouros Relato de um Cruzado Edição, tradução e notas de Aires A. Nascimento

Introdução de Maria João V. Branco

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A CONQUISTA DE LISBOA AOS MOUROS Relato de um Cruzado Edição, tradução e notas: Aires A. Nascimento Introdução: Maria João V. Branco Colecção: Obras Clássicas da Literatura Portuguesa Coordenação Editorial da Colecção: Instituto Português do Livro e das Bibliotecas Vega, I. • edição em 200 1

Sem autorização expressa do editor e dos autores não é permitida a reprodução parcial ou total desta obra desde que tal reprodução não decorra das finalidades específicas da divulgação e da crítica.

Editor: Assírio Bacelar Design Gráfico da Colecção: José Brandão I Paulo Falardo (B2, Atelier de Design, Lda.) Design Gráfico da Capa: Ramo de Ouro, Lda. Imagem da capa: Ilustração de Roque Gameiro Fotocomposição e montagem: Ramo de Ouro, Lda. ISBN: 972-669-683-X Depósito Legal: 162302/01 Impressão e Acabamento: Fergráfica -Artes Gráficas, S.A.

ÍNDICE

I. INTRODUÇÃO - A conquista de Lisboa na estratégia de um poder que se consolida ..........................................................

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Notas ...............................................................................................

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11. De Expugnatione Lyxbonensi ......................................................... A Conquista de Lisboa: Relato de um Cruzado...............................

54 55

Notas ...............................................................................................

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APÊNDICE I. Indiculum Fundationis Monasterii Beati Vincentii Vlixbone .......... Notícia da Fundação do Mosteiro de S. Vicente de Lisboa ..............

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Notas ...............................................................................................

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11. Documento de doação do cruzado Raul a Santa Cruz de Coimbra (1148) ..............................................................................................

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I

INTRODUÇÃO

I INTRODUÇÃO

A CONQUISTA DE LISBOA NA ESTRATÉGIA DE UM PODER QUE SE CONSOLIDA

O texto da conquista de Lisboa, que agora de novo se traz a público, é conhecido apenas através de um único exemplar, preservado até hoje no Colégio Corpus Christi de Cambridge•, onde parece ter ingressado no decurso da primeira metade do século XVI, como parte integrante da colecção de manuscritos legada por um dos seus antigos alunos, futuro vice-chanceler da própria Universidade e arcebispo de Cantuária, Mathew Parker (1504-1575)2. Chegou até nós inserido num códice onde parece ter apenas começado a figurar tardiamente3 desconhecendo-se por completo qual terá sido o seu percurso até à altura em que foi incluído no códice onde actualmente se encontra4. Os estudos de crítica textual e análise paleográfica e diplomática a que os sucessivos editores do texto o foram submetendo, permitiram atribuir à cópia que chegou até nós uma datação que a situa inequivocamente entre a segunda metade do século XII e a primeira década do XIII, reforçando assim a hipótese de derivar de um antecedente muito próximo dos próprios acontecimentos narrados5 • Assim, a única cópia que possuímos do mais completo e antigo relato da conquista de Lisboa, em forma epistolográfica, não nos consente que possamos retraçar a sua própria história, enquanto texto narrativo. Furta-se elegantemente a qualquer tentativa de descobrir qual teria sido o seu percurso e ainda menos a sua circulação. Sendo um relato pormenorizado de um empreendimento tão fundamental como a tomada de Lisboa, no momento e no contexto histórico em que surgiu, será lógico considerarmos que o texto não queria apenas servir os intentos imediatos que o seu prólogo propõe e dar conta ao clérigo Osberto de Bawdsey dos sucessos e progressos da empresa dos Cruzados no seu caminho para a Terra Santa. Embora o facto de desconhecermos a sua circulação

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nos interdite a possibilidade de aventarmos muitas conjecturas e explicações que ajudassem a esclarecer as próprias condições de redacção e as finalidades que estavam na base da sua produção6, outros indícios parecem sugerir que este relato se inseria num conjunto de outros textos que perseguiam intenções que ultrapassavam a mais óbvia de relatar as vicissitudes da campanha a alguém que ficou na pátria de origem. A carta do cruzado R. (inicial de um nome que, por razões mais adiante expendidas, consideramos ser Raol/Randu/fus) faz parte de um pequeno mas significativo número de outros textos coevos que também descrevem, embora de modos diferentes, a conquista de Lisboa. Trata-se, para a época imediatamente após a conquista, de algumas cartas de vários cruzados alegadamente também presentes no cerco de Lisboa, as quais, pelas muitas semelhanças que apresentam entre si, têm sido consideradas como derivadas de uma única fonte comum primitiva, a que já Charles W. David chamava a "fonte teutónicam. Mais tardias, mas ainda do século XII, são a Notícia da fundação do mosteiro de S. Vicente de Fora, onde abundantes elementos sobre a tomada de Lisboa nos são fornecidos, e bem assim os Anais de Afonso Henriques e o testemunho da alegada Gesta de Afonso Henriques•. A ser verificável a hipótese de António José Saraiva e Lindley Cintra sobre a época da sua compilação9 , a gesta deveria ter encontrado a sua primeira expressão em anos relativamente próximos da conquista de Lisboa, em tomo do episódio de Badajoz, quando a memória do feito ainda estava bastante viva. No entanto, neste caso específico, é impossível reter uma datação correcta, dada a própria forma como o texto nos chegou e por ser reconstituído. Tanto cuidado em preservar a memória de um episódio específico, num território onde o esforço de conquista é um elemento recorrente e comum e onde essa conquista se repete e reforça cada ano 10, deveria, só por si, despertar-nos para a necessidade de sondar as razões de salvaguarda destes testemunhos numa época e num território em que outras conquistas possivelmente tão importantes como Lisboa não parecem ter merecido as honras de tão relevante construção de memória. Ao contrário de outros episódios do longo reinado do primeiro rei português, como S. Mamede 11 ou Ourique, que só muito mais tarde mereceriam figurar nas crónicas do reino na categoria de momentos fundadores, e ao contrário de outras conquistas igualmente duras e trabalhosas como Leiria, Santarém 12, ou mesmo Évora, de cujos sucessos quase nada, ou mesmo nada, se diz nos anais e crónicas, a conquista de Lisboa foi um acontecimento acerca do qual se construiu memória escrita desde logo, como se houvesse necessidade ou vontade de preservar aquele momento e as suas características, desde o primeiro instante. Com efeito, dos relatos que registam a tomada de

Introdução

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Lisboa, dois (as cartas dos cruzados) são coetâneos, e os restantes foram provavelmente elaborados durante a década de oitenta do século XII. Os ecos dessa conquista fizeram-se sentir em quase todas as crónicas e anais da Cristandade, ainda ao longo do século XII' 3, não só por ela ter contado com o auxílio de um significativo corpo de homens inseridos na Segunda Cruzada e em trânsito para Jerusalém, mas também provavelmente por derivar de uma intenção marcada na divulgação do feito. No panorama peninsular, a Crónica do Imperador Afonso registaria, ainda no século XII, a conquista de Lisboa; no século seguinte, o Chronicon Mundi de Lucas de Tuy, o De Rebus Hispaniae de Rodrigo de Toledo e todas as recensões da historiografia de Afonso X não deixam de realçar a conquista de Lisboa como um dos momentos fulcrais do percurso de Afonso Henriques como rei 14 • Não parece possível, assim, que uma narrativa como aquela que o cruzado normando escreveu, possa estar completamente desinserida do ambiente em que nasceu e das motivações que parecem secundar a campanha de "propaganda" da conquista de Lisboa que levou a que quase toda a tradição hispânica e europeia dos séculos XII, XIII e XIV a retivessem como um ponto determinante. É por tudo isto que, embora possa ser um ponto menos claro, é fundamental tentar clarificar quem está por detrás da elaboração do relato, não tanto do homem que o escreveu, mas sobretudo do ambiente de que era originário, dos interesses e intenções que o compeliram a escrever, e dos fins que se propunha, ao delinear uma narrativa tão longa e detalhada. O cuidado posto na narrativa desperta-nos ainda mais para o carácter estudado e temperado da narrativa, onde o anónimo autor transcreve documentos aos quais só poderia ter tido acesso se lhe fossem facultados pela chancelaria régia, reproduz os sermões e discursos como se tivesse o texto à sua frente e chega a alegar, quando escreve o discurso de Hervey de Glanville, que, se essas palavras não são a reprodução exacta do que foi dito, pelo menos são a transcrição das ideias mais importantes da mensagem 15 • Tal não deveria ser o procedimento de alguém que trabalhasse de forma pouco planeada. A conquista de Lisboa ocorreu num momento extremamente complexo e importante para todos os intervenientes, na Península Ibérica e no restante Ocidente medieval. A questão da autoria do texto e das motivações para a sua produção nos moldes em que o conhecemos é, por isso, tão relevante como os episódios que narra e as mentalidades que reflecte. Assim, em vez de analisar os meandros da narrativa e os elementos sobre a conquista e seu decurso, elementos já proficuamente dissecados por tantos que se dedicaram ao estudo deste texto, optámos por nos fixar no contexto de produção da narrativa, sobre a qual bastantes elementos novos têm surgido nos últimos anos, tentando esclarecer a conjuntura que propiciou a feitura de

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um texto como o De Expugnatione e o meio que o teria recebido e utilizado na prossecução de determinadas finalidades. Na verdade, este texto é excepcional a vários títulos. Trata-se de um raríssimo exemplo de prosa de cariz narrativo com uma escrita colorida e pormenorizada, dentro do árido panorama da produção de textos narrativos na Península Ibérica durante o século XII, testemunho vivido na primeira pessoa, por um cruzado normando 16 que embarcara na grande empresa da Segunda Cruzada. Como tal serve e reflecte realidades que estão para além do mero âmbito da Reconquista Peninsular. O texto descreve um momento e um ambiente que, quer a nível político quer a nível das mentalidades, merece alguma detenção e espelha um mundo em evolução e construção, feito de interesses e lutas políticas e de facções de toda a ordem, mas também um mundo emocional e mental que se desenrola concomitantemente ao longo da sua narrativa, feito de intenções piedosas e profanas, eivado de contactos entre culturas, e permeado da tolerância e intolerância que caracterizava as visões do mundo dos homens do Norte e dos homens do Sul, de guerreiros peninsulares e de cruzados, de muçulmanos e de moçárabes. Daí o permanente fluir da tentativa de transmitir as realidades observadas na intenção de transformar o seu relato numa intensa tradução para o referencial cristão de práticas, léxico e filosofias de vida que caracterizavam "os outros", quer eles fossem os bispos e guerreiros do rei português, quer eles fossem os próprios sarracenos. A constatação de que estamos perante um texto com muitos elementos de originalidade excepcional, cujo conteúdo engloba vários aspectos do estudo dos meados do século XII, justifica o interesse que diversos autores demonstraram pela sua publicação, desde o século XIX, e que os portugueses desse mesmo período e dos primeiros anos do século passado lhe dedicaram 17• Justifica também uma nova edição de um texto que, apesar disso, ainda apresenta muitas facetas por explorar e que a tradução com as respectivas notas ajudará a aprofundar.

* O ambiente político e cultural dos anos 40-50 do século XII fervilhava com mudanças e com alterações. Na verdade, no rescaldo da reforma gregoriana e da querela das investiduras, indissociáveis uma da outra, o Ocidente medieval assistia a múltiplas alterações que lhe confeririam uma personalidade de tal modo renovada e diferente que viria a receber e a conservar durante um largo período de tempo o epíteto de Renascimento do sécu/oX/J1 8• Embora hoje em dia se prefira afastar expressões tão ambíguas e indutoras de preconceito como essa,

Introdução

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parece inegável que o segundo quarto do século XII assistiu a alterações fundamentais no funcionamento de instituições, conceitos e homens, cuja marca deixaria efeitos perduráveis. Os anos que medeiam entre o apelo à Cruzada de Urbano 11 (1095) e a ascensão ao só lio pontifício de Alexandre III ( 1159) são definidos, sob a perspectiva das relações entre o Papado e os restantes poderes políticos, por sucessivas acções, por parte da Igreja, de mobilização, reforma e conversão dos poderes temporais à influência eclesiástica, e pela tentativa de esses mesmos poderes se afirmarem uns frente aos outros, na sombra, colaboração ou oposição a esse mesmo Papado. Assim aconteceu com o papel que a ordem de Cluny, um dos mais importantes veículos da reforma gregoriana, teve nas monarquias ocidentais, como foi o caso da França, da Inglaterra ou das monarquias peninsulares, não só pelo fulgurante florescimento de casas dessa observância nos seus territórios, mas ainda, e sobretudo, pela influência que seus membros mais destacados adquiriram junto dos reis desses estados, como capelães, conselheiros, ou bispos e arcebispos das suas dioceses. As ligações a Roma e o favor que estas ligações preferenciais podiam significar para os monarcas não devem ser negligenciadas, numa época em que o próprio sólio pontifício chegou a ser ocupado por cluniacenses, cujas ligações familiares bem próximas das casas reinantes no Ocidente da altura também ibram determinantes 19• À influência de Cluny como ordem que liderava os esforços de introdução da reforma romana, acrescentavam-se iniciativas que propunham uma mobilização e reforma espiritual que implicava o envolvimento activo e físico da aristocracia dos diversos reinos ao serviço concreto dos desígnios do próprio Papado, tal como seria o caso das ordens militares criadas para a defesa da Terra Santa, do apelo à Cruzada no seio da teoria da guerra santa e da guerrajusta20 , e dos sucessivos concílios ecuménicos onde se procurava não só estruturar a Igreja e debelar as sucessivas crises internas do Papado e externas com o Império, mas ainda catalisar as energias dos nobres e aniquilar resistências como as oriundas das heresias ou dos problemas surgidos pela perda da Terra Santa, ao mesmo tempo que se transformavam focos de resistência passiva em homens ao serviço da Fé e de ideais superiores21 • A cavalaria militar consubstanciava o próprio ideal de colaboração entre as duas faces do poder assim concebido, pelo menos em teoria, e nenhuma das reformas que imediatamente se seguiriam iria voltar a esquecer o contributo desses homens. O rápido favor que os Templários granjearam junto da Santa Sé, para o que contaram com o apoio e auxílio de S. Bernardo, não é alheio a estas influências. O papel dos Cónegos Regrantes, como paladinos da reforma do clero

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secular cuja pureza primitiva tinha sido quebrada, ao lado do início da reestruturação do clero catedralício no sentido de racionalizar a vivência e funções dos seus membros, aparece plenamente em destaque numa data muito próxima da mudança que propunha a ordem cisterciense, que, sobretudo com Bernardo, se assumiu desde cedo como reformadora do desgastado monaquismo beneditino, e cuja marca não se circunscreverá nunca apenas ao nível da reforma espiritual. Os Cónegos Regrantes, cuja missão incluía a vocação pastoral, e os Cistercienses (decerto motivados pelo exemplo de Bernardo) iriam exorbitar da esfera da reclusão monástica em prol de uma intervenção no século; as ligações ao Papado, de quem frequentemente são representantes, legados ou interlocutores, potenciavam as ligações às cortes dos reis, papel que os cluniacenses já tinham assumido anteriormente. A prova mais evidente deste facto são as múltiplas delegações e tarefas de que estes homens eram encarregues, quer por Papas, quer por reis22• O renascimento do estudo dos Direitos nas Universidades, por muito relacionado que possa estar com o surto económico que desde há muito se vinha a sentir e a reflectir nas alterações demográficas e sócio-económicas, não foi posto ao serviço dessa vertente da vivência medieval. Pelo contrário, ele serviu a querela que desde os tempos de Gregório VII se erigia como centro das atenções de forma cada vez mais premente, i. e., formar as bases para que a Igreja pudesse afirmar-se como uma instituição de poder frente ao Império e frente às monarquias nacionais que tentavam impor-se em moldes renovadamente "centralizados" e apoiar as ambições desses mesmos poderes leigos com poderosos escudos teóricos tais como poderiam ser desenvolvidos apenas por aqueles que, recrutados de entre os quadros desses homens que se especializavam no domínio das matérias legais, poderiam conferir-lhes o domínio da fonte de autoridade que desejavam e de que tanto necessitavam. As Universidades iriam fornecer os homens, as teorias e a autoridade que permitiriam legitimar, estruturar e tomar o seu poder eficiente em qualquer das instituições que no quadro do xadrez político medieval disputavam entre si a supremacia do Ocidente medievaF3 • Essa é parte da razão pela qual em breve as cortes dos reis, especialmente nos casos melhor conhecidos de França e Inglaterra2\ se iriam povoar de homens que estudaram leis e que, não raramente, acumulavam cargos no oficialato régio, tais como a chefia dos serviços de chancelaria ou do tesouro do rei, com lugares nas altas hierarquias da Igreja, como bispados ou arcebispados, para já não mencionar as legacias pontificias25 •

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Introdução

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Em 1147, quando os homens que se deslocavam por mar para a Terra Santa decidiram apoiar o rei português no seu esforço de conquistar Lisboa, muitos destes traços estavam apenas a dar os seus primeiros passos e algumas das alterações que em breve seriam bem visíveis ainda não deviam ser divisáveis nos horizontes daqueles que as estavam a viver. Bernardo apoiara e dera um impulso inegável ao movimento para a segunda cruzada, tal como lhe fora comissionado pelo papa Eugénio III, o primeiro papa cisterciense, que tinha entrado na Ordem pela mão do próprio Bernardo, a quem consideraria como seu mentor ao longo de todo o seu pontificado26. A partir da Páscoa de 1146, o abade de Claraval pregaria pessoalmente a Cruzada, em França, nos Países Baixos e no lmpério27 . Era, nessa altura, um dos homens mais influentes na política da época e extremamente próximo do Papado, como já ficara comprovado quando promovera a aprovação da regra dos Templários pela Santa Sé, em 1128, ou quando interviera decisivamente na disputada eleição de Inocêncio 11, em 1130, e, tal como voltaria a evidenciar de forma tão marcante no seu protagonismo durante as condenações de Abelardo ou de Gilbert de la Porrée, e na sua bem sensível participação no concílio de Reims, em 114828 . Mas, se para o restante Ocidente, a luta contra o infiel e a recuperação da Terra Santa assumia foros de uma distante empresa onde as energias belicosas de muitos podiam encontrar o escape e a solução ideal para a salvação das suas almas e a abertura de melhores perspectivas materiais, ou se a possibilidade de integrar uma Cruzada podia significar melhor êxito para os nobres, ou acréscimo de prestígio ou segurança no favor pontifício para alguns reis, para os monarcas peninsulares e seus súbditos a guerra justa que agora se relançava tinha outras ressonâncias. Na Península Ibérica, ao contrário da maioria dos restantes reinos do Ocidente medieval, a guerra contra o infiel era uma realidade quotidiana e não um distante horizonte, e condicionava realmente uma situação peculiar que se instalara no mundo hispânico. A omnipresença da conquista, como elemento corrente e recorrente nas vidas dos hispanos, viria a alimentar, nos meados do século XX, o mito, demasiadamente utilizado pelos historiadores peninsulares, da originalidade hispânica com base na existência da guerra santa de Reconquista, da comunhão de interesses entre a Igreja e a Monarquia e da própria luta como um factor de centralização régia que teria cerceado a formação de um sistema feudal similar ao que se tinha desenvolvido no restante Ocidente29 . Embora já não haja lugar para aceitar a visão redutora da realidade hispânica tal como no-la propunham esses autores, e embora seja perfeitamente reconhecível, em todos os traços da sociedade peninsular que até nós

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chegaram 30, a existência de uma sociedade que evidencia o pleno funcionamento de relações de feudalidade entre os seus nobres, a existência de cisões internas e estruturais nos diversos estratos e facções da nobreza e a recorrente e frequente dificuldade dos reis peninsulares em imporem as prerrogativas da sua soberania face às ambições dos nobres, não se pode ignorar o facto de a guerra contra os sarracenos ter sido uma realidade sensível do dia a dia de reis e súbditos, e de ter condicionado as formas de relacionamento dos poderes nesta região. O esforço de conquista nunca deixou de, por um lado, mobilizar e, por outro, ser utilizado por todos como forma de reforçar, justificar e legitimar o poder dos reis peninsulares sobre terras e homens. Se, na prática, a empresa da luta contra os islamitas nunca impediu qualquer forma de dissensão ou fomentou em demasia o centralismo régio, em teoria, estes monarcas sempre utilizaram a conquista de territórios para a Cristandade como uma estratégia de afirmação de poder e prestígio31 • Assim aconteceria com Portugal, tal como tinha acontecido com Leão e Castela, com Navarra e com Aragão. Na Península, a guerra estava bem presente, e, de há muito, não era necessário recorrer a lutas longínquas para combater os infiéis, com todas as vantagens que, junto de Roma, essa actividade podia trazer aos reis e ao seu domínio. Gregório VII propusera há muito a figura da luta contra o infiel na Hispânia como uma guerra santa, e dos reis hispânicos como milites beati Petri que recuperavam territórios para a Cristandade. O mito da Hispânia como Terra de S. Pedro32 servia tanto os intentos de primazia sobre as outras sés como os interesses dos reis peninsulares, que assumiam os seus títulos reforçados pela força dos papas reformadores e pela penetração da reforma pela mão dos cluniacenses e dos guerreiros franceses. Logo nos finais do século XI, quer Aragão, quer Barcelona33 tinham utilizado a estratégia de se enfeudarem a Roma como meio de conseguirem garantir a protecção pontifícia para consagrarem a sua dignidade e o seu território. Os condes de Barcelona tinham desenvolvido desde cedo, uma estreita ligação aos cónegos de S. Rufo de Avinhão3\ o que lhes valeu vantagens, quer no aspecto do enfeudamento desses senhores a Roma, quer na introdução da reforma eclesiástica, por via dos cónegos regrantes. João Peculiar, futuro membro de Santa Cruz de Coimbra e arcebispo de Braga, pôde decerto testemunhar essas vantagens quando estanciou na abadia francesa. Paralelamente aos condes de Barcelona e aos aragonenses de Sancho Ramírez e de Pedro 11, que se tinham tornado vassalos de S. Pedro nos finais do século XIP 5 , também Fernando I e depois Afonso VI iriam alicerçar as bases da afirmação da sua soberania no apoio do Papado, mas no caso

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vertente, a introdução da reforma seria feita por via de Cluny36, como parece estar patente quer na multiplicação dos cluniacenses na corte e dioceses de Afonso VI quer no recrutamento de guerreiros de entre nobres franceses intimamente aparentados com essa Ordem. Assim, a guerra de conquista sustentava o poder real e alimentava o Papado e Cluny, dificilmente destrinçáveis em finais do século XI e inícios do XII; do mesmo modo sustentava a influência "francesa" na corte de Afonso VI, tão contestada mas tão inequivocamente determinante 37 • Os exemplos mais eloquentes dessa cumplicidade podem ser reconhecidos no que acontecia com as sés arquiepiscopais hispânicas e no papel que elas viriam a desempenhar no contexto político da Península Ibérica. Desde a sua reconquista, em 1086, Toledo recebeu sempre arcebispos franceses e de filiação clunicense, que não se poupavam a esforços para colocar noutras sés hispânicas os seus candidatos38 • Tarragona, pelo contrário, desempenhou sempre um papel distante e independente; muito menos envolvida nas querelas do primado do que as suas congéneres, que em breve procurariam nas disputas políticas os alicerces para a sua afirmação eclesiástica, escudada pelo enfeudamento de seus reis a Roma e protegida pelo bom desempenho militar com que eles consolidavam o seu poder, territorial e juridicamente, podia permitir-se alegar uma dependência directa à Santa Sé que a colocava numa posição diferente das outras arquidioceses 39 • Com efeito, apesar do peso simbólico de Toledo, os seus arcebispos tiveram bastante dificuldade em fazerem prevalecer a sua posição no conjunto das sés arquiepiscopais da Península, quanto mais não fosse por terem de defrontar as ambições das antigas arquidioceses, nomeadamente a de Braga, restaurada em 1071 e fortemente projectada pela ascensão ao condado portucalense do conde borgonhês D. Henrique e posteriormente por Afonso Henriques, e a de Compostela, instaurada ex nouo desde 1220 pelo vigoroso papa Calixto 11. Este era Guido de Borgonha, irmão do conde Raimundo. Ora, este último, desde 1093, privava de perto, na administração da cidade de Santiago, com aquele que em 1096 seria seu chance ler, e que, depois de uma conturbada eleição, a partir de 11 00, seria feito bispo de Compostela, Diego Gelmírez4°. Esta colaboração na administração e na chancelaria do genro de Afonso VI pode ter tido bastante influência na disposição do Papa face a Compostela e no facto de que, enquanto durou o seu pontificado, Calixto 11 haveria de cumular Compostela com privilégios e protecções quer para a diocese quer para o arcebispo Gelmírez. A ligação deste papa a esse santuário exorbitaria a esfera da sua consanguinidade com o conde a quem fora atribuído o governo da Galiza por Afonso VI. Fica

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simbolicamente expressa na atribuição da própria autoria41 de parte de um dos principais monumentos de autoridade e projecção da veneração a Santiago, o Maior, o Liber Sancti /acobi, repositório ímpar das tradições, milagres, liturgia e culto do Apóstolo na Hispânia e veículo de propaganda do santuário e da peregrinação. As teias estreitam-se, como se pode ver, por entre os meandros das ligações familiares e das filiações culturais. O pacto sucessório firmado entre Henrique e Raimundo de Borgonha, para estabelecer a sucessão de Afonso VI, através da mediação de Dalmácio Geret, que fora enviado à Península pelo abade Hugo de Cluny com essa missão específica, é outro dos mais expressivos testemunhos dessas ligações42 . Mas, antes mesmo de Compostela se tornar arcebispado, a cena política iria sofrer algumas alterações. A morte de Afonso VI numa altura em que quer Raimundo quer o previsto sucessor do rei, o infante Sancho, já tinham falecido, prematuramente, iria determinar que o jovem Afonso Raimundes, filho de Urraca, fosse entregue à custódia das famílias galegas e do futuro arcebispo Gelmírez, num difícil momento em que a unidade do reino leonês estava ameaçada pela sucessão de Urraca como rainha, face ao seu complicado casamento com Afonso I, o Batalhador, e às ambições da sua irmã Teresa e do conde D. Henrique. Aproveitando a conjuntura que o fizera próximo de Afonso VI e de Raimundo e que agora o projectava como apoio de Urraca e guardião do futuro Afonso VII, Gelmírez deve ter começado imediatamente a gizar os planos para engrandecer a sua sede episcopal e para tentar utilizar a proximidade ao poder real e as ligações a Roma e à facção reformadora, como forma de conseguir projectar Compostela para o nível de arcebispado e de sustentáculo do poder real. Logo em 1111, num momento em que Urraca ainda era rainha, ungiu e coroou como rei ao infante Afonso Raimundes, de apenas seis anos, junto ao túmulo do Apóstolo, de forma a criar uma tradição que precisaria de muito esforço de justificação para poder ser incrementada43; além disso, decidiu tomar a opção pró-francesa na administração da sua diocese, pelo que adoptou inequivocamente a liturgia romana e adornou o cabido de Compostela de clérigos "franceses" ou de formação francesa, aproveitando assim uma sólida preparação quer em Escrituras quer em Direito44 . Sobretudo, desde o momento em que a sua diocese foi elevada a sede metropolitana, preocupou-se em dotá-la de memória escrita, o que se pode reconhecer na encomenda que fez da Historia Composteland 5 aos seus cónegos de confiança, e da composição do cartulário que mais tarde deveria ser conhecido por Tumbo A, onde se deveriam registar todos os privilégios

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concedidos pelos reis asturianos e leoneses à igreja de Compostela. Como é sabido, a Compostelana centra o seu relato na descrição apologética do episcopado de Gelmírez, mas não deixa nunca de exaltar a ligação dos reis leoneses à sua catedral e ao seu patrono, nem deixa de veicular a imagem da importância da diocese no jogo dos pod~es políticos e no apoio às ambições dos monarcas leoneses. Também talvez não seja um pormenor irrelevante o facto de o compilador do Tumbo A ter sido o então tesoureiro de Compostela, Bernardo46 , a quem o arcebispo encarregou dessa missão. Esse mesmo tesoureiro seria, em 1127, nomeado chanceler de Afonso VII, logo após a sua ascensão ao trono leonês. Com efeito, o último documento registado nesta primeira fase da elaboração do tombo é precisamente aquele em que ele começa a aparecer como chanceler. Embora só em 1140 se possa encontrar prova documental da concessão perpétua da chancelaria régia que, segundo a Compostelana, Afonso VII teria feito nesse mesmo ano de 1127, na verdade, desde essa altura até à reunião dos dois reinos, em 1230, a chancelaria do reino de Leão permanecerá sempre junto do arcebispado de Compostela. O documento que fecha a primeira fase de compilação do Tumbo A de Santiago, é exactamente o que exara a concessão, por parte do cabido e sé de Compostela, do estatuto de cónego de Compostela ao rei Afonso VII, no mesmo documento em que o monarca exprime a intenção de ser enterrado na catedral do Apóstolo, juntamente com a sua mulhe~ 7 • A escolha do santuário de Compostela como panteão real, muito embora nunca tenha chegado a consumar-se, parece indicar que as manobras de Gelmírez chegavam a bom porto e atingiam os objectivos pré-definidos: Compostela tornava-se no sustentáculo material e simbólico dos reis de Leão. Podem reconhecer-se intenções idênticas na tentativa de assimilar a luta contra o infiel na Península à guerra santa de Cruzada e de transformar Santiago no patrono dessa guerra. Esta tradição é fundamentada pelo Liber Sancti lacobi, não só pela reconversão que propõe de Santiago o Maior em Santiago Matamoros, tal como aparece nos seus milagres, mas sobretudo pela inclusão do Pseudo-Turpim como parte integrante da compilação (como se sabe esse livro descreve a campanha de Carlos Magno e seus cavaleiros nas Espanhas com uma missão determinada por Deus; aparecendo como instrumento de Santiago, isso permitia-lhe autorizar o culto de Santiago, agora na figura de guerreiro, pela mão da fonte de autoridade imperial e pontifícia, assimilando de forma inequívoca, o esforço de Reconquista ao de Cruzada, e aproximando os franceses de Santiago, de Compostela e dos interesses hispânicos48 ). Do lado de Braga, era um movimento inverso o que se fazia sentir, embora com idênticas consequências: se a Compostela interessava tornar-se no

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arcebispado do monarca leonês, ao jovem Afonso Henriques interessava encontrar um metropolita cabeça de província eclesiástica que o pudesse apoiar e proporcionar-lhe os serviços e o prestígio de que necessitava. Talvez por isso, logo em Maio de 112849, mesmo antes do recontro de S. Mamede, Afonso Henriques, na qualidade de infante, e fazendo apelo apenas à autoridade que lhe advinha da nobreza da sua linhagem como fonte de autoridade, depois de invocar o exemplo de Afonso VI quando dera a Compostela a cunhagem da moeda, concede a Braga não só a moeda, mas ainda a capelania e a chancelaria régias. Expressava assim uma manifestação de soberania antecipada, ao conceder ao arcebispo do território sobre o qual ainda não reinava direitos de uma chancelaria que ainda não detinha. Revelava já, nessa sua atitude, alguns dos traços que haviam de caracterizar o seu poder. Mais tarde, talvez ainda sob a influência de João Peculiar, a catedral bracarense também havia de mandar compilar os seus cartulários com os registos dos privilégios régios e pontifícios, como Com poste la já fizera; o seu teor daria azo a constantes referências por parte dos arcebispos no decurso das questões que viriam a opor Braga a Compostela e Braga a Toledo. Assim, Braga recorria a estratégias semelhantes às que Gelmírez utilizara para engrandecer o seu arcebispado, mas, neste caso, com um duplo intuito de exaltar e propagar a figura do rei português, ao mesmo tempo que servia para divulgar os direitos de Braga, sob o ponto de vista eclesiástico. Mais tarde, a própria historiografia crúzia de exaltação régia havia de obedecer a um programa político muito próximo do que estivera na base da elaboração de obras como a Compostelana ou certas partes do Liber Sancti /acobi, projectando, em narrativas de cariz encomiástico sobre temas religiosos, a imagem de uma colaboração imaculada com a realeza portuguesa, ou criando textos de memória das acções régias que se conformavam a modelos semelhantes. Talvez não seja exagerado ver nestas criações ainda a inspiração de um antigo crúzio que, como diversos outros seus sucessores, ascendera à cátedra bracarense. A forma como João Peculiar, no futuro, havia de apresentar as reivindicações do seu rei e da.sua arquidiocese junto à Santa Sé, quase sempre na dupla qualidade de arcebispo e emissário do rei, testemunha essa forma de conceber o seu papel. Na agenda das suas visitas a Roma50, às questões eclesiásticas parecem sempre estar apensas manobras diplomáticas, tal como parece ser o caso das deslocações cujo calendário se pode quase sobrepor ao ritmo dos sucessos régios na guerra de reconquista51 • Nesta conjuntura, os anos 20 e 30 do século XII parecem assim ter sido fundamentais para a definição da geografia política e eclesiástica peninsular,

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com Toledo a debater-se com a necessidade premente de assumir um certo protagonismo, mas impotente para lutar contra o processo em curso, tanto em Braga como em Compostela. As desavenças entre Urraca e seu marido e a indefinição da conquista e poder que os soberanos exerciam sobre os diversos territórios, que só a partir de Afonso VII viriam a esclarecer-se, devem ter contribuído para o perfil apagado que os arcebispos de Toledo vão guardar durante os anos que antecederam o apogeu do reinado de Afonso VII. Nessa altura, nomeadamente durante a década de 40, provavelmente estimulado pelos êxitos bélicos de Afonso VII, mas talvez também pela fase de desavenças do rei com a sé de Compostela, o arcebispo Raimundo relançaria a disputa pelo primado de Toledo52 • A grande e importante antiga capital do reino visigodo, só começaria a assumir funções de chancelaria dos reis hispânicos, e apenas dos castelhanos, a partir de finais do século XII, com o advento de Afonso VIII, depois de uma primeira fase durante a qual o herdeiro de Castela recrutara os seus chance leres e notários de entre as fileiras do cabido de Palência53 • Afonso VIII de Castela só viria a conceder a chancelaria do reino a Toledo em 12065\ por privilégio semelhante ao que Afonso Henriques doara a Braga em 1128 e Afonso VII a Compostela em 1127 ou 1140. Apesar disso, os homens da sé de Toledo teriam ainda de esperar pela morte de Afonso IX de Leão e pela reunificação do reino em Fernando III para começarem a afirmar-se realmente no apoio aos serviços da burocracia régia55 • Deste modo, a sua influência e a sua importância, nesta primeira metade do século XII, talvez por lhes estar vedada a possibilidade de desempenharem junto ao poder realleonês o mesmo protagonismo que os seus rivais estavam a construir para as suas arquidioceses, resultou muito mais numa incessante batalha pelo primado das Hispânias, na qual se questionava não só o direito à obediência e confirmação, bem como os direitos de Compostela a algumas sufragâneas, mas por certo também se iria procurar jogar com as questões entre Com poste la e Braga como forma de enfraquecer os outros poderes. Este programa, que encontrava eco nas ambições de Afonso VII, porque servia na perfeição o seu projecto de unidade hispânica e permitia mitigar questiúnculas que o "Imperador" começara a ter com os arcebispos de Compostela, apostava o sucesso do seu ataque às outras arquidioceses no aprofundamento das consequências políticas do papel de primado das Hispânias, através do qual procurava granjear o lugar a que se julgava com direitos, sem atacar os privilégios régios concedidos, quer a Braga, quer a Compostela. Embora a questão se tivesse colocado desde a restauração da catedral em 108656, é inegável que a documentação pontifícia demonstra como a

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questão do primado recrudesceu de tom a partir de 1121, no ano a seguir à elevação de Compostela a metrópole, ainda com Bernardo como arcebispo de Toledo, e durante o pontificado do pró-compostelano Calixto II. Daí em diante, a questão não cessa de se avolumar, sendo as décadas de 30, 40, 50 e 60 aquelas em que a querela sobre o primado esteve mais acesa, não só contra Compostela, que perdeu virulência depois da morte de Gelmírez (1140), mas sobretudo contra Braga, a quem a evolução política do território do rei que apoiava fizera ganhar importância e protagonismo até aí inesperados, mas que os toledanos não iam deixar de tentar neutralizar. Os acontecimentos que se estendem de 1128 a 1147 devem ter sido decisivos na definição de políticas e estratégias e na afirmação de Afonso Henriques como rei de Portugal. Desde a batalha de S. Mamede, após a qual o infante se assume como o novo governante do condado, até ao encontro de Zamora de 1143, quando Afonso Henriques é reconhecido na sua dignidade de rei por Afonso VII de Leão e envia a Roma uma carta a pedir ao Papa que o reconheça como rei e aceite a sua vassalagem, todos os indícios parecem indicar a existência de uma vontade de autonomia política que se procura escudar num consistente aparelho teórico e que se procura fazer chegar até ao Papado com a intenção de a fazer legitimar pelo mais autorizador dos poderes. Isto é feito recorrendo ao argumento de que o privilégio pontifício se justificava pela missão em prol da glória da Cristandade já realizada e a realizar pelo infante, cujo esforço bélico encontrava nas sucessivas vitórias a expressão mais evidente do favor divino, a dispensatio ce/estis, como mais tarde a Manifestis Probatum deixará exarado, quando de facto oficialmente o legitimou57 • Como vimos, todos os monarcas hispânicos até então tinham apostado na prossecução da luta vitoriosa contra o infiel como forma de afirmação de soberania e no apoio nas hierarquias eclesiásticas e nos guerreiros importados sobretudo de França como veículo de aproximação a Roma. Afonso VII prosseguia idêntico esforço, liderando uma vitoriosa campanha para Sul que aproveitava a fragilidade pontual do poder islâmico para implantar de forma eficiente o seu domínio. Esta campanha, apoiada ainda por uma bula de Cruzada, também se viria a consumar numa feliz vitória, em 1147, com a conquista de Almeria, que igualmente passou a memória escrita e que chegou a ser objecto dos versos de um poema épico que a celebrizou58 • Afonso Henriques e os seus conselheiros tinham, pois, de equacionar também os êxitos do seu vizinho mais próximo, o rei de Leão, que cultivava e alimentava junto à corte pontifícia, de todas as formas ao seu alcance, um favor e uma ascendência muito especiais. Na realidade, depois da morte de Afonso VI, o panorama político-religioso assumira novos matizes. À decadência de Cluny junto das altas esferas do

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poder sucedia o crescimento da ordem de Cister. A influência de S. Bernardo nas alterações do quadro de poderes na cúria e mesmo ao nível do Ocidente europeu e sua espiritualidade não pode senão fazer-nos considerar que as escolhas dos reis portugueses, no contexto em que elas surgem, saem de uma consciente política de adesão às duas mais importantes correntes de renovação a que o século XII iria assistir. No seu primeiro momento, a monarquia portuguesa apoiou-se, de facto, nos cónegos regrantes, nos cistercienses e nos templários. Na Lisboa de 1147, quando o rei procurava acrescentar o seu território com uma nova vitória sobre as forças islâmicas, essas três entidades estão presentes, quer directamente na própria luta, quer indirectamente por detrás dela. O caminho percorrido vinha de anos atrás. Logo em 1129, os Templários tinham começado a receber de Afonso Henriques doações e privilégios59 que se iam multiplicar de forma muito sensível nos anos vindouros. Em tomo de 1130 o rei mudou o seu local de maior permanência para Coimbra, onde a canónica regrante muito em breve surgiria, para desempenhar um papel de destaque no apoio a Afonso Henriques e sua descendência60 • Provavelmente desde 113 8 ou 1140 instalava-se a primeira comunidade de cistercienses em S. Cristóvão de Latões, segundo a tradição, sob a égide e por fundação de João Peculiar, então ainda bispo do Porto, com o assentimento régio61 • De certa forma, os cistercienses teriam assim entrado no reino pela mão dos regrantes, com quem mantinham relações preferenciais62 • Como assinalámos, João Peculiar poderia ter tido conhecido directamente a colaboração entre os regrantes de S. Rufo e os condes de Barcelona. Talvez não seja de excluir por completo a hipótese de que as suas estadas em terras francesas, e as suas demoras, em 1135 e em 1139, na corte pontificia e em S. Rufo de Avinhão 6l, possam ter tido uma forte influência no amadurecimento da consciência do seu papel como arcebispo de Braga e conselheiro do rei, tal como desde a sua ascensão à cadeira arquiepiscopal bracarense assumiria. O mesmo se diga da própria concepção dos efeitos políticos que uma atitude semelhante por parte do seu rei poderia conseguir. Talvez essa possa ser uma das chaves de interpretação para o facto de a terminologia da carta de vassalagem que, logo a seguir ao encontro de Zamora64 , Afonso Henriques envia a Roma em 1143, a Claves Regni, efectivamente, estará próxima da das cartas de enfeudamento e protecção com que os papas tinham agraciado os condes de Barcelona e os reis de Aragão 65 • O mesmo talvez se possa dizer quando se considera o efeito que as estadas de João Peculiar na cúria pontificia e o seu contacto com os meios culturais desse momento possam ter tido na consciência do peso e valor que os cistercienses começavam a ter no Ocidente medieval, tal como parece poder

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reconhecer-se na documentação régia portuguesa e nas fundações cistercienses que desde 1140 vão engrandecer-se na fundação de casas cada vez mais influentes e vultuosas, como a fundação de Alcobaça exemplifica paradigmaticamente. O favor que a partir de então os cistercienses virão a granjear, acompanha de perto o favor que também os templários recebiam desde cedo, mas que durante as décadas de 30, 40 e mesmo 50 não vão cessar de aumenta~. O ano de 1139 parece ter tido alguma relevância neste processo. João Peculiar ascendeu nesse ano à Sé de Braga e, na viagem que fez a Roma, para receber o pálio e assistir ao concílio de Latrão, deve ter contactado com muitas realidades que decerto lhe devem ter sugerido estratégias em favor do Infante sob cujas ordens servia. O Papa Inocêncio 11 que presidira ao concílio de Latrão 11 era o mesmo que recebera João Peculiar em 1135 em Pisa67 , quando o então mestre-escola de Coimbra lhe fora pedir a confirmação da fundação de Santa Cruz de Coimbra. O concílio realizava-se num momento muito crítico para a vida do papado, com as questões com Rogério da Sicília e com os cismas de Anacleto 11 e de Vítor IV a reclamarem as atenções do pontífice e a fazer-lhe sentir a fragilidade do poder pontifício frente às dissensões internas e frente ao poder temporal do Império. Aliás, mal acabado o concílio, Inocêncio 11 viria a conceder a primeira Manifestis probatum que conhecemos, a Rogério da Sicília, na qual se propunham para o reconhecimento da realeza de Rogério argumentos semelhantes aos que quarenta anos mais tarde haviam de legitimar o rei em favor de quem João Peculiar então se batia68 • Não é, no entanto, de crer que João Peculiar tenha tido conhecimento disso para sugerir ao seu rei uma estratégia que obtivesse os mesmos efeitos. Com efeito, no caso do rei português, a estratégia seguida basear-se-ia muito mais na tentativa de alicerçar as bases para um reconhecimento pontifício na prossecução vitoriosa de uma luta de conquista bem sucedida, que serviria os interesses da monarquia nascente, porque lhe conferiria uma legitimidade inquestionável, e serviria também os interesses do papado, que necessitava de afirmar a sua superioridade sobre os poderes temporais. Embora se deva reconhecer que o recontro de Ourique, ocorrido durante a estada de João Peculiar em Roma, em 1139, não teve, na sua época, a importância que mais tarde, por efeito de uma historiografia amplificadora69, viria a ganhar, também não deixa de ser verdade que esse ano marca, de facto, o momento a partir do qual Afonso Henriques passa a designar-se a si próprio como rei na documentação que emite. A partir de então, podem reconhecer-se de forma bem visível alguns

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sinais de que esta data poderia ter representado uma viragem determinante nas intenções do infante e seus conselheiros em relação à forma como parecem começar a encarar a questão dos desígnios de autonomia e da realeza do herdeiro do condado portucalense bem como do domínio do território sobre o qual exercem esse poder. A guerra de conquista, embora não especialmente em tomo do episódio de Ourique, iria ser a base em que se fundamentaria toda a acção diplomática que a partir de então viria a ser desenvolvida, tendo em vista reclamar para Afonso Henriques o direito a ser reconhecido como rei, com o fundamento de que a sua qualidade de rei era evidente por causa do inquestionável sinal do favor divino: a vitória ininterrupta sobre o infiel. Missão sagrada, apoio divino, direito ao território conquistado e à soberania sobre ele, por servir a Deus e, por acréscimo a Roma, como miles Petri. De 1139 até 1142, a vitória bafejara os seus exércitos e esse factor tinha-lhe já dado vantagem, no encontro de Zamora em 1143, em que o seu rival leonês começou a tratá-lo como rei e após o qual enviou o seu pedido formal de enfeudamento a Roma. Decerto as coincidências cronológicas não podem deixar de ser tidas em conta. Como se sabe, durante os anos de 1136 a 1142, o esforço de fixação e conquista, apoiado pelos cavaleiros templários, é prodigamente recompensado com privilégios régios, cartas de protecção e forais e pela construção de uma linha de fortificações defensivas que protegiam a linha do Mondego e Coimbra, apoiadas sobretudo em Soure, Pombal e Leiria70 • Para que a segurança dessa linha pudesse ser mais estável, urgia prosseguir a conquista territorial para Sul e aplicar à linha do Tejo o mesmo tipo de estratégia que se aplicara à do Mondego. É nesse contexto que a tomada de Santarém e Lisboa como base estratégica dessa defesa era tão vital para um rei que parecia traçar o seu percurso a régua e esquadro. Talvez por isso, já se tentara conquistar Lisboa antes de 1147, em 1140 ou 1142, mas sem êxito. O domínio de Lisboa implicava o acesso a Santarém, cujo controlo era instrumental para assegurar a progressão para Sul e para proteger a região de Coimbra de forma mais eficaz. Eventualmente por já ter tentado isso antes sem êxito, e decerto por Afonso Henriques sofrer a falta de homens para a guerra, de forma idêntica à que os seus pares hispânicos a sentiam nos restantes reinos peninsulares71 , o recurso aos "franceses", e, a partir de 1147, aos cruzados a caminho da Terra Santa, deve ter parecido ao rei uma forma auspiciosa de resolver os seus problemas. Na verdade, o auxílio dos cruzados servia uma dupla finalidade: fornecia os contingentes de homens necessários e aproximava ainda mais a guerra de reconquista à guerra santa de Cruzada, acrescentando, com isso, mais algumas tonalidades

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favorecedoras à imagem do rei português que ia sendo veiculada para Roma, conforme ao modelo de rei que se estabelecera ao tentar fazer depender o rei e o reino da soberania da Santa Sé e da autoridade divina. O pedido de reconhecimento levado até Roma pela Claves Regni apenas fora aceite em parte, pelo que a diplomacia régia continuava a necessitar de fazer chegar à Santa Sé a ideia de que este dux que estava à frente do reino de Portugal merecia receber o reconhecimento da dignidade que reclamava. A conquista bem sucedida do território era o seu melhor aliado, no quadro dos argumentos que na Cúria eram apresentados a seu favor. O apoio de forças renovadoras e reformistas ao rei e ao seu labor bélico, não podia senão ser considerado como um poderoso auxílio nessa senda. Durante muitos anos considerou-se a carta de S. Bernardo (n. 0 308 da sua recolha) para o rei de Portugal como uma mera falsificação e a tentativa de fazer depender a participação dos Cruzados na tomada de Lisboa como fazendo parte dos planos gizados pelo mentor da Segunda Cruzada, como uma invenção sem bases. Recentemente, a crítica trouxe convincentes argumentos em prol da autenticidade da tradição e da carta na qual Bernardo respondia a um pedido de auxílio do primeiro rei, assegurando a Afonso Henriques a sua intercessão a favor dessa participação durante a fase em que pregava a Cruzada nos Países Baixos e no Império72 • Embora nem tudo pareça líquido e a crítica tenda a sobrevalorizar alguns factores das relações entre Afonso Henriques e S. Bernardo, nas suas respectivas análises, tais como o carácter demasiadamente pré-programado da participação dos cruzados na tomada de Lisboa, a existência de um delegado de Bernardo na expedição e a sua identificação com o próprio autor do relato sobre a conquista de Lisboa, a hipótese da autenticidade da carta, que parece bastante credível, aponta para consequências dignas de realce73 • Efectivamente, o recurso ao pedido do auxílio dos cruzados feito por Afonso Henriques ao próprio Bernardo durante a época em que o abade de Claraval pregava a defesa da Terra Santa em terras nortenhas, precisamente num ambiente e numa fase em que o mesmo rei concedia extensos e até exorbitantes beneficios aos Templários, tais como o domínio do eclesiástico de Santarém, a ser confirmado pelo bispo de Lisboa caso a providência divina lhe concedesse a vitória sobre essa cidade7\ não pode ser fortuito. Se considerarmos que isso fora antecedido por uma carta de vassalagem e promessa de censo dirigida ao Papa, que surge numa altura em que se disputava animadamente o direito à restauração das dioceses reconquistadas e à recomposição das antigas províncias eclesiásticas, numa conjuntura em que quer os arcebispos de Braga, quer os de Compostela, quer os de Toledo procuravam ganhar e manter ascendente sobre os reis respectivos como

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fonna de engrandecer as suas arquidioceses no contexto eclesiástico, e se considerarmos ainda que o vizinho mais próximo de Afonso Henriques também lançava mão de estratégias semelhantes, temos de reconhecer que a adesão a Cister também parece ter estado no espírito daqueles que orientavam o sentido das alianças régias. Não se pode tratar de actos fortuitos até porque as vantagens desse apoio deviam parecer muito evidentes. Conceber a campanha de Lisboa com o apoio de Bernardo de Claraval, envolvendo na luta travada pelo rei português homens que lutavam por desígnios estabelecidos pelo próprio papado, em cujo sólio pontificava Eugénio III, também ele cisterciense e muito próximo de Bernardo, e engrandecida pela promessa de grandes benefícios aos cavaleiros do Templo, tal como Afonso Henriques se comprometera caso a cidade fosse tomada, não deviam parecer argumentos menores a quem liderava a luta diplomática pelo seu reconhecimento, paralelamente à luta no terreno pelo domínio dos territórios e pelo direito à sua posse. Para além de todos esses indicadores, dentro de muito pouco tempo, o rei viria ainda a fundar e patrocinar uma grande casa cisterciense de filiação em Claraval, instalando-a em pleno bispado de Lisboa, com consideráveis domínios e isenções, sem qualquer oposição do novo prelado e até, ao que parece, com o seu apoio. Os indícios inclinam realmente a pensar que houve intenção de captar a benevolência do papado para a conquista de Lisboa, nomeadamente pelo recurso à estratégia de favorecer facções susceptíveis de influenciar positivamente o pontífice. Neste caso, de forma inequívoca, o jogo de poderes pendia para o lado cisterciense, e esse factor parece ser sensível nos preparativos desta campanha. O arcebispo João Peculiar, que já privilegiara as relações com Cister de forma bastante evidente, e que pouco depois da conquista se deslocará a Roma, em 1148, acompanhado de um crúzio e de um templário75, não deve ter sido alheio a esta estratégia. Decerto quando tratou com Eugénio III da redefinição dos termos da sua relação com Toledo, e quando lhe reiterou a sujeição de Santa Cruz e Grijó e o enfeudamento e censo do rei de Portugal a Roma, não deve ter deixado de participar ao Papa os êxitos militares do seu vassalo e a forma como ele desempenhava a missão de conquistar terras para Pedro com strenuitas e com piedade, muito conforme aos desígnios papais. Tudo isto parece de tal forma coerente e os dados de que dispomos parecem encaixar de forma tão perfeita que não se estranharia que o relato da conquista tal como chegou até nós também tivesse participado como mais uma peça do desenrolar de uma campanha demasiado preparada para ser

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espontânea, demasiado importante para o rei e seu domínio para ser deixada sem memória. Na verdade, como vimos, o êxito da propaganda do feito é absolutamente atestável pela abundância e multiplicidade de testemunhos que ao longo do próprio século XII e de todo o XIII registam sistematicamente a tomada de Lisboa e o passam a escrito nos anais e crónicas da Cristandade. Mas será possível encarar a elaboração do relato da tomada de Lisboa por um Cruzado como mais uma obra subsidiária da escola historiográfica crúzia, e por isso plenamente integrada nos planos e nas estratégias estabelecidas por João Peculiar para favorecer a causa da sua arquidiocese e do seu rei em Roma? Um recente trabalho identificou o autor da narrativa com um presbítero com fortes ligações aos meios premonstratenses ingleses e autor de um legado de uma capela ao mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. Sugeria também a perspectiva de que, a ser viável essa hipótese, talvez o relato pudesse ser inserido nessa filiação cultural e nos textos de exaltação da figura do monarca tal como o encontramos na historiografia crúzia dos anos oitenta do século XII 76 • Com efeito, a figura do monarca que transparece do relato do cruzado é sempre uma figura de moderação e complacência, de justiça e empenho na reconquista, apenas irado quando assiste às dissensões entre cristãos. Os guerreiros portugueses não são descritos em termos muito elogiosos, mas essa negatividade nunca transparece na imagem do rei que o cronista define". O problema da autoria do relato coloca-se assim, mais uma vez, no cerne da questão. Ela tem sido colocada inúmeras vezes, de diversas formas. O problema deriva da própria fórmula pela qual se inicia a "carta"'8, a qual, pela sua ambiguidade, fez com que, durante muitos anos, se considerasse que ela tinha sido elaborada por Osb. (Osberto, Osbemo?) e enviada a R. Crítica mais recente veio demonstrar de forma convincente que, pelo contrário, estamos perante uma epístola enviada por "R." a Osberto de Bawdsey, um clérigo muito ligado à casa de Glanville, cuja existência se pode comprovar79. Esta proximidade aos Glanville parece ser assumida pelo narrador da tomada de Lisboa, não só por ter dirigido a sua carta a esse clérigo, revelando nesse endereço uma certa afinidade com o meio para onde dirige a sua descrição dos acontecimentos, mas ainda porque, ao longo do seu relato, louva e exalta de forma coerente e contínua o seu patrono, Hervey de Glanville, oriundo dessa mesma família e um dos "condestáveis" da expedição, responsável pelo corpo dos homens de Suffolk. Isto parece confirmar uma

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estreita ligação aos meios premonstratenses do Suffolk, que os Glanville patrocinavam nessa mesma época, e sugerir que o clérigo que escreveu a narrativa da tomada de Lisboa também seria oriundo desse mesmo meio. Com base nessa primeira hipótese, e comparando os dados conhecidos com os fornecidos por uma doação por alma feita em Abril de 1148 por um presbítero Raul, que legara ao mosteiro de Santa Cruz de Coimbra a ermida por ele fundada após a tomada de Lisboa, no local onde se tinham sepultado os soldados ingleses, Harold Livermore estabeleceu uma sedutora hipótese, segundo a qual o anónimo R. que escrevera o relato da conquista de Lisboa poderia ser o mesmo Raul que em 1148 doava a sua igreja ao mosteiro de Santa Cruz. Essa doação, que se guarda no cartório do Mosteiro de Santa Cruz na Torre do Tombo80, e que foi escrita por duas mãos diferentes, inicia-se por um dispositivo que ocupa a maior parte do documento e dá conta do que acontecera durante a tomada de Lisboa e de como ocorrera a fundação da ermida e cemitério dos ingleses que então doava. Nesse prólogo excepcionalmente detalhado, o enfoque mais pormenorizado recai sobre o próprio doador, muito mais que sobre o bem doado ou a descrição dos seus limites ou possessões, completamente omissos no documento, pois não há mais que uma referência genérica. Raul explica, em primeira pessoa, e de forma ostentatória, como se integrara nas hostes dos Francos, desembarcara com aqueles que tinham protagonizado o primeiro ataque em terra e, uma vez expulsos do local, em combate em que participara, todos os pagãos, tinha colocado num local solitário a bandeira da Santa Cruz como símbolo da vitória alcançada nesse primeiro momento. Prossegue explicando como no segundo dia ele mesmo aí erigira um altar para o culto divino e como se estabelecera nesse local, apesar de continuar a comparecer diariamente junto dos seus companheiros para participar do esforço bélico. Explica então como, com o seu próprio dinheiro, esforço e suor (expropria pecunia mea, cum labore etiam et sudore proprio ), erigira heremitarium tabernaculum que dedicara à Virgem Maria e como se haviam sepultado os ingleses que morriam colhidos naturalmente pela morte ou tombados em combate81 • Depois desta introdução passa à parte expositiva, referindo que doava esse local ao mosteiro de Santa Cruz, por desejo do rei dos portugueses, Afonso, e com a autoridade do arcebispo João, pela sua própria alma, pela de seus pais e pela daqueles que ali estavam sepultados. As cláusulas cominatórias que se seguem no documento, com a datação e sinal validatório, são já traçadas por outra mão, após o que, de novo pela primeira mão, se segue a lista dos confirmantes, o primeiro dos quais é o

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próprio rei, seguido de alguns homens da elite da cidade, do arcebispo de Braga e de todos os restantes bispos do reino. Segundo Harold Livermore82 , as coincidências entre as características reveladas pelo anónimo relator da tomada de Lisboa e o presbítero que doa a sua igreja aos regrantes de Coimbra são demasiadas, e devem significar uma autoria comum. Com efeito, ambos partilham o nome começado pela inicial R, uma origem franca, a presença pessoal na conquista de Lisboa, a participação nas primeiras escaramuças e no primeiro desembarque, o conhecimento e descrição da existência dos cemitérios dos cruzados, a devoção a Santa Maria, a ligação a meios regrantes, a privança de perto com o rei de Portugal e suas elites e a presença em Portugal durante o inverno que se seguiu à conquista. Estes elementos parecem a Livermore, justificadamente, prova suficiente de que o R. que escreveu o De Expugnatione pode ser o mesmo Raul que doou ao mosteiro de Santa Cruz a igreja de Santa Maria. A revisão crítica pode opor algumas reservas à verificação desta hipótese. Convém analisar o mérito de tais reservas, mas elas parecem de afastar e a sua superação conduzir à confirmação da hipótese formulada com bases ainda mais seguras. As reservas prendem-se sobretudo com possibilidades alternativas de identificação do autor do texto e com a autenticidade do documento de 1148 que serviu de base à teoria de Livermore. Um dos seus argumentos mais frágeis diz respeito à multiplicidade de indivíduos de nome começado por "R." que poderiam corresponder ao perfil de eclesiástico que, quer o relato da conquista de Lisboa, quer a doação a Santa Cruz apresentam. Através de uma complicada aritmética, H. Livermore pretende que deveria ter havido apenas uns cinco ou seis eclesiásticos com esse nome próprio e que não era provável que pudessem ter desembarcado no primeiro momento dois homens de nome começado por "R"83 • Ora, na realidade, nada permite inferir tal facto. Apesar da escassez de documentação que afecta a cidade de Lisboa relativamente aos anos que se seguiram à conquista, podem identificar-se com relativa facilidade vários homens cujo nome próprio começaria por R., e nada pode garantir não serem o cruzado que escreveu a carta sobre a conquista de Lisboa. Efectivamente, de entre os nomes presentes na escassa documentação sobre Lisboa nesses anos, pelo menos Raul, Roberto e Rosardo são atestáveis como eclesiásticos. Daqueles cujo estatuto social desconhecemos, mas que estão presentes em muitos outros documentos dos anos 60, 70 e 80, sobressai um número significativo de Ricardos, Rogérios e Ranulfos, que povoam as compras e vendas, tornando patente que realmente muitos dos cruzados tinham optado por ficar em Portugal84 • Por outro lado, há, pelo menos, um outro indivíduo cujo percurso e características também poderiam adequar-se ao perfil do narrador da tomada

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de Lisboa. Trata-se do deão Roberto, cónego da Sé desde a sua restauração em 1147, que ocupou a dignidade pelo menos até depois de 1173 85 • Roberto também estaria em muito boas condições para ter acesso ao círculo próximo do rei e das elites municipais e eclesiásticas, e talvez até fosse regrante, como a sua inclusão no Livro de Aniversários do mosteiro de S. Vicente de Fora86 pode querer indicar. O deão da Catedral poderia com facilidade ter acesso a todo o material que se recolhe na narrativa, tal como o sermão do bispo do Porto Pedro Pitões, o pacto do rei de Portugal com os cruzados, e as informações sobre a restauração da diocese, cujo conhecimento e contacto o autor do relato deixa transparecer, como já vimos. Talvez fosse mais fácil imaginar o deão da cidade reconquistada com acesso a esses materiais do que um mero presbítero de uma ermida que servia o cemitério dos Cruzados, em vésperas de partir de novo. Idêntica sensação de familiaridade se desprende da respeitosa admiração que o narrador dedica a Gilberto de Hastings, o bispo eleito da cidade de Lisboa e inglês de origem 87, assim como quando descreve pormenorizadamente, com evidente conhecimento de causa, o tipo de convivência entre as religiões nesta parte do mundo, a existência de moçárabes nas cidades muçulmanas ou a doutrina de vida islâmica. A possibilidade de haver outros indivíduos na Lisboa de 1147 que poderiam ter escrito o relato não é, no entanto, o único óbice a que se possa aceitar a identificação do presbítero Raul como o autor da tomada de Lisboa, pois não elimina outros dados. Uma questão, notoriamente dificil de resolver, prende-se com a autenticidade do próprio documento de 1148 sobre o qual toda a construção de Livermore se baseia. Já F. Gama Caeiro em 196688 estranhara o facto de, face a um documento tão irregular, nenhum dos experientes e doutos paleógrafos que nas décadas anteriores se tinham debruçado sobre a documentação dos primeiros anos de Afonso Henriques, nem mesmo Rui de Azevedo89, que estava bem alertado para o problema das falsificações documentais, especialmente as de Santa Cruz, terem alguma vez duvidado da autenticidade desta doação. As razões para a perplexidade de F. Gama Caeiro radicavam sobretudo na crítica interna do documento. Não lhe parecia possível que um cruzado se pudesse ter apossado de território objecto de reconquista, que teoricamente pertencia ao rei; não lhe parecia normal nem necessário que uma doação desta natureza ostentasse confirmantes com semelhante solenidade (o próprio rei, o arcebispo de Braga e todos os bispos do reino); finalmente não lhe parecia normal que essa doação fosse dirigida a Santa Cruz de Coimbra, logo em 1148, por um cruzado sem ligações a Santa Cruz90 •

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Estas não são as únicas razões de dúvida quanto à autenticidade do diploma. Para além do estranho facto de ele ser o único documento referente a Lisboa de data anterior à década de 60, o que já por si só levanta muitas suspeitas, ele é um documento demasiado rico, sob o ponto de vista da informação que concede. A riqueza de informação que o dispositivo concede ao leitor faz dele um daqueles documentos que todo o investigador deseja encontrar. Mas também faz dele um documento totalmente irregular, pelo menos no panorama da produção portuguesa coeva. Nas doações por alma mais comuns, o doador costuma deter-se muito pouco na sua pessoa, no seu protagonismo ou na sua vida, para centrar o núcleo expositivo do documento na descrição do bem doado e das contrapartidas esperadas. Neste caso, como vimos, a parte expositiva é uma autobiografia resumida mas detalhada do doador, tocando pontos que podem ser considerados estrategicamente significativos num percurso que se deseja valorizar. A descrição do bem doado limita-se, pelo contrário, à sua enunciação, sem referir limites e sem concretizar bens ou obrigações ou rendimentos da capela doada. Materialmente, os elementos parecem inconclusivos para contraprova. A datação que foi feita a partir do estudo do tipo de letra e escrita, obteve um resultado que o situa como um produto da segunda metade do século xw•. Esta constatação serve tanto a teoria de que estamos perante um autêntico de 1148 como a de que estamos perante uma falsificação crúzia dos finais do século XII. No entanto, nada exclui a primeira possibilidade. O facto de ter sido escrito por duas mãos diferentes92, uma das quais identificável com a mão do Salvado/Salvatus, notário de Santa Cruz cujo trabalho pode ser atestado nesse scriptorium entre os anos de 1132 e 1155 e que também colaborara na chancelaria régia93 , para além de presumivelmente ainda poder ser o autor da Vida de S. Martinho de Soure94 , também nos deixa na mesma indefinição, pois o período de tempo entre as datas limite durante as quais podemos atestar o seu trabalho continua a ser demasiado longo para circunscrever a produção do documento com alguma margem crítica que ainda pudesse ser útil. Se considerarmos o contexto em que este documento poderia ter surgido, parece tão fácil considerá-lo uma falsificação do último quartel do século XII como um autêntico de 1148. Por outra parte, se considerarmos a relação entre os bispos de Lisboa, os crúzios e os vicentinos, ela é extremamente ambígua nesta época. A inclusão de eclesiásticos como Roberto, deão da sé, ou Estêvão, chantre da mesma sé de Lisboa, nas listas de aniversários dos cónegos regrantes de S. Vicente95 , assim como o intenso intercâmbio de regrantes da canónica conimbricense para a lisbonense e destas duas instituições com o cabido ou mesmo o

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episcopado de Lisboa, toma difícil de entender o surto de certos conflitos atestados entre as várias instituições eclesiásticas. Do que sabemos da Lisboa das décadas de 70 e 80 e das tensões existentes entre os seus eclesiásticos tal como transparecem, quer do relato da translação de S. Vicente, quer da Notícia da Fundação de S. Vicente, assim como da documentação pontifícia, a hipótese de uma falsificação crúzia com a intenção de comprovar a posse mais antiga da igreja de Santa Maria, que mais tarde viria a disputar com o bispo e cabido da cidade de Lisboa, poderia ter sido o móbil para a elaboração de um documento falso e autoritativo que garantisse os interesses do mosteiro de Santa Cruz96 • Mas será esse o caso? Há pelo menos uma questão a colocar. Será lícito considerar que os experimentados falsários de Santa Cruz se aventurariam a criar uma falsificação com tantos elementos de suspeição? Segundo o próprio Ruy de Azevedo e Gérard Pradalié demonstraram, a perícia estava precisamente em fazer um falso credível, e isso só poderia ser garantido se formalmente não levantasse qualquer dúvida97 • Segundo essa óptica, e sob o ponto de vista das características formais, estamos perante um documento de tal forma irregular no panorama português que quase poderíamos ser levados a optar pela sua autenticidade apenas com base nesse teor de "anormalidade". A verdade, porém, é que ele talvez não seja nem sequer tão estranho como pode parecer à primeira vista. A documentação anglo-francesa dos séculos XI e XII está povoada de cartas de doação com estas características, e os preâmbulos narrativos longos são especialmente comuns na documentação do Oeste da França91 • Tudo isto parece corresponder à área de proveniência do cruzado R. e do Raul que subscreve a doação a Santa Cruz, pelo que a presença de um preâmbulo desta natureza não parece sinal de irregularidade, mas apenas marca da fidelidade aos modelos a que estava habituado na sua pátria de origem do doador. Quanto às duas mãos presentes no documento, mais do que derivarem de falsificação pouco cuidadosa, podem antes derivar apenas do simples facto de o documento ter sido elaborado por uma pessoa e sancionado por outra, tendo em vista que de facto a mão da autenticação e penalidades é diferente da que escreveu tudo o resto99 • A validação por um conhecido notário de Santa Cruz, atestado nessa época, serviria assim para conceder os elementos de autenticação de que a primeira forma carecia. Da crítica interna à doação pode retirar-se o mesmo tipo de conclusões. Aos argumentos de F. Gama Caeiro quanto à pouco provável apropriação de propriedade régia por parte de um cruzado 100, quanto à complexidade e demasiada importância dos confirmantes num documento desta natureza e quanto ao facto de o cruzado doar um bem a uma instituição com a qual não

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tinha ligações, que mal poderia conhecer, poder-se-ão contrapor outros que provem a não validade dos seus. Pode-se alegar sempre que, embora pouco frequente, e geralmente apenas em cartas de significado relevante, a presença do rei em documentos particulares é atestável noutros casos, pelo que este podia ser um caso excepcional, mas nem por isso único. Por outro lado, não repugna imaginar que, numa situação extraordinária como era a do cerco de Lisboa, alguns dos cruzados se pudessem ter apossado de territórios. Não se deverá até esquecer que, mesmo que tal prática fosse demasiado ofensiva dos direitos régios sobre os territórios conquistados, direitos esses cujos contornos, nas situações reais, são sempre mais flexíveis que na teoria, o acto consignado na carta de 1148 é precisamente uma alienação favente domino Ildefonso portugalensium rege et auctoritate domini Iohannis Bracarensium archiepiscopi, o que parece sugerir que qualquer ilegalidade reentraria na norma com a doação ao mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. Quanto à alegada improbabilidade de Raul ter ligações aos Regrantes de Santa Cruz, as precisões anteriormente aduzidas já deram a resposta no sentido de evidenciar a existência de estreitas ligações. As relações entre os cruzados e os crúzios parecem vir já de longe e terem sido cimentadas por uma acção comum, em Lisboa. Com efeito, a ser real a hipótese de Jonathan Phillips, a participação dos cruzados na conquista de Lisboa deveria ter sido planeada desde a fase inicial da preparação da expedição, acedendo a um pedido expresso de Afonso Henriques e pregada por S. Bernardo. Essa ligação dataria, assim, de muito antes do que estamos habituados a considerar 101 • Mas mesmo sem a certeza dessa componente, a ligação evidente de Raul aos meios premonstratenses do Suffolk e o convívio, durante o cerco, quer com o arcebispo de Braga, quer com o bispo do Porto, deveriam ter bastado para criar as bases para fomentar a ligação entre homens de filiação agostiniana comum. Parece, pois, que os entraves a que se possa aceitar a doação de 1148 como um documento autêntico enfraquecem após uma análise cuidada, quer das suas características externas, quer das suas características internas, quer do ambiente em que surge, que é o mesmo para o qual se destina. Na verdade, só por si, o facto de este ser o único documento desses anos que chegou até nós e de a sua forma ser inabitual, não é base suficiente para o invalidarmos. Temos de aceitar a possibilidade de que um capricho do acaso tenha permitido que, na estranha voragem que suprimiu todos os vestígios da Lisboa dos anos 40 e 50, um desses testemunhos tenha escapado incólume.

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* Parece, portanto, que, analisado o ambiente cultural e político no qual decorre a conquista de Lisboa, e considerados os intervenientes e seus interesses, a conquista de Lisboa em si, a sua descrição e os homens envolvidos no processo, todos ganham uma nova dimensão. Ganham também uma nova coerência, quase surpreendente pela sua clareza. As peças parecem encaixar todas. O feito surge indissoluvelmente ligado à luta do primeiro rei português para afirmar a soberania do seu domínio, interna e externamente, no aspecto político, material e simbólico. Reflecte o conhecimento profundo e actualizado que os mentores dessas ambições tinham das estratégias mais adequadas para alcançar algum eco político do esforço bélico com base no qual Afonso Henriques consolidara as suas pretensões desde os anos em que se começara a intitular rei. A construção do reino e do rei far-se-ia aliando a prática à teoria, aliando a conquista territorial no terreno à busca de um reconhecimento que, na sua elaboração e na reelaboração teórica do perfil do rei e do reino o legitimasse em termos mais perenes do que aqueles que decorriam da mera constatação do sucesso militar de um dux. A vontade explícita de fazer reconhecer os direitos do novo rei manifestava-se pela clara adesão e tentativa de sedução dos representantes e das correntes de pensamento que na altura lideravam os movimentos de reforma e que podiam traduzir melhor os interesses do jovem rei junto do papa em cujo apoio tanto esforço era investido, de novo, como seria de desejar entre homens que conheciam os desenvolvimentos do Direito e as suas implicações na teoria política e na concepção das funções dos reis, da origem da sua soberania e da sua relação com o território sobre o qual imperavam. Ao contrário do que geralmente se pretende, e apesar das evidentes diferenças entre Cónegos Regrantes e Cistercienses, uma das bases do futuro êxito das manobras diplomáticas de Afonso Henriques e seus sucessores foi provavelmente o aproveitamento das estreitas ligações entre as duas ordens que lideravam a reforma no século XII (e que enformariam a preparação de numerosos dos futuros papas, cistercienses e regrantes ). A aliança desses dois apoios na conquista de Lisboa é evidente, e consubstancia-se na pessoa do arcebispo de Braga, que, como vimos, mantinha ligações a ambos os meios, embora a sua filiação regrante seja absolutamente inquestionável. A um pedido de auxílio aos cruzados feito directamente pelo rei de Portugal ao Abade de Claraval e a uma política preparatória de favorecimento das correntes cistercienses a cuja filiação o papa então no sólio pontifício pertencia, juntava-se a presença dos bispos do reino, na luta activa

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durante o cerco. Destes, os mais destacados eram o bispo do Porto, Pedro Pitões, que nunca abandonou o cerco, e João Peculiar, que aparece sempre descrito como o mais fiel apoiante do reP 02 • Homens instruídos na ciência do tempo, deslocavam-se num Ocidente medieval com poucas fronteiras e com canais de comunicação muito mais fáceis de utilizar do que uma tradição historiográfica sempre nos quis fazer acreditar. Durante largas temporadas João Peculiar deambulara pelos meios regrantes com facilidade e à vontade, pelo menos aquando das suas viagens aos lugares santos, à Cúria Romana e aos meios regrantes, que Telo, Teotónio e Maurício Burdino, bem próximos da sua realidade também já tinham percorrido. Por tudo o que vimos anteriormente, o arcebispo parece revelar uma argúcia política bem clarividente; não custa acreditar que a sua influência esteja por detrás das opções de aliança táctica que o reinado de Afonso Henriques evidencia, apesar de as provas concretas faltarem. Não é só João Peculiar que revela essa capacidade e representa uma categoria de homens tão actualizados e cultos como qualquer dos seus pares. O discurso com que Pedro Pitões brinda a chegada dos cruzados ao Porto, ao tentar convencê-los de que a guerra peninsular contra o infiel era comparticipante do mesmo espírito de Cruzada que os impelia para a Terra Santa, também é ilustrativo da programação desta campanha, da sua inserção em estratégias mais amplas e da actualidade e erudição destes homens que ladeavam o rei. Pedro Pitões sabia que estes homens iam chegar. O rei tinha-o avisado disso e tinha-o encarregado de lhes transmitir o seu ensejo de poder contar com o apoio deles na conquista de Lisboa. Nada fora deixado ao acaso, mais uma vez. No seu discurso, traduzido nas diversas línguas vemáculas de cada um dos contingentes, descobre-se um conhecimento precoce e preciso de toda a teoria da guerra santa tal como ela enformara a obra de Ivo de Chartres e o Decretum de Graciano, revelando nisso, mais uma vez, não só o contacto muito próximo com os meios culturais franceses regrantes, mas a consciência de que a mensagem a transmitir a estes homens não deveria ser a da Reconquista peninsular, provavelmente sem qualquer ressonância nas suas consciências de homens do Norte, mas sim um apelo a despertar neles o estímulo do referencial do incitamento à guerra santa e à cruzada. Revelando uma nítida adesão e compromisso para com o serviço do rei e das suas campanhas militares, a exposição do bispo do Porto sobre a guerra, feita em termos muitos diferentes dos utilizados por João Peculiar quando foi parlamentar com as elites muçulmanas de Lisboa, traduz também um

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incitamento à luta no sentido da guerra santa, tal como era pregada no resto da Europa, no sentido de guerra que liberta a terra do jugo pagão e ganha a salvação para os que nela combatem. Não é a Reconquista que transparece do seu discurso, mas a teoria da mesma guerra com que os cavaleiros da cruzada estavam mais familiarizados, nos moldes em que também Bernardo de Claraval a pregava. Pedro Pitões cumpre essa função na narrativa. Já João Peculiar parece representar o mundo antigo peninsular, ao revalorizar a Reconquista gótica que invoca quando se encontra com o governador mouro de Lisboa junto aos muros da cidade. Atendamos ainda à imagem do rei em relação com estes dois mundos, tal como o cruzado no-lo propõe. Ela não é tão imaculada nem tão estereotipada quanto a que a posterior historiografia crúzia virá a projectar como elemento reforçador da luta diplomática. Mas o cuidado posto nos elementos que se quiseram fazer veicular para a restante Cristandade são valores que pertencem a esse imaginário. A mensagem subjacente ao discurso de Pedro Pitões deixaria patente a quem quer que utilizasse o texto, que os bispos do cristianíssimo rei dos portugueses conheciam e praticavam uma guerra santa que propunham tão ou mais valiosa que a longínqua Cruzada na Palestina. O discurso de João Peculiar, no seu recurso à argumentação da guerra justa para recuperação de antigas posses, à reconquista de antigos direitos que lhes tinham sido usurpados, justificava essa guerra e explicava novos contornos menos sensíveis a não peninsulares. O rei dos portugueses estava prestes a tomar a cidade e a repor a ordem e a legitimidade da posse correcta. O rei era justo e complacente para com os vencidos, cuja filosofia de vida e valores pareciam estranhamente razoáveis. Não obstante liderar uma guerra muito superior às meras guerras habituais, e apesar de ser acusado de falta de lealdade para com anteriores cruzados, o rei fora justo para estes, com eles fizera um pacto escrito no qual lhes dava grandes vantagens; o rei gerira o acordo de paz e rendição com os vencidos; o rei ficara irado quando os cruzados (não os seus homens) se tinham hostilizado uns aos outros. O rei aparece sempre a desempenhar o papel que seria desejável, neste caso integrando o seu esforço pessoal numa empresa mais vasta e nos desígnios pontifícios, agindo sempre com moderação e com a conquista de terras para a cristandade no seu projecto. Tudo na narrativa parece justificar e apoiar as acções deste rei, que viu o feito da tomada de Lisboa ultrapassar as fronteiras da mera fama na Península ou sua promoção junto a Roma pelo facto mesmo de ter conseguido integrá-lo no movimento da segunda cruzada e de, pela mão de um cruzado, ter sido posta em acto escrito a narrativa dos feitos dos cruzados.

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Raul (dêmos-lhe o nome que se nos afigura mais legítimo) parece ter interiorizado bem as diferenças de discurso e de atitude, as abordagens do mundo e da vida, quer dos cruzados, quer dos portugueses, quer dos muçulmanos. Relata-as todas, de forma detalhada e directa, revelando na sua reprodução dos discursos dos intervenientes uma profunda análise psicológica das personagens a que a sua narrativa dá vida. Mas também parece ter-lhes descoberto a respectiva função, no decurso da sua exposição. A construção da narrativa da conquista de Lisboa fala de todo esse mundo. Reflecte de forma directa ou indirecta toda a vivência e convivência peninsulares, na confluência de culturas e de contradições que ela acarretava. R(aul) escreveu em Portugal. Ao longo do texto não revela uma erudição especial, antes parece evidenciar uma preparação pouco elaborada, como Ch. W. David fez notar. E, no entanto, transcreve o longo discurso do bispo do Porto com todas as citações e referências correctas, reproduz o discurso de João Peculiar, quando faz a apologia da Reconquista com fidelidade, descreve a psicologia árabe com finura, copia documentos da chancelaria régia de Afonso Henriques, descreve a costa com recurso a autores clássicos e conhece pormenorizadamente os limites da diocese restaurada. Custa a crer que um texto estruturado com tanto cuidado, para cuja elaboração o autor teve de trabalhar com acesso a várias fontes, talvez mesmo no scriptorium crúzio, tivesse sido escrito por iniciativa própria, sem qualquer preparação prévia e sobretudo sem outra finalidade que não a estabelecida no início da carta. Mas talvez o cruzado tenha escrito a sua longa carta de forma espontânea. Talvez a sua narrativa se destinasse apenas a informar o seu saudoso Osberto de como ia correndo a viagem de Dartmouth até à Terra Santa. O grau de improbabilidade de tal atitude é alto, mas não podemos afastar essa possibilidade. Fossem quais fossem os móbeis que impeliram Raul a lançar mão de uma pena e passar os acontecimentos a escrito, a verdade é que, se não foi promovido ou pelo menos apoiado por aqueles dos que no reino de Portugal lutavam pelos interesses do rei, decerto não lhes prejudicaria em nada atarefa de tentar criar uma imagem do seu rei como um dos mais empenhados reis da reconquista, bafejado pela vitória e iluminado pela divina providência, e de a fazer divulgar de forma tão ampla quanto possível. Não se conhece a circulação do texto. Qualquer que ela tenha sido, apenas nos resta uma cópia do texto. Provavelmente não saberemos nunca qual a responsabilidade do De Expugnatione na divulgação do feito. Também nunca conseguiremos saber qual o grau de importância que uma maior circulação do texto poderia ter tido nas ambições do rei português, ou se essa

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intenção terá estado na base da elaboração da narrativa. Mesmo assim, as referências à campanha de Lisboa que ao longo desse século e no seguinte haveriam de acompanhar e integrar a compilação de crónicas e anais por toda a Europa, não podem senão ter favorecido uma luta que ainda teria de aguardar muitos anos até estar finalmente terminada. Esse esforço viria a ser compensado quando Alexandre III, ao emitir a Manifestis probatum para o rei de Portugal, reconhece finalmente o título de rei a Afonso Henriques e o estatuto de reino aos seus territórios. Por ironia do destino, em 1179, data da sua emissão, o diploma pelo qual se legitimava de iure o rei e o reino já não encontraria com vida aquele que mais se debatera por ela, João Peculiar (t 1175), e o rei em cujo esforço bélico se baseara a fundamentação do pedido de reconhecimento da dignidade régia, Afonso Henriques, já não podia combater há quase dez anos.

NOTAS Cambridge, Corpus Christi College, ms. 470, fl. 125r-146r. Todos estes elementos foram jã indicados e estudados por Charles Wendell David, De Expugnatione Lyxbonensi. The Conquest of Lisbon, New York, Columbia Univ. Press, 1936, pp. 26-30 [=De Exp.]. 3 Sabe-se apenas que faz parte de um códice onde foram reunidas diversas obras cujas datas de produção são atribuíveis aos finais do século XII e princípios do século XIII. Quanto à data da sua inclusão no códice, apenas se pode saber que jã o integrava no século XV. Sobre a descrição destes elementos, cf. Ch. W. David, De Exp., pp. 28-30. 4 Embora se pense que o texto pode ter estado durante algum tempo na catedral de Norwich, também esse elemento não pode ser assumido como um dado absolutamente fiãvel. Cf. Ch. W. David, De Exp., pp. 27-28. s Cf., por todos, Ch. W. David, De Exp., pp. 32-40, onde os argumentos a favor desta teoria são expostos de forma convincente. 6 De facto não conhecemos as condições da sua circulação, mas deve reconhecer-se, à luz do que Ch. W. David estudou (loc. cit.), que o manuscrito onde se conserva o texto é jã uma cópia dos finais do século XII, o que implica um interesse ainda que mínimo pelo texto; as correcções indicam que não se tratava de cópia avulsa, mas controlada numa instituição habituada a esses procedimentos. 7 As três outras cartas conhecidas e coevas são as breves epístolas de cruzados germânicos, Amulfo (in PMH, Scriptores, I, 406-7), Vinando (in E. Dümmler, Brief des kõlnischen Priesters Winand an ArzbischofArnold I von Koln, nebst dem Fragmente eines Briefs kõlnischer Peregrini an denselben aus einer Wiener Handschrift XVI saec., Viena, 1851) e Duodequino (in MGH, Scriptores, XVII, pp. 27-28). Ch. W. David, De Exp., pp. 48-49, considerava, jã em 1936, que as três cartas mais breves onde se relatava a conquista de Lisboa pareciam reflectir uma tradição "teutónica" que se distinguia da narrativa mais longa, tal como a podíamos receber na carta do cruzado R. a Osb. Esta perspectiva foi recentemente confirmada por Susanne B. Edginton, "The Lisbon Letter of the Second Cruzade", Historical Research, 170, 1996, 328-339; a autora fez a edição critica da carta do cruzado Vinando, utilizando para a colação dos manuscritos mais três testemunhos que, entretanto, foram descobertos, quer nos anais de Colónia e Magdeburgo, quer na Historia I de Alberto de Aquisgrana. A autora pôde concluir que a carta matriz deve ter sido a do cruzado Vinando, assim consubstanciando a tradição renana. Para todos os manuscritos destas diversas cartas e para as diversas edições destes textos, cf. esse mesmo trabalho, onde se encontram as referências mais actualizadas. 8 A publicação do Indicu/um fundationis Monasterii Beati Vincentii Ulixbone foi acolhida por Herculano nos PMH, Scriptores, I, pp. 91-93. O testemunho manuscrito que possuímos é cópia dos inícios do século XIII Gã do reinado de Afonso 11), mas o texto tem data de composição certa em 1188. Dada a importância do texto como fonte da conquista da cidade de Lisboa, dele se constituiu edição com respectiva tradução, tal como aparece em Apêndice. Quanto aos chamados Anais de D. Afonso Henriques, provavelmente redigidos em Santa Cruz de Coimbra a seguir à morte do rei, são eles um dos textos mais expressivos de uma historiografia de exaltação do primeiro rei e reflectem a estreita ligação de Santa Cruz à dinastia reinante e seu esforço de legitimação. Para o texto e seu estudo critico, cf. Annales D. A/fonsi Portugalensium Regis, ed. Monica Blõcker-Walter, Alfons I von Portugal. Studien zu Geschichte und Sage des Begründers der portugiesischen Unabhiingigkeiten, 1

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zurich, Fretz und Wasmuth Verlag, 1966. Quanto à Gesta, cujo texto primitivo estâ hoje perdido, teria também sido composta em finais do século XII. Para os problemas que ela põe, cf. António José Saraiva, A épica medieval portuguesa, Lisboa, ILCP, 1979, e J. Mattoso, "Gesta de Afonso Henriques" in Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa, coord. Giulia Lanciani e Giuseppe Tavani, Lisboa, Caminho, 1993, pp. 293-294. 9 Cf. A. J. Saraiva, op. cit., pp. 69-74. 10 Baste, para ilustrar o que se diz, a expressão tão significativa do próprio redactor da Notícia da Fundação de S. Vicente quando alega que"( ...) o cristianissimo rei de Portugal (... ) reuniu o seu exército contra os sarracenos, como era seu costume todos os anos( ... )" (itálicos nossos). Cf. Apêndice. " Sobre S. Mamede e o seu significado, cf. José Mattoso, "A primeira tarde portuguesa" Portugal Medieval- Novas interpretações, Lisboa, INCM, 1985, pp. 11-35. 12 Santarém teve a sua conquista cantada numa narrativa também muito fora do comum (PMH, Scriptores, I, pp. 93-95), mas a sua campanha, meses anterior à de Lisboa, não recebeu dos cronistas peninsulares e europeus um acolhimento sequer comparável ao da conquista de Lisboa. 13 Para a enumeração das referências à conquista atestáveis em crónicas e anais do restante ocidente medieval, cf. Alexandre Herculano, História de Portugal, pref. e notas de José Mattoso, t. I, Lisboa, Liv. Bertrand, 1980, nota XXII de fim de volume, pp. 677-678 e respectivas notas críticas, p. 694. Complementar com a lista de fontes e autores compilada por Luis Saavedra Machado, "Os ingleses em Portugal", Biblos, 9 ( 1933) 559-563, actualizando e completando com as referências dadas na nota seguinte. 14 Cf. os elementos aduzidos pela Chronica Adefonsi Imperatoris, ed. A. Maya Sánchez, CCCM, 11. I, Turnhout, Brepols, 1990, pp. 186-187, por Lucas de Tuy, Chronicon Mundi, ed. A. Schottus, Hispania Illustrata, IV, Frankfurt, 1608, pp. 104-1 06, e por Rodrigo de Toledo, Historia de Rebus Hispaniae sive historia Gothica, ed. J. Fernández Valverde, CCCM 12, Turnhout, Brepols, 1987. 15 Ch. W. David, De Exp., pp. 34 e 37, refere como o manuscrito estã permeado de marginalia de grande interesse para entender a composição. Uma dessas notas estã colocada à margem do discurso de Hervey de Glanville, quando ele tentava manter as tropas coesas e refere exactamente que talvez as palavras do condestâvel não tivessem sido exactamente aquelas, mas que pelo menos esse fora o sentido. Este aparte permite verificar o cuidado posto na fidelidade aos testemunhos reproduzidos e corroborar mais uma vez a situação de que o narrador trabalha recorrendo à cópia dos documentos que reproduz fielmente no corpo da narrativa. 16 0 . •scute-se até hoje se se trata de um anglo-normando ou de um franco-normando. A ter em conta as múltiplas miscigenações entre as duas componentes populacionais a que a Normandia dos séculos XI a XIII foi sujeita, esta distinção faz muito pouco sentido. (Cf. os argumentos em prol de uma e de outra das hipóteses em Pierre David, "Sur la relation de Lisbonne (1147) rédigée par un clerc anglo-normand", in Bulletin des Études Portugaises, n. s. 2, 1947, 241-254, e de Ruy de Azevedo, "A Carta ou Memória do Cruzado Inglês R. para Osberto de Bawdsey sobre a conquista de Lisboa em 1147", Revista Portuguesa de História, 1, 1951, 343-370, bem como Joshiah Cox Russel, "Ranulf de Glanville", Speculum, 45, 1970, 69-79 e Harold Livermore, "The 'Conquest of Lisbon' and 17 its Author", Portuguese Studies, 6, 1990, 1-16 (= Livermore, The conquest of Lisbon). Para o elenco das edições anteriores da carta do cruzado a Osberto, consulte-se a nota bibliogrãfica elaborada por Ch. W. David, De Exp., p. 48, onde o autor refere as edições do

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texto até àquela data (1936), nas quais se contava a primeira edição de Herculano em 1861 (seguindo a transcrição de Hamilton), nos PMH, Scriptores, I, pp. 391-405, a de William Stubbs, em 1864 (Chronicles and Memoriais ofthe Reign of Richard I, London, 1864-1865) e a edição parcial que Reinhold Pauli fez nos MGH, Scriptores, XXVII, em 1885. Para as edições posteriores a Ch. W. David, cf. a nota I ao texto da presente edição. Para uma discussão do conceito, mas também para uma reafirmação da originalidade do período, cf., por todos, Renaissance and Renewal in the Twelfth Century, ed. R. L. Benson e Giles Constable, Cambridge, Mass., 1982, bem como o trabalho R. W. Southem, Scholastic Humanism and the unification of Europe, vol. I - Foundations, Cambridge Mass., Blackwell, 1997. Ver, por todos, Colin Morris, The Papal Monarchy. The Western Church from 1050 to 1250, Oxford, Clarendon, 1991, pp. 109-133, 154-183, 205-262. Sobre a confusão e limites estabelecidos pela historiografia mais tradicionalista sobre a distinção entre guerra justa e guerra santa, cf. o artigo de John Gilchrist, "The Papacy and War against the 'Sarracens', 796-1216", The lnternational History Review, lO, 1988, 173-197, onde se põe em causa a distinção que desde a tese de Carl Erdmann sobre o espírito de Cruzada não cessou de se afirmar, embora com margem para ser questionada. Para verificar este papel baste ver-se a introdução à publicação dos cânones dos quatro concílios de Latrão, tal como no-la dá Raymonde Foreville, Latran I, 11. 111 et Latran IV: Histoire des conciles oecuméniques, Paris, 1965. Cf. Colin Morris, op. cit., 237-262. A título exemplificativo, vejam-se os estudos elucidativos de S. Mochi Onory, Fonti canonistiche dell'idea moderna del/o Stato, Milão, 1951, e de Stephan Kuttner, Gratian and the Schools ofLaw (1 140-1234), London, Variorum, 1980. Sobretudo em França e Inglaterra, onde estamos muito mais bem documentados. Cf. J. W. Baldwin, "The penetration of University personnel into French and English administration at the tum ofthe twelfth and thirteenth centuries", Revue des Études lslamiques, 46, 1976, 199-215. Mas também nos territórios mais afastados do Império, na Hungria, na Península Ibérica, tal como o estudo transversal que o inquérito de Hélene Millet, "Jalons pour une histoire des chanoines au service de I'État: résultats de la base de données communes" in I canonici ai servizio del/o statto in Europa, seco/i XIII- XVI, Ferrara, 1992, pp. 255-290, permitiu estabelecer. Considere-se o exemplo de Hubert Walter, Stephen Langton ou Thomas Beckett, para apenas mencionar o exemplo inglês. Cf. C. R. Cheney, Hubert Walter, London-Edinburg, Nelson, 1967, ou, do mesmo autor, From Beckett to Langton, English Church government 1170-1213, Manchester, Univ. Press, 1956. De João Peculiar e de alguns dos seus bispos, como Fernando Martins, talvez se pudessem fazer observações semelhantes. Sobre a preparação jurídica e percurso de Fernando Martins, cf. a recente reedição da obra de Nuno Espinosa Gomes da Silva, História do Direito Português. Fontes de Direito, 3." ed., revista, Lisboa, Gulbenkian, 2000. Colin Morris, op. cit., aduz a carta que Bernardo de Claraval dirigira a Eugénio III, onde lhe mencionava que corria em Roma o boato de que o papa era ele e não Eugénio III. Mais concretamente depois da Páscoa. Para o seu itinerário de pregação da cruzada, cf., por todos, Jonathan Phillips, "St. Bernard ofCiairvaux, the Low Countries and the Lisbon Letter of the Second Cruzade", Journal of Ecclesiastical History, 48, 1997, 485-497. Como se pode ver de forma tão vivida na minuciosa descrição desse concílio que nos deixou João de Salisbúria, outro homem politicamente muito activo, na sua obra Historio

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Pontificalis. Para o texto destas memórias, cf. John ofSa/isbury's Memoirs ofthe Papal Court, ed. e trad. Marjorie Chibnall, London-Edinburg, 1962. 29 Cf. o que noutro local dissemos sobre este tema: Maria João Branco, "The nobility of Medieval Portugal (XI-XIV centuries): a general overview", in Nobles and Nobility in Medieval Europe. Concepts, Origins, Transformations, ed. Anne Duggan, London, Boydell, 2000, pp. 229-231. lO Para uma abordagem da questão do feudalismo, cf. os cinco artigos sobre o tema editados por José Mattoso, sob a rubrica "Feudalismo peninsular", na colectânea Fragmentos de uma composição medieval, Lisboa, Estampa, 1987, pp. 115-163. li José Mattoso, "Cluny, Crúzios e Cistercienses na formação de Portugal", in Portugal Medieval. Novas interpretações, Lisboa, 1985, pp. 101-121, também reconhece a importância da guerra de conquista, no esforço de definição do espaço "nacional". 32 Considere-se o papel que se deu à Donatio Constantini, neste campo. Domenico Maffei, La donazione di Costantino nei giuristi medievo/i, Milano, A. Giuffré, 1969, pp. 17-19, refere a utilização indirecta da doação de Constantino a partir de Gregório VII e a sua inclusão, na maioria das colecções canónicas, quer na Panormia e no Decretum de Ivo de Chartres, quer na colecção de Deusdedit, na Cesaraugustana, no Liber Tarraconensis, o que lhe confere uma grande circulação na península, que, muito embora não fosse uma ilha, não deixava de ser uma "quase ilha" .... ll Aragão parece ter-se feito censitário da Santa Sé tão cedo quanto 1068, quando Sancho Ramirez se declarou miles Sancti Petri perante Alexandre II; a historiografia posterior criou o mito de que este primeiro enfeudamento remontava a Ramiro I, que o teria feito nas mãos do próprio Gregório VII, mas tudo não passa de uma invenção com finalidades políticas. Em 1095 Urbano II reconfirmaria a Pedro II de Aragão o estatuto de rei e feudatário de Roma (Documentación pontifícia hasta lnocencio 1/J (ed. Demetrio Mansilla), Roma, Instituto Espaí'iol de Estudios Ecclesiasticos, 1955, doc. 34, pp. 53-54), tomando o rei e o reino sob a sua protecção. Em 1090, o conde Berenguer II de Barcelona prestara homenagem a Urbano II (Documentación pontifícia hasta Jnocencio 1/J, ed. Demetrio Mansilla), Roma, Instituto Espaí'iol de Estudios Ecclesiasticos, 1955, doc. 32, pp. 49-52 [= Mansilla, Dhl/llj). l 4 Cf. Ursula Vones Liebenstein, Saint-Ruf und Spanien. Studien zur verbreitung und zum wirken der regularkanoniker von Saint-Ruf in Avignon auf der Jberischen Halbinsel (11.-12. Jahrundhert), Paris- Tumhout, 1996, pp. 224-231, 284-326, 367-380). ls P. Kehrr, "Como y quando se hizo Aragón feudatario de la Santa Sede", Estudios de Edad Media de la Corona de Aragón, I, 1945, 285-326, e "EI Papado y los reinos de Navarra y Aragón hasta mediados dei siglo XII", Estudios de Edad Media de la Corona de Aragón, 2, 1946, 74-186. 6 l O clâssico trabalho para este ponto ainda continua a ser C. J. Bishko, "Fernando I and the origins of the Leonese-Castilian aliance with Cluny", in Studies in Medieval Spanish Frontier History- JJ, London, Variorum, 1980, pp. 1-136. 37 Podem encontrar-se múltiplos exemplos deste traço no também clâssico M. Defoumeaux, Les Français en Espagne aux X/e et Xl/e siec/es, Paris, PUF, 1949. l i Ví . eJa-se o que aconteceu durante a primeira metade do século XII, com um quadro de bispos de Coimbra na sua maioria de nomeação toledana e filiação clunicense, chegando a criar resistências e problemas com as elites locais que nos são reveladas na crise da Coimbra dos anos 1111-1116. C f. G. Pradalié, "Les faux de Ia cathédrale et Ia crise à CoYmbre au début du XII siecle", Mélanges de la Casa Velásquez, 10, 1974, 77-98. ~ . Para o processo de Tarragona e para a forma dtferente como o papado trata esta diocese e

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a bracarense, cf. P. Feige, "La Primacia de Toledo y Ia libertad de Ias demás metropolis de Espana. El ejemplo de Braga", in La Introduccion de/ Cister en Espana y Portugal, La Olmeda, 1991, pp. 61-132 (= Feige, Laprimacía). 40 Assim o propõe R. Fletcher, A vida e o tempo de Diego Xelmirez, Santiago de Compostela, ed. Galaxia, 1984, pp. 133-139. 41 Ainda se discute a atribuição do Liber Sancti Jacobi, no todo ou em parte, à pena do próprio papa. Esta discussão radica no facto de o códice abrir por uma carta de prefácio atribuída a Calixto 11, reivindicando para esse mesmo papa pelo menos a composição dos primeiros livros. No entanto, o Liber está povoado de privilégios falsos ou falsificados e a inexistência da contraprova para esta carta levou os investigadores a duvidarem da sua autenticidade, a qual, outros continuam a professar. M. C. Diaz y Diaz, in "EI texto y Ia tradición textual dei Calixtino", discute actualizadamente a questão, que jâ W. M. Whitehill colocara, quando editou o texto (Liber Beati Jacobi. Codex Calixtinus, Santiago de Compostela, 1944, p. XXIX). A síntese mais recente é a de M. Díaz y Díaz, M. A. Garcia Pineiro, P. dei Oro Trigo, E/ códice Ca/ixtino de la Catedral de Santiago. Estudio codico/ógico y de contenido, Santiago de Compostela, 1988, pp. 37-38 e 81-87. 42 Cf. C. 1. Bishko, "Count Henry of Portugal, Cluny and the antecedents of the «pacto sucessório»", in Spanish and Portuguese monastic History. 600-1300, London, 1984 (IX), pp. 155-190. 43 Cf. Fletcher, op. cit., pp. 166-167, onde menciona o episódio, tal como relatado pel:l Compostelana. 44 Parece abonar em favor da consciência que o arcebispo tinha e da familiaridade para com o trabalho dos que se dedicavam ao Direito, o facto de Gregório, cardeal de S. Crisógono, ter dedicado precisamente a Diego Gelmírez o seu Policarpus, uma colectânea de direito canónico muito dependente do Decreto de Burcardo de Worms. Na dedicatória, menciona como fora Diego Gelmírez quem o impulsionara a compilá-lo, ao referir, durante um encontro entre os dois, como havia deficiência de uma compilação de direito canónico actualizada na Hispânia. Cf. Fletcher, op. cit., pp. 144-5. 45 Cf. História Composte/ana, ed. Emma Falque Rey, Madrid, Ed. Akal, 1994. 46 Cf. Fernando López Alsina, "Los Tumbos de Compostela. Tipologias de los manuscritos y fuentes documentales", in Tumbos de Compostela, Santiago, 1985, p. 30, e Manuel Lucas Álvarez, E/ Reino de León en la Alta Edad Media, dir. J. M. Fernândez Catón, vol. VLas Cancil/erias reales (l/09-1230), León, 1993, pp. 139-142, onde traça o percurso deste chanceler de Afonso VII. 47 Cf. Tumb~ A de la Catedral de Santiago, estudo e ed. de Manuel Lucas Álvarez, Santiago de Compostela, Ed. dei Cabildo, 1998, doc. 100, p. 212-213 (documento de 1127 onde Bernardo aparece como chanceler pela primeira vez e o rei promete fazer-se enterrar na catedral); doc. 109, pp. 228-229 (documento pelo qual o rei concedeu a chancelaria aos arcebispos). 48 O processo de "reconversão" de Santiago o Maior, de "simples" apóstolo em guerreiro a cavalo e patrono da Reconquista Hispânica foi um processo bem sucedido. O papel do Liber Sancti Jacobi foi fundamental. Assim, essa intenção é sensível na própria inclusão do Pseudo-Turpim, como Livro IV, onde se cria, narra e alimenta a lenda da campanha hispânica de Carlos Magno, campanha essa que o imperador põe em curso por ordem de Santiago, que lhe teria aparecido para lhe ordenar que a levasse a cabo. O imperador assumia assim a figura de primeiro cruzado e de primeiro reconquistador, lado a lado com o apóstolo das Hispânias, e como paladino da Santa Sé, de que era também protector. Por

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outro lado, na colectânea de milagres de Santiago existe um (milagre XIX) cujo significado tem sido justamente realçado, por expressar a mesma mensagem. Trata-se de um milagre segundo o qual um bispo em vigília na catedral repreendera um grupo de camponeses que haviam ido aí rezar e invocavam o Santiago cavaleiro, alegando que Santiago era pescador e não cavaleiro. Durante a noite, Santiago aparecera-lhe a cavalo vestido de branco e, ostentando a cruz vermelha, dissera-lhe que ele estava enganado, pois era guerreiro também e, para o provar, antecipava-lhe a notícia de que na manhã seguinte Fernando I tomaria Coimbra, porque ele iria em seu auxílio. Tendo o bispo grego referido o sucedido aos cónegos da catedral, na manhã seguinte, as notícias que em breve haviam de chegar da vitória do rei de Leão em Coimbra só viriam confirmar a transformação de Santiago em cavaleiro. Daí até à posterior elaboração da comparticipação e auxílio que os cavaleiros celestes e refulgentes do Apóstolo davam aos cristãos nas batalhas mais dificeis (Alcácer do Sal, por exemplo) e até ao momento em que gritar por Santiago se transformaria no símbolo da Reconquista cristã, com um Santiago montado a cavalo e Matamoros, decorre um curto espaço de tempo. Sobre este aspecto, base documental e implicações desta evolução, cf. Whitehill, Liber Beati Jacobi.Codex Calixtinus, Santiago de Compostela, 1944, pp. XXXIII-XXXVIII; M. Díaz y Díaz, M. A. Garcia Pii'leiro, P. dei Oro Trigo, El códice Calixtino de la Catedral de Santiago. Estudio codicológico y de contenido, Santiago de Compostela, 1988, pp. 31-32 e 53-54; muito especialmente, cf. M. Díaz y Díaz, "Santiago caballero y la Reconquista de Coimbra", in Visiones de/ más a/lá en Ga/icia durante la Edad Media, Santiago de Compostela, 1985, pp. 123-143. DMP DR, doc. 89, pp. 111-112. O documento começa com a confirmação a Braga dos coutos que o infante, a rainha Urraca, seu primo Afonso Raimundes e o arcebispo Gelmírez lhe tinham concedido em época anterior. Tendo em vista que esta era uma fase em que a guerra entre as duas irmãs estava bastante acesa, não será de excluir a hipótese de esta referência à participação conjunta de Afonso, seu primo e sua tia bem como do arcebispo Gelmírez na concessão dos coutos a Braga, e a consequente anuência tácita das forças invocadas para a concessão exarada no resto do documento, possa querer significar desde logo um não alinhamento do infante pelas políticas da mãe e uma forma de captar a benevolência de Urraca e seu primo para a tomada de poder que se preparava com o apoio inequívoco de Braga, cujo arcebispo, Paio Mendes, da família da Maia, estava à partida entre os apoiantes do infante Afonso Henriques, e alternadamente do lado ou contra Urraca e Teresa. Sobre as alternâncias de Paio em relação a Urraca, cf. B. Reilly, The Kingdom of León-Castilla under Queen Urraca- 1109-1226, Princeton, 1982, pp. 129 e 241. Para o itinerário de João Peculiar, cf. Avelino J. Costa, "D. João Peculiar, co-fundador do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, bispo do Porto e arcebispo de Braga", in Santa Cruz de Coimbra do século XI ao XX"- Estudos, Coimbra, 1984, pp. 75-80. Quando, em 1144, consolidada a linha do Mondego, e assumida a designação inequívoca de rei, firmada a paz com seu vizinho leonês, o arcebispo vai a Roma e propõe o enfeudamento do reino e o pagamento do censo à Santa Sé, ao mesmo tempo que procura sanar as divergências com o toledano; ou quando, em 1148 se deslocou a Roma acompanhado de um templário e, para além da promessa de obedecer ao toledano, aproveita para reiterar o censo e participar as vitórias de Santarém, Lisboa e territórios circunvizinhos. Cf. Erdmann, O Papado e Portugal, no primeiro século da história Portuguesa, Coimbra, 1935, pp. 48-49 (= Erdmann, O Papado e Portugal). O mais actualizado trabalho é o de Peter Feige (op. cit., pp. 87-104), onde se estabeleceu a cronologia da questão e seu desenvolvimento com rigorosa precisão.

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A. Millares Carlo, "La Cancillería real en León y Castilla hasta fines dei reinado de Fernando III", Anuario de Historia de/ Derecho Espano/ 3, 1926, 269-273, anotou precisamente esta alteração, definindo que apenas a partir de 1178 se pode atestar a presença continuada de toledanos no cargo de chanceleres dos reis de Castela. Cf. Millares Carlo, loc. cit., p. 277, onde publica o documento. Aliâs, seguindo um esquema de construção da sede de arcebispado nos moldes de seus congéneres: elaboração de cartulârios onde se assentam os privilégios régios e pontificios, elaboração de crónicas e material historiográfico onde se valoriza a imagem do rei que os protege, mas também do arcebispado que os serve. Tudo isto, mais uma vez sob a égide de um arcebispo, Rodrigo de Toledo, que pretende projectar a sua metrópole junto à ascensão de um rei, neste caso Fernando III. Cf. Feige, Laprimacía... , pp. 66-71. Monumenta Henricina, dir. A. Dias Dinis, vol. I, Coimbra, 1960, doc. 9, pp. 18-21. José Mattoso, História de Portugal- vol. 11, A monarquia feudal, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, pp. 63-77, coloca em 1130 o ano com maior consequência para a viragem do reinado do Infante que provocaria as alterações estratégicas e os apoios que lhe permitiriam a inequívoca afirmação da sua soberania. Aliâs, afigura-se inegável que a consolidação de todo o movimento que nesse ano se iniciou só terá começado a sentir-se quando os avanços territoriais e a consolidação do papel de Santa Cruz junto ao rei permitiram tal afirmação. "Prefatio de Almaria", in Chronica Hispana saeculi XII. Pars /, ed. Emma Falque, Juan Gil, Antonio Maya, Corpus Christianorum LXXI, Turnhout, Brepols, 1990, pp. 253-267. Já D. Teresa e Fernão Peres tinham doado Soure aos Templârios, em 1127. Quanto a Afonso Henriques, a sua primeira doação aos Templârios é justamente do castelo de Soure, e data de 1129-30 (cf. Documentos Medievais Portugueses- Documentos Régios, vol. I, Documentos dos Condes portucalenses e de D. Afonso Henriques, a. D. 1095-1185, ed. Rui de Azevedo, Lisboa, 1958 (= DMP, DR), doc. 96, p. 120. Cf. José Mattoso, História de Portugal... , pp. 71-73, bem como, do mesmo autor, "Ciuny, Crúzios e Cistercienses na formação de Portugal", in Portugal Medieval. Novas interpretações, Lisboa, 1985, pp. 101-121, e "As três faces de Afonso Henriques", Penélope, 8, 1992, 25-42. Continua relativamente em aberto a discussão em torno da data na qual a mudança de regra teria ocorrido. No entanto, na revisão do seu anterior estudo, Maria Alegria Marques aponta bons argumentos para aceitar as datas acima propostas como a de introdução de Cister em S. Cristóvão de Latões. Cf. Maria Alegria Marques, "A introdução da ordem de Cister em Portugal", in Estudos sobre a Ordem de Cister em Portugal, Lisboa, Colibri, 1998, pp. 33-38 e 48. Cf. Maria Alegria Marques, op. cit., pp. 38-39, onde refere as boas relações entre S. Bernardo e Santa Cruz de Coimbra, um pacto entre as duas instituições e mesmo o passo da Vida de S. Teotónio onde se relata o alegado envio de um báculo por Bernardo ao prior Teotónio (cf. ainda a nota 2 da tradução do texto do Indiculum, no Apêndice). Avelino J. Costa, op. cit., p. 60. A carta foi enviada a Roma pelo mesmo homem que mediou as pazes entre os reis, em Zamora, o cardeal Guido de Vico. Cf. Carl Erdmann, O Papado e Portugal, pp. 44-45. Trata-se da forma como se expressam os conceitos do rei como miles Petri, da dependência directa de Roma, do pagamento de um censo, e do facto de os reinos ou domínios ficarem garantidos na sua imunidade por estarem sob protecção e favor divino, por Roma Para os documentos, cf. Monumenta Henricina, doc. 9, pp. 18-21 (Claves Regm); Mansilla,

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DH- III, does. 32 e 34, pp. 49-54. Embora, venham a perder esse ascendente para outras ordens militares, como Santiago e Avis, que dentro em breve passariam a liderar o esforço de reconquista a Sul. O papel dos Templários viria a ser inexoravelmente confinado às suas fronteiras centro e leste, porquanto se começaria a partir de Sancho I a sentir o crescimento e predomínio dos cavaleiros de Avis e Santiago. Sobre estes momentos, cf. A. J. Forey, "The Emergence of the Military Order in the Twelfth Century", Journal of Ecclesiastical History, 36, 1985, 175-195, e ainda, pelo mesmo autor, "The military Orders and the Spanish Reconquest in the Twelfth and Thirteenth Centuries", Traditio, 40, 1984, 197-234. Não se esqueça, no entanto, como Avis também segue uma regra cisterciense. Sobre este último ponto, cf., por todos, a cronologia estabelecida por Maria Alegria Marques e a bibliografia que a autora aponta em "A introdução da Ordem de Cister em Portugal", in Estudos sobre a Ordem de Cisterem Portugal, Lisboa, Colibri, 1998, pp. 48-49, nota 71. Carl Erdmann, O Papado e Portugal... , pp. 37-40. Para a edição do texto das duas Manifestis probatum e estudo em torno do carácter jurídico da que foi concedida a Portugal, cf. Luís Ribeiro Soares, "A bula 'Manifestis probatum' e a legitimidade Portuguesa", in 8. • centenário do reconhecimento de Portugal pela Santa Sé, Lisboa, 1979, pp. 145-191. Cf. J. Mattoso, op. cit., pp. 70-71, onde se dá a imagem mais actualizada da polémica gerada em torno desse momento e do seu significado, na época e nos séculos posteriores. Cf. ainda Ana Isabel Buescu, "Um mito das origens da nacionalidade: o milagre de Ourique", in F. Bethencourt, D. Ramada Curto, eds., A memória da Nação, Lisboa, 1991, pp. 49-69. Este momento, visto como momento fundador do reino, através do qual Deus delegara no seu servo Afonso Henriques a tarefa de ganhar territórios para a Fé, e, fazendo dele seu instrumento, conceder-lhe-ia a vitória e a realeza para que pudesse exercer o seu munus com maior capacidade, marcando assim com o sinal do milagre a realeza do fundador, numa batalha que as narrativas fizeram colocar significativamente no dia de Santiago. Parece bastante significativo e apropriado que o dia da batalha tivesse sido precisamente no dia do patrono da guerra na Hispânia, Santiago, especialmente se considerarmos que a data referida obedecia ao ritual romano e não à tradição hispânica, a 25 de Julho e não a 30 de Dezembro. A festa de Santiago foi celebrada em três datas diferentes: a que marcava a data do martírio (25 de Março), a da trasladação do corpo de Iria para Santiago (25 de Julho) e a da deposição na tumba da Catedral (30 de Dezembro). A explicação destas datas e a detenninação de obrigatoriedade de abandonar o uso hispânico e de celebrar a festa do santo na data "romana" da deposição no túmulo, faz parte integrante de uma carta inserida no Livro III do Liber Sancti Iacobi atribuída a Calixto II (Liber Sancti /acobi, L. 3, cap. 3). Cf. Manuel Dfaz y Díaz, M. A. Garcia Pii'ieiro, P. dei Oro Trigo, E/ códice Calixtino de la Catedral de Santiago. Estudio codicológico y de contenido, Santiago de Compostela, 1988, pp. 56-58. J. Mattoso, História de Portugal, pp. 68-71. Prova evidente disso são o recurso feito aos "franceses" e aos "cruzados", ao longo da reconquista, mas ainda as insistentes e repetidas cartas pontificias que ciclicamente chamavam os reis hispânicos à unidade e cooperação para suprir a dificuldade em gentes e também o apelo ao auxílio de outras partes da Cristandade, para a guerra na Península, como aconteceria com a batalha de Las Navas. O panorama de crise que afectou os anos que se seguiram à conquista de Toledo e a falta de população para povoar as terras conquistadas era quase equivalente à falta de homens para a guerra. Sobre esta situação cf. Ch.

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E Dufourcq, J. Gaultier Dalché, Histoire économique et sociale de I'Espagne chrétienne au Moyen Age, Paris, Armand Colin, 1976, pp. 76-86, e Salvador de Moxó, Repoblación y Sociedad en la Espana Cristiana Medieval, Madrid, Rialp, 1979. C f. H. Livermore, loc. cit., pp. 7-12, e Jonathan Phillips, "St. Bernard of Clairvaux, the Low Countries and the Lisbon Letter ofthe Second Cruzade", Journal ofEcclesiastical History, 48, 1997, 494-497. Também a edição crítica das obras de S. Bernardo aceitara o pequeno bilhete de Bernardo como autêntico. Cf. Sancti Bernardi Opera (ed. J. Leclercq et alii), Roma, 1977, 8, n. 0 308. Cf. referências da nota anterior. Monumenta Henricina, doc. 2, pp. 3-4. Cf. C. Erdmann, O Papado e Portugal, pp. 53-54, onde o autor não só refere a presença do templârio em Roma com João Peculiar, como constata que a proximidade do primeiro rei português a essa Ordem poderia e deveria ajudar a melhorar a posição de Portugal na Santa Sé. H. Livermore, loc. cit. Veja-se, por exemplo (no corpo do texto), a descrição do rei, quando se enfurece perante as lutas que se desenham no seio dos cruzados, ou a admiração respeitosa que transparece da descrição das negociações para a rendição da cidade, na fase final, quando o rei trata os vencidos com magnanimidade e compaixão. Sobre isto, v. detalhes infra, na edição do texto, nota 1. Cf. Charles Wendell David, De Exp., pp. 40-46, Pierre David, "Sur Ia relation de Lisbonne (1147) rédigée par un clerc anglo-normand", Bulletin des Études Portugaises, 2, 1947, 241-254; Ruy de Azevedo, "A Carta ou Memória do Cruzado Inglês R. para Osberto de Bawdsey sobre a conquista de Lisboa em 1147", Revista Portuguesa de História, 1, 1957, 343-370; H. Livermore, loc. cit., 1-16. IANTT, Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, t.• incorp., m. 3, doc.18. Ih. H. Livermore, loc. cit., p. 7. É uma afirmação totalmente conjecturai. Contando 164 navios na expedição, com um clérigo por cada navio, tal como se sabe que foi, o autor prossegue supondo que metade deles deveriam ser anglo-normandos para logo depois, sem mais explicações, afirmar que o número desses 82 que poderiam ter tido um nome começado por R. "could hardly have exceeded tive or ten at the most". Cf. H. Livermore, loc. cit., pp. 6-7. Sobre esta componente humana na cidade da pós-reconquista, quer no cabido, quer nas estruturas municipais, quer apenas como proprietários ou repovoadores, cf. Maria João Branco, "A conquista de Lisboa revisitada: estratégias de ocupação do espaço político, fisico e simbólico", in Actas do li Congresso Histórico de Guimarães, vol. 11, Guimarães, 1996, pp. 131-132 e 134-135. Aparece já como deão no documento de 1150, que todos os membros do cabido confirmam (Rodrigo da Cunha, Historia Ecclesiastica da Igreja de Lisboa: Vida e Acçoens de seus Prelados e Varoens Eminentes em Sanctidade que nellaflorecerão, 11, Lisboa, 1642, f. 72 [=R. da Cunha, Hist. Eccl.]). No Livro das Calendas da Sé de Lisboa (Cabido da Sé, Sumários de Lousada, Apontamentos dos Brandões, Livro dos Bens Próprios dos Reis e das Rainhas- Documentos para a História da Cidade de Lisboa, Lisboa, 1954, p. 313) é mencionado como Roberto, primeiro deão de Lisboa, no assento do óbito de seu pai, Heringus. Para além de diversos outros documentos em que aparece ao longo da sua carreira (IANTT, Mosteiro de Alcobaça, 1." incorp., m. 2, doc. 40; Ordem de Cristo, does.

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particulares, m. I, doc. 2: R. da Cunha, Hist. Eccl., f. 78), também é referido como sendo ainda o deão na altura em que o chantre Mestre Estêvão faz a sua descrição da translação das relíquias de S. Vicente em 1173 (cf. Aires A. Nascimento e Saul A. Gomes, S. Vicente de Fora e seus Milagres Medievais, Lisboa, 1988, p. 34). Onde se regista: Obiit (..) Robertus, qui fuit decanus Ulixbone; ms British Museum, Add Mss. 1544, f. 54v; todavia, não se anota uma explícita pertença deste eclesiâstico aos regrantes nem sequer a S. Vicente de Fora. Roberto era também o nome de um irmão do bispo Gilberto de Lisboa, que ficou em Lisboa e deixou um leccionârio à Sé. Embora fosse tentador pretender identificar este Roberto com o deão da Catedral de Lisboa, é impossível comprovar essa relação. Para a referência a este Roberto, cf. Cabido da Sé, Sumários de Lousada, Apontamentos dos Brandões, Livro dos Bens Próprios dos Reis e das Rainhas- Documentos para a História da Cidade de Lisboa, Lisboa, 1954 (Livro das Ca/endas da Sé, p. 314 ). Cf. Francisco da Gama Caeiro, "As Escolas Capitulares no primeiro século da Nacionalidade", Arquivos de História da Cultura Portuguesa, 1/2, 1966, 26-28. Ruy de Azevedo, "A Carta ou Memória do Cruzado Inglês R. para Osberto de Bawdsey sobre a conquista de Lisboa em 1147", Revista Portuguesa de História, 7, 1957, 343-370. /d, ib. H. Livermore, The conquest of Lisbon ... , pp. 15-16. Constatação que H. Livermore, que conhece o documento apenas por fotografia (The conquest of Lisbon, p. 15), pura e simplesmente afasta, por lhe parecer que se pode inferir tratar-se da mesma letra com base na opinião então expressa pela Dr.• Maria José Mexia, que na época analisara o documento e transmitira ao investigador inglês que não se tratava de duas mãos, mas dos efeitos de uma pena gasta. A mesma Dr.• Maria José Mexia, em anâlise posterior, concordou connosco em como a existência de duas mãos no texto é inegâvel, sugerindo ainda uma hipótese de explicação bastante plausível, que adiante exporemos. A. Cruz, Santa Cruz de Coimbra na cultura portuguesa da Idade Média, Porto, 1963, pp. 58-61. Conforme hipótese de Aires A. Nascimento, em Hagiografia de Santa Cruz de Coimbra. Vida de D. Te/o, Vida de D. Teotónio, Vida de S. Martinho de Soure (ed. crítica e introd. de Aires A. Nascimento), Lisboa, Colibri, 1998, p. 245, nota 2. Cf. nota seguinte. O bem em causa na doação, a Igreja de Santa Maria, tem sido objecto de acesa discussão, havendo quem a identifique com a Igreja dos Mârtires e quem negue essa localização por alegar que, se ela tivesse sido instituída e fosse propriedade de outrem, o rei não poderia tê-Ia doado aos cónegos da catedral, como fez quando ordenara a forma como a fundação de S. Vicente de Fora, na orla oriental da cidade, haveria de decorrer. A Notícia da fundação de S. Vicente ( cf. a edição infra, Apêndice), datada de 1188, descreve com muito pormenor a fundação. Esta teria sido resultado de um voto do rei formulado durante o cerco de Lisboa, voto esse que se quisera cumprir imediatamente após a conquista e uma vez estabelecida a ordem nova. Pouco importa qual o grau de veracidade do relato; são as concepções que veicula e as ideias que revela que aqui nos importam. O narrador, que alega basear-se em testemunhas presenciais dos acontecimentos ainda vivas em 1188, reproduz então todo o diâlogo que o rei teria tido com o bispo de Lisboa. Afonso Henriques mandara convocar Gilberto para lhe participar que, conforme ao voto que fizera, desejava fundar um mosteiro na cidade, junto a uma das basílicas que se construíam perto dos dois

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cemitérios dos cruzados. Desejando respeitar a posição e a autoridade do bispo e seu cabido, chamara-o não só para lhe participar a sua intenção mas também para lhe doar uma das duas igrejas, que lhe dava a escolher livremente. Esta oferta tinha uma contrapartida: o bispo podia reter para sempre a igreja que escolhesse, com todos os direitos e rendimentos, mas deveria deixar a outra ao rei totalmente isenta da jurisdição episcopal, directamente dependente do rei e seus sucessores. O bispo, reunido com o cabido viria a escolher a igreja de Santa Maria dos Mártires, levado a isso, sempre segundo o relator, pelos seus cónegos que alegavam ser aquela que tinha maiores rendimentos. Pode sentir-se neste relato o estilete fino da parcialidade do narrador, que faz questão de deixar escrito que as bases da concessão da isenção do mosteiro tinham sido lançadas sob a autoridade do rei, e com o consenso e assentimento do próprio bispo e cabido, para além de também deixar patente que a escolha do bispo e cabido fora orientada por um desejo menos piedoso de lucro. Estava, assim, autorizada esta versão dos acontecimentos, que relata a forma como Santa Maria passara para as mãos do cabido, provavelmente tentando sanar dúvidas que na época da redacção decerto deveriam existir. As tensões entre os regrantes da cidade e o cabido também tinham sido advertidas pelo chantre de Lisboa, quando descrevera a trasladação das relíquias de S. Vicente, ao mencionar as ambições dos vicentinos quanto ao local de depósito das relíquias. O chantre Estêvão de Lisboa decerto conhecia bem os meandros dos conflitos que apenas aflora, porquanto ele mesmo seria cónego regrante de S. Vicente, se atendermos à verba do Livro de Aniversários de S. Vicente de Fora e Obituário de Santa Cruz (British Museum, Add. Mss., 1544, f. 15v; Porto, BPM, Santa Cruz, 84, fl. 23v). Num rescrito de 1184 (C. Erdmann, "Papsturkunden in Portugal", in Abhandlungen der Gesellschaft der wissenschaften zu Gottingen. Philologish-historische klasse, Neue folge 20/3, Berlim, 1927, doc. 100, pp. 291-293 [= Papst.]), Lúcio III passava a S. Vicente de Fora uma carta de protecção .e confirmação de privilégios e posses, na qual se refere explicitamente a igreja de Santa Maria como fazendo parte integrante dos bens do mosteiro. Uma outra carta de confirmação de privilégios, em 1192 (Erdmann, Papst., doc. 131, pp. 352-353), é demasiado genérica para que possamos aventar alguma hipótese sobre o que teria acontecido à igreja de Santa Maria em Lisboa. Em 1187 e 1192, o papa voltava a passar cartas de confirmação de bens em Lisboa, ou de isenção de dízimos, mas desta vez ao mosteiro de Santa Cruz em Lisboa (Erdmann, Papst., does. 112 e 127, pp. 328 e 348-349). Embora não tragam, infelizmente, detalhes sobre as propriedades confirmadas, deixam levantar a hipótese de que esta época assistia a uma certa necessidade de os crúzios comprovarem as suas propriedades e direitos na diocese de Lisboa. A acesa querela que ainda em 1180 se pode pressentir por entre as linhas de uma contenda que opunha o bispo Álvaro a dois particulares que queriam vender uma terra que o bispo pensava ser de Santa Cruz, e por isso queria resgatá-la para o seu episcopado, é bem o exemplo dos conflitos patrimoniais que opunham as duas instituições e que não nos é possível sondar por falta de mais provas documentais. Trata-se de uma venda que fora impugnada por Álvaro, que enviou juízes para se certificar de que os terrenos em venda não eram de Santa Cruz e por isso não deviam ser vendidos mas antes recuperados "prefatus episcopus putans ipsam hereditatem esse Sancte Crucis uolebat eam uendicare" (cf. "Inventário de Compras de S. Vicente de Fora" (ed. Teresa Acabado), Arquivo de Bibliografia Portuguesa, 53-56, 1969, doc. 57, p. 88). Nada prova que o caso da capela de Santa Maria que aparece no documento alegadamente de 1148 fizesse parte destas contendas nem que fosse a mesma capela de Santa Maria dos Mártires, ou que a sua elaboração tivesse sido feita para comprovar uma posse dessa ermida anterior à doação que Afonso Henriques fizera ao episcopado da igreja

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dos Mártires. Não deixa de ser uma associação sugestiva, sobretudo se tivermos em vista que as querelas entre o episcopado e os mosteiros regrantes são atestáveis desde muito cedo e que todos estes testemunhos nos falam disso, velada ou explicitamente. Parece, contudo, não ser essa a realidade, neste caso específico. 91 Cf. Rui de Azevedo, Documentos falsos de Santa Cruz de Coimbra (séculos XII e Xlll), Lisboa, 1935, e G. Pradalié, "Les faux de la cathédrale et la crise à Coimbre au début du XII siecle", Mélanges de la Casa Velásquez, 10 (1974), 77-98. 9& Estamos extremamente gratos ao Prof. Robert Bartlett, que muito gentilmente nos auxiliou na definição destas características dos documentos anglo-normandos, fornecendo-nos exemplos e explicações esclarecedoras sobre este ponto. 99 Esta é a hipótese aventada pela Dr.• Maria José Mexia, face à evidência de que as letras são muito diferentes. O doador teria ditado o seu documento a um escriba e o notário de Santa Cruz, o subdiácono Salvado, teria feito apenas apor-lhe os elementos de validação, segundo a tradição dos notários de Santa Cruz. 100 Relembre-se como nos termos do acordo estabelecido entre o rei e os cruzados, eles podiam ficar com o saque e o espólio, mas o rei ficaria com o domínio territorial. Para o texto do pacto entre Afonso Henriques e os Cruzados, cf. infra, no corpo da edição. 101 Apontando ainda como um dos indícios mais óbvios a diferença temporal entre a saída dos cruzados por mar e dos cruzados por terra, como se estivesse planeado um itinerário durante o qual se previsse uma paragem da frota no caminho, durante alguns meses. Cf. Jonathan Phillips, "St. Bemard of Clairvaux, the Low Countries and the Lisbon Letter of the Second Cruzade", Journal of Ecclesiastical History, 48, 1997, 495-496. 102 Mais tarde, esta proximidade havia de continuar. Seria de entre os meios regrantes que viria a ser recrutada uma percentagem sensível dos bispos do reino, mas será aos cistercienses que se recorrerá quando a necessidade de juízes delegados em causas espinhosas se colocar. O primeiro e segundo reis fazem-se enterrar em Santa Cruz, mas os três seguintes escolhem Alcobaça. Em 1220 Afonso 11 chegaria a pretender que os cónegos regrantes de Santa Cruz passassem à observância cisterciense. Note-se que a ordem dos cavaleiros de Évora segue a regra cisterciense.

11 A CONQUISTA DE LISBOA AOS MOUROS Relato de um Cruzado DE EXPUGNATIONE LYXBONENSI

DE EXPUGNATIONE LYXBONENSI 1

FI. 125r

OSB[ERTO] de Baldr[eseia] R[ andulfus] salutem 2• Qualiter circa nos habeatur magni fore uoti aput uos scitu pro certo credimus, idemque de uobis aput nos agi nulla dubitatione teneamini. ltineris ergo nostri uel prospera uel aduersa uel que interim facta uel dieta uel uisa uel audita, relatu digna fuerint qualicumque3 scripto manifestabimus.

I. lgitur aput portum de Dertemude diuersarum nationum et morum et linguarum gentes nauibus circiter c.LXIIII conuenere. Horum omnium trifariam partitur exercitus. Sub comite Amoldo de Aerescot, nepote Godefridi ducis, a Romani imperii partibus4 secedit exercitus. Sub Christiano de Gistell[a] Flandrenses et Bononenses, ceterorum omnium sub constabulariis quatuor: sub Herueo de Glanuilla Norfolcenses; et Sudfolcenses sub Symone Dorobemensi; omnes Cantiae naues sub Andrea Londonienses; sub Saherio de Arcellis relique omnium naues. Inter hos tot linguarum populos firmissima concordiae atque amicitiae pignora5; insuper leges seuerissimas sanxerunt, ut mortuum pro mortuo, dentem pro dente. Pretiosarum uestium omnimodum apparatum interdixerunt. Ne item mulieres in publico prodirent. Pacem seruandam omnibus, nisi ex indicto iniurias. Ut singulis hepdomadibus capitula seruentur, seorsum a laicis, seorsum a clericis, nisi forte magna quedam utrorumque coniunctionem exigerent.

A CONQUISTA DE LISBOA Relato de um Cruzado 1

O. Saudação. A Osb(erto) de Bawdsey2, R(aul)l. As minhas saudações! Da mesma forma que julgamos estar seguros de que é grande desejo da vossa parte saber o que acontece connosco assim não deveis ter qualquer dúvida de que o mesmo se passa connosco a vosso respeito4 • Do nosso percurso, pois, tudo quanto for merecedor de relato, bons ou maus momentos, tudo quanto tenha sido entretanto feito, dito, visto ou ouvido, tudo isso o exporemos por escrito5 • 1. Concentração em Dartmouth e convenções de Cruzada.

No porto de Dartmouth6 se reuniram, pois, uns cento e sessenta e quatro navios com homens de diversas nacionalidades, costumes e línguas. Divide-se então o exército de todos eles em três partes: sob comando do conde Arnaldo de Aerschot, sobrinho do duque Godofredo, ficaram as forças vindas do Império Romano; sob as ordens de Cristiano de Gistelles se colocaram os homens da Flandres e de Bolonha; os homens de todas as outras origens ficaram na dependência de quatro condestáveis: sob comando de Hervey de Glanville 7, os homens de Norfolk; os homens de Suffolk, às ordens de Simão de Dover; todos os navios de Kent às. ordens de André de Londres; às ordens de Saério de Archelles, os restantes navios da frota•. Entre estes povos de tantas línguas trocam-se garantias da mais filme concórdia e amizade; mais que isso, estabelecem-se decisões das mais estritas, como a de morte por morte, dente por dente. Proíbe-se o espavento de roupas sumptuárias, quaisquer que elas fossem; as mulheres não apareceriam em público; a paz devia ser respeitada em todas as circunstâncias, a não ser por motivo de ofensas compreendidas no pacto estabelecido9 • Semanalmente far-se-iam reuniões, de um lado os leigos, de outro lado os clérigos, a não ser que eventualmente alguma circunstância exigisse assembleia geral

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Ut singule naues singulos presbyteros haberent, et eadem que in parrochiis obseruari iubentur. Ut nullus alterius nautam uel seruientem in conuictu suo retin[er]ef'. Ut singuli singulis hepdomadibus confiterentur7 et die dominico comm!Jnicarent. Et sic per cetera capitula usui nostro necessaria, singuli singulis obseruationum sanctiones. Constituti sunt preterea de unoquoque milleno duo electi, qui iudices et coniurati dicerentur, per quos ex indicto constabulariorum causarum terminatio peccuniarumque distributio fieret.

2. Hiis inibi sic statutis, sexta feria ante ascensionem Domini uelificare incepimus. Subsequenti dominica costam Britannie, profunditatis dimensione scilicet8 LXXV cubitorum et maris nigredine, comperimus. Per biduum uero subsequens aurarum placidissima9 serenitate detenti, nichil aut parum profecimus. [125v] Quarta feria uento incumbente prospero Balearicam Maiorem, scilicet montium Pyreneorum capita, undarum magnitudine et feruore maris, comperimus 10 • Vespere autem te[m]pestate oborta 1., omnes circumquaque dispersi sumus. Noctis enim 12 supra modum tenebrositas atque insueta maris reumata 13 nautas etiam audacissimos desperare cogebat. Audite sunt interim syrenes, horribilis sonitus, prius cum luctu, postea cum risu et cachynno, quasi insultantium castrorum clamoribus. Per totam igitur dominicae ascensionis noctem laborantibus, consors atque custos diuina misericordia affuit, ut castigando castigaret et morti non traderet. Quanti illic penitentes, quanti peccata et neggligentias cum luctu confitentes et gemitu, peregrinationis suae conuersionem utcumque inceptam, inundatione lacrimarum diluentes, in ara cordis contriti Deo sacrificabant. ldque adeo actum ut dispensatio diuina nullum preteriret, imo etiam caelestis beneficii singulare priuilegium se accepisse unusquisque gratularetur, ut longum sit enumerare per singula quantis uisionum imaginibus diuina miracula patuerint. Postera igitur di e, paululum sedata tempestate, in Hyspania aput portum Sancti

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de uns e outros. Cada navio teria um sacerdote e haveria as mesmas obrigações que em qualquer paróquia. Ninguém reteria para seu serviço um marinheiro ou um serviçal de outrem. Todos se confessariam semanalmente e comungariam no domingo. E assim, sobre os demais pontos aplicáveis às nossas exigências do dia a dia foram tomadas decisões individualizadas para cada um dos deveres a cumprir. Além disso, por cada mil homens, foram constituídos por eleição dois juízes ajuramentados 10, como era a designação que lhe era dado, e a eles competia, de acordo com a convenção, decidir sobre diferendos entre condestáveis e sobre a distribuição de dinheiros 11 • 2. Partida (23 de Maio de 1147) e viagem atribulada. Acordados assim estes termos, na sexta-feira antes da Ascensão do Senhor 12 , fizemo-nos à vela. No domingo seguinte, pela profundidade do mar que era no mínimo de 75 côvados e pela sua cor negra identificámos a costa da Bretanha; porém, nos dois dias subsequentes, ficámos retidos pela calmaria mais que bonançosa das brisas e pouco ou nada progredimos. Na quarta-feira, sob influência de um vento favorável e pela altura das ondas e pela agitação do mar, reconhecemos estarmos na Baleárica Maior 13 , ou seja, nos Picos dos Montes Pirenéus; ao anoitecer, no entanto, levantou-se um temporal e fomos todos dispersados, cada um para seu lado 14 • Facto é que a escuridão extrema da noite e a corrente desusada do mar forçava ao desespero mesmo os marinheiros mais destemidos; ouviram-se entretanto as Sereias 1S, um som horripilante, primeiro acompanhado por lamentos, depois por risos e gargalhadas, como se fossem gritos de tropas a fazerem provocações. Penámos, pois, ao longo de toda a noite do domingo da Ascensão, mas a divina misericórdia foi nossa companheira e guarda, para castigar o que havia que castigar mas sem nos entregar à morte. Quantos ali se penitenciaram, quantos, por entre prantos e suspiros, confessaram os seus pecados e negligências, e, fazendo passar pelas lágrimas derramadas o propósito de uma peregrinação que ainda mal tinham começado, faziam a Deus sacrifícios no altar de um coração contrito! E assim tudo aconteceu de tal forma que o favor divino ninguém deixava de lado, antes, pelo contrário, cada qual se sentia gratificado por ter recebido privilégio singular de graça celeste, de tal modo que seria longo enumerar individualmente os prodígios divinos que se tomaram patentes em tantas quantas foram as visões recebidas 16 • E assim, no dia seguinte, tendo abrandado algum tanto o temporal, arribámos sem problemas à costa hispânica, ao porto de São Salvador, que tem

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Saluatoris, qui dicitur Mala Rupis, feliciter applicuimus. Ibidem enim ecclesia a Mauris ante parum temporis fuerat destructa, monachorum cenobio celeberrima. Distat autem a ciuitate Oueti miliaria x, in qua est ecclesia Saluatoris et totius Hyspaniae preciosissimae reliquiarum. Adiacet autem prouincia montuosa, ferarum uenatibus et frugum generibus multimodis celeberrima, admodum delectabilis nisi propriis inhabitatoribus fedaretur. Inde nauigantes ad ripam Ouies peruenimus, que adiacet Lucanae prouinciae. Distat autem miliaria xx a ciuitate Lucana. Hinc iterum nauigantes deuenimus Ortigiam. Exin ad turrem Faris, que olim a Julio Caesare constructa, admirandi operis, ut ibidem redditus 14 et cause interminabiles totius Britanniae et Hybemie et Hyspanie quasi in meditullio commearent. Est enim [126r] adeo sita inter meridionalem et occidentalem plagam ut prima sit littoris appulsio recto tramite a Britannia uenientium. lbi uero pons lapideus ex multis arcubus ostenditur, in mari protensus, ex quibus uiginti quatuor arcus qui ante biennium non apparuerant iam apparent. Inde relatum est a quodam gentis illius antiquissimo uaticinatum ut dum pontis illius arcus emergerent, destructionem gentium finemque ydolatriae in Hyspania imminere. Exhinc ad portum Tambre deuenimus uigilia Pentecostes. Distat autem ab ecclesia beati Iacobi miliaria vn. Est autem ciuitas Hyriae proxima, que nunc Petra Iacobi uocatur, et est sedes episcopalis. Portus autem, multis generibus piscium fecundus, habet in sinu maris insulam. Vidimus inibi, mirabile dictu, piscem tenentis manum stupefacientem; est uero ad modum raiae, habens in summitate spinae duas pinnas acutissimas. Prouincia adiacens feris abundat, segete sterilis, uite arida, pom[is ab]und[ans] 15 • Inde peruenimus ad insulam que uulgo Flamba uocatur, in qua est cuniculorum copia et serpentium; habet etiam folium unde worma tingitur. Insula hec una ex Balearibus est. Prouincia a sinistra in continenti uocatur Campis. Habet autem litus maris ab insula usque ad Portugalam fluuium Mineum 16, super quem ciuitas Tude. Post hunc fluuius Caduua 17 supra quem ciuitas Braccara. Post hunc fluuius Aua, supra quem ecclesia beati Tyrsi martyris. Post hunc fluuius Leticia. Post hunc fluuius Doyra, supra quem Portugala, ad quam ab insula uenimus circiter horam diei nonam. Dieta autem olim a portu

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17 0 nome de Má Penha • Há a assinalar que, havia pouco tempo, fora aí destruída pelos mouro/uma igreja muito famosa pela comunidade dos seus monges 18 • Fica a uma distância de dez milhas da cidade de Oviedo, onde existe a igreja do Salvador e onde se encontram as mais preciosas das relíquias de toda a Espanha. Próxima fica uma região montanhosa, muito conhecida pelos animais de caça e pela diversidade de produções, e que seria altamente aprazível se não fosse aviltada pelos seus próprios habitantes. Dali navegámos até Ribadeo, que confina com a região de Lugo; dista, aliás, 20 milhas da cidade de Lugo. Navegando de novo a partir daí, chegámos a Ortígia e daí até à Torre do Farol, uma construção de espantar, levantada outrora por Júlio César como ponto central, para onde convergissem os réditos e causas intermináveis de toda a Bretanha, da Irlanda e da Espanha. Está, efectivamente, situada de tal modo entre a costa meridional e a ocidental que constitui o primeiro porto de acostagem para quem procede da Bretanha em linha recta; salta aí à vista, porém, uma ponte de pedra formada de muitos arcos e alcandorada sobre o mar. Vinte e quatro desses arcos há uns dois anos não estavam à vista, mas agora estão. A seu respeito, foi referido, por alguém de muita idade e pertencente à gente dali, que, segundo um vaticínio, quando emergissem os arcos daquela ponte estaria iminente a destruição da gentilidade e o fim da idolatria na Espanha 19 • Daqui chegámos ao porto de Tambre na vigília do Pentecostes [7 de Junho]. Está a 7 milhas de distância da igreja de Santiago20 • Próxima, porém, está a cidade de Iria que agora toma o nome de Padrão de Santiago21 e é sede episcopal. O porto, por sua vez, que é copioso em muitas espécies de peixe, tem uma ilha na enseada. Vimos aí um peixe que, será estranho só ouvi-lo, entorpece a mão de quem pega nele; é a modo de raia e tem no alto da espinha duas barbatanas agudíssimas22 • A região vizinha é abundante em animais bravios, não produz cereais, não tem vinhas, mas está cheia de árvores de fruta. Daí chegámos a uma ilha que na língua da terra tem o nome de Flamba23 , e nela há grande número de coelhos e de cobras; há também uma folha com que se tinge de vermelhão 24 • Esta ilha é uma das Baleares25 • A região do lado esquerdo na terra firme tem o nome de Campis26 • A costa do mar desde a ilha até Portugal é formada pelo rio Minho, em cuja margem fica a cidade de Tui; depois deste, vem o rio Cávado, acima do qual fica a cidade de Braga; depois dele, o rio Ave, por cima do qual fica a igreja do mártir Santo Tirso; a seguir a ele, o rio Leça27 ; depois dele, o rio Douro, acima do qual fica a cidade de Portuga/a (Porto), onde, vindos daquela ilha, chegámos por volta da hora nona28 ; foi assim chamada desde

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Gallorum, habens iam annos reparationis suae circiter LXXX, desolata ab introitu Maurorum et Moabitarum. Habet autem portus a meridie harenas salubres, a prima rupe in introitu usque ad aliam rupem imfra, habentes in latitudine passus XII, ab extremi recessus margine, in quibus inuoluuntur egroti donec mare superueniens eos abluat ut sic sanentur. Ibidem uero testatus est episcopus predecessorem suum sanatum a liuore simili lepre. [126v] De huiusmodi harenis quod sint in Hyspania in hystoriis Romanorum inuenitur. 3. C um autem peruenissemus ad portum, episcopus una cum clericis suis nobis obuiam factus est; nam rex longe aberat cum exercitu suo contra Mauros. Ibidem salutatis omnibus ex ntore gentis suae, aduentum nostrum se prescisse nobis indicauit; sed et ab heri litteras regias accepisse in hec uerba: "Hyldefonsus Portugalensium rex Petro Portugalensi episcopo, salutem. Si forte Francorum naues ad uos peruenerint, cum omni benignitate et mansuetudine suscipite eos accuratius, et secundum conuentionem remanendi mecum quam constitueritis, uos et quos uobiscum uoluerint obsides totius conuentionis [date)1 1; et sic aput Lyxebonam pariter cum eis ad me ueniatis. Vale." Hiis auditis, cum esset iam hora decima, usque in crastinum distulimus respondendum, ut pariter qui in nauibus erant omnes mandata regis audirent et ãb episcopo absolutionem ·peccatorum et benedictionem susciperent. Reliqua diei pars cura rerum familiarium consumpta est. Summó mane ex omnibus nauibus in summitate montis in cimiterio epyscopii coram episcopo omnes conuenimus; nam ecclesia pro quantitate sui omnes non caperet. lndicto ab omnibus silentio, episcopus sermonem coram omnibus lingua latina habuit, ut per interpretes cuiusque lingue sermo eius omnibus manifestaretur, qui sic incipit 19 : ['B]eata gens cuius est Dominus Deus eius, populus quem elegit in hereditatem sibi' 20 • Et profecto beatP 1 quibus Deus nescio quo inestimabili prh,1ilegio sensum et diuitias contulit: sensum ut uias discipline intelligerent; diuitias ut adimplere possent que pie cuperent. Et certe felix tellus uestra que tot et

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antigamente a partir de Porto dos Gauleses 29 e já há uns 80 anos que foi reconquistada, depois de ter sido devastada pela entrada de mouros e moabitas 3o-.> O seu porto do lado sul tem areias medicinais, desde o primeiro rochedo na entrada até a outro rochedo mais abaixo, numa largura de doze passos da margem do extremo da enseada, e nelas se envolvem os doentes até vir o mar lavá-los para assim ficarem curados. E é um facto que o bispo nos confirmou que o seu antecessor havia sido curado de uma doença semelhante à lepra. Nos textos latinos encontra-se que havia areias deste teor na Hispânia31 •

3. Chegada à cidade do Porto (16 de Julho, 2.• feira) e recepção pelo bispo, D. Pedro Pitões. Ao chegarmos ao Porto, foi o bispo com o seu clero quem nos veio ao encontro, pois o rei já há muito se ausentara com o seu exército, a enfrentar os mouro?. Feitas aí as saudações a todos, conforme o costume do seu povo 32, deu-nos a entender que sabia de antemão da nossa chegada33 e que, por outra parte, de véspera, recebera do rei uma carta com estas palavras: "Afonso, rei de Portugal a Pedro, bispo do Porto, saudações. Se, por ventura, os navios dos francos chegarem junto de vós, recebei-os com solicitude, com benignidade e mansidão, e, segundo o acordo que estabelecerdes para ficarem comigo, dai-lhes como garantes desse acordo a vossa própria pessoa e todos aqueles que eles quiserem convosco e assim vinde ter comigo juntamente com eles a par de Lisboa. Adeus!" Ouvimos estas palavras, mas, como já era a hora décima, adiámos a resposta para o dia seguinte, de modo que todos os que se encontravam nos navios ouvissem por igual a mensagem do rei e recebessem a absolvição dos pecados e a bênção da parte do bispo. O resto do dia foi passa,do a tratar assuntos domésticos. De manhãzinha, saindo dos diferentes navios, reunimo-nos todos na presença do bispo no cimo do monte no terreiro 34 da casa episcopal, pois a igreja, pelas suas dimensões, não nos poderia albergar a todos. Imposto silêncio a todos, o bispo teve perante todos um sermão em latim, por forma a que as suas palavras fossem dadas a conhecer a todos35 na língua de cada um através de intérpretes36 • É ele do seguinte teo~ 7 : "Bem-aventurada a gente cujo senhor é o seu Deus e o povo a quem ele escolheu para sua herança! De verdade, bem-aventurados aqueles a quem Deus, não sei por que inestimável privilégio, concedeu o entendimento e as riquezas: o entendimento para perceberem os caminhos da disciplina, as riquezas, para poderem cumprir o que por piedade anseiam.

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tales alumpnos nutrit, que tot et tantos in sinu matris ecclesie filios unanimes associat sanctitati22. Et merito illius summe benedictionis effectus, qua dicitur, 'Beati qui me non uiderunt et crediderunt' 23, in uobis completur. Mediator Dei et hominum, Christus, per se in mundum ueniens, paucissimos huius uiae uiros et pure religionis sectatores inuenit. Unde et a quodam iuuene interrogatus, cum se complesse et obseruasse legem 24 [127r] diceret, quomodo perfectus esse posset, respondit: 'Vade et uende omnia25 ' et cetera. Perpendite quid sequatur6 : 'Tristatus est, nam erat in possessionibus diues'. O quanta est iusticia et misericordia Conditoris nostri! O quanta cecitas et duritia mentis humanae! Cum ueritate et de ipsa conferebat iuuenis, uox ueritatis in auribus, et quia callose mentis uerbo ueritatis non emolliuit duritia, iam non est mirum si uacuatam sinceritatis gaudio subintroiit tristitia. Et quid dicemus ad hec? Quanti hic inter uos hoc iuuene in possessionibus ditiores, quanti in dignitatum prouectu sublimiores, quanti prole multiplici et fecunda generositate feliciores, quos constat profecto omnes honorum dignitates, ut eternum a Deo consequerentur premium, felici peregrinatione commutasse! Blandos uxorum affectus, inter ubera lactentium27 pia oscula, adultorum magis dilecta pignora, parentum et amicorum affectanda solacia, soli natalis tantum dulci remanente sed torquente memoria, Christum sequuti reliquere. O admiranda Saluatoris opera! nullo predicante, nullo admonente, zelum legis Dei in cordibus habentes, impetu Spiritus ducente, per tot terrarum et marium pericula et longi itineris dispendia, relictis omnibus, huc aduecti, nobis primitiue ecclesiae filiis 21, hii nouissimi crucis misterium representant. O quanta omnium hilaritas, quibus ad laborem et penam facies iocundior quam nobis, qui hic heu torpentes segni uacamus otio! Et certe 'a Domino factum est istud, et est mirabile in oculis nostris' 29 . Ecce, fratres karissimi, crucis improperium portantes, extra castra exiistis30; Deum queritis dum inueniri potesfl', ut comprehendatis. Non enim uidetur mirum hommes ad Deum ire, quia propter homines et inter homines Deus uenit. Iam usque ad uos in terre finibus uerbi Dei prolata sunt semina; nam

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Certamente feliz é a vossa terra que tantos e tais filhos nutre, que tantos e tão grandes filhos associa em unidade de sentimentos para a santidade no seio da Madre Igreja. Com razão se cumpre em vós o efeito daquela suprema bênção que diz 'Bem-aventurados os que me não viram e acreditaram'. Cristo, mediador entre Deus e os homens, quando veio em pessoa ao mundo, poucos homens encontrou que fossem seguidores desta vida de pureza de religião. Por isso, ao ser interrogado por um jovem que dizia ser cumpridor observante da lei sobre o modo como podia ser perfeito, respondeu-lhe 'vai vender tudo', etc. Tornai atenção no que se segue: 'entristeceu-se, pois era rico de bens'. Oh! Quão grande é a justiça e a misericórdia do nosso Criador! Oh! Quão grande é a cegueira e a dureza do espírito humano! Com a Verdade e acerca dela própria falava o jovem, a voz da verdade entrava nos ouvidos, mas, porque a dureza de um espírito calejado não se abranda com a palavra da verdade, já não é de admirar que a tristeza se tenha introduzido num espírito esvaziado da alegria da sinceridade. E que diremos a isto? Quantos não há aqui de entre vós que são mais ricos de bens do que este jovem, quantos não são mais excelsos em honrarias e dignidades, quantos não são mais afortunados em prole numerosa e fecunda em actos de nobreza? Consta-nos realmente que eles trocaram todas as dignidades e honras para obterem de Deus um prémio de eternidade em peregrinação promissora. Deixaram o carinho afectuoso das esposas, os beijos inocentes das crianças de peito, as promessas mais dilectas dos filhos crescidos, os actos de conforto a prestar por pais e amigos, ficando apenas com a doce mas pungente saudade do torrão natal, para seguirem a Cristo. Oh! Como são admiráveis as obras do Salvador! Sem que ninguém o pregasse, sem que ninguém o insinuasse, com o zelo da lei de Deus no coração, conduzidos pelo ímpeto do Espírito, através de todos os perigos da terra e do mar, e do esgotamento de uma longa viagem, tudo abandonando, ao chegarem aqui, eles são para nós os filhos da primitiva Igreja, eles são os últimos representantes do mistério da Cruz. Oh! Como é grande a alegria de todos e neles o rosto disposto ao trabalho e ao sofrimento é mais prazenteiro do que em nós que infelizmente nos deixamos entorpecer e arrastar para uma inerte ociosidade! E por certo, 'pelo Senhor foi isto realizado e é admirável a nossos olhos' 38 • Eis que, irmãos caríssimos, transportando o impropério da cruz, saístes de vossos acampamentos 39 ; procurais a Deus, enquanto pode ser encontrado40 , para chegardes até Ele. Não é, efectivamente, de admirar que os homens vão até Deus, pois foi por causa dos homens e para ficar entre os homens que Deus veio. Já até vós, nos confins da terra, foram lançadas as sementes da palavra

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'exiit, qui seminat, seminare semen32 . ' 'Semen est uerbum Dei'; uerbum Dei Deus est. Si mentis uestre sedem conscenderit, bona est igitur mens, nec sine eo. Semina ista diuina corporibus uestris dispersa sunt, que, si boni cultores suscepistis, similes origini fructus prodire necesse est et pares [127v] hiis ex quibus orti sunt; si mali, non aliter quam humus sterilis ac palustris necat, ut postea purgamenta pro frugibus generet. Et Deus bonus 'augeat incremnenta frugum iustitiae uestre' 33 • Ecce, filii karissimi, nouo penitentiae renati baptismate, Christum induistis iterum, uestem innocentiae ut immaculatam custodiatis iterum suscepistis. Videte ne iterum post concupiscentias uestras abieritis. 'Auferte mal um cogitationum' de medio uestri. Animum purgate, id est mentem, in sanctificatum Deo templum. Mentis uero, habitus sub quolibet pondere nequit deprimP\ si eam innocentiae puritas comitetur. Et ut pura sit innocentia mentis, penitus exstyrpetur inuidia. Cauendum est igitur maxime per mundi precipicia iter agentibus ab huius [ge]neris [u]itio35 , quo aliena perduntur et sua consummuntur bona. Verum enim dum conspecta felicitas torquet inuidos et afficit pena contortionis36 nequiores reddit; aliorum bona que habere non possunt si diligerent, utique fecissent sua. Vestra utique sunt bona sociorum que etsi imitari non ualetis, diligite in alios, et uestra fient que amantur in socios. Excludite ergo inuidiam que caritatem eicit et discordiam nutrit, que corpus corrodit et macerat, nec ipsum in sua ualetudine 37 atque uigore stare permittit, quia dum pestis inuidiae mentem lacerat corpus consumit, et quicquid in se habere uidetur boni interimit. Unde scriptum est: 'Vita carnium sanitas cordis, putredo ossium inuidia' 31 • Per Iiuoris uitium ante Dei oculos pereunt, etiam que humanis oculis fortia uidentur. Ossa quippe per inuidiam putrescere est quedam etiam robusta deperire. Est autem inuidia quasi odium occultum, inde dicitur inuidia, id est inuisibile odium. Hoc est tolerare et odisse, quod non est uirtus mansuetudinis sed uelamentum furoris. Sollerti igitur custodia muniendus est mentis aditus, et eo obseruandum callidius quanto in ipso temptationis articulo, fallacius surrepit39 • Necessaria est igitur ad hec dilectionis operatio, que inter maios non dilectio sed simultas proprie dicitur. Non est ergo dilectio nisi inter bonos, quia non est

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de Deus, porquanto 'saiu quem semeia a semear a semente' 41 • 'A semente é a palavra de Deus', a palavra de Deus é o próprio Deus. Se ela tomar assento no vosso espírito, bom será o espírito, e não o será sem ela. Estas sementes divinas foram espalhadas pelos vossos corpos e, se as recebestes como bons cultivadores, necessariamente produzirão frutos semelhantes à sua origem e iguais àqueles de que nasceram; se sois maus cultivadores, o resultado não será diferente do de uma terra estéril e palustre que mata e depois só produz folheio em vez de frutos. Deus, que é bom, 'dê incremento aos frutos da vossa justiça' 42 • Eis, filhos caríssimos, renascidos pelo baptismo da penitência, eis que de novo vos revestistes de Cristo, de novo recebestes a veste da inocência para a guardardes sem mancha43 ! Vede que não vos deixeis ir novamente atrás da vossa concupiscência. 'Retirai do meio de vós o mal dos pensamentos' 44 • Purificai a vossa alma, ou seja, o vosso espírito, para se tornar templo consagrado a Deus. Por sua vez, a vida do espírito não pode soçobrar sob qualquer pressão se a acompanhar a pureza da inocência. E para que seja pura a inocência do espírito, seja extirpada sem reservas a inveja. Os que fazem a sua caminhada por entre os precipícios do mundo devem acautelar-se com o máximo de cuidado desta espécie de vício, pois por ele se perdem os bens dos outros e se consomem os próprios. É efectivamente verdade que quando ver a felicidade é motivo de tormento para os invejosos e os atinge o castigo do remorso isso torna-os piores; se apreciassem os bens dos outros que eles não conseguem ter, de certeza que os tornariam seus. Sim, são vossos os bens dos vossos companheiros, mesmo quando não conseguis ser como eles, se gostais que eles os tenham, e tornam-se vossos quando gostais deles para os vossos companheiros. Eliminai, pois, a inveja que deita a perder a caridade e alimenta a discórdia que corrói e mirra o corpo não lhe permitindo manter a saúde e o vigor, pois a peste da inveja enquanto dilacera a alma, consome o corpo e mata nele o que parece ter de bom. Por isso está na Escritura: 'a vida da carne é a sanidade do coração, a inveja é a putrefacção dos ossos' 45 • Por causa do vício da inveja definha aos olhos de Deus até aquilo que aos olhos dos homens parece ser forte. Levar os ossos a mirrar pela inveja é de facto fazer definhar mesmo o que era robusto. A inveja é de facto como que um ódio escondido, e é por isso que se lhe chama inveja, ou seja, um ódio invisível. É um tolerar e um odiar que não é virtude de mansidão mas um esconder de ira. Por isso há que defender com vigilância industriosa a entrada do espírito e há que estar tanto mais atento quanto mais sub-repticiamente ela se insinua no próprio momento da tentação. É necessária, pois, a prática do amor, coisa que entre os maus não diríamos propriamente amor, mas simultaneidade; na verdade, não há amor senão entre os bons, pois não

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dilectio ualida [128r] nisi ex utraque parte affectus pendeat. Dilectionis huius uel caritatis custos est innocentia, que tante uirtutis et gratie creditur, ut Deo et hominibus placeat. Vera est hec que nec sibi nec alteri nocet, et cum ualet, prodesse satagit. Innocentia uero ferrum retundit, acies hebetat, hostes comprimit, malorum precogitata refellit; nam miro modo diuine animaduersionis iudicio, quos praue mentis inquinat conscientia, hos proculdubio aduersus innocentiam sequitur actionis difficultas. Sit uobis inter cetera temperatio guie, et ut breuiter dicam, satietur caro ut in bono opere famulari nobis sufficiat. Sit itaque uobis ars quedam satiari, ne unusquisque per satietatem camis ad iniquitatem prorumpat turpitudinis. De similitudine et collateralitate et de hiis que in ea breuiter annotaui, eadem in rectitudinis cautela teneatur; nam sepe pro uirtutibus uitia surrepunf'O. Auditum satis partibus uestris credimus, quod diuina ultio superincumbentibus Mauris et Moabitis totam Hyspaniam in ore gladii percusserit; paueis in ea Christianis admodum et in paucis urbibus sub grauissimo seruitutis iugo relictis. Sed et ea que ad uos sola fame noticia pertulit, ea proculdubio iam luce clariora certius subiecta uisibus patent. Proh dolor! ut uix in tota Gallecia et Aragonum 41 regno et Numantia, ex innumeris urbibus, castris et uicis et sanctorum sedibus, nisi sola ruinarum signa et iam facte desolationis indicia iam pareant. Ista etiam nostra quam cemitis, olim inter celebres, nunc ad instar paruuli redacta uiculi iam nostra memoria multotiens a Mauris spoliata est. Verum enim ante hoc septennium ab eis adeo affiicta est, ut ab ecclesia beate Marie Virginis, cui Dei gratia qualiscumque deseruio, signa, uestes, uasa, et omnia ecclesie ornamenta, captis clericis aut occisis, asportarent. Sed et ex ciuibus captiuos et ex circumquaque iacentibus territoriis usque ad ecclesiam beati Iacobi apostoli innumeros fere in patriam suam secum transtulere, non sine nobilium nostrorum sanguine, igne et gladio cetera consummentes omnia. Quid enim litus Hyspaniae uestris aliud obtutibus nisi sue desolationis memoriam quandam 42 et ruinae ostendit indicia? Quot in eo urbium [128v] et ecclesiarum desolationes uisu et indigenarum indiciis didicistis? Ad uos autem mater [e]cclesia43 iam quasi truncis brachiis et deformi facie clamat, sanguinem filiorum et uindictam per manus uestras requirit.

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há amor consistente a não ser que haja afecto de ambas as partes. A guarda deste amor ou caridade é a inocência que é considerada de tanta virtude e graça que agrada a Deus e aos homens. A verdadeira é aquela que não causa dano nem a si nem a outrem e que quando tem possibilidade procura ser útil. A inocência, na verdade, repele o ferro, embota o fio das espadas, detém os inimigos, repele as intenções dos maus, pois, por maravilhoso juízo da Providência divina, sempre que há alguém de mau espírito e consciência torpe é certo e seguro que um obstáculo o segue para não actuar contra a inocência. Quanto ao mais, haja entre vós moderação no comer e, para dizê-lo em breves palavras, sacie-se a carne para que seja capaz de nos servir em boas obras. Tende, pois, alguma arte em vos saciardes, não vá acontecer que qualquer um de vós, ao saciar a carne descaia para torpezas de iniquidade. Quanto ao que pode estar em causa por semelhança e analogia e mesmo quanto ao que apontei só ao de leve, mantenha-se a mesma atitude no acautelar da rectidão, pois muitas vezes os vícios insinuam-se como virtudes. Cremos que já ouvistes dizer nas vossas regiões de origem que o castigcY< divino feriu com a ponta da espada a Espanha inteira com a invasão de mouro~ moabitas46 , deixando nela bem poucos cristãos e em poucas cidades, sob um pesadíssimo jugo de servidão. Ora, o que apenas um conhecimento por ouvir dizer vos fez chegar, é certo e seguro que isso está agora patente aos vossos olhos com maior claridade que a do sol. Que infelicidade! Em toda a Galécia e no reino de Aragão e Numância4 \ de entre tantas cidades, castelos e aldeias e assentamentos de santos varões, mal se notam já outros sinais que não sejam de ruínas e vestígios de uma desolação já consumada. Mesmo a nossa cidade que estais a ver, em tempos posta entre as célebres, agora está reduzida a um pequeno povoado, e foi, segundo as nossas memórias, muitas vezes saqueada pelos mouroi.'De verdade, ainda há uns sete anos, foi de tal modo fustigada por eles que da igreja de Santa Maria, a que sirvo por graça de Deus, levaram eles os sinos, os paramentos, os vasos e todos os ornamentos da igreja, depois de terem capturado ou morto os membros do clero. Mais que isso, desta cidade e dos territórios circunvizinhos até à igreja de Santiago Apóstolo, levaram consigo para a sua terra homens quase sem conta, depois de terem feito correr o sangue dos nossos fidalgos, e tudo o mais passando a ferro e fogo. Que há efectivamente no litoral hispânico que tenha surpreendido o vosso olhar e que não demonstre senão traços de memória da sua devastação e vestígios da derrocada? Quantos destroços de cidades e de igrejas percebestes nele pelo olhar ou pelas informações dos seus habitantes? Por vós clama a Madre Igreja, já quase de braços mutilados e de rosto disforme,

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Clamat, certe clamat! 'Vindictam facite in nationibus, increpationes in populis' 44 . Nulla ergo itineris incepti uos festinationis seducat occasio, quia "non Iherosolimis fuisse sed bene interim inuixisse laudabile est"45 ; non enim ad eam nisi per opera eius peruenire potestis. Ex bono opere uero ut ad finem gloriosum quis perueniat meretur. lacentem igitur et depressam Hyspanorum ecclesiam ut boni emulatores erigite; fedam et deformem uestibus iocunditatis et leticie reinduite. Ut boni filii, nolite spectare turpitudinem patris, et matri nolite dicere: 'Munus quodcumque est ex me tibi proderit' 46 . Federa societatis humane nolite paruipendere, quia, ut ait beatus Ambrosius, 'qui a sociis et fratribus si potest non repellit iniuriam, tam est in uitio quam ille qui facit' 47 . Et uos, boni filii matris ecclesiae, 'uim atque iniuriam propulsate; nam iure hoc euenit ut quis que ob tutelam sui corporis fecerit iure fecisse arbitretur'48. Vos, fratres, arma deposuistis, arma scilicet quibus rapiuntur aliena. (De quibus dicitur, 'qui gladio percutit gladio peribit' 49, scilicet 'qui, nulla superiore ac legitima potestate uel iubente uel concedente, in sanguinem fratris armatur' 50). Sed nunc, Deo inspirante, arma fertis, quibus homicidae51 et raptores dampnentur, 'furta cohibeantur, adulteria puniantur, impii de terra perdantur, parricide uiuere non sinantur, nec filii impie agere' 52 . Vos, igitur, fratres, cum hiis fortitudinem armis suscipite, eam scilicet 'que uel helio tuetur a barbaris patriam uel domi defendit infirmos53 uel a Iatronibus socios' 54 ; nam plena est iusticiae. Huiusmodi uero opera 'uindicte officia sunt que boni bono animo implent' 55 . [129r] Nolite, fratres, nolite timere. Non enim in huiusmodi actionibus homicidio uel taxatione alicuius criminis notabimini; immo rei propositi uestri deserti iudicabimini. 'Non est uero crudelitas pro Deo [punire, sed] pietas' 56 . Zelo iusticiae, non felle ire, iustum bellum committite. 'Iustum uero bellum', dicit Ysidorus noster, 'quod ex indicto geritur de rebus repetendis aut hostium pulsandorum causa' 57; et, quia iusta est causa 'homicidas et sacrilegos et uenenarios punire, non est effusio sanguinis' 51 homicidii. Et item: 'Non est crudelis qui crudeles' 59 perimit. Vel: 'qui maios peri-mit, in eo quod mali sunt et habet causam interfectionis, minister est Domini ' 60 •

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reclamando o sangue de seus filhos e a vingança por vossas mãos. Clama, sim, clama: 'Executai a vingança nos estranhos, exorcizai os povos' 48 ! Não vos seduza a oportunidade de vos dardes pressa no caminho empreendido, porque 'não seria meritório terdes estado em Jerusalém, mas sim terdes vivido rectamente' 49 . Na verdade, não podereis chegar até ela senão através das suas obras, e é através de boas obras que se merece chegar ao fim glorioso. Como homens de brio, soerguei, pois, a Igreja hispânica que jaze por terra e se encontra deprimida; revesti-a com as vestes de júbilo e de alegria50, ela que se encontra suja e disforme. Como bons filhos, não olheis para a vergonha de vosso pai51 , e não digais à vossa mãe 'seja qual for a oferta que apresentar ela ser-te-á de proveito' 52 . Não tenhais em menos consideração os laços de solidariedade humana, pois, como diz Santo Ambrósio, 'quem, podendo, não repele a ofensa feita aos companheiros e aos irmãos incorre no mesmo pecado que aquele que o praticou' 53 . E vós, que sois bons filhos da Madre Igreja, 'repeli a violência e a injúria, pois no seu direito se encontra quem fizer algo para defender o seu próprio corpo e considere que o faz por direito'. Vós, irmãos, depusestes as armas, a saber, as armas com que se rouba o alheio e das quais se diz: 'quem com f~trro mata, com ferro morre' 54 ; entenda-se: 'quem, sem ordem ou permissão da legítima autoridade, pega em armas contra a vida de seu irmão'. Pelo contrário, agora, é por inspiração divina que trazeis as armas com que 'homicidas e salteadores sofram castigo, com que se ponha cobro a assaltos, se punam adultérios, sejam exterminados os ímpios da face da terra, não se deixem viver os parricidas nem se permita que os filhos actuem sem piedade'. Por isso, vós, irmãos, recobrai força com essas armas, essa força 'que em tempo de guerra defende a pátria dos estranhos e em tempo de paz defende os que não têm forças e os seus companheiros dos ladrões, pois ela está inteiramente do lado da justiça'. Actos desta natureza são, de resto, 'obrigações de vindicta que os homens de bem executam de bom grado'. Não tenhais medo, irmãos, não tenhais medo! Efectivamente, ao actuardes deste modo, não ficareis marcados por homicídio ou pelo ferrete de qualquer crime; muito pelo contrário, sereis considerados réus de terdes desertado do vosso propósito. Na verdade, 'não é crueldade quando se pune em nome de Deus, é piedade' 55 . Fazei guerra justa com o zelo da justiça, não com o fel da indignação. 'A guerra justa, aliás, diz o nosso Isidoro, é a que se faz por declaração para reaver o que é nosso ou com o fim de expulsar os inimigos' 56 ; e porque é justa a causa de 'punir homicidas, sacrílegos e envenenadores, a efusão de sangue não é de homicídio'. Também 'não é cruel quem elimina cruéis'. Ou 'quem elimina os maus, pelo facto mesmo de serem maus, e tem razões para os matar, é ministro do Senhor'.

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'Profecto filii Israel contra Amorreos iustum bellum commisere, quibus transitus negabatur innoxius' 61 . Et uos ergo populus Israel et filii Christi et serui crucis, numquid hec libertas permittenda aduersariis crucis ut impune nobis62 insultent? Absit. Audite quid super hiis Augustinus dixerit ad Donatum presbyterum: 'Non est permittenda mala uoluntas sue libertati, sicut nec Paulo permissum uti pessima uoluntate, qui persequebatu~3 ecclesiam Dei' 64 • Item Crisostomus, super Matheum, omelia xvn: 'Occidit Finees hominem, «et reputatum est ei ad íusticiam» 65 ; Abraham non solum homicida, sed quod grauius parricida effectus, magis magisque Deo placuit"66 • Item Ieronymus ad Ripoarium: 'Legi siromasten67 a Finees, austeritatem61 ', Heliae, zelum Symonis Cananei, Petri seueritatem Annaniam et Saphiram trucidantem, Pauli constantiam qui Elimam magum uiis Domini resistentem eterna cecitate69 dampnauit.mo Unde in lege dicitur, 'Si frater tuus et amicus et uxor que est in sinu tuo te deprauare uoluerinf 1a ueritate, sit manus tua super eos et effunde sanguinem ipsorum m. Tale quod 73 in uobis spiritualiter completum est. Percussit in uobis Dominus Saulum et erexit Paulum74 . Eandem Sauli et Pauli carnem, non eundem mentis affectum sed immutatum. Ecce quam pius, quam iustus, quam misericors Deus! Nichil uobis detraxit Deus. Eadem patriae uestre opera, sed affectu solum mutato uobis concessit. Armis et gladio [129v] utebamini; predas agebatis et cetera militantium facinora de quibus non est modo dicendum per singula. Vos, ut uideur, arma portatis et rei militaris insignia, sed diuerso affectu, ut superius dictum, non mutantes actum sed uoluntatem, attendentes illud apostoli consilium, 'sicut exhibuistis membra uestra seruire immunditiae ad iniquitatem, ita exhibete membra uestra,' 75 et cetera76 . Sed quoniam armati uenistis, eia! ut boni milites agite, 'quia non est peccatum militare, sed propter predam peccatum est militarem. Suscipite ergo uobis et uestris beati Augustini salubre consilium ad Bonefacium comitem71 : 'Arripite manibus arma, oratio aures pulset auctoris; quia quando pugnatur Deus apertis oculis spectat, et partem quam inspicit iustam ibi dat palmam' 79 . Et uere adimplebitur in uobis prophetia qua ad laudem et honorem 10 uirtutis et gloriae filiorum Dei dictum est, 'quomodo persequebatur1 unus mille, et duo fugarent x milia12"; et iterum83 , 'Persequentur v de uobis c alienos et c ex uobis x milia14 ; cadent inimici uestri coram uobis gladioss." Nam 'bellum quod Deo auctore gerendum suscipitur, recte suscipi dubitare fas non est' 16.

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De facto, os filhos de Israel travaram uma guerra justa contra os amorreus 57 , ao ser-lhes negada uma passagem inofensiva. E vós, pois, povo de Israel, filhos de Cristo e servidores da Cruz, porventura será de consentir aos adversários da Cruz esta liberdade de nos insultarem sem castigo? De forma alguma! Ouvi o que a este respeito disse Agostinho ao presbítero Donato: 'Não há que admitir uma vontade perversa entregue à sua liberdade, do mesmo modo que a Paulo não foi consentido usar da sua mais que perversa vontade quando perseguia a Igreja de Deus' 58 . Também Crisóstomo, Sobre Mateus, homilia XVII: 'Matou Finéias um homem e «foi-lhe tomado em conta de justificação»59; Abraão, que incorrera não apenas em homicídio, mas em parricídio60, o que era mais grave, mais e mais se tomou agradável a Deus' 61 . Também Jerónimo diz a Rip(o)ário: 'Consta efectivamente das minhas leituras o gesto implacável62 de Finéias, o rigor de Elias, o zelo de Simão Cananeu, a severidade de Pedro que fulminou Ananias e Safira, a firmeza de Paulo que condenou a cegueira eterna o mago Elimas por resistir aos caminhos do Senhor' 63 • Por isso se diz na Lei: «Se um teu irmão ou um teu amigo ou a tua esposa, que vive no teu próprio seio, te quiserem desviar da verdade, caia a tua mão sobre eles e derrama tu o sangue deles»' 64 • É isto o que de modo espiritual se cumpre convosco. Prostrou em vós o Senhor a Saulo e levantou-se Paulo; a carne de Saulo e a de Paulo são a mesma, não são os mesmos os sentimentos, mas alteraram-se. Eis como Deus é condescendente, como é justo, como é misericordioso! Deus nada vos retirou. Concedeu-vos que façais o mesmo que fazíeis na vossa terra, apenas alterando os sentimentos. Estáveis habituados a usar as armas; fazíeis saques e praticáveis outras acções próprias de militares, de que não há agora que individualizar. Ao que parece, andais com as armas e com as insígnias militares, mas com sentimentos diversos, como já referi, não mudastes os actos mas a vontade, tendo em conta o conselho do Apóstolo: 'Assim como fizestes gala dos vossos membros para servirdes à impureza e à iniquidade, fazei agora gala dos vossos membros (para servirdes à justiça e à santidade)' 65 . Mas, já que vi estes armados, vamos, como bons militares (porque não é pecado ser militar, só o é por causa do saque), aceitai, para vós e para os vossos, o conselho salutar de Santo Agostinho ao conde Bonifácio66 : 'Pegai nas annas, a oração bata aos ouvidos do Criador, pois, quando se combate, Deus fica de olhos abertos e é à parte que considera justa que Jogo dá a palma'. De verdade se cumpre em vós a profecia em que para louvor e honra do valor e da glória dos filhos de Deus se disse: 'Como é que um perseguia mil e dois punham dez mil em fuga?' 67, e mais adiante 'Cinco de vós perseguirão cem dos estranhos e cem de vós dez mil; cairão os vossos inimigos perante vós à espada'68. Efectivamente, 'a guerra que se assumir como devendo ser feita por mandato de Deus, não é lícito duvidar que se empreende com legitimidade'.

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De cetero, filius noster dilectus et frater uester et in tribulationibus particeps, Hyldefonsus rex noster, contra Olixebonam diebus iam decem retroactis cum omni expeditione sua exiit. Vestrum aduentum prenoscens, nos hic uos expectatum stare iussit, ut uos uice eius alloqueremur. Si forte Deus cordibus uestris immiserit uos ut cum omni nauigio uestro eum adeatis, et cum illo donec Deo auctore et uobis cooperantibus ciuitas Lyxbonensis caperetur maneatis; peccunie uero sponsionem, si uobis placet, proinde facturi uestris, prout fisci regie potestatis facultas sequetur. Nos uero inde et quos uolueritis uobiscum obsides habeatis sponsionis persoluende. Quid uero placuerit sanctitati societatis uestre responsionem expectabimus. Sit iam inde87 in manibus uestris consilium pium, modestum, iustum, honestum, ad laudem et honorem nominis eius et sanctissime sue Genitricis, qui cum Deo Patre et Spiritu Sancto uiuit et regnat per omnia secula seculorum. Amen."

4. Completo sermone, post expletionem misse deliberatum est ab omnibus ut Christianus, dux Flandrensium et comes de Aerescot, et naues plurime que nondum ex dispersione conuenerant [130r] expectarentur, et aduocaretur lohannes archiepiscopus Braccarensis88 • Congregatis igitur ex dispersione nauibus, deliberatum est ut episcopi una nobiscum in nauibus aput ciuitatem uenirent Lixbonensem, ut illinc a rege illorum audiremus presentes que absentibus mandabantur. Die uero quasi decima sequen[ti]B9, impositis sarcinis nostris, una cum episcopis uelificare incepimus, iter prosperum agentes. Die uero postera ad insulam Phenicis distantem a continenti quasi octingentis passibus feliciter applicuimus. Insula abundat ceruis et maxime cuniculis; liquiricium habet. Tyrii dicunt eam Erictream, Peni Gaddir, id est sepem, ultra quam non est terra; ideo extremus noti orbis terminus dicitur. Iuxta bane sunt 11 insule, que uulgo dicuntur Berlinges, id est Baleares lingua corrupta; in una quarum est palatium admirabilis architecture et multa officinarum diuersoria, regi cuidam, ut aiunt, quondam gratissimum secretale hospicium. Habentur autem in continenti a Portugala usque ad insulam flumina et castra. Est castrum

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Quanto ao mais, o nosso filho dilecto e vosso innão, companheiro de tribulações, Afonso, nosso rei, saiu já há dez dias com todas as suas forças militares, em direcção a Lisboa. Prevendo a vossa chegada69, mandou que nós aqui ficássemos à vossa espera para vos falannos em sua vez. Se acaso Deus insinuou nos vossos corações que deveis ir ter com ele, acompanhados de toda a vossa frota, e com ele ficardes até ser tomada a cidade de Lisboa, com o favor de Deus e vossa cooperação, pela nossa parte, se bem vos parece, faremos de imediato uma proposta de dinheiro aos vossos, em consonância com as disponibilidades do património régio. A nós e a quantos quiserdes, a partir de agora, tornai-nos convosco como penhor da promessa a satisfazer. O que houver por bem a vossa veneranda assembleia será resposta que nós aguardamos. De seguida, sem demora, haja lugar nas vossas mãos uma decisão pia, justa, honesta, para louvor e glória do nome de Cristo e de Sua Santíssima Mãe, Ele que com Deus Pai e com o Espírito Santo vive e reina pelos séculos dos séculos. Amen." 4. Partida para Lisboa. Tenninado o sennão e depois da celebração da missa, foi por todos decidido que se esperaria por Cristiano, duque da Flandres e conde de Aerschot, e pelos diversos navios que ainda não se tinham juntado depois de se terem dispersado, e que se pediria a presença do arcebispo de Braga, João70• Uma vez reunidos os navios que se tinham dispersado, foi deliberado que os bispos iriam juntamente connosco nos navios até à cidade de Lisboa, a fim de ali ouvinnos, frente a frente, da parte do seu rei o que, por interposta pessoa, nos fora transmitido. Uns dez dias depois [27 de Junho]", porém, carregadas as nossas bagagens, em companhia dos bispos fizemo-nos à vela e fizemos próspera viagem. No dia imediato, aportámos sem dificuldade à ilha de Peniche, que dista da terra finne cerca de oitocentos passos. A ilha tem abundância de veados e sobretudo de coelhos72 ; tem liquirriza73 • Os tírios chamam-lhe Eritreia74 e os cartagineses Gadir, que quer dizer 'sebe' 75 ; para além dela não há mais terra e por isso se diz que é o tenno derradeiro do mundo conhecido. Próximo dela há duas ilhas que na língua da terra têm o nome de Berlengas, que é uma deturpação linguística de Baleares76; numa delas há um palácio de traça digna de admiração e muitos compartimentos de arrecadações, o qual, segundo dizem, serviu em tempos de abrigo secreto muito grato para certo reF7 • De notar que desde o Porto até à ilha há em terra finne rios e castelos. É

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quod dicítur Sancte Marie inter fluuium Doira et siluam que dicitur Medica in Frigore90, in cuius territorio requiescit beatus Donatus apostoli lacobi discipulus. Et post siluam fluuius Voga91 . Et, post, ciuitas Colymbria super fluuium Mundego. Ultra quam est castrum Soyra. Et, post, castrum quod dicitur Mons Maior. Et, post, castrum Lora, super fluuium qui diuidit episcopatum Lyxbonensem a Colymbriensi. Et, post, silua que uocatur Alchubez língua eorum, circa quam heremi uastitas usque ad castrum Suhtrium, quod distat a Lyxebona miliaria VIII. In insula uero predicta cum pernoctassemus, summo mane uelificare incepimus, iter prosperum agentes donec fere ad ostia92 Tagi fluminis uentus procumbens a montibus Suchtriis naues tam admirabili tempestate concuteret ut pars batellorum cum hominibus absorberetur. Perseuerauit autem tempestas usque ad introitum portus fluminis Tagi. Nobis uero portum intrantibus signum admirabile in aere uisum est. Nam ecce a Galliarum partibus nubes candide magoe nobiscum uenientes, nubibus quibusdam magnis nigredine conspersis a continenti uenientibus concurrere uise sunt; atque in modum acierum ordinatarum sinistris comibus inter se iunctis admirabili impetu confligere, [130v) quedam in modum uelitum, dextra leuaque impressione facta, in aciem resilire, quedam ut aditum inuenirent ceteras girare, quedam ceteras penetrare easdemque penetratas ad modum uaporis inanire, quedam sursum quedam deorsum leuari, nunc pene aquis contigue nunc ab oculis in sublime ferri. Cum. tandem nubes magna a nostris partibus ueniens omnem aeris impuritatem secum trahens, ut ad modum azoli purissimi citra bane uideretur, ceteras omnes a continenti uenientes impetu suo reprimens, quasi uictrix coram se predas agens, aeris sola principatum tenuit, ceteris omnibus uel inanitis uel si qua paucula remanserit aput urbem uisa est confugere, nobis acclamantibus: "Ecce nubes nostra deuicit! Ecce nobiscum deus! Dispersa est hostium potentia! Confusi sunt, quoniam Dominus dissipabit93 eos!"

5. Et sic demum tempestatis cessauit omnis quassatio. Igitur post parum temporis, circiter horam diei x.am, peruenimus ad ciuitatem que non multum distat ab ostio fluminis Tagi.

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0 caso do castelo de Santa Maria78 , entre o rio Douro e uma floresta que dá pelo nome de Mesão Frio7\ em cujo território se encontra sepultado s. Donato10, discípulo do Apóstolo Tiago. Depois da floresta fica o rio Vouga e depois a cidade de Coimbra, sobranceira ao rio Mondego. Passada esta cidade fica o castelo de Soure e depois o castelo que dá pelo nome de Montemor' e depois o castelo de Leiria, sobranceiro ao rio que divide o bispado de Lisboa do de Coimbra12 • Depois, há uma floresta que na língua da terra tem o nome de Alcobaça, e em tomo dela estende-se um vasto ermo até ao castelo de Sintra que dista de Lisboa oito milhas13 • Depois de termos pernoitado na dita ilha, de manhãzinha, pusemo-nos à vela, fazendo uma próspera viagem até que próximo do estuário do rio Tejo o vento que caía da serra de Sintra se abateu com temporal tão fora do vulgar que uma parte dos batéis foi apanhada com os seus homens. Manteve-se o temporal até à entrada do porto do rio Tejo. Quando entrávamos no porto, porém, apareceu nos ares um prodígio extraordinário. Foi o caso que umas nuvens grandes e resplandecentes que vinham connosco dos lados das Gálias nos apareceram a irem ao encontro de outras grandes nuvens de farrapos negros que vinham de terra firme; eram como fileiras em linha de batalha e juntando cada qual as suas alas esquerdas entraram em luta com ímpeto extraordinário, umas, a modos de infantaria ligeira, vindas da direita e da esquerda davam a impressão de saltarem para o combate, outras pareciam tornear as demais para encontrarem uma entrada, umas tantas pareciam penetrar noutras de modo e, depois de nelas entrarem, esvanecê-las como se fossem de vapor; umas eram levadas para cima outras para baixo, ora parecendo quase a tocar nas águas ora a perder-se do olhar nas alturas. Quando finalmente, a grande nuvem, que nos acompanhava desde as nossas terras, arrastou consigo toda a impureza do ar de tal modo que parecia ficar para além dela uma espécie de azul extremamente límpido, no seu movimento dominou todas as outras que vinham de terra, como que proclamando vitória dispôs as prisioneiras na sua frente e, só, assumiu o domínio do espaço celeste enquanto as outras todas se começaram a desvanecer ou, se alguma pequenita ficava, víamo-la refugiar-se junto da cidade, enquanto nós clamávamos: "Eia, a nossa nuvem venceu! Eia, Deus está connosco! Está em dispersão a força dos inimigos! Estão a ficar perturbados, pois o Senhor os dissolverá!".

5. A cidade de Lisboa.

E assim, sem mais, cessou toda a fustigação do temporal. Por isso, algum

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[E]st autem Tagus fluuius subter labens, a Toletanis partibus fluens, in cuius ripis sub primo uere, dum in alueo se recolligit, aurum inuenitu~; cuius etiam tanta piscium copia ut due partes aque tertia piscium ab incolis credatur. Conchillis abundat ut harena. Hoc autem precipue, quod huius aque pisces omni tempore pinguedinem suam et saporem innatum retinent, non alternantes uel degenerantes, ut aput nos95 est, ulla rerum uicissitudine. A meridie huius est Elmada prouincia, que abundat uineis et fieis et pomis granatis. Segete adeo fertilis ut bis ex uno semine fructificet; celebris uenatibus, melle abundans. Similiter in ea parte castrum Palmella. A septentrione fluminis est ciuitas Lyxibona in cacumine montis rotundi; cuius muri gradatim descen[den]tes ad ripam fluminis Tagi solum muro interclusi pertingunt. Sub nostro aduentu opulentíssima totius Affrice et magoe partis Europe commeatibus. Est autem sita super montem Artabrum96, pertingentem mare Occeanum Gaditanum; celum, terras, maria distinguit a terris, eo quod ibi litus Hyspanie finiat et quod a circuitu eius incipit [13Jr] Gallicus Occeanus et f[r]ons septentrionalis, Occeano Atlantico et occasu terminatis ibidem. Quo ab Ulyxe op[p]idum Ulyxibona conditum creditur. Territoria eius circumquaque adiacentia optimis comparanda nulli postponenda, frugique soli copia, siue arborarios siue uinearum prouentus respicere uelis. Omni materia affiuit, aut quae pretio ambitiosa aut usu necessaria. Aurum et argentum habet; ferrariis numquam deficit. Vincit olea; nichil in ea est ociosum uel sterile, nec quod omnimodam messem neget. Non coquunt sales sed effodiunt. Fieis abundat, adeo ut uix a nobis portio consummi quiuerit. Vigent pabulis etiam arida. Venatibus multimodis celebris. Non habet lepores. Aues habet multigenas. Aere salubris. Habet autem ciuitas hec balnea calida. Iuxta quam est castrum Suchtrium, distans quasi miliaria VIII, in quo fons est purissimus, usus cuius tussim tysimque97 sedare dicitur; unde si incole tussientes audierint, non esse indígenas deprehendant. Habet etiam poma citrea91 • In cuius pascuis eque lasciuiunt mira fecunditate. Nam aspirate

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tempo depois, por volta da hora décima do dia, chegámos à cidade que não fica muito distante da foz do rio Tejo. É o Tejo um rio remansoso que desce da região de Toledo; nas suas margens no tempo da Primavera, quando se recolhe ao leito, encontra-se ouro14 e é também tão grande a abundância de peixes que os habitantes acreditam que dois terços do rio é de água e um terço de peixes15 • Tem tanta abundância de conquilhas como de areia. Uma coisa é de salientar, é que os peixes deste rio mantêm pelo tempo fora a sua gordura e sabor natural, sem se alterarem nem apodrecerem, como acontece entre nós16, quaisquer que sejam as circunstâncias. A sul deste rio fica a região de Almada, rica em vinhas, figos e romãs. É tão fértil em cereais que de uma mesma sementeira se fazem duas colheitas; é afamada em caça, abundante em mel. Desse mesmo lado fica o castelo de Palmela. A norte do rio, no topo de um monte redondo, fica a cidade de Lisboa, cujas muralhas descem em socalcos até à margem do rio Tejo, dele ficando separadas apenas por um pano de muralhas que assentam no chão. No momento da nossa chegada era a mais rica e opulenta em provisões de toda a África e de grande parte da Europa. Está situada no Monte Ártabro17 que se prolonga até ao Mar de Cádis. Delimita o céu, as terras e os mares; é limite para as terras, pelo facto mesmo de aí terminar a costa hispânica e por no seu contorno começar o Mar da Gália e a fronteira setentrional, delimitando aí também o Oceano Atlântico e o Ocidente11 • Porque de Ulisses vem o nome de Lisboa, crê-se que a cidade foi fundada por ele19 • Os seus territórios, no perímetro em redor, se forem comparados com os melhores não ficam atrás de nenhum, pela fartura dos produtos do solo, se atendermos à produtividade quer das árvores quer das vinhas. É rica em qualquer mercadoria seja de artigos de luxo seja de uso corrente. Tem ouro e prata e nunca faltam produtos de ferro. Predomina a oliveira. Nada fica nela por cultivar ou é improdutivo nem fica sem trazer uma messe abundante. Não amanham o sal, mas escavam-no. É de tal modo rica em figos que dificilmente seremos capazes de consumir uma ração90 • Até os terrenos áridos estão recobertos de pastos. É famosa por muitos géneros de caça. Não tem coelhos, tem aves de muitas espécies. É saudável de ares. Tem, por outro lado, esta cidade banhos quentes 91 • Próximo fica o castelo de Sintra, a uma distância de umas oito milhas, local onde há uma fonte puríssima, cujas águas, segundo dizem, servem para curar a tosse e a tísica, pelo que quando os moradores ouvem alguém a tossir depreendem que não é natural dali. Tem também limões. Nos seus campos espinoteiam éguas de surpreendente fecundidade, pois, ao serem bafejadas

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fauoniis uento concipiunt, et postmodum sitientes cum maribus coeunt; sic aurarum spiritu maritantur99 • Constitit uero sub nostro aduentu ciuitas LX milia familiarum aurum reddentium, summatis circumquaque suburbiis, exceptis liberis nullius grauedini subiacentibus. Cingitur autem muro rotundo cacumen montis, dextra leuaque descendentibus muris urbis per decliuum usque ad Tagi ripam. Dependentibus sub muro suburbiis uicorum uice in rupibus excisis, ut unusquisque uicus pro castro haberetur munitissimo, tot enim 100 difficultatibus cingitur. Populosa supra quod existimari nequit. Nam sicut postmodum urbe capta ab eorum alcai[d]e, id est principe, didicímus, habuit hec ciuitas centum quinquaginta quatuor milia hominum, exceptis paruulis et mulieribus: annumeratis castri ScalaphiP 01 ciuibus, qui in hoc anno a castro suo expulsi, noui hospitesque morabantur, de Suchtria et Elmada et Palmella optimatibus cunctis; ex omnibus Hyspaníe partibus et Affrice mercatoribus 102 multis. Sed cum tanti essent, solum armaturam xv milium habebant in lanceis et scutis, et cum hiis egrediebantur ad inuicem, sicut ex indicto principis constitutum fuerat. Edificia uero eius artissime conglobata, ut uix nisi in uicis mercatoriis uicus inueniri quiuerit amplioris quam VIII pedum latitudinis. Causa tante multitudinis erat quod nullus ritus religionis inter eos erat; nam quisque sibi lex erat, utpote qui ex omnibus mundi partibus [131v] flagitiosissimi quique quasi in sentinam confluxerant, totius libidinis atque immunditie seminaria. Sub temporibus regum christianorum priusquam Mauri eam obtinuissent; trium martyrum memoria iuxta urbem in loco qui dicitur Compolet celebrabatur, scilicet Verissime et Maximi et Iuliae uirginis, quorum ecclesia a Mauris solo tenus destructa tres tantum adhuc lapides in signum ruine sue ostendit, qui numquam abinde potuere sustolli. De quibus alii dicunt eos fore altaria, alii bustalia. Hec de ciuitate ad presens sufficiant.

6. [V]igilia igitur beati Petri apostoli post prandium, cum ibi hora quasi prandii uenissemus, quidam ex nostris in littore iuxta ciuitatem ex nauibus progrediuntur. Contra quos Mauri sed nostrorum impetum non ualentes ferre, non sine ipsorum detrimento, usque ad portam que suburbium respicit fugati sunt. Sed Saherius de Arcellis nostros ab impetu, dolum succensens hostium,

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pelos favónios, concebem do vento e, depois, atacadas pelo cio copulam com os machos, assim se acasalando com o sopro das brisas92 • Por outro lado, ao tempo da nossa chegada, a cidade, incluindo os subúrbios em volta, contava com 60 000 famílias que pagavam tributo, a que se somavam os homens livres isentos de impostos. O cimo do monte é cingido por uma muralha em redondo e tanto da esquerda como da direita as muralhas da cidade descem em declive até à margem do Tejo. Os arrabaldes ficam albergados sob as muralhas, a modo de bairros recortados nas rochas, de tal forma que cada bairro se toma por castelo bem fortificado, tais são os obstáculos de que está rodeado. Tem mais população do que se poderia imaginar, pois, como depois de tomarmos a cidade pudemos saber do alcaide, ou seja, do governador, chegou esta cidade a ter 154 000 homens, sem contar crianças e mulheres, se bem que incluindo neste número as pessoas do castelo de Santarém·que neste ano foram expulsas desse castelo e ali moravam como recém-chegados e bem assim todos os nobres de Sintra, Almada e Palmela, além de muitos mercadores vindos de todas as regiões de Espanha e de África93 • Embora sendo tantos, apenas tinham 15 000 de armas, com lanças e escudos e com elas saíam a combater ora uns ora outros, segundo plano estabelecido pelo alcaide. Os edifícios formam aglomeraçã0 tão apertada que dificilmente se conseguirá encontrar ruas com mais de oito pés de largura a não ser nas dos mercadores. Razão para tamanha aglomeração era que não havia entre eles nenhuma forma de entrave9\ pelo que cada um se dava a lei que queria, de tal modo que de todas as partes do mundo, os maiores viciados para aí convergiam como para uma sentina, viveiro de toda a lic~9ciosidade e imundície. Ao tempo dos reis cristãos, antes de os mouros 'a conquistarem, celebrava-se a memória de três Mártires num lugar que toma o nome de Campolide95 ; eram eles Veríssima, Máximo e a virgem Júlia96 • A sua igreja foi completamente arrasada e dela apenas se vêem três pedras a assinalar a sua destruição, as quais nunca dali puderam ser retiradas; há quem diga a seu respeito que eram dos altares, outros afirmam que eram pedras tumulares. De momento, acerca desta cidade bastará o que fica dito.

6. Primeiro recontro com os mouros (28 de Junho). Ora, na vigília de S. Pedro, depois de comermos, visto que tínhamos chegado quase à hora de jantar, alguns dos nossos saem dos navios na praia junto da cidade. Contra eles vêm os mouros,, mas, incapazes de suster a arremetida dos nossos, e não sem perdas dos seus, puseram-se em fuga até à porta que deita para o arrabalde. No entanto, Saério de Archelles, suspeitando de

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reuocat, gratias agens Deo quod dissimiles prioribus qui ante huc aduenerant casus iam in operis 103 principio experti sumus. Aduocatis qui aderant tentoria in supercilio montis supereminentis urbem quantum est fere baculi iactus figi iubet, inhonestum ratus iam primo congressu, ne cedere hostibus uideremur, terram relinquere. Cuncti qui aderant fauent. Adueniente itaque prima noctis uigilia, nisi duo tantum tentoria, Heruei de Glanuilla et Saherii de Arcellis usquam apparuere, ceteris omnibus ad naues regressis. Nos uero cum paucis admodum XXXIX tota nocte non sine metu excubauimus, ut saneti Petri uigilias sollempnes loricis induti celebraremus. Mane autem facto, ut citius quis potuit temtorium terra defigit, ac si nostri casus nichil prescissent.

7. Episcopi uero qui nobiscum aduenerant regem suum adeunt, ut, sicut nobiscum constituerant, eum nobis obuiam facerent. Qui breui cum eo redeunt, nam per dies plus octo in prouincia commoratus nostrum aduentum existimans expectauerat. Audierat enim per nostros de nostro aduentu, qui, in nauibus v a nostra societate segregati, v dierum nauigatione a portu de Dertermude aduenerant ante dies VIII. Adueniente itaque rege, omnes fere pariter, ut in tali tumultu fieri solet, diuites et pauperes, obuiam facti sumus. Cum percunctasset uero rex 104 qui essent ex nobis primates aut quorum consilia in nobis precellerent aut si cuiquam totius exercitus responsum commisissemus105 breuiter responsum est nos primates habere hos et hos, et quorum precipue actus et consilia preminerent, sed nondum deliberatum cui responsionis officia committerent. Si ab ipso primitus audissent, inter tot summe prudentie uiros breui reperturos, qui pro omnibus communi omnium consilio responderet. [132r] Ad hec rex pro tempore pauca respondit: "Scimus satis et compertum habemus uos fortes et strenuos magneque industriae uiros fore, et uerum aput nos non uos uestri presentia quam fama minores fecit. Non enim quod inter tot tanteque diuitiae uiros nostra sponsio

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alguma cilada dos inimigos, manda suster a arremetida aos nossos, dando graças a Deus porque no início da nossa intervenção experimentávamos situações diferentes das que haviam sofrido os que haviam chegado antes97 • Chamando os que se encontravam com ele, manda fixar tendas na pestana do monte sobranceiro à cidade, a uma distância menor que um arremesso de lança, considerando vergonhoso logo no primeiro embate abandonar o terreno, não fosse parecer que cedíamos ao inimigo. Todos os presentes aprovam. Ao sobrevir, pois, a primeira vigília da noite, não se avistavam mais que duas tendas, a de Hervey de Glanville e a de Saério de Archelles, tendo todos os restantes regressado aos navios. Nós, pela nossa parte, com alguns poucos, a modos de 39, ficámos de alerta toda a noite, não sem receio, obrigados a celebrar a solenidade da vigília de S. Pedro com as lorigas postas98 • Ao amanhecer, porém, o mais rapidamente que foi possível, cada qual armou a sua tenda em terra como se nada soubessem do nosso caso99 •

7. Encontro do rei D. Afonso Henriques com os Cruzados (29 de Junho). Proposta de colaboração. Por sua parte, os bispos que tinham vindo connosco vão ter com o seu rei, a fim de, tal como tinham ajustado connosco, fazerem com que ele viesse ao nosso encontro. A breve trecho voltam com ele, pois há mais de oito dias tinha ele ficado na região à espera da nossa chegada que ia conjecturando. Ouvira, efectivamente, falar da nossa chegada pelos nossos que, separados da nossa companhia, em cinco navios, a cinco dias de navegação do porto de Dartmouth, tinham chegado com oito dias de antecedência. Quando o rei se aproximou, todos, quase à uma, como costuma acontecer em tais ajuntamentos, ricos e pobres, fomos ao seu encontro. Perguntando o rei, pela sua parte, quem de entre nós eram os comandantes ou quais eram aqueles cujas resoluções prevaleciam ou se a alguém tínhamos cometido a responsabilidade de todo o exército, em breves palavras, foi-lhe respondido que tínhamos como chefes estes e aqueles e quais eram aqueles a quem cabia a prioridade dos actos e conselhos, mas que ainda não havia sido deliberado a quem ficaria confiado o encargo do empreendimento. Se primeiro ouvissem o que ele tinha para dizer, entre tantos homens de extrema prudência em breve haveria de encontrar quem por todos respondesse com a anuência de todos. A isto o rei respondeu: "É bem do nosso conhecimento e temos patente que vós sois homens fortes, destemidos e de grande destreza. E, de verdade, a imagem que trazeis perante nós não vos revela inferiores ao que a fama nos comunicara. Não é, efectivamente, a pensar que a nossa proposta tenha sido

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suffecerit, ut nostris scilicet ditati muneribus ad urbis huius obsidionem nobiscum maneatis, uos conuenimus. A Mauris enim semper inquietatis, numquam peccunias adunare quibus quandoque secure non contigit uiuere. Sed quoniam facultatem nostram et bone mentis erga uos affectum uos ignorare nolumus, sponsioni nostre non imferendam iniuriam, imo quicquid terra nostra possidet uobis mancipatum censemus. Certi uero super hiis, quod uos magis pietas uestra ad laborem studiumque tanti operis inuitabit, quam nostre sponsio peccuniae ad premium prouocabit. Sed ne populorum conclamationibus uestrorum nostra turbetur oratio, ex uobis eligite quos uolueritis ut ab inuicem secedentes benigne placideque sponsionis nostre causam utrimque super hiis que proposuimus diffiniamus. Sicque inter nos diffinita, in commune coram omnibus explicetur, ut omnibus deinde utrimque assensum prebentibus, certo federe certisque pignoribus ad Dei questum rata fiat."

8. Ad hec omnes responsuri una in concilium ueniunt. Quid uero in hoc quisque prout animi lingueque facilitas abundabat dixerit, nichilque aliud nisi aerem uerberare conferret, cum parum auctoritatis constet in fabula, non inconuenienter pretereundum puto. Sed cum multi multa superuacua proferrent, usque post prandium differtur consultum quid potius eligendum esset. Sed interim, quo pacto nescio quibusue intemuntiis, Flandrenses regis sponsionibus acquiescunt; nam, ut estimo, quos 106 rei familiaris inopia urgebat, hos proculdubio peccuniarum spes capescendarum facilius ad consuetudinem suam reducit. Dum iterum in concilio uentum est, quos paulo ante existimabamus coniurationis socios, nunc regis aduocatos in concilio repperimus, hoc solum semper coram nobis excipientes quod a rege pactionem ullam non solum non susciperent, immo nec audirent, sed moris semper ubique terrarum fuisse in hanc partem fauere potius qua impetus animi magis

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bastante para que homens de tanta e tão grande riqueza se sintam enriquecidos com as nossas dádivas e fiqueis connosco a fazer o cerco desta cidade. Não é por isso que vimos ao vosso encontro. Quem vive permanentemente inquieto por causa dos mouros ·nunca tem oportunidade de juntar dinheiro com que possa estar alguma vez em segurança. Mas, porque não queremos que deixeis de saber quais são as nossas disponibilidades e quais os nossos bons sentimentos relativamente a vós, consideramos que a nossa proposta não deve ser tida em menor conta; pelo contrário, o que a nossa terra tem de seu consideramo-lo sob vossa fiança. De uma coisa, porém, estamos certos, é que será mais a vossa piedade a incitar-vos ao trabalho e ao empenho de realizar tão grande empreendimento do que a promessa do nosso dinheiro a estimular-vos ao prémio. No entanto, para que as nossas palavras não sejam perturbadas pelo clamor dos vossos homens, escolhei de entre vós aqueles que quiserdes, a fim de, em lugar retirado, de boa vontade e tranquilamente, de parte a parte definirmos as razões da nossa promessa relativamente àquilo que propusemos. E assim o que tivermos definido entre nós será depois exposto a todos em público para que todos de ambas as partes dêem depois o seu assentimento e haja ratificação com pacto certo e garantias firmes para serviço de Deus." 8. Deliberações por parte dos Cruzados. Para darem a isto uma resposta todos se reúnem em conselho, a uma só vez. O que, porém, aí se disse, segundo a abundância que a facilidade de espírito e de palavra lhes proporcionava (e outra coisa não faziam senão atirar palavras ao ar), dado que pouca autoridade resulta de dizer palavras, acho que não há qualquer inconveniente em passar à frente. No entanto, porque muitos se alongavam em vacuidades, prolonga-se para além do jantar a decisão sobre o que seria preferível aceitar. Entretanto, não sei por que conluio ou por que negociadores, os homens da Flandres aderem às propostas do rei; na realidade, se é como penso, alguns havia para quem a falta de meios de subsistência era premente e foi a eles, sem sombra de dúvida, que a esperança de obter dinheiro levou a cederem com alguma facilidade. Logo que se voltou à assembleia, quem nós julgávamos antes aliados de conjuração, damos com eles a serem advogados do rei na assembleia, quando antes apenas uma coisa defendiam na nossa frente, que não só não aceitariam nenhum Pacto da parte do rei como muito menos queriam dar-lhe ouvidos. Agora diziam que sempre fora hábito em toda a parte conceder a primazia à inclinação a que o estado de espírito predispusesse e afirmavam pretender ficar

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duceret. Seque cum rege manere uelle si omnibus complaceret sociis neque restare aliquid quin hoc potius fieret aiebant. Interea quisque prout arbitrabatur prudentior sententiam rogatus, diuersi diuersa protulere. Inter quos Willelmus Vitulus, adhuc spirans minarum cedisque pyraticae, [132v] et Radulfus frater eius et omnes fere Hamtunenses et Hastingenses, cum hiis qui ante hoc quinquennium urbem Ulyxibonam obsidendam conuenerant, omnes uno ore regis [s]ponsionem 107 accipere nichil aliud quam proditionem aiebant; plurima etiam super hiis retractantes, que uel ficta, uel si quae uera fuerint, eorum magis deputanda insipientiae quam alterius prauitati, aut ea que magis patebant, longi dispendia laboris in obsidione nolle pati. Insuper maximo questui fore si costam Hyspanie sub festinatione transcurrerent, ac perinde multas peccunias ab Affrice nauibus et Hyspanie mercatoriis leuiter extorquerent; uentumque insuper plurimum eo tempore in Iherusalem nauigantibus aptum commemorant; nec se quosquam expectaturos si solum VIII uel x naues socias habuerint; et multa hiis similia que potius fortune casibus subiacent quam uirtuti. Sed nostrorum maior pars, omni occasione remota, assensum remanendi prebet, Colonensibus, Flandrensibus, Bolonensibus, Britonibus, Scottis in hoc idem libentissime assentientibus; ceteris cum Willelmo Vitulo, quasi nauibus octo Normannorum, Hamtonensium et Bristowensium adhuc in hac pertinacia immobiliter durantibus. Interim Flandrenses et Colonenses et Bolonenses ad orientalem ciuitatis partem cum classe sua secedunt. lterum post parum peruersos exhortatum in concilio uenimus, ut exhortationibus blandisque promissis eos nobiscum retineremus, uel quasi fidei iuramentique transgressores coniurateque societatis ab omni nostrorum et a sancte matris ecclesie communione segregaremos.

9. Hinc illinc acclamantibus cunctis, Herueus de Glanuilla, uix nactus silentium, orationem huiusmodi habuit 101 : "Pie recordationis memoria, qua tot nationum populos pieque eruditionis uiros cruce dominica insignitos pridie aput Portugalam me uidisse recolo animum licet mestissimum maxime releuaret, si bane uniuersitatem gentium sub unitatis sincere uinculo scirem posse restringi. Ad hoc enim quemque nostrum summa ope deceret eniti, ut cum iam tanta gentium diuersitas sub

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com o rei se todos os companheiros estivessem de acordo e não houvesse nada que fosse preferível. Entretanto, cada um dos que era considerado de melhor conselho, ao ser-lhe pedido o seu parecer, emitiu opinião divergente dos outros. Entre eles, Guilherme Vítulo 1110, que ainda ansiava por arremetidas e matanças de pirataria, e Radulfo 101 , seu irmão, com quase todos os homens de Northampton e de Hastings e aqueles que cinco anos antes tinham ali estado para porem cerco à cidade de Lisboa, todos a uma só voz declaram que aceitar a proposta do rei não era mais que traição; relativamente a isso alegavam muitas razões que ou eram falsas ou, se nalgum aspecto eram verdadeiras, mais denunciavam insipiência deles que malícia de outrem ou deixavam sobretudo patente que não queriam suportar o desgaste de longo trabalho no cerco. Mais que tudo, seria da maior vantagem bater a costa hispânica com rapidez, pois retirariam disso facilmente muito dinheiro dos navios que vinham de África e das mercadorias de Espanha. Recordam que, além do mais, o vento por aquele tempo era extremamente favorável para quem viajava para Jerusalém; eles próprios não esperariam por outros se ao menos oito ou nove navios se lhes juntassem. Muitas outras coisas semelhantes a estas diziam que dependem mais do acaso da fortuna que do valor próprio. No entanto, a maior parte dos nossos, abdicando de qualquer oportunismo, aduz pleno assentimento a que se fique. Colonienses, flamengos, bolonheses, bretões e escoceses de bom grado dão o seu assentimento; os restantes, com Guilherme Vítulo, uns oito navios dos normandos de Southampton e Bristol, persistem na sua teimosia, sem arredar pé; entretanto, os flamengos, os colonienses e os bolonheses retiram-se com a sua frota para a parte oriental da cidade. Algum tempo depois, voltamos a reunir-nos em assembleia para exortar os transviados a ver se com argumentos e promessas lisonjeiras os retínhamos connosco ou se havíamos de os afastar de toda a comunhão connosco e com a santa Madre Igreja por terem faltado à palavra jurada e ao compromisso de associação.

9. Intervenção conciliadora de Hervey de Glanville. Foi então que, no meio de vozearia geral, depois de a custo conseguir silêncio, Hervey de Glanville teve o seguinte discurso: "Comovida recordação é aquela com que evoco o que há dias vi na cidade do Porto, gente de tantos povos e homens de religiosa doutrina armados com a Cruz do Senhor, embora o que mais me aliviasse a extrema tristeza de espírito fosse saber que tal multidão de gente poderia estreitar laços de sincera união. Conviria que qualquer um de nós empregasse o máximo de esforço Para isso, de tal modo que o vínculo que liga agora uma diversidade tão

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coniuratae unitatis lege nobiscum astringitur, nichilque in ea quod merito accusari uel derogari queat in contingenti perpendamus, ne in nos eiusdem sanguinis generisque socios uitabunda infamie in posterum macula cohereat. Immo ut antí'quorum uirtutum memores nostrorum, laudem et gloriam generis nostri accumulare potius quam imfamatam malitie pannusculis obuelare. Insígnia enim ueterum a posteris in memoriam reducta, et amoris et honoris indicia sunt. [I 33r] Si boni emulatores ueterum fueritis, honor et gloria uos insequitur 109 ; si mali, dedecus improperii. Normannorum genus quis nesciat usu continuate uirtutis laborem recusare nullum? - quorum scilicet in summa asperitate semper durata militia, nec in aduersitate cito subuertitur, nec in prosperitate, tot difficultatibus exercitata, segni ualet otio subici, nam semper otii uitia discutere negotiis didicit. Sed quonam peruersitatis modo nescio, quasi glorie honorisque cupidine, in nos pedissequa subreppit inuidia, et dum generis alieni uiros nobiscum nequit inficere, in nosmetipsos maximam ueneni sui partem transfundit. Attendite, fratres, et recolite corrigendo mores uestros. Exemplum e uicino in confusionem uestram sumite 110 • Colonenses Colonensibus non dissident; Flandrigene Flandrensibus non inuident. Quis enim Scottos barbaros esse neget? Numquam tamen inter nos legem debite excesserunt amicitiae. Et quid aliud nisi prodigiosum quiddam in uobis conspicitur, cum nos omnes unius matris filii simus, ut si língua palato, os uentri, pes pari, manus manui, mutue seruitutis neget officium? Et uos hinc abire uultis, et ut bene fiat optamus. Nos uero, ut iam ab omnibus in commune decretum est, uobis solum paucis exceptis, quod non sine dolore cogor dicere, hic remanemus. Deo non uos inde iniuriam facitis, sed uobis. Si enim uos hic remanseritis, non augetur ex uobis Dei potestas. Si abieritis, non imminuitur. Si ciuitas hec a nobis capiatur, quid dicetis ad hec? Et ut de piaculo uiolate societatis taceam, uos ubique terrarum imfames et ignominiosi uenietis. Gloriose mortis metu uires uestras a sociis subduxistis uestris. Prede solam nondum adepte cupidinem eterno comparastis obprobrio. Genus uestrum innoxium hoc uestro crimine obnoxium tenebitur. Et certe pudet quod generis nostri mater Normannia et immerito a

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grande de gentes por força de um juramento de união entre nós admitamos que nada seja capaz de o pôr em causa ou desfazer a qualquer título nas circunstâncias em que estamos, não vá acontecer que posteriormente seja a mácula da infâmia, sempre de evitar, que associa companheiros do mesmo sangue e da mesma estirpe. Pelo contrário, importa que, lembrados das qualidades dos nossos maiores, acrescentemos o louvor e a glória da nossa estirpe e não deixemos que fiquem empanadas por entraves de maldade. Os feitos insignes dos antigos trazidos à memória pelos descendentes são indício de bom relacionamento e de honra. Se fordes bons émulos dos antigos, acompanhar-vos-á a honra e a glória; caso contrário, espera-vos a desonra do opróbrio. A gente normanda, quem há que desconheça que nunca recusa qualquer esforço na prática continuada da virtude? O seu valor militar, longamente experimentado nas maiores contrariedades, não se deixou abater facilmente nos momentos de adversidade nem nos tempos de prosperidade, porque estava posto à prova por tantas dificuldades, nem chega a ser vencido pela indolência e ociosidade, pois sempre pelo trabalho soube sacudir o vício da preguiça. Ora, não sei por que maneira perversa, como se fosse por ânsia de glória e de honra, contra nós se insinuou uma inveja rasteira que não podendo infectar com a nossa colaboração gente de outras origens transfunde contra nós próprios a parte maior do seu veneno. Tornai atenção, innãos, e tende mão no vosso comportamento para o corrigirdes. Para vos envergonhardes, tornais exemplo dos vossos vizinhos. Os colonienses não entram em conflito com os colonienses; os flamengos não querem mal aos flamengos. Quem há aí que diga que os escotos 102 não são gente rude? No entanto, nunca entre nós puseram em causa a lei da solidariedade devida. E como é que não se vê, entre vós, senão uma coisa monstruosa: sendo nós todos filhos de uma única mãe nega-se o oficio de mútuo serviço, como se a língua o negasse ao palato, a boca ao ventre, um pé ao seu igual, uma mão à outra? Vós quereis ir-vos daqui e o que desejamos é que vos corra tudo bem. Pela nossa parte, tal como foi decidido por todos em assembleia (em que só o vosso pequeno grupo constituiu excepção, coisa que sou forçado a declarar não sem mágoa), nós ficamos aqui. Não é a Deus que vós causais prejuízo com isso, mas a vós. Se efectivamente aqui ficardes, não aumentará com a vossa presença o poder de Deus; se fordes embora, não diminui. Se esta cidade for tomada por nós, que direis vós a isso? Para já não falar do sacri~égio da violação da solidariedade, vós sereis apontados como infames e 1gDóbeis em toda a parte da terra. Por medo de uma morte gloriosa subtraístes as vossas forças aos vossos companheiros; com o opróbrio eterno, apenas comprastes a ambição de um saque ainda por alcançar. A vossa estirpe impoluta ficará poluída por esta vossa vileza. E por certo será uma

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tot nationumque hic adsunt gentibus perpetuum uestri facinoris sustinebit obprobrium. Nunc de cetero. Quamobrem uos et uestra perditum itis? Certe peregrinatio uestra non uideur karitate fundata, quia non est in uobis dilectio. Si enim in uobis uere dilectionis esset affectus, profecto maiori fiducia, ea erga nos uteremini. Non litteras didici, nec populo sermonem facere noui. Didici tamen et seio quia 111 qui uult peccatis dimitti oportet peccata ceteris dimittere. Hic enim officium diligentis implet, qui hiis a quibus est appetitus ignouit. Hec enim ideo de peccatis dimittendis et malis tolerandis intersero, [133v] quia superius in excusatione huius operis quedam de rege improbanda proposuistis. Iterum de questu nauigantibus prouenturo, quis nouit si in concupiscendo aliena perdamus nostra? De itinere festinando, quis nouit si illa spe questus festinatio fiat tardatio? Maio uero hic aliquid bene operando mea consumere quam uagabundus et anceps certa pro incertis mutare, et me et mea casibus fortuitis et in maios usus committere. De rege etsi aput uos culpabilis foret, ut superius proposuistis, pro Deo tolerandus esset, ut aliquid lucri maioris a uobis fieret. lpse tamen, ut nobis refert, totius prauae actionis erga uos immunem se asserit, purgandum iudicio uestrorum. Miseremini ergo sociorum uestrorum. Parcite generis infamie uestri. Assentite consiliis honoris uestri. Ego uero in primis si placet cum omnibus meis, genibus flexis, iunctis 112 manibus, omnia mea in manibus uestris tradens, dominium uestri libentissime solum maneatis nobiscum suscipiam. Et si non uultis socios, exhibete uos saltem nobis dominos." Et cum hec ad ultimum pre lacrimis uix dixisset, pedibus Willelmi Vituli humiliari uoluit, optimatibus astantium militum et ceterorum idem facientibus. Sed non sunt permissi ab eo et a cause sue sociis circumstantibus. Acquieuit tandem Willelmus et socii eius nobiscum manere quantum sibi uictualia suppeterent, nec amplius die uno, nisi regis uel nostrorum stipendiis teneretur. Et lacrimati sunt omnes pre gaudio dicentes, "Deus, adiuua nos."

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vergonha que a Normandia, mãe da nossa estirpe, sem razão alguma, tenha de suportar o opróbrio da vossa vileza para todo o sempre por parte de povos de tantas nações que aqui se encontram presentes. Venhamos ao resto. Por que razão vos deitais a perder a vós e às vossas coisas? De certeza a vossa viagem não se afigura fundada em caridade, pois em vós não há amor. Se de facto em vós existisse verdadeiramente um sentimento de amor, certamente usaríeis de maior confiança para connosco. Não fiz estudos nem sei fazer sermões ao povo; aprendi, no entanto, e sei que quem quiser ser perdoado dos seus pecados deve perdoar os pecados aos outros. Cumpre realmente o dever de amar aquele que perdoa àqueles por quem foi ofendido. Se aqui faço um parêntese para falar das faltas que há que perdoar e dos males que há que suportar é porque anteriormente para vos escusardes a este empreendimento apresentastes algumas coisas que se deviam censurar no rei. Uma vez mais, a propósito do lucro possível ao longo da navegação, quem sabe se ao cobiçardes coisas alheias não ides perder as vossas? A pretexto de terdes pressa em seguir viagem, quem sabe se na esperança de lucro a pressa não se toma tardança? Prefiro, pela minha parte, gastar o que é meu fazendo alguma coisa de bom, a trocar o certo pelo incerto, qual vagabundo e errante, ou entregar-me a mim e ao que é meu aos acasos da sorte sobretudo para más utilizações. Relativamente ao rei, mesmo que tivesse alguma culpa, como anteriormente pretendestes, deveria ele ser desculpado em nome de Deus, para da vossa parte receberdes algum lucro maior. Ele, porém, ao que nos declara, considera-se fora de qualquer actuação indigna contra vós e que há que justificá-lo perante a opinião dos vossos. Tende, pois, pena dos vossos companheiros. Poupai a vossa estirpe a uma infâmia. Acedei aos conselhos da vossa honra. Eu, pela minha parte, se assim desejais, com todos os meus, de joelhos e mãos postas, tudo o que é meu entrego nas vossas mãos e aceito da maior boa vontade o vosso senhorio com a única condição de ficardes connosco. Se não quereis ser companheiros, ao menos comportai-vos como senhores para connosco!" A custo, por causa das lágrimas, concluiu o orador estas palavras. Quis humildar-se aos pés de Guilherme Vítulo, o mesmo fazendo os chefes dos cavaleiros e de outros que ali se encontravam, mas não lhes foi isso consentido nem por ele nem pelos partidários da sua causa que o rodeavam. No entanto, Guilherme com os seus companheiros acedeu a ficar connosco, desde que não lhes faltassem mantimentos, mas nem mais um dia, e sob condição de o soldo ser à custa do rei ou dos nossos. Todos deixaram correr lágrimas de alegria, exclamando: "Ó Deus, ajudai-nos!"

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I O. Electi sunt ex optimatibus nostris una cum Colonensibus et Flandrensibus, per quos inter nos et regem sponsionum et conuentionum fieret diffinitionis terminatio. Qui, una cum rege et archiepiscopo et coepiscopis et clericis et laicis, testamentum confirmationis pactionum postea coram omnibus prolatum in hec uerba fecerunt: "Notum sit omnibus ecclesiae filiis, tam futuris quam presentibus, conuentionis pactum inter me et Francos. Quod scilicet ego Hy[l]defonxus, rex Portugalensium, omnium meorum assensu, ut perpetuo sit aput posteros in memoria, testamento confirmationis assigno: Quod Franci, qui ad urbis Lyxbonensis obsidionem una mecum mansuri 113 sint , hostium possessiones in omnibus in suam ditionem et potestatem transferant et habeant, omnibus meis et me omnimodo expertibus. Hostes captos si qui ut uiuant redimi uoluerint, redemptionis peccunias libere habeant, mihi insuper captiuos reddant. Urbem, si forte ceperint, habeant et teneant donec facto scrutinio spolietur, tam in omnium redemptionibus quam in ceteris. Sicque demum ad eorum uoluntatem perscrutatam mihi tradant. Postea uero ciuitas et terrae subactae, [134r] me presidente, partiantur secundum conditiones suas sicut quosque melius noueri[m], tenende secundum consuetudines et Iibertates Francorum honestissimas, mihi solum in eis remanente aduocationis dominio. Naues insuper et res eorum uel heredum eorum qui ad urbis Lyxbonensis obsidionem una mecum fuerint 114 ab omni consuetudine mercatoria que uulgo pedatica dicitur, amodo et in perpetuum per totam terram meam firmiter et bona fide concedo." Hiis testibus: lohanne archiepiscopo Bracarensi, episcopo Petro Portugalensi, episcopo Lamecensi, episcopo Viseos, Frinando Menendiz socero regis, Frinando Captiuo, Gunzaluo Roderici, Gocelmo de Seusa, Menendo Hyldefonxi dapifero, Mutio de Lamega, Petro Pelagio, lohanne Rainno, Goceluo Sotheri, et multis quorum non nouimus nomina. Huius conuentionis dati sunt ex parte regis obsides certi xx per fidem et iuramentum, tam episcopi quam laici. Super hiis iurauit rex conuentionem et

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10. Pacto entre o Rei D. Afonso Henriques e os Cruzado (30 de Junho). Foram escolhidos de entre os nossos chefes alguns que com os colonienses e os flamengos estabelecessem os termos definitivos de acordo quanto a compromissos e condições a haver entre nós e o rei. Reuniram-se eles com 0 rei, o arcebispo, os bispos, o clero e os leigos e fizeram um documento de pacto de aceitação, o qual foi depois proclamado perante todos. Os seus termos são os seguintes 103 : "Seja do conhecimento de todos os filhos da Igreja, tanto futuros como presentes, o pacto de convenção feito entre mim e os francos, a saber, que eu, Afonso, rei de Portugal, com o consentimento de todos os meus, para ficar perpetuamente em memória perdurável entre os vindouros, assino em documento de confirmação: Que os francos que juntamente comigo ficarem a pôr cerco à cidade de Lisboa transfiram para seu domínio e poder os bens dos inimigos em todas as coisas, sem qualquer intervenção minha e de qualquer dos meus homens. Dos inimigos que aprisionarem se houver quem queira resgatar-se para salvar a vida, tenham eles livremente o dinheiro do resgate; quanto ao mais, entreguem-me a mim os cativos. Quanto à cidade, se porventura a tomarem, tenham-na e mantenham-na até se fazer o escrutínio e ser saqueada, tanto para constituírem resgate de tudo como para outro efeito; e assim, finalmente, ma entreguem, depois de terem procedido segundo a sua vontade. Depois, porém, a cidade e as terras conquistadas serão repartidas de acordo com as suas condições, sob a minha orientação e tal como a cada um eu melhor conhecer, e deverão elas ser mantidas segundo os costumes e liberdades respeitabilíssimas dos Francos, para mim revertendo nelas apenas o direito de convocação 104 • Quanto ao mais, os navios e os seus bens ou os dos herdeiros daqueles que tiverem estado juntamente comigo a fazer o cerco da cidade de Lisboa desde agora e para sempre em todo o meu território firmemente e de boa fé os isento de todo o direito consuetudinário sobre mercadorias que na língua vulgar se designa por pedágio 10' . Foram estas as testemunhas: João, arcebispo de Braga; Pedro, bispo do Porto; o bispo de Viseu 106 ; Fernão Mendes, cunhado do reP 07; Fernão (Mendes) Cativo, Gonçalo Rodrigues; Gonçalo (Mendes) de Sousa; Mendo, mordomo-mor de Afonso; Moço (Viegas), de Lamego; Pedro Pais; João Ranha; Gonçalvo Sotero, e muitos cujos nomes não conseguimos apurar" 101 • Deste pacto, com juramento de fidelidade, foram dados por parte do rei vinte fiadores precisos, tanto bispos como leigos. Sobre eles jurou o rei

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testamentum prescriptum seruare. Insuper autem a nobis non discessurum nisi imfirmitate ultima cogente, aut si hostibus terra eius occupparetur, nec inde fallendi occasionem querere erga nos ullo modo. Nos uero similiter pactionis tenende iuramentum fecimus, datis inde obsidibus similiter uiginti.

11. Hiis ita omnibus confirmatis, communi omnium consilio decretum est ut legatarii ad urbem hostes conuentum mitterentur, ne eos nisi inuiti uiderentur impugnare. Archiepiscopus igitur Braccarensis et episcopus Portugalensis cum paucis ex nostris ad urbem mittuntur. Dato utrimque signo, ipso ciuitatis alcai[d]e super murum c um episcopo et primiceriis ciuitatis stantibus pax indutiarum, ut quid uelint dicant utrimque, sancitur; cum sic archiepiscopus exorsus orationem habuit: "[D]eus pacis et dilectionis uelamen erroris a cordibus uestris auferat, et ad se uos conuertat. Et nos igitur de pace loquuturi ad uos peruenimus. Concordia enim res parue crescunt, discordia maxime dilabuntur. Sed ut hec inter nos non regnet perpetuo, huc ad uos conciliatum uenimus. Sic enim nos ex uno eodemque principio natura progenuit, ut federe societatis humane et uinculo matris omnium concordie aliis alios non ingratos fieri deceret. Nos uero ad hanc quam possidetis urbem non uos expugnarum hinc neque expoliatum, si uultis, uenimus. Habet enim hoc semper Christianorum innata benignitas, ut, licet sua repetat, aliena non rapiat. Urbis huius sedem nostri iuris fore uendicamus; et certe si in uobis iusticia naturalis profecerit, inexorati cum omnibus sarcinis uestris, peccuniis, et pecculiis, cum mulieribus et imfantibus, patriam Maurorum repeteretis unde uenistis, linquentes nobis nostra. Sed compertum habemus iam satis quod inuiti uel coacti talia faceretis. [1 34v] Sed date operam ut libenter faciatis. Nam si que petimus libenter suscipitis, acerbissimam peticionis partem iam effugistis. Quaenam aliter inter

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observar o pacto exarado no documento assinalado. Além disso, jurou ainda que não se retiraria senão em caso de enfermidade extrema o obrigar ou em caso de o seu território ser invadido pelos inimigos e que de modo algum intentaria com isso criar ocasião em que faltasse à lealdade para connosco 109 • Nós, pela nossa parte, igualmente fizemos juramento de cumprir o pacto, pelo que demos também vinte fiadores. 11. Conversações com os sitiados: intervenção do arcebispo de Braga, resposta do representante muçulmano e réplica do bispo do Porto. Avalizadas assim as condições, por comum acordo de todos, foi decidido que seriam enviados à cidade delegados para se encontrarem com os inimigos, devendo parecer que se os atacávamos era a grande pesar nosso 110 • O arcebispo de Braga e o bispo do Porto, com alguns tantos dos nossos, são, pois, enviados à cidade. Trocadas arras de parte a parte, estando sobre as muralhas da cidade o próprio alcaide com o bispo e as principais personalidades do burgo, foi negociado um período de tréguas a fim de dizerem o que pretendiam de parte a parte. Assim se levantou o arcebispo e teve o seguinte discurso: "O Deus de paz e de amor retire dos vossos corações a venda do erro e vos converta a si. É que nós viemos ao vosso encontro para vos falarmos de paz. Com a concórdia, efectivamente, as coisas pequenas crescem, com a discórdia as maiores definham. Ora para que esta não reine entre nós por todo o sempre é que vimos ter aqui convosco a fim de chegarmos a uma conciliação. Efectivamente, a natureza gerou-nos a todos de um só e mesmo princípio, de tal modo que não ficaria bem que, estando ligados por um pacto de solidariedade humana e por um vínculo de concórdia da mãe de todos, nós vivêssemos desagradados'" uns com os outros. Nós, pela nossa parte, não vimos a esta cidade, que está na vossa posse, para vos lançar fora daqui nem para vos espoliar. Uma coisa tem, efectivamente, sempre consigo a inata benignidade dos cristãos, é que, embora reivindique o que é seu, não rouba o alheio. O território desta cidade reivindicamo-lo como sendo nosso por direito; e, por certo, se em vós alguma vez tivesse medrado a justiça natural, sem vos fazerdes rogados, com as vossas bagagens, com haveres e pecúlios, com mulheres e crianças, vos poríeis a caminho da terra dos mouros de onde viestes, deixando a nossa para nós. É-nos, pelo contrário, sobejamente conhecido que só a contragosto ou forçados a isso o fareis. No entanto, procurai fazê-lo por vossa iniciativa, pois se aceitardes de boa mente o que vos rogamos, estareis imediatamente

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nos concordia fieri posset nescio, cum sors ab initio unicuique data proprio possessore careat. Vos ex Mauris et Moabitis Lusitaniae regnum regi uestro et nostro fraudulenter subripuistis. Urbium et uicorum et ecclesiarum desolationes innumere ab illo tempore usque in presens et facte sunt et per dies fiunt. In uno fides uestra, in altero societas humanitatis, lesa est. Ciuitates nostras et terrarum possessiones iniuste retinetis, iam annis ccc et eo amplius LVIII, ante uos a Christianis habitas, quos non ad fidem gladius exactoris addixit, sed quos uerbum predicationis in filios Dei adoptauit; sub apostolo nostro Iacobo et eius sequacibus, Donato, Torquato, Secundo, Endaletio, Eufrasio, Tesiphonte, Victorio, Pelagio, et pluribus apostolicorum signorum uiris. Testis est in urbe ista sanguis martyrum pro Christi nomine sub Ageiano Romano principe effusus, Maxime scilicet et Verissimi et Iuliae uirginis. Requirite concilium Toletanum sub glorioso nostro et uestro rege Sisebuto. Testis est inde Ysidorus Hyspalensis archiepiscopus, et ecclesie Lyxbonensis eiusdem temporis episcopus Viericus 115 cum cc et eo amplius totius Hyspaniae coepiscopis. Testantur adhuc in urbibus ecclesiarum ruine indicia manifesta. Sed quia iam usu longo et generis propagatione urbem occupatam tenuistis, utimur ad uos solito bonitatis affectu: solum uestri munimentum castri in manus nostras tradite; libertates huc usque habitas habeat uestrum unusquisque; nolumus enim uos tam antiquis exturbare sedibus. Secundum mores suos unusquisque uiuat, nisi gratuito ex uobis augeatur ecclesia dei. Prediues est, ut uidemus, et satis felix urbs uestra, sed multorum auiditati exposita. Quot enim castra, quot naues, que hominum in uos coniurata multitudo! Parcite desolationi agrorum et fructuum. Parcite peccuniis uestris. Parcite saltem sanguini uestro. Pacem dum felix est suscipite; nam dubium non est quin sit felicior pax numquam lacessita quam que multo reparatur sanguine. Etenim felicior est 116 sanitas inconcussa quam ex grauibus morbis et extrema minantibus ui quadam et exactione in tutum reducta. Grauis est morbus et preceps qui uos infestat, alterum faciet: nisi salubre summatis consilium; aut extinguetur aut extinguemini. Cauete, nam terminum festinat

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a salvo das consequências mais amargas do que pretendemos. Que tipo de conciliação se possa estabelecer entre nós não o sei, pois a sorte que há-de caber a cada um não está garantida a ninguém, à partida. Fostes vós que viestes da terra dos mouros e dos moabitas e raptastes fraudulentamente o reino da Lusitânia a um rei vosso e nosso 112 • São inúmeras as depredações que se fizeram e continuam ainda a fazer sobre cidades e aldeias com as suas igrejas desde esse tempo até hoje. Por uma parte, ficou em causa a vossa lealdade, por outra parte, ficou lesado o convívio em sociedade. Há já uns 358 anos ou até mais 113 que tendes ilegitimamente nas vossas mãos cidades que são nossas e a posse das nossas terras, anteriormente a vós habitadas por cristãos a quem nenhuma espada de exactor forçou a abraçar a fé, mas só a palavra da pregação tomou filhos adoptivos de Deus, no tempo do nosso apóstolo Santiago e dos seus discípulos, Donato, Torquato, Secundo, Indalécio, Eufrásio, Tesifonte, Victor, Pelágio e muitos outros assinalados varões apostólicos 114 • Temos nesta cidade como testemunho o sangue derramado pelo nome de Cristo no tempo do governador romano Daciano 115 por parte de mártires como Máxima, Veríssimo e a virgem Júlia 116 • Consultai o concílio de Toledo celebrado no tempo de Sisebuto, glorioso rei nosso e também vosso; é-nos testemunha Isidoro, arcebispo de Sevilha, e o bispo de Lisboa desse tempo, Viérico, com mais de duzentos bispos de toda a Hispânia 117 • Atestam-no ainda nas cidades sinais manifestos das ruínas das igrejas 118 • Mas, dado que tendes mantido a cidade ocupada em uso longo com propagação das vossas estirpes, usaremos para convosco do habitual sentimento de bondade. Entregai nas nossas mãos a guarnição do vosso castelo. Cada um de vós terá as liberdades que tem tido até aqui. Não queremos, efectivamente, expulsar-vos dos vossos assentamentos tão antigos; viva cada um segundo os seus costumes, a não ser que espontaneamente queira vir aumentar a Igreja de Deus 119 • Como observamos, é riquíssima e bastante próspera a vossa cidade, mas está exposta à avidez de muitos. Efectivamente, quantos arraiais, quantos navios, que multidão de gente está em conjura contra vós! Tende em atenção a devastação dos campos e dos seus frutos. Tende em atenção o vosso dinheiro. Tende ao menos em atenção o vosso sangue. Aceitai a paz enquanto vos é favorável, pois é bem verdade que é mais útil uma paz nunca posta em causa que outra que se refaz com muito sangue; de facto, é mais agradável a saúde nunca alquebrada que a que foi recuperada depois de graves doenças ~ sob ameaças de medidas forçadas e exigências extremas para ficar a salvo. E grave e fatal a doença que vos atinge; outra virá se não tornardes uma resolução salutar: ou ela se extingue ou vós sereis extintos. Tornai cuidado, pois

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uelocitas. Studete incolumitati uestre dum tempus habetis. Vetus est enim prouerbium, gladiatorem in area capere consilium 117 • Vos deinceps respondeatis si placet." [135r]

Ad hec quidam ex senioribus circumstantibus responsum huiusmodi dedit: "[V]ideo uerba uos satis in potestate habere; non oratio uestra uos effert, nec longius quam destinauistis protraxit. Ad unum finem, scilicet capescende nostre ciuitatis, uestra respexit oratio. Sed de uobis satis admirari nequeo, cum una silua uel prouincia multis elephantibus uel leonibus sufficiat, uobis autem nec mare nec terra sufficit. Non enim uos rerum inopia, sed mentis cogit ambitio. Quod enim superius de sorte unicuique data proposuistis, uos sortem nostram inquietatis; ambitionem uestram rectitudinis zelum dicentes, pro uirtutibus uitia mentimini. Iam enim adeo in immensum uestra cupiditas exiit, ut non solum uobis turpia delectent sed etiam placeant; et iam fere locus remedio fieri desiit, quia uestre cupiditatis consummata infelicitas iam pene modum naturalem transiit. lnopes et exules nos fieri iudicatis, ut gloriosi efficiamini. Huiusmodi gloriatio, iners diffinitur ambitio. Cupiditas uero uestra dum modum excessit in se ipsam strangulata sem per emarcuit. Quotiens iam nostra memoria cum peregrinis et barbaris nos hinc expugnatum aduenistis? Numquid uero uobis uestra placent aut ullam domi contrahitis 111 culpam totiens migrantes? Et certe frequens migratio uestra ex innata animi instabilitate fore conuincitur, quia nec animum continere qui nec corporis fugam sistere ualet. Urbem nostram uel uobis quietam tradi uel in ea manentes uobis subici, nondum nostri consilii fuit. Nondum adeo magnanimitas nostra processit ut certa pro incertis relinquamus. De magnis enim rebus magno animo iudicandum est. Urbs uero hec, ut estimo, uestris olim fuit; nunc autem nostra, in futuro forsitan uestra. Sed et hoc diuini muneris erit. Cum uoluít deus, habuimus; cum noluerit, non habebimus. Nullus enim contra uoluntatis eius arbitrium inexpugnabilis est murus. Placeat ergo nobis quicquid Deo placuerit, qui totiens sanguinem nostrum de manibus uestris eripuit; ipsumque ideo et merito suaque mirari non desistimos in hoc quod uinci non potest,

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a rapidez apressa o fim. Cuidai da vossa segurança enquanto tendes tempo. Antigo, na verdade, é o provérbio que diz: "na arena é que o gladiador forma 0 seu plano" 120 • A partir de agora a resposta pertence-vos a vós, se assim vos aprouver". A isto deu a seguinte resposta um dos anciãos presentes: "Vejo que tendes bom domínio da palavra; nem vos arrebata o uso dela nem ela vai mais longe do que planeastes. Uma única orientação teve em vista o vosso discurso: tomar a nossa cidade. Há, no entanto, uma coisa que não consigo reconhecer em vós: uma só floresta ou região dá para muitos elefantes ou leões viverem; para vós, porém, não basta nem o mar nem a terra. Efectivamente, não é a necessidade das coisas que vos força, mas a ambição do espírito. Relativamente ao que anteriormente propusestes sobre a sorte reservada a cada um, vós estais inquietos pela nossa sorte; designando a vossa ambição por zelo de justiça, trocais o nome de vícios pelo de virtudes; efectivamente, a vossa cupidez veio tanto a terreiro que as torpezas não apenas vos agradam como também vos comprazem e já quase deixou de haver lugar de cura, pois, ao consumar-se, a infelicidade da cupidez quase já ultrapassou os limites naturais. Vós julgais que nós devemos ser votados à miséria e ao exílio para vós vos tornardes gloriosos. Semelhante forma de glorificação identifica-se com ambição estéril. A vossa cupidez, ao exceder-se contra si própria, acaba sempre por murchar e por ficar estrangulada. Quantas vezes é já da nossa memória que viestes com peregrinos e estranhos para nos expulsar daqui? 121 Será que as vossas coisas não vos agradam ou será que incorrestes nalgum crime na vossa terra para migrardes tantas vezes? Por certo, a vossa migração assídua é prova de instabilidade inata de espírito, pois não é capaz de conter o espírito quem não é capaz de evitar a fuga do corpo. Entregar-vos a nossa cidade em boa paz ou permanecer nela sujeitos a vós, até agora não foi objecto da nossa consideração. Ainda não foi tão longe o nosso estado de espírito 122 que deixemos o certo pelo incerto. De facto, importa julgar as grandes coisas com grande atenção. Quanto a esta cidade, ao que me apercebo, foi ela vossa em tempos; mas agora é nossa; no futuro talvez seja vossa. Isso, no entanto, será da vontade divina; enquanto Deus quis, tivemo-la nós; quando não quiser, não a teremos. Efectivamente, nenhuma muralha é inexpugnável contra as disposições da sua vontade. Seja·nos pois grato o que a Deus for grato, Ele que tantas vezes livrou o nosso sangue das vossas mãos; não deixamos de olhar para Ele e para as suas disposições, e com razão, por isto: porque Ele não pode ser vencido e porque

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et quod mala omnia sub se teneat, et quod, ratione qua nichil prestantius, casus et dolores et iniurias nobis subigit. Sed uos hinc abite, non enim aditus uobis patet ur[bis] nisi ferro experiendus. Non enim minae uestre et barbarorum tumultus multi uel magni aput nos constant [qu]orum uirtutem satius quam linguam nouimus. Quod uero perniciosa et mala irrefragabilia promittitis, ex futuro si quandoque futura sunt pendent; et certe dementia est nimis angi futuris, nec aliud quam sibi sponte miserias accersere. Admouendum est igitur optimum consolationis officium, [135v] et differendum que, Iicet nequeant discuti, animi autem nostri timiditas omnia experiri suadebit. Nam timor assiduus et acer et extrema queque minitans, ad audaciam torpentes excitat; et eo acrior uirtus efficitur, quanto ineuitabili necessitate extunditur. Sed quid uos longius protraham 119? Facite quod ualetis. Nos quod diuini muneris erit." Ad hec episcopus Portugalensis: "Si fieri potest ut propiciis auribus uestris loquar, dicam, si minus, iratis. Vos, ut moris est uestri, in hoc solum obstinationis uestre causam et finem figentes rerum et malorum euentus nostrorum expectatis. Sed fragilis spes et imbecillis que non ex proprie uirtutis fiducia, sed ex aliena pendet miseria. Iam enim causa uestra, quasi timida aut infirmata, testimonium condempnationi dare uidetur. De incerto et futuro loquuti; sic aput nos fore decretum experiemini, ut rei cuius totiens euentus incertus fuerit, ut aliquando procedat, se plus temptandum. Sed cum totiens, ut dicitis, erga uos nostra cassata sint initia experiendum adhuc aliquid adicimus. Sed quis uos inde finis maneat, experti cognoscetis. Ut estimo, in discessu nostro ab urbe ista nec salutabo uos, nec salutabor a uobis."

12. lgitur legati nostri omni spe ciuitatis potiunde ab hostibus frustrati ad nos reuertuntur. Rex cum omnibus suis ad urbis septentrionem in summitate montis distantis a nobis quasi passibus quingentis secedit. Mane iterum facto, etiam 110 constabularii nostri et optimates nostre partis

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tem sob o seu domínio todos os males e, por outro motivo, mais importante ainda, porque é Ele quem nos sujeita aos infortúnios e às dores ou às injúrias. Por ora, ide-vos daqui, pois não vos está aberto o acesso à cidade se não 0 forcejardes à espada. Efectivamente, de nada valem para nós as vossas ameaças e a vozearia de bárbaros, cuja valentia conhecemos melhor que a língua. Quanto às ameaças de desgraças fatídicas e irrefragáveis que augurais, dependem do futuro, se é que alguma vez hão-de acontecer; e, por certo, seria loucura viver em angústia demasiada quanto ao futuro e não seria outra coisa que atrair misérias sobre si sem necessidade. Há que dispensar, pois, os bons oficios do vosso consolo e diferir o que, embora não se podendo resolver, a timidez do nosso espírito nos aconselhe a experimentar. É que o temor quando é persistente e de tal maneira pungente que roça pelas realidades extremas estimula os entorpecidos a serem audazes e o valor toma-se tanto mais vivo quanto é fustigado por uma necessidade inevitável. Mas, para que hei-de demorar-vos mais? Fazei o que estiver ao vosso alcance. Nós, o que for da vontade de Deus." A isto respondeu o bispo do Porto: "Se é possível falar aos vossos ouvidos acolhedores, fá-lo-ei; caso contrário, dirigir-me-ei a ouvidos indignados. Vós, como é vosso hábito, fixais num ponto apenas o motivo e o objectivo da vossa obstinação e esperais pelo acontecer dos factos e das desgraças123. Ora, é frágil a esperança e débil a confiança que não procede do próprio valor, mas depende da miséria alheia. A vossa situação, temerosa e enfraquecida como está, parece dar razão a condenação. Falastes do incerto e do futuro; ficai cientes também do que foi decidido entre nós: sempre que a eventualidade de alguma coisa se toma incerta, para que alguma vez chegue a bom termo, há que tentá-la vezes seguidas. Ora, já que, como dizeis, tantas vezes fracassaram as nossas iniciativas, alguma coisa acrescentamos para tentarmos de novo. Mas qual seja o fim que daí vos espera, sabê-lo-eis quando o experimentardes. Tanto quanto prevejo, ao retirarmo-nos desta cidade, não vos saudarei nem serei saudado por vós" 124 •

12. Início do cerco à cidade (1 de Julho). Desiludidos, pois, na sua expectativa de tomarem conta da cidade das mãos dos inimigos, os nossos legados voltam a ter connosco. O rei com todos os seus retira-se para norte da cidade, onde fica no cimo de um monte, distante de nós uns quinhentos passos 12'. Nova manhã regressa126 e de novo os nossos condestáveis com os dignitários da nossa parte se

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curiam regis adeunt circiter horam diei nonam, ut supradicte conuentionis obsides traderent et plura obsidioni necessaria prouiderent. Cum interim garciones nostri fundiferi hostes irritando ad campum progredi faciunt, ut sic eminus iactu lapidum irritatis, maioris accessionis prouocatio fieret. Nostris subinde paulatim arma capientibus infra suburbium se hostes 121 , concludunt, prohibentes nostros ab introitu iactu lapidum a tectis domorum que ad instar muri circumquaque septa erant. Nostri uero undique patulos si qua 122 forent querentes aditus, usque ad medium suburbii, quo in deuexo montis muro cingebatur, eos proturbant. lbi uero no bis fortiter restitum 123 est. Nostris paulatim subcrescentibus, fit acrior impetus. Multi interim sagittarum et balistarum ictibus cadere, nam propius accedendi Iicentiam lapidum prohibebat emissio. Sicque diei pars magna consumpta est. Tandem uero sub solis occasu per quosdam uix etiam inermibus anfractus 124 peruios quandam collis partem maximo belli discrimine nostri preoccupauere. Quo comperto hostes in fugam uersi sunt. Nam longe a munimento superioris urbis aberant.

Interim hiis auditis, dominus Saherius de Arcellis a rege et a constabulariis nostris nos retroagendum missus est. Deliberatum enim aput eos fore aiebant, ut in crastino a rege et ab omnibus undique ciuitas inuaderetur, ne inter paucos dampni maioris occasio fieret. [1 36r] Sed cum usque ad nos peruenisset, iam fere omnes nostri ex nauibus confluxerant et iam ade[o] in urbe cum hostibus, ut uix nisi arrnorum uarietate dinosci possent. Iam fer[ e] nox aderat. Com perto uero quod retroagi nisi nostrorum detrimento maxime nequiremus, iub[entur] omnes a domino Saherio ex castris proruere, episcopo Portugalensi omnes benedicente atque absoluente. lpse quoque Saherius cum quibus habere potuit ex nostro tentoriom uel ex suo proprio, nam sociorum pars maior iam in conflictum ierat, ut ceteris succursum prestaret, arrnatus urbem ingreditur. Iam uero inter uicorum angustias, prout hostium uel nostrorum maiora suppetebant per loca presidia, uaria uictoria ad inuicem erat. Cum tandem nostri in cimiterio quodam hostium colligati atque in aciem instructi, superueniente domino Saherio, nam ceteri constabulariorum omnes

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dirigem à cúria 127 do rei por volta da hora nona, a fim de entregarem os fiduciários do pacto atrás referido e proverem às várias exigências do cerco, enquanto os nossos fundibulários, gente jovem, provocam os inimigos e os fazem vir até ao campo a fim de que assim provocados pelas pedras que lhe são arremessadas de longe se tornasse o desafio mais apetecido. Seguidamente, e a pouco e pouco, os nossos pegam em armas enquanto os inimigos se vão infiltrando nos arrabaldes, travando aos nossos a entrada com pedras atiradas do telhado das casas que formavam uma cerca à maneira de muralha em toda a extensão. Os nossos, por sua parte, procuravam por todos os lados aberturas acessíveis, se é que as havia por algum sítio, e rechaçam os inimigos até meio do arrabalde no lugar em que ele se cinge ao declive do monte na muralha. Aí, porém, foi-nos feita resistência tenaz. A pouco e pouco os nossos foram crescendo e o ataque tornou-se mais violento. Muitos, entretanto, caíam por causa das setas e dos tiros das balistas, pois o arremesso de pedras travava a possibilidade de maior avanço. Assim se passou grande parte do dia. Finalmente, à hora do sol posto, servindo-se de uns carreiros por onde mal passava gente mesmo desarmada, os nossos, no auge da refrega, foram ocupar uma parte da colina. Ao darem-se conta do sucedido, os inimigos puseram-se em fuga, pois estavam longe da fortificação da cidade mais alta. Tendo entretanto sabido disto, D. Saério de Archelle foi enviado pelo rei e pelos nossos condestáveis a mandar-nos recuar. Tinham deliberado entre eles, diziam, que a cidade seria atacada por todos os lados pelo rei e por todos no dia seguinte a fim de evitar ocasião de maior dano pelo facto de serem poucos. No entanto, quando chegou junto de nós já quase todos os nossos tinham acorrido dos navios e já se misturavam de tal forma com os inimigos na cidade que mal se poderiam distinguir por outra coisa que não fosse a diversidade das armas. A noite estava quase a chegar. Verificado que não podíamos retroceder sem grande prejuízo para os nossos, são dadas ordens por D. Saério para todos saírem dos acampamentos, enquanto o bispo do Porto a todos ia abençoando e absolvendo 121 • O próprio Saério, juntamente com quantos pôde conseguir quer no nosso pavilhão quer no seu, entra também armado na cidade com fim de socorrer os outros, pois a maior parte dos nossos companheiros avançara já para o combate. Já, porém, por entre as ruas estreitas, a vitória se inclinava ora para um lado ora para o outro, segundo eram maiores os apoios que se faziam em cada sítio aos inimigos ou aos nossos. Encontravam-se, por último, os nossos num cemitério dos inimigos 129, agrupados num todo e dispostos em linha de batalha; ao irromper D. Saério,

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aberant, omnem hostium impetum repulere. Inde magna eorum strages conficitur. Tum demum in fugam uersi sunt; nam a prima unde superius fuga, cum se acrius imfestari non posse, pre uicorum quantitate, uel nostrorum lassitudine, comperuissent, leuiter reparati fuerant. Nunc tandem in fugam uersi predarum obiectione suarum, cum multi nostrorum ad bane iam íntenderent, donec imfra portas argumento subtili inuenere uiam. Milites tamen cum archiferis et quibusdam iuuenibus expeditis, preda neglecta, usque ad portas impressionem strenuissimam faciunt. Verum enim prede intenti fedam aliter fugam fecissent.

Sed nox ínterim conflictum dirimit, capto suburbio non sine euidenti miraculo, quod quasi tria armatorum milia, xv milia familiarum uillam tot difficultatibus septam obtinerent. Mílites uero et quique electi iuuenes cum domino Saherio tota nocte armati excubias peruigiles in medio montis quo erat eorum cimiterium agunt, ne, relicto quod ceperamus, in crastino difficilior aditus pateret. Quod et ita factum est tota nocte, horribili ex omni parte comflagrante incendio.

13. Mane autem facto circiter horam primam hostes exeunt, ut nos ab urbe repellerent; superuenientibus ex omni parte regis et nostrorum familiarium presidiis, iterum includuntur. Sicque denique urbe obsidione inclusa, imfra suburbium sub muris eorum hospitati sumus, non sine magna nostri euentus omnium ceterorum inuidia. Hiis ex parte Flandrensium compertis, muro urbis se includunt Mauri, relicto eis inexpugnati 126 suburbio. Nostri ínterim, Normanni scilicet et Angli, excubias per noctes singulas per quingentenos disposuere, ut, IX reuolutis noctibus, etiam 127 prime uigilie initia fierent. VIII uero batellos cum armatis contra urbem in flumine excubandos disposuere.

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pois todos os restantes de entre os condestáveis se tinham afastado, rechaçaram a investida em peso dos inimigos. Seguidamente fez-se uma grande mortandade entre estes. Só então se puseram finalmente em fuga, pois, a seguir à primeira vez, referida acima, tinham-se ido refazendo algum tanto, ao darem-se conta de que não poderiam ser atacados com muita violência devido à multiplicidade das ruas e ao cansaço dos nossos. Agora, punham-se finalmente em fuga, atirando com o que era objecto de saque das suas coisas, uma vez que muitos dos nossos já se entregavam a ele, até darem com um caminho de escapatória disfarçada por debaixo das portas. Os cavaleiros, porém, com os frecheiros e alguns jovens mais lestos, sem atenderem ao saque, fazem uma investida de grande bravura até às portas. É um facto que, se os que se entregaram ao saque tivessem procedido diversamente, teriam provocado uma debandada desonrosa. A noite vem, entretanto, pôr termo à luta, depois de tomado o arrabalde não sem milagre evidente, pois menos de três mil homens armados tornaram-se senhores de uma cidade de 15 mil famílias cercada por tantos obstáculos. Por sua parte, os cavaleiros e todos os jovens de eleição, com D. Saério, armados, montam sentinelas de vigia, pela noite dentro, a meio do monte em que se encontrava o cemitério deles, de forma a impedir que, por abandono do que tínhamos conquistado, no dia seguinte se apresentasse de acesso mais difícil. Assim se fez toda a noite, ao mesmo tempo que por toda a parte grassava um incêndio horroroso. 13. Acções isoladas e episódios de provocação. Logo ao romper da manhã, perto da primeira hora, os inimigos'fazem uma sortida para nos expulsarem da cidade; mas vieram em nosso auxílio de toda a parte reforços do rei e das guarnições dos nossos mais chegados e eles de novo se recolhem. Envolvida assim fmalmente a cidade pelo cerco, acampámos por debaixo do arrabalde junto das muralhas, não sem grande inveja por parte de todos os outros em razão do nosso bom êxito. Ao darem-~e conta destes factos na parte em que se encontravam os flamengos, os mouros·êncerram-se nas muralhas da cidade, abandonando o arrabalde e ficando ao abrigo de qualquer ataque. Entretanto, os nossos, ou sejam os normandos e os ingleses, organizaram vigias para durante a noite, cada uma delas composta por quinhentos homens, de tal modo que de nove em nove noites os mesmos voltavam a pegar na primeira vigia. Por outro lado, dispuseram oito batéis no rio com gente armada frente à cidade para ficarem de vigia.

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Inuentum est dehinc in nostra parte suburbii, in fossis in procliuo montis, ad centum fere milia summarum tritici et [h]ordei et milii et leguminum, subsidia scilicet maxime partis urbis. Nam imfra muros, loci quantitas et rerum familiarium copia rupisque solide [136v] durities, imfra uallem [uero] 121 aquarum copia fossas fieri prohibebant. Interea Mauri per dies sepius irruptiones faciunt in nostros, nam contra nos tres portas habentes, duas in latere et unam contra mare, facilem exeundi et redeundi licentiam habebant. Nobis uero congressus difficilis habebatur. Satis 129 non sine utrorumque detrimento fiebat, sed eorum semper maio ri. Dum interim per dies et noctes excubaremus sub eorum muris, derisiones atque improperia multa nobis ingerebant, mille nos mortibus dignos iudicantes, quippe qui nostra fastidientes quasi uilia, aliena quasi pretiosa concupisceremus; nec aliam se nobis iniuriam fecisse commemorant, nisi quod nos, si quid optimi penes eos haberetur, possessione nostra dignum existimaremus, ipsosque indignos habendi iudicaremus; prolemque domi nascituram multiplicem nobis absentibus improperabant, nec ob id de obitu nostro cure uxoribus nostris fore, [sat]is cum sibi domi spuria suppeteret progenies. Sed et si qui ex nobis superforent, miseros et inopes repatriandum promittebant, et subsannantes dentibus in nobis fremebant. Conuiciis insuper et uerbis contumeliosis et probris beatam Mariam matrem Domini incessanter afficiebant, indignantes nobis, quod filium pauperis mulieris tanto quasi Deum ueneraremur obsequio, ipsum dicentes Deum deique filium, cum unum Deum sol um a quo omnia que initium habent cepta sunt constet esse, nec aliquem coeuum et diuinitatis sue habere participem; ipsumque summe bonum atque perfectum, omniaque posse, et cum omnia possit, indignissimum fore et inexpiandum tantam tamque excellentis diuinitatis potentiam humanis compagibus membrorumque liniamentis coartari, nec id aliud [quam] 130 furiosum et saluti nostre contrarium credere fore. Vel hunc Mariae filium prophetam inter optimos cur non asser[eremus]; cum iniuriosum ualde sit homini nomen Dei usurpare? Hec et hiis similia aduersum nos calumpniantes obtrectabant. Crucis insuper signum cum magna irrisione ostentare nostris; atque in illam expuentes, feditatis sue posteriora extergebant ex illa, sicque demum mingturientes 131 in illam quasi obprobrium quoddam, crucem nostram nobis proiciunt. Videbatur uero iterum nobis Christus

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Seguidamente foi encontrada, na nossa parte do arrabalde, dentro de covas rasgadas na encosta do monte, uma quantidade de perto de umas cem mil cargas de trigo e de cevada, de milho e de legumes, provisões que eram para a maior parte da cidade 130 • Efectivamente, junto das muralhas, a exiguidade do espaço e a quantidade de habitações familiares bem como a dureza da rocha firme ou também, no vale, a abundância de águas impediam que se abrissem covas. Entretanto, os mouros~\to longo de alguns dias fazem sortidas frequentes contra os nossos, pois, como frente a nós tinham três portas, duas laterais e uma frente ao mar 131 era-lhes fácil sair e voltar. Pelo contrário, a nós tomava-se difícil enfrentá-los. A verdade, porém, é que isso não se dava sem perdas de parte a parte, embora fossem maiores as deles. Enquanto nos mantivemos assim de vigia, dias e noites, junto das muralhas, atiravam contra nós escárnios e impropérios, considerando-nos merecedores de mil mortes, pois que era por estarmos fastidiados com as nossas coisas que cobiçávamos as dos outros como se fossem de valor; nem se lembravam de outra ofensa que eles nos tivessem feito além de terem eles alguma coisa de grande valor e nós considerarmos que éramos merecedores de tomar posse dela e eles não merecerem possuí-la. Insultavam-nos dizendo que na nossa ausência nos haviam de nascer em nossa casa muitos filhos e que devido a isso as nossas esposas não se importariam com a nossa morte, bastando-lhes ter em casa os filhos adulterinos. Mas, se alguns de nós sobrevivêssemos, prometiam repatriar-nos, pobres e miseráveis. Escarnecendo, rosnavam por entre os dentes contra nós. Em gracejos, por palavras injuriosas e torpezas, afrontavam sem cessar Santa Maria, a mãe do Senhor, amesquinhando-nos por venerarmos com tanto respeito, como se fosse Deus, o filho de uma pobre mulher, e por dizermos que Ele é Deus e Filho de Deus, quando é sabido que Deus há só um, Aquele por quem foram criadas todas as coisas que alguma vez existiram, e não há ninguém que lhe seja co-eterno e participe da sua divindade; que Ele é sumamente bom e perfeito, tudo pode e, tudo podendo, seria a maior indignidade e o maior sacrilégio restringir tão grande poder de divindade tão excelente aos limites humanos e às formas de uns membros, e não seria senão insensato e contrário à nossa salvação acreditar que assim é na realidade. Ou então, porque não confessarmos que o filho de Maria é um profeta entre os maiores, já que é extremamente ofensivo para um homem usurpar o nome de Deus? Estas e outras coisas semelhantes a elas nos atiravam para nos injuriarem. Além disso, com grande irrisão, alçavam para os nossos o sinal da cruz e cuspindo-lhe limpavam com ele as partes traseiras da sua fealdade e, por fim, urinando sobre ela, em gesto de opróbrio, arremessavam-nos

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actualiter ab incredulis blasphemari, falsa genuflexione salutari, malignantium sputis ri gari, uinculis affiigi, fustibus illidi, crucis afligi op[p]robrio. Cuius ut decebat nos compassione in crucis aduersarios acriores fieremus. Quod et factum est, diuina eos obcecante iusticia. Quotiens a nobis requisiti sunt, quotiens facultates et possessiones eorum, solum ab urbe libere quo uellent secederent, eis concesse sunt, aut integro iure sibi omnia remanere, solum urbis munimentum nobis tradidissent, numquam tamen eorum obstinationem nisi ultimo et pessimo dedecore finiri deus noster permisit. Preuiderat enim deus maxime hiis temporibus ultionem in crucis aduersarios sub qualibuscumque homunciis fieri. [137r] Dederat enim eos Deus, ut postmodum uidimus, in passiones ignominiae 132 •

14. Interea ecclesie duae a Francis construuntur in sepulturam defunctorum, una ab orientali parte a Colonensibus et Flandrensibus, ubi duo muti a natiuitate, Deo adiuuante, officia linguae susceperunt, altera ab Anglis et a Normannis ab occidentali parte. Cum autem ibi per dies xv sedissemus, machinas utrimque facere incepimus, Colonenses et Flandrenses suem, arietem, turrim ambulatoriam, nostri turrim ambulatoriam nonaginta v pedum altitudinis. Omnibus ad hec agenda intentis, prodigiale quid a parte Flandrensium euenire contigit. Die namque dominica post expletionem misse sacerdos panem benedictum [uidit] 133 sanguineum, quem dum cultello purgare iuberet, inuentus est adeo cum sanguine permixtus, ut caro que numquam sine sanguine potest incidi. Diuisus uero postea per frusta in huiusmodi specie etiam post urbis captionem multis diebus uisus est. Quidam uero hoc interpretantes aiebant gentem illam ferocem et indomitam, alieni cupidam, licet tunc sub specie peregrinationis et religionis, sitim sanguinis humanP 3\ nondum deposuisse. Colonenses interim et Flandrenses v fundis Balearicis muros et hostium turres temptant concutere. Peractis 135 tandem eorum machinis et ad murum

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a nossa cruz. Para nós, isso parecia-nos que era Cristo estar de novo a ser blasfemado em nossos dias por incrédulos, saudado com genuflexões falsas, molhado com cuspidelas de malvados, apertado com cordas, zurzido com açoites, pregado no opróbrio da cruz. Sentindo tudo isto, como nos competia, mais acirrados nos tomávamos contra os adversários da cruz. Isto acontecia porque a justiça divina os mantinha obcecados. Quantas vezes por nós foram instados, quantas vezes lhes foram caucionados os seus direitos e bens, com a condição de saírem livremente da cidade para onde quisessem ou lhes foi admitido que ficassem em posse plena de tudo, desde que nos entregassem a fortaleza da cidade! Mas nunca o nosso Deus permitiu que a sua obstinação terminasse senão na pior e extrema desonra. Estava, efectivamente, nas previsões de Deus que sobretudo nestes tempos se daria o castigo aos adversários da Cruz através de homens de pouco valor, não importa quem eles fossem. De facto, tal como depois nos apercebemos, Deus tinha-os entregue a paixões de ignomínia.

14. Organização das acções por parte dos Cruzados: construção de igrejas e mobilização de meios (máquina de guerra) para atacar (3 de Agosto). Entretanto, para sepultar os que iam morrendo foram levantadas pelos francos duas igrejas: uma, na parte oriental, pelos colonienses e flamengos, onde dois mudos de nascença, por mercê de Deus, receberam o exercício da fala; outra, no lado ocidental, por ingleses e normandos 132 • Estávamos, porém, já ali há quinze dias e começámos de um lado e de outro a fabricar máquinas de guerra: colonienses e flamengos montam um suíno, um aríete e uma torre móvel; os nossos, uma torre móvel de 95 pés de altura133 • Estavam todos aplicados nestas tarefas quando ocorreu algo de prodigioso no lado dos flamengos. Foi o caso que num domingo, depois da celebração da missa, o sacerdote reparou que o pão bento estava cheio de sangue; mandou que o limpassem com uma faca, mas reconheceu-se que continuava tão ensopado em sangue como se fosse carne que não se pode cortar sem deitar sangue; cortado depois em pedaços, foi visto neste estado muitos dias depois da tomada da cidade 134 • Havia quem interpretasse isto e dissesse que aquela gente era feroz e indomável, outros que era gananciosa e que, embora sob a aparência de peregrinação e de piedade, ainda não tinham abandonado a sede de sangue humano 135 • Entretanto, os colonienses e os flamengos tentam abalar as muralhas e as torre~ dos inimigos com cinco balistas 136 • Terminadas finalmente as máquinas

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deductis, uix arietem reduxere, ceteris igne et satis contumeliose consumptis. Turris uero nostra cum iam ad murum fere duceretur, sabloni inhesit immobilis, a tribus eorum fundis irremis[s]ibiliter per dies noctesque concuss[a], ubi non sine magno nostrorum labore et detrimento in defendendo frustra, post dies quatuor comburitur, ab hostibus. Inde nostri non parum consternati, animis erecti 136 uix imfra dies VIII esse ualebant. Sed cum tandem per sex [h]epdomadas urbem obsedissemus, comperto quod eos fames aliquantulum perurgeret, [nostris] uero panis et uini frugumque inestimabilis copia suppeteret, paululum resumpsere animos. Naues terre deducunt, mala submittunt, funalia domibus includunt, hyemandi signum. Colonenses uero subterraneas fossas quinquies aggressi ut murum precipitarent, totiens cassati sunt.

15. Inde iterum nostri causa consternationis habita, inter se multum murmurantes, quasi aliquid melius alibi egissent, conqueruntur, cum post dies aliquot non parum solaminis diuina consulente misericordia, nobis euenire contigit. Nam decem Mauri uespere sub muro ascendentes in scapham contra castrum de Palmella nauigantes exeunt. Qui a nostris sub tanta festinatione prosequuti, ut scapham et omnia que in ea portauerant desperati relinquerent. Imfra quam carte plurimis transmisse lingua Caldea inscripte reperte sunt. Exemplum unius, sicut per interpretem didici, huiusmodi erat: [13 7v] "Abbati Machumato, Eburensium regi, calamitas Lyxbonensium, regnum cum salute obtinere. Quante uero et miserabiles atque inopinate nobis superuenerint clades, ciuitatis nostre desolata uastitas non sine maximo nobilium sanguine, luctus nobis, heu, heu, monimenta perpetui, protestantur. Iam iam fere secunda lunatio preterit quoad Francorum classis, nostris aduecta finibus celi terreque marisque subsidiis, imfra muri artissimi ambitum inclusos cohercuit. Sed quid in hac miseriarum summa sperandum, perambiguum est, nisi solum auri beneficio expectare suppetias. Nobis una

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e levadas até junto das muralhas, só a custo conseguiram puxar atrás o aríete, pois tudo o mais foi queimado de modo bastante afrontoso. Quanto à torre, quando estava prestes a chegar junto da muralha enterrou-se na areia e aí ficou, tendo sido irremediavelmente fustigada por três balistas inimigas durante dias e noites sucessivas; aí foi incendiada pelos inimigos ao fim de quatro dias, não sem que os nossos tentassem defendê-la com grande esforço e perdas, mas tudo em vão. Com isso, os nossos ficaram não pouco consternados e a custo ao fim de oito dias conseguiam recobrar ânimo. No entanto, quando finalmente já íamos em seis semanas passadas no cerco que fazíamos à cidade, ao descobrir-se que a fome nela já apertava algum tanto, enquanto aos nossos sobrava inestimável abundância de pão e de vinho bem como de produtos frescos, ganharam um pouco de alento. Reconduzem os barcos a terra, arreiam os mastros, recolhem os cordames para dentro, em sinal de hibernação. No entanto, os colonienses por cinco vezes tentam abrir túneis subterrâneos para fazer cair a muralha, mas outras tantas vezes fracassaram. 15. Os mouros tentam buscar apoios. Nisso tomaram de novo os nossos motivo de consternação e murmuravam uns com os outros, remoendo que melhor teria sido fazer alguma coisa noutra parte, quando, ao fim de alguns dias, aconteceu que por misericórdia divina nos chegou algo de não pequena satisfação. Foi o caso que, ao entardecer, dez mouros, a coberto da muralha, sobem para uma canoa e saem a caminho do castelo de Palmela. Foram eles perseguidos com tanta rapidez pelos nossos que, em acto de desespero, abandonaram a canoa e tudo o que nela transportavam. Dentro dela foram encontradas cartas dirigidas a muitos destinatários e escritas em língua árabe. O teor de uma delas, tal como me foi dado a conhecer por um intérprete, era o seguinte 137 : "A Abu Moamede, reP 31 de Évora, os desafortunados 139 da cidade de Lisboa: possa ele manter o seu reino em segurança. Quantas, quão lamentáveis e inopinadas sejam as calamidades que sobre nós tenham caído dá testemunho, como monumento para perpetuidade, a desolação extrema da nossa cidade onde não falta enorme perda de sangue de gente nobre e o luto, ai! ai!, em que ficámos. Já quase passou a segunda lunação desde que uma armada de francos aportou aos nossos termos, com apoios do céu, da terra e do mar, e nos forçou a ficarmos encerrados no perímetro da muralha que é mais que exígua. Ora que haja a esperar neste acumular de misérias é por demais incerto, a não ser que socorro seja de esperar apenas do contributo do ouro.

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cooperantibus et urbem et patriam a barbaris liberatum per uos non ambigimus. Neque enim adeo sunt multi uel pugnaces; turris uero illorum et machine ui et armis a nobis combuste hec testantur. Sin aliter, caueat prudentia uestra; uos enim idem rerum et malorum exitus manet." Relique uero hec eadem a parentibus et cognatis et amicis peccuniarumque debitoribus exorabant. Super hiis etiam Hallo, id est deum, pro eis exorare, ut saltem suppremos corporum ipsorum spiritus ab illo etemitatis receptaculo quo dilectus suus Machumatus uiuit et gloriatur fraudari non sinat. Significauerunt etiam de panis et ciborum quantitate.

16. His auditis nostri uehementer animis erecti per dies amplius hostes imfestare. Post paululum temporis cadauer cuiusdam submersi sub nauibus nostris inuentum est, brachio cuius carta huiusmodi alligata erat: "Rex Eburensium Lyxbonensibus corporum libertatem. Iampridem datis induciis cum rege Portugalensium, fidem refellere nequeo, ut eum scilicet uel suos bello perturbare uelim. De cetero precauete. Salutem uestram peccuniis uestris redimite, ne sit pemiciei causa que salutis esse debuerat. Valete. Huic nostro nuntio aliquid impendite boni." Sic tandem omni suppetiarum spe cassatos 137 nostri uigilantius excubabant. A castro Suchtrio cum preda magna pars exercitus nostri 138 rediit, nam loci natura a congressu castri uel obsidione [e]os prohibebat. Dum hec aput nos geruntur rex omnem exercitum suorum dimisit, exceptis paucissimis militibus et domus sue procuratoribus, uenditis uictualibus suis uel transmissis aput Sanctam Hyreneam. Solus episcopus Portugalensis semper usque ad urbis deditionem nobiscum remansit.

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Não temos dúvidas de qüe se cooperardes connosco a cidade e a pátria serão por vós libertadas dos"~árbaros. Na verdade nem são muitos nem aguerridos; atesta-o o facto de uma das suas torres e as suas máquinas de guerra terem sido queimadas por nós, pela força das armas. Se outra coisa [houverdes por bem], tome cautela a vossa prudência 140 ; efectivamente, a mesma sorte final de acontecimentos e desgraças vos espera." As restantes cartas faziam o mesmo pedido a pais, parentes e amigos ou devedores de dinheiro. Mais que isso, pediam que rogassem por eles a Alá, ou seja, a Deus, para que não permitisse que ao menos a parte mais alta dos espíritos que viviam nos seus corpos ficassem privados do lugar de eternidade em que o seu dilecto Maomé vive e está em glória. Davam também indicações sobre as reservas de pão e outros alimentos. 16. Domínio de situação por parte dos cristãos: intercepção de mensagens e chacina em Almada; dispensa do seu exército por parte do rei português. Com estas notícias, os nossos recobraram ânimo e bravura e durante dias seguidos intensificam os ataques aos inimigos. Pouco tempo depois, por baixo dos nossos navios, encontrou-se um cadáver de um homem afogado, com uma carta presa num dos braços. O seu teor era o seguinte: "O rei de Évora aos habitantes de Lisboa: liberdade para os seus habitantes 141 • Tendo há algum tempo estabelecido tréguas com o rei de PortugaP42 , não posso quebrar o juramento prestado de forma a permitir-me causar-lhe incómodo a ele ou aos seus em acto de guerra. Quanto ao mais, tornai as devidas previdências. Resgatai a vossa vida com o vosso dinheiro, não aconteça que aquilo que deveria ser para proveito seja causa de desgraça. Passai bem. A este nosso mensageiro dai-lhe uma boa recompensa" 143 • Ficavam eles assim definitivamente frustrados em toda a esperança de auxílio enquanto os nossos os passavam a vigiar com mais cuidado 144 • Parte do nosso exército regressava de Sintra com grande saque, pois a configuração do lugar impedira-os de tomarem o castelo ou de lhe porem cerco. Enquanto tudo isto acontecia entre nós, o rei dispensou o exército inteiro dos seus 145 , com excepção de um reduzidíssimo número de cavaleiros e oficiais da sua casa, e pôs à venda os seus mantimentos ou mandou-os para Santarém 146 • Só o bispo do Porto permaneceu sempre connosco até à rendição da cidade.

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Interim fame perurgente Mauros, de pauperibus prout quisque furtim poterat, nostris mancipatum se tradebat. Sicque breui actum est ut eorum acta et consilia parum [138r] admodum nostris 139 celari poterant. Factum est item in una dierum ut quidam ex nostris Tagum aput Elmadam pisca[tum] transirent. Erat enim littoris illius harena piscatoribus habilior; et uenientes prouincie illius Mauri plures occiderunt et quinque ex his Brittones captiuos inde transtulere. Indignati igitur inde nostri, consilio ab omnibus utrimque diffinito decretum est ut ducenti milites cum peditibus quingentis Elmadam depredatum mitterentur. Facta igitur hora transeundi, Colonenses et Flandrenses suos a transitu, inuidia uel timore, uel qua causa nescio, a nostrorum societate subtraxere. Normanni igitur et Angli et qui nobiscum ex nostra parte manebant, omnium societate destituti, Saherium de Arcellis [et] militem, tricesimum cum centum aut eo amplius peditibus expeditis ad prefinitum transmisere negotium. Qui uero, cesis bello amplius quingentis Mauris, cum captiuis fere ducentis et capitibus amplius octoginta, non sine magna nostrorum Ietícia et hostium merore, eadem qua exierant die uictores reuersi sunt, uno solum ex nostris interempto. Capita uero hastilibus infixa cum 140 a muris conspexissent Mauri, rogatum nostros obuiam sup[p] 1ices ut capita cesa reciperent, exeunt. Que accepta cum planctu et ululatu multo imfra muros sustulere. Audita est autem per totam nocteni uox doloris et eiulatio planctus miserabilis fere per omnes ciuitatis partes. Huius uero ausu facinoris preclari hostibus terrori maximo postmodum semper fuimus, Colonensibus et Flandrensibus et Portugalensibus honori. Libera transmeandi in Elmadam amodo uia facta est.

17. Tum uero nostri potius intendentes operi, inter turrem et portam ferream fossam subterraneam, ut murum precipitarent, fodere aggrediuntur. Qua comperta quoniam satis hostibus peruia, post urbem obsessam maxime nostrorum detrimento fuit, multis diebus in defensando frustra consumptis.

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Entretanto, porque a fome apertava entre os mouros, quem quer que de entre os pobres conseguia escapar-se sem ninguém saber entregava-se nas mãos dos nossos. Assim, a breve trecho, aconteceu que os seus actos e os seus planos por pouco tempo conseguiam escapar ao conhecimento dos nossos. Aconteceu também que certo dia alguns dos nossos passaram o Tejo para irem pescar do lado de Almada. Efectivamente, o areal daquela praia era mais favorável para os pescadores. Caíram sobre eles os mouros daquela zona, mataram bastantes e levaram com eles alguns cativos, cinco dos quais eram bretões. Ficaram indignados os nossos com isso e, discutido o assunto entre todos 147, foi decidido que duzentos cavaleiros com quinhentos peões seriam enviados a Almada para a saquearem. À hora de fazerem a travessia, os colonienses e os flamengos, por má vontade ou por receio, ou por outro motivo que não conheço, retiraram os seus do nosso grupo para não atravessarem. Por essa razão, os normandos, os ingleses e os que se mantinham connosco e estavam do nosso lado, malogrados na constituição de grupo que abrangesse a todos, entregaram a expedição prevista a Saério de Archelle com uns trinta cavaleiros e uma centena de peões, para mais. Depois de terem matado em combate mais de quinhentos mouros, trazendo cerca de duzentos cativos e mais de oitenta cabeças, o que não deixou de ser motivo de grande alegria para os nossos e de grande abatimento dos inimigos, regressaram eles vitoriosos qo mesmo dia, tendo perdido um apenas dos nossos. Quando os mouros: ao olharem das muralhas, avistam as cabeças espetadas nas lanças, saem ao encontro dos nossos a pedir que lhes entreguem as cabeças cortadas. Tendo-as recebido, em pranto e clamor prolongado, levam-nas para dentro das muralhas. Ouviu-se por toda a noite uma voz de dor e uma lamúria magoada de pranto por quase todas as partes da cidade. O facto é que por tal acto de ousadia tão preclaro ficámos a ser de extremo terror para os inimigos pelo tempo fora, enquanto que, para os colonienses, para os flamengos e para os portugueses, isso era factor de honra. Livre ficava a partir de então o caminho para atravessar até Almada.

17. Intensificação do cerco: torre móvel, escavação de mina, desmoronamento de muralha (16 de Outubro). É então que, por sua vez, os nossos se empenham mais no trabalho e se lançam a escavar um fosso subterrâneo entre a Torre e a Porta de Ferro 148, com o fim de deitarem abaixo a muralha. Porque estava demasiado acessível aos inimigos, ao ser descoberta depois de iniciado o cerco à cidade, foi extremamente danosa para os nossos, tendo-se gastado muitos dias a

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lnsuper due funde Balearice a nostris eriguntur, una supra ripam fluminis a nautis trahebatur, altera contra portam ferream a militibus et eorum conuictualibus. Hii omnes per centenos diuisi, audito signo exeuntibus primis centenis, alii centeni subintrassent, ut inter decem horarum spatia v milia lapidum iactarentur. Huiusmodi uero actio maxime fatigabat hostes. lterum Normanni et Anglici et qui cum eis erant turrim ambulatoriam LXXXIII pedum altitudinis [138v] incipiunt. Colonenses iterum et Flandrenses ut murum precipitarent fossam contra murum editioris castri effodere incipiunt, opus admirabile dictu habens aditus quinque, continuatum uero imfra XL cubitorum latitudinis a fronte, quod imfra mensem consummauere.

Interea fames et cadauerum fetor hostes, nam [ad] sepeliendum 141 locus imfra urbem deerat, miserabiliter angeba[n]t 142 • Sed et sub muris purgamenta que a nauibus proiciebantur undis allata comestum colligebant. Unde ridiculum quoddam euenire contigit, ut quidam scilicet Flandrenses inter domorum ruinas excubantes ficus comederent, et satiati partem in loco relinquerent. Quo a quattuor Mauris comperto quasi aues ad escam clanculo pedetentim aduenere. Quo comperto, Flandrenses huiusmodi reliquias sepius per loca ut eos inescarent, dispergebant; tandem uero in locis consuetis retibus extensis tres ex Mauris retibus inuolutos cepere, quod risui deinceps maximo nobis fuit.

Subfossato igitur muro impositaque ignis materia, nocte eadem sub galli cantu murus quasi cubitorum triginta solo tenus corruit. At uero Mauri qui murorum inuigilabant excubiis anxie clamare auditi sunt, ut iam finem laboribus diutumis imponerent ipsumque diem supremum et cum morte diuidendum fore, et hoc maximum fieri mortis solatium, si ipsam non timentes semetipsos pro nostris mutuassent. Nam illuc ire necessario unde redire non erat necessario; nam ubique si uita bene finisset non abbreuiata diceretur, nam quantum debuisset, non quantum potuisset

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defendê-la sem êxito. Além disso, são levantadas pelos nossos duas balistas: uma, colocada junto à margem do rio era accionada pelos marinheiros, outra situada frente à Porta de Ferro estava às ordens dos cavaleiros e dos seus acompanhantes. Estavam todos eles organizados em grupos de cem e, mal se ouvia o sinal para saírem os primeiros cem, outros cem entravam; de forma a que no espaço de dez horas tinham sido disparadas cinco mil pedras. Acção desta natureza extenuava extremamente os inimigos. É então a vez de os normandos, os ingleses e os que com eles se encontravam começarem a fazer uma torre móvel de 83 pés de altura149 • Os colonienses e os flamengos recomeçam a escavar novo fosso subterrâneo frente à muralha da parte mais alta do castelo a fim de a deitarem abaixo 150; era uma construção de merecer elogios, com cinco entradas, com um pouco menos de 40 côvados de largura na frente, e concluíram-na em menos de um mês. Entretanto, a fome e o mau cheiro dos cadáveres (com efeito, faltava sítio para sepultar dentro da cidade) angustiavam pateticamente os inimigos. Dava-se até o caso que os restos lançados dos navios junto das muralhas eram levados pelas águas e eram recolhidos para comer 151 • Aconteceu com isso algo que provoca riso, como foi o caso de uns flamengos que montavam vigia no interior das ruínas de umas casas e, depois de terem comido figos até ficarem saciados, deixaram uma porção deles naquele sítio; aperceberam-se disso quatro mouros e como aves que se precipitam para o isco, às escondidas e pé ante pé, aproximaram-se; advertindo nisso, os flamengos (que era para os atraírem que costumavam com bastante frequência espalhar restos daquela natureza por aqui e por ali), acabaram, no caso, por estender umas redes nos sítios costumados e apanharam três dos mouros que nelas se deixaram envolver. O caso foi depois motivo de grande galhofa. Minada, pois, a muralha e atafulhada com lenha para arder 152, nessa mesma noite, ao cantar do galo, um pano das muralhas de cerca de trinta côvados ruiu por completo 153 • No entanto, já antes, se tinham ouvido os mouros· que estavam de vigia às muralhas gritarem angustiados que, para porem fim de imediato a um trabalho ininterrupto, estavam dispostos a partilhar o dia supremo com a morte e que não tinham medo de a enfrentar, mas seria para eles satisfação máxima se eles se trocassem a si mesmos pelos nossos. Na realidade, era fatal ir até um ponto de onde era inevitável não voltar; em boa verdade, se em qualquer parte a vida acabasse bem, não se diria que ela era breve; de facto, duraria quanto devia, não quanto podia e não seria contada por quanto tempo

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perdurasse, nec quam diu, sed quam bene acta foret referret, bonam tantum clausulam imposuissent. Omnes igitur Mauri circumquaque ad ruinam muri defendendum 143 confluxere, repagula postium opponentes. Exeuntes igitur Colonenses et Flandrenses ut experirentur introitum repulsi sunt. Nam licet murus corruisset, loci natura introitum solo pro[h]ibebat aggere. Sed cum eos cominus optinere nequirent, impetu sagittarum pre nimio eos eminus aftligebant, ut uelut yriciP 44 pilis [h]yrsuti immobiliter defendentes ac si nillesi paterentur, uiderentur. Defensi sunt itaque ab eis et ab eorum congressu usque ad horam diei primam, redeuntibus illis ad castra. [139r] Normanni uero atque Angli, ut sociorum uici suffragarent, armati ueniunt, ut iam uulneratis et lassatis hostibus introitum presumerent. Sed a Flandrensium et Colonensium ducibus conuiciis lacessiti, pro[h]ibiti sunt, rogantes nos ut per machinas nostras quoquo modo fieri posset temptaremus aditum; nam hunc qui patebat aditum sibi non nobis parasse aiebant. Sic autem per dies aliquot ab introitu omnimodo repelluntur. Tunc denique machina nostra compacta, uimineis undique coriisque bouinis, ne igne uel saxorum impetu lederetur, imuoluitur. Indictum super hec omnibus per naues ut uineas et tuguria cancellata ex uirgis facerent.

18. Dominica itaque subsequenti impositis in defensando necessariis, archyepiscopus, ut ipso benedicente promoueretur, aduocatur. lgitur, post orationem et aspersionem aque benedicte, sacerdos quidam, sacrosanctam ligni dominici tenens in manibus particulam, sermonem huiusmodi habuit: "Eia! fratres, certamen in promptu est. Feruet opus; urget aduersarius. Nemo expauescat. Magnum enim fragilitatis humane solatium, unumquemque angelum sibi delegatum custodem habere sui; et ut huius custodie sanctissime moribus respondeatis, beati Pauli doctoris gentium sententia precedat, qua ad Romanos dicitur: 'Reddite omnibus debita, cui honorem, honorem' 143 • Ad hoc enim mihi uidetur respicere, honorem debitum scilicet

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tinha durado, mas pelo modo como tinha corrido bem, e impor-lhe-iam apenas uma cláusula boa 154. Os mouros·, pois, acorrem todos, cada de sua parte, a defender a brecha da muralha, tapando-a com uma barreira de cancelas. Foram então os colonienses e os flamengos e tentaram entrar, mas foram rechaçados. Efectivamente, embora a muralha tivesse ruído, a configuração do terreno impedia-lhes a entrada pelo simples aterro existente 1ss. No entanto, como não podiam atacá-los de perto, atormentavam-nos com o arremesso de setas incessantes e violentas 156, de tal forma que eles, para se defenderem e como que evitando não ficar feridos, ao manterem-se imobilizados, pareciam ouriços de espinhos. Assim se defenderam dos atacantes até à hora prima do dia 157, altura em que estes se retiraram para os seus acampamentos. Por sua vez, os normandos e os ingleses, que vêm armados para renderem os seus companheiros, aprestam-se para tomarem em primeira mão a entrada aos inimigos que já houvessem sido feridos e estivessem esgotados151. No entanto, ainda que impressionados com a vozearia, foram impedidos de o fazerem pelos comandantes dos flamengos e dos colonienses, os quais instavam connosco para que intentássemos a entrada, com as nossas máquinas, por onde quer que fosse possível, pois diziam que aquela abertura fora conseguida por eles e não por nós 159. Desta forma, porém, são rechaçados da entrada por todos os modos durante alguns dias. Finalmente foi levada a bom termo a nossa máquina de guerra, envolvida a toda a volta por vimes e couro de boi para evitar que fosse atingida pelo fogo ou pela violência das pedras. Foi além disso intimado a todos os dos navios que fizessem mantas de guerra e abrigos entrançados com varas.

18. Preparação do assalto final. Exortação e missa campal (19 de Outubro). No domingo seguinte, pois, estando já a postos os aprestos de defesa, chama-se o arcebispo para dar a bênção ao empreendimento. Acabada a oração e feita a aspersão da água benta, determinado sacerdote, com a relíquia do Santo Lenho do Senhor nas mãos, pronunciou o seguinte sermão: "Eia, irmãos! O desafio está a postos. A empresa está no auge. O adversário urge. Ninguém se assuste. Grande conforto é da fragilidade humana ter cada qual um anjo da guarda que lhe foi destinado individualmente; para corresponderdes à dignidade de guarda tão sacratíssima, esteja na vossa frente a palavra de S. Paulo, o doutor das gentes, na epístola aos Romanos em que se diz: "Satisfazei a todos o que lhe é devido; a quem pertence a honra, a honra" 160• Quanto a isso, eis o meu parecer: satisfazer à honra devida é satisfazer o que

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sic reddi, si quod debetur iusticiae reddatur, et nichil ex eius parte iniusticiae concedatur. Similiter et ueritati, si quae sua sunt ita reddantur, ut nichil ex eius partibus mendacio relinquatur. Sapientie quoque et innocentiae bonitatique, ut nichil ex eorum bonis stultitiae uel calliditati uel malitie permittamus. Quia quacumque occasione si ea que uera sunt suppresseritis, non reddidistis honorem debitum iusticie et ueritati, sed dehonorauistis iusticiam et contumeliam ueritati fecistis; et cum Christus sit iusticia et sanctificatio et ueritas, si iusticiam conculcastis, eritis similes illis qui Christum colaphis ceciderunt et in faciem eius conspuerunt, et qui calamo caput eius percutientes uertici eius spineam imposuere coronam. Et si ab angeli uestri custodia deuiastis, reconciliari studete Domino per penitentiam, et unde per inobedientiam lapsi estis, illuc per mandatorum Dei obedientiam redire satagite. Sed forsan dicetis ad hec, 'In quo mandata Dei spreuimus?' Audite quid de uobis Malachias propheta dixerit: [J39v] 'In eo quod admouistis ad altare panes pollutos et escas ex rapina, et quod tales uotiuas uestras regi omnium Deo obtulistis, quales si principibus uestris obtulissetis non utique suscepte forent 1460 • Et in hiis omnibus Deum potius irritastis quam placastis. Stultitia atque insipientia ultima 147 est ut homo Deum quoquo modo fallere existimet. 'Nam huius mundi sapientia aput Deum stultitia est 148 '. Sed quia dictum est, 'in maliuolam animam non introibit sapientia' 149, auferte malitiam de medio uestri, quia nichil aliud est male facere quam a disciplina deuiare. Sapientiam illam, fratres, querite que sursum est, non que super terram, sicut docet apostolus 150 • Hanc autem soli mundicordes adipisci queunt. Et ut in summe contemplatione sapientie, que utique animus non est, nam est incommutabilis, aciem mentis figatis, necesse se ipsum animus, qui commutabilis est, intueatur, et sibi ipse animus quodammodo in mentem ueniat, ut cognoscat se esse non quod Deus est, sed tamen aliquid quod possit placere post Deum. Melior est autem 151 animus cumpro Deo obliuiscitur sui, et pre caritate incommutabilis Dei se ipsum penitus in comparatione nullius contempnit.

Si autem sibi tamquam obuius placet ut ad peruerse Deum imitandum sua potestate frui uelit, tanto fit minor quanto se maiorem fieri cupit. Et152 hoc est initium omnis peccati superbia153, et 'initium superbie hominis apostatare a Deo' 154•

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se deve satisfazer à justiça e não conceder seja o que for à injustiça. Da mesma maneira, no que toca à verdade, se houver alguma coisa a satisfazer, que nada seja deixado à mentira. Também à sabedoria, à inocência e à bondade, de modo a que nada deixemos à estultícia, à dissimulação ou à maldade. De facto, se alguma vez puserdes de lado o que é verdadeiro, não satisfareis à honra devida à justiça e à verdade, mas afrontareis a justiça e fareis desonra à verdade. E, dado que Cristo é justiça, santidade e verdade, se menosprezardes a justiça, sereis semelhantes aos que ultrajaram a Cristo com bofetadas e lhe cuspiram no rosto ou lhe bateram na cabeça e lhe colocaram em cima a coroa de espinhos 161 • E se vos desviardes da guarda do vosso anjo, procurai reconciliar-vos com o Senhor pela penitência e onde caístes por desobediência esforçai-vos por voltar aí pela obediência aos mandamentos de Deus. Talvez pergunteis quanto a isto: 'Em que é que desprezámos nós os mandamentos de Deus?'. Escutai o que disse a vosso respeito o profeta Malaquias: 'Nisto: trouxestes ao altar os pães bolorentos e o alimento roubado e oferecestes essas coisas a Deus que é o rei de todos, pois se as trouxésseis a vossos príncipes certamente não seriam elas aceites' 162 • Em tudo isso mais irritastes que aplacastes a Deus. Seria estultícia e insipiência extrema que o homem pensasse que poderia enganar a Deus fosse de que modo fosse. Efectivamente 'a sabedoria deste mundo é estultícia perante Deus' 163 • No entanto, porque está escrito: 'numa alma malévola, não entrará a sabedoria' 164, arredai a malícia do meio de vós, pois proceder mal não é outra coisa que desviar-se da boa doutrina. 'Procurai, irmãos, a sabedoria que é do alto e não a que anda à superfície da terra', como ensina o Apóstolo 165 • Essa sabedoria só os puros de coração conseguem obtê-la. E para fixardes a agudez do espírito na contemplação da suprema sabedoria, que, sendo imutável, seguramente não corresponde ao nosso espírito, importa que o espírito, que é mutável, olhe para si mesmo e de algum modo caia em si para reconhecer que não é o que Deus é, mas ao menos é algo que depois de Deus pode proporcionar satisfação. Melhor é, todavia, a alma quando se esquece de si mesma em favor de Deus e por causa do amor de Deus imutável se menospreza totalmente a si própria como não sendo nada em comparação com Ele. Se, no entanto, ela, a si mesma se toma como objecto de comprazimento de tal modo que pretende usufruir do que está em seu poder em deturpada imitação de Deus, então diminui-se tanto mais quanto maior se deseja tomar. E não só 'o início de todo o pecado é o orgulho' 166, mas também 'o início do orgulho do homem é apostatar de Deus' 167 •

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Superbiae autem diaboli accessit maliuolentissima inuidia, ut hanc homini persuaderet per quam se dampnatum sentiebat. Unde factum est ut pena hominem susciperet emendatoria potius quam interemptoria, ut cui se diabolus ad imitationem superbie prebuit, ei se Dominus ad humilitatis imitationem preberet. Assumpsit itaque Filius Dei hominem et in illo humana perpessus est, ut sicut in carne et anima condempnatio fuerat, ita in carne et anima salus eterna fieret. Christus ergo pro Adam, qui factus est sub peccato, qui erat sine peccato introducitur, ut huius passione uoluntaria qui inuitus fuerat passus curaretur.

Sed et inde isti omnium impurissimi nobis calumpniantur Mauri, cur Dei sapientia hominem aliter liberare non poterat, nisi susciperet hominem et nasceretur ex femina et omnia illa a peccatoribus pateretur. Poterat quidem omnino. Si aliter faceret, similiter eorum stulticie displiceret. Si enim non appareret oculis peccatorum lumen eternum quod per oculos interiores uidetur, mentibus inquinatis uideri non posset. Nunc autem quia uisibiliter nos commonere dignatur, ut inuisibilla prepararet, [140r] displicet auaris quia non aureum corpus habuit. Displicet impudicis quod ex femina natus est1" . Displicet superbis quod contumelias patienter tulit. Timidis quia mortuus est; et ut uitia sua uideantur defendere, dicunt non in homine sed in Dei Filio sibi hoc displicere. Filius uero Dei, ut catholica credit et ueneratur ecclesia, hominem assumpsit, ut in eo humana pateretur. Hec est hominum medicina tanta que quanta sit cogitari non potest. O medicinam omnibus consulentem, tumentia comprimentem, tabescentia reficientem, superflua resecantem, necessaria custodientem, perdita reparantem, deprauata corrigentem! Que ergo superbia sanabitur, si humilitate Filii Dei non sanatur? Que auaritia, si Filii Dei paupertate non sanatur? Que iracundia, si Filii Dei patientia non sanatur? Que impietas, que caritate Filii Dei non sanatur? Postremo que timiditas sanari potest, si resurrectione eius non sanetur?

Et uos, fratres karissimi, Christum sequuti, exules spontanei, qui pauperiem uoluntariam suscepistis, audite et intelligite, quia inchoantibus promittitur sed perseuerantibus premium donatur. Sed et hic perseuerare nequit, qui adhuc a bone actionis initio neggligens uel ignorans oberrat. Ignorans, si penitendo resipiscat uel recognoscat, cum lacrimis et gemitu oret cum propheta dicens 'delicta iuuentutis meae et ignorantias meas ne memineris' 156, postea ut

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Ao orgulho, porém, acresce a inveja malevolentíssima do demónio para o persuadir de outra espécie de orgulho que o leva a considerar-se condenado. Por isso se verificou que ao homem foi imposta uma pena mais de emenda que de aniquilação, de tal modo que aquele a quem o demónio se apresentou com propostas de orgulho a ele o Senhor se apresentou com propostas de humildade. Foi assim que o Filho de Deus assumiu o homem e nele padeceu tudo o que era próprio do homem, e assim, como a condenação se dera na carne e na alma, assim a salvação eterna se dá também na carne e na alma. Por isso Cristo se colocou no lugar de Adão: este tinha ficado sob o pecado; entra o que era sem pecado para, pela sua paixão aceite voluntariamente, ser curado o que não aceitara sofrer voluntariamente 161 • A esse respeito nos invectivam estes mouros, que são os mais ignominiosos do mundo, perguntando porque é que a sabedoria de Deus não podia salvar o homem de outra maneira senão assumindo a natureza humana e nascendo de uma mulher e padecendo tudo o que sofreu da parte dos pecadores. Podia, sim, completamente. Se procedesse de outra maneira, desagradaria do mesmo modo à estultícia deles. Se efectivamente não se manifestasse aos olhares dos pecadores, a luz eterna, que só se vê através dos olhos interiores, não poderia ser vista por espíritos de iniquidade. Agora, porém, uma vez que se digna deixar-se perceber de modo visível, a fim de preparar as coisas invisíveis, repugna a avarentos porque não tem corpo de ouro, repugna a impudicos porque não nasceu de uma mulher, repugna a orgulhosos porque sofreu pacientemente as ofensas; aos tímidos, porque morreu. E, parecendo defender os seus próprios vícios, dizem que não é num homem que tal lhes repugna, mas no Filho de Deus. Ora, o Filho de Deus, tal como a Igreja católica acredita e venera, assumiu a natureza humana para nela sofrer o que era próprio do homem. É este remédio dos homens tão grande que nem se pode pensar quão grande seja. Ó remédio que a todos dá conforto, que elimina o que é supérfluo, que guarda o indispensável, repara o perdido, corrige o depravado! Que orgulho há aí que seja curado se não o é pela humildade do Filho de Deus? Que avareza há aí que não seja a pobreza do Filho de Deus a curá-la? Que ira que não seja a paciência do Filho de Deus a sará-la? Que falta de amor que não seja a caridade do Filho de Deus a repará-la? Enfim, que timidez poderá ser curada se não for curada pela Sua ressurreição? E vós, irmãos caríssimos, que seguistes a Cristo, que espontaneamente saístes da vossa terra, que abraçastes a pobreza voluntária, ouvi e entendei que aos principiantes se promete, mas aos perseverantes se dá o prémio. Ora, não consegue perseverar quem já é negligente no início de uma boa acção ou por ignorância anda por maus caminhos. Por ignorância: quem se arrepender e r~considerar para orar com lágrimas com o Profeta e dizer 'dos pecados da

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adicere mereatur cum apostolo, 'misericordiam consequutus sum quia ignorans feci' 157 . Neggligentes cum omni diligentia 'dignos fructus penitentiae' 151 agant, ut qui se illicita aliquando perpetrasse meminerit, illicitis abstinere consuescat. Si enim uultis, fratres, peccata uestra dimittere Deum, exorate ut eius gratia uos preueniat ut desiderium uestrum in bonis suis consummare dignetur. Summo ergo opere in initio conuersionis uestre cauendum est, ne uel ea quae reliquistis adhuc in mentis affectu uestre cohereant, quia nimirum in futuro punietur in opere quod hic male conscia delitescet in mente. 'Nolite, fratres, nolite sperare in iniquitate, et rapinas nolite concupiscere159'; sed 'sperate in Domino, et dabit uobis petitiones cordis uestri'. Reconciliamini iterum Deo, et reinduite Christum, ut sitis filii eius immaculati. Mementote [140v] mirabilium Domini que operatus est in uobis, cum iam nouo penitentie abluti baptismate de terra uestra et de cognatione egre-deremini, quomodo per aquam nimiam et tempestatum procellas uos illesos transuexerit, hucque insuper aduecti, quo impetu Spiritus ducentis suburbium hoc in quo manemus inuasimus, quomodo non sine euidenti miraculo captum est fere absque nostrorum sanguine.

Exibete ergo uos iterum ad hoc negotium, quales huc aduenistis, et secure promitto uobis hostium uestrorum potentias frangere. Non enim ego sed Dominus, qui digne petentibus semper annuit et fauet, confitentibusque numquam ueniam negare consueuit. Non resistent aduersum uos, quia nimirum quos fidei ignorantie error dehonestat, hos proculdubio ex difficultate actionis cruciatus affiigat. Nam ignorantiam cecitas sequitur, difficultatem uero mentis angustia cum molestia corporis comitari solet. Nolite, fratres, nolite timere; nolite expauescere; contristari fugite; stupefieri uilipendite. Si uos Deus noster ab huius urbis introitu tam longi laboris dispendio excluserit, iccirco profecto in uobis hoc operatus est, ut assiduitas laboris continui patientiam in uobis solidaret, eademque solidata perseuerantie probatiores redderet. Expergiscimini aliquando, fratres, et capescite arma. Non enim uobis cum Gigantibus pugnandum uel cum Laphitis; fures enim et latrones inermes et timidi sunt, quos etiam tot ineptiis stipatos inordinata ipsorum et confusa multitudo prepediet. Ecce, fratres, ecce lignum crucis dominice. Flectentes genua proni in terram

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minha juventude e da minha ignorância não vos lembreis' 169, depois merecerá acrescentar com o Apóstolo 'obtive misericórdia porque o que fiz havia sido por ignorância' 170• Os negligentes, com toda a diligência, façam 'dignos frutos de penitência' 171 , de modo que se alguém em algum tempo se recordar de ter cometido alguma falta, se habitue a não voltar a pratir.á-la. Se de facto quereis, irmãos, que Deus vos perdoe os pecados, rogai-lhe que a sua graça se antecipe a vós para que se digne cumular o vosso desejo em coisas de bem. Deveis acautelar-vos, pois, com todo o empenho no início da vossa conversão, por não manter a vossa afeição agarrada a qualquer coisa que tenhais abandonado, pois no futuro com razão se há-de punir por obra quem agora cometer alguma falta em má consciência. Não vos fieis, irmãos, 'não vos fieis na iniquidade e não ansieis por fazer roubos' 172, mas 'esperai no Senhor e dar-vos-á o que o vosso coração pede' 173 • Reconciliai-vos de novo com Deus e revesti-vos de Cristo, para serdes seus filhos sem mancha! Recordai-vos das maravilhas do Senhor que Ele fez em vós quando purificados pelo novo baptismo de penitência saístes da vossa terra e da vossa família; como vos transportou ilesos através de tantos mares e tormentas temerosas; além disso, aqui chegados, com que ardor do Espírito que nos conduz entrámos por este arrabalde em que nos mantemos, como o tomámos quase sem derramamento de sangue por parte dos nossos -coisa que não fizemos sem evidente milagre. Demonstrai, pois, de novo, para este empreendimento, as qualidades com que aqui chegastes e prometo-vos que de certeza destroçareis o poder dos vossos inimigos. Não sou, de facto, eu, mas o Senhor quem o promete, pois Ele, que sempre atende e ajuda quem dignamente lhe pede, não costuma nunca negar o seu perdão aos que confessam as suas faltas. Eles não resistirão frente a vós, pois é bem verdade que é àqueles a quem o erro da ignorância da fé toma disformes, que amesquinha o tormento de não poderem actuar. De facto a cegueira é consequência da ignorância, mas a angústia do espírito costuma vir acompanhada de enfermidade corporal. Não tenhais medo, não, não vos assusteis; procurai não cair em desânimo, tornai como desonra o ficardes de braços cruzados. Se o nosso Deus vos excluir da entrada desta cidade não obstante o desgaste de tantas penas, uma coisa por certo realizou em vós, é que a permanência em trabalho contínuo consolidou em vós a paciência e esta, uma vez consolidada, tomar-vos-á mais aptos para a perseverança. Acordai de vez, meus irmãos, e pegai em armas. Não tendes que lutar com os gigantes ou com os )apitas, pois se trata de ladrões e salteadores sem força e tímidos e a eles uma multidão em desordem e perturbada embaraça-os no amontoado de tantas inépcias. Eis, meus irmãos, eis o Lenho da Cruz do Senhor! De joelhos em terra,

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decubate; rea tundite pectora, Domini prestolantes auxilium. Veniet enim, ueniet. Videbitis auxilium Domini super uos. Adorate Dominum Christum, qui in hoc salutifere crucis ligno manus expandit et pedes in uestram salutem et gloriam. In hoc uexillo, solum non hesitetis, uincetis. Quia si quem hoc insignitum mori contigerit, sibi uita[m] tolli non credimus, sed in melius mutari non ambigimus. Hic ergo uiuere gloria est, et mori lucrum' 160 •

Ego uero ipse, fratres, in tribulationibus et laboribus uestris particeps premiorumque uestrorum socius 161 sicut uobis spondeo [14Jr] mihi fieri opto. Deo opitulante in hac machina, huius ligni sacrosancti custos et comes inseparabilis, uita comite uobiscum manebo. Certus quia 'nec fames neque gladius neque tribulatio neque angustia nos a Christo separabit' 162 • Et profecto securi de uictoria hostes inuadite, quibus uictorie premia sunt gloria sempiterna. Paulus uero Iudeorum aduocatus, et magister noster qui ex gentibus ad fidem uenimus, pro uobis etiam orare audet ultra quam fas est pro fratribus suis secundum carnem. (Vestris precibus iuuantibus, opto ut simile aliquid pro uobis audeam dicere.) Nam ultra mandatum Dei 163 nititur qui proximos non sicut se sed plus quam se diligit. Denique etiam se abiecto nos pro se induci orat ad Christum. O singularem mentis magnificentiam! O celestem spiritus calorem, extra pietatem, ut ita dicam, pro pietate, fieri cupit, dum anathema optat a Christo tantum ut isti salui fiant 164 •

Deus pacis et dilectionis, qui facit utraque unum et nos inuicem tradidit nobis; qui eleuat de terra inopem et de stercore erigit pauperem 165 ; qui 'elegit Dauid seruum suum et sustulit eum de gregibus ouium 166 ', cum esset iunior in filiis lesse; qui dat uerbum euangelizantibus uirtute multa, ad perfectionem predicationis sue et exhibitionem operis sui, tenens manus nostras in uoluntate sua nos dirigat, et cum gloria nos assumat; ipse regentes regat, ut possimus [pascere] gregem 167 eius cum disciplina, et non in uasis pastoris imperitP 61 • Ipse uirtutem et fortitudinem populo suo prestet; ipseque sibi mundum et candidum gregem atque in omnibus immaculatum ac supemis ouilibus dignum exhibeat, ubi est habitatio letantium, in splendoribus sanctorum, ut in templo eius omnes dicamus gloriam, grex et pastores, Iesu Christo Domino nostro, cui est gloria in secula seculorum. Amen."

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mantende-vos inclinados, batei no peito como réus e invocai o auxílio do Senhor. Ele virá, de facto, sim, virá. Vereis o auxílio do Senhor a vir sobre nós. Adorai a Cristo Senhor que neste salvífico Lenho da Cruz estende as mãos e os pés para vossa salvação e glória. Com esta bandeira, não hesiteis um só momento, vencereis. Pois mesmo que aconteça que alguém venha a morrer assinalado com ela, segundo acreditamos, não lhe será tirada a vida, mas não duvidamos de que será mudada para melhor 174 • Viver aqui, pois, é motivo de glória e morrer é um ganho 175 • Eu próprio, meus irmãos, partilhando das vossas tribulações e penas e companheiro das vossas recompensas 176, o que vos prometi é o que desejo para mim. Com a ajuda de Deus, ficarei convosco nesta máquina de guerra, a guardar este sacrossanto Lenho e em vossa companhia permanecerei enquanto a vida me acompanhar. Estou certo de que nem a fama nem a espada nem a tribulação nem a angústia nos separará de Cristo 177 • Decididamente, seguros da vitória, atacai os inimigos, pois para vós o prémio da vitória é a glória sempiterna. Paulo que foi chamado de entre os judeus e é mestre de todos nós que viemos da gentilidade para a fé, aceita rogar por vós muito para além do que é permitido fazê-lo pelos seus irmãos segundo a carne. Com as vossas orações, faço votos por que algo de semelhante ouse dizer em vosso favor. Efectivamente vai além do mandamento de Deus aquele que ama o seu próximo não como a si mesmo mas mais que a si mesmo, e até, em última instância, na sua própria abjecção, reza por que nós sejamos conduzidos a Cristo em vez dele. Oh! que singular magnanimidade de espírito! Oh! que celeste ardor do espírito, que excede a piedade e, por assim dizer, por piedade, o que ele anseia por que se tome realidade, já que aceita ser dito anátema por Cristo, contanto que os outros se salvem 178 • O Deus da paz e do amor, que faz de dois um só e nos entregou reciprocamente uns aos outros, Ele que levanta da terra o necessitado e do esterco ergue o pobre 179, Ele que escolheu a David, seu servo, e o foi buscar aos rebanhos de ovelhas 110, embora fosse o mais novo dos filhos de Jessé, Ele que aos evangelizadores dá a palavra de grande eficácia para aperfeiçoamento da sua pregação e manifestação da sua obra, mantendo as nossas mãos na sua vontade, nos dirija e nos receba com glória; Ele mesmo governe quem nos governa para podermos [ensinar]!•• o seu rebanho com disciplina e não com os instrumentos de um pastor desorientado 182 • Seja Ele a dar valor e fortaleza ao seu povo, seja Ele a apresentar a si mesmo um rebanho purificado e resplandecente e em tudo imaculado e digno dos apriscos celestes, onde há uma morada para os que se alegram nos esplendores dos santos, de tal modo que no seu templo todos nós, grei e pastores, cantemos glória a Jesus Cristo, Nosso Senhor, a quem é devida glória pelos séculos dos séculos. Amen".

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19. Ad hanc uocem ceciderunt omnes proni cum gemitu et lacrimis in facies suas. lterumque ad iussum sacerdotis omnes erecti, uenerabili crucis dominice signo in nomine Patris et Filii et Spiritus Sancti consignati sunt. Sicque demum cum magna uoce Dei postulantes auxilium, quasi cubitis xv machinam contra murum appropinquauere.

lbi quidam nostrorum a muris percussus iactu funde [141v] interiit. Iterum in crastino contra turrim que est in angulo ciuitatis contra fluuium machina deducitur. Ad quam autem hostes omnia sue defensionis presidia comportauerant. Quo comperto, eorum premeditata facile cassantur. Nam nostri ma-chinam contra fluuium ad dextram declinantes, turrim quasi cubitis uiginti preterierunt iuxta murum fere ad portam ferream que turrim 169 respicit. Ibique baliste et archiferi nostri a turri predicta hostes fugauerunt, non ualentes impetum sagittarum ferre; nam a parte posteriori que urbem respicit turris patebat.

Hostibus autem a turri et a muro machine uicino nostre turbatis, nocte superueniente paululum quieuimus, redeuntibus omnibus ad castra, relictis in eius custodia ex nostris centum militibus et ex Gallecianis c, cum archiferis et balistis et iuuenibus aliquot expeditis. Prima igitur noctis uigilia maris alluuio machinam circumfluens exeundi uel commeandi nostris prohibeb[at] uiam. Comperto autem a Mauris quod nos maris refluuium seclusisset, in duas cohortes per portam predictam machinam pede tenus inuasere. Ceteri autem super muros, incredibilis multitudinis, admota lignorum materia cum pice et lino et oleo et omnimodis ignium fomentis, machine nostre iniciunt. Alii uero super nos saxorum intolerabilem proiciebant grandinem. Habebatur autem sub alis machine, inter ipsam et murum, tugurium uimineum quod uulgo cattus Waliscus dicitur, in quo septem de prouincia Gipeswicensi commanebant iuuenes, qui illud semper post machinam conduxerant. Sub hoc autem cum hiis qui imfra erant quidam nostrorum frustatim ignium materias quantum poterant concidebant. Ceteri uero, effossis sub

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19. Preparativos finais: avanço da torre móvel, desgaste dos inimigos e pedido de tréguas (21 de Outubro). A esta voz, todos caíram de bruços com gemidos e lágrimas nos seus rostos. De novo, à ordem do sacerdote, todos se levantaram e foram abençoados pela veneranda relíquia da Cruz do Senhor, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Assim, rogando em altas vozes o auxílio divino, aproximaram finalmente a máquina da frente da muralha, a uma distância de uns quinze côvados. Aí morreu um dos nossos atingido por uma pedrada de funda atirada das muralhas. No dia seguinte 183 , de novo, a máquina é deslocada para junto da torre que fica situada num recanto da cidade frente ao rio'". Os inimigos, porém, levaram igualmente para ali todos os seus aprestos de defesa. Logo que isso descobrimos, com facilidade fizemos fracassar os seus planos, pois os nossos desviaram a máquina para a direita frente ao rio e ultrapassaram a torre uns vinte côvados junto à muralha perto da Porta Férrea que está voltada para a torre'ss. Aí os nossos besteiras e frecheiros repeliram da dita torre os inimigos que não conseguiam aguentar o ritmo das setas, pois a torre ficava a descoberto pela parte posterior que está voltada para a cidade. Afugentados os inimigos da torre e da muralha, vizinha da nossa máquina, com a chegada da noite descansámos um pouco, tendo todos regressado ao acampamento, mas deixando de guarda cem cavaleiros dos nossos e cem dos franceses 18\ com frecheiros e besteiras e alguns jovens ligeiramente armados. Ora, na primeira vigília da noite, a maré cheia envolveu a máquina e impedia que os nossos tivessem caminho para sair ou para entrar. Tendo os mouros descoberto que a maré nos isolava, a pé, atacaram a máquina com duas companhias de homens através da dita porta, enquanto outros, em multidão inacreditável, por cima das muralhas, tendo acarretado materiais de lenha com pez, estopa e azeite com substâncias incendiárias de toda a espécie, começam a atirá-los à nossa máquina. Outros ainda lançavam sobre nós uma chuva insuportável de pedras. Havia, porém, debaixo das asas da máquina, entre ela e a muralha, um abrigo de vimes que em língua vulgar toma o nome de gato valisco 181, em que se mantinham sete mancebos da província de Ipswich que tinham trazido sempre esse abrigo atrás da máquina. Ali debaixo, juntamente com os que se encontravam em andares inferiores, alguns dos nossos procuravam, tanto quanto lhes era possível, desfazer os materiais inflamáveis, mas em vão.

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machina scrobibus in eisque manentes, globos ignium distra[h ]ebant. Ali i in superioribus tabulatis per foramina coria desuper tensa irrigabant; in quibus caudarum scopa 170 forinsecus in ordine dependentes totam irrigabant machinam. Ceteri uero instructi in aciem a porta progressis uiriliter restiterunt. Defensa est itaque ea nocte labore admirabili, [142r] paucis ex nostris, Deo protegente, admodum lesis, Maurorum uero parte maxima cominus eminusque cesa.

Mane autem facto, machina nostra maris alluuione iterum secluditur. Conuenientes iterum Mauri, alii per portam in nostros proruunt, quo congressu rector de galeata regis percussus interiit, alii a muris saxorum turbine nostros concutiunt, admotis super hec fundis Balearicis. Supermurales uero scaphas incentiuis ignium repletas machine nostre Vm sol um pedibus a muro distanti iniciunt, ut dictu difficillimum sit quantis laboribus sudoribusque, uerberibus ac plagis innumeris maximam diei partem protraxerint omni sociorum auxilio destituti.

lbi uero artifex noster, saxo crure lesus, omni nos sui spe solatii destituit. Galleciani quoque cum se mari circumdatos conspexissent, uel uulnerati uel uulneratis similes, quidam armis proiectis, quidam armati, turpiter legentes uadum consuluere fuge, exceptis solum sex ex eorum numero. Tum demum refluente mari, hostes lassati conflictum dimittunt, omni bona spe in perpetuum destituti. Milites uero nostri et qui in machine custodia[m] fuerant electi exeuntes, alios uice eorum suffraganeos prius introduxerunt, cum illam duobus diebus et nocte una numquam armis depositis, agonia fere intolerabili defendissent.

Hora autem quasil 71 decima, mari retrahente, nostri in harena conueniunt ut machinam muro pedibus solum quattuor adicerent, ut sic facilius pontem elicerent. Ad hanc igitur muri defensionem omnes circumquaque Mauri conueniunt. Sed cum pontem quasi duorum cubitorum emissum uiderent, et iam pene fieri nobis introeuntibus, ut nec ui ta reliqui uictis foret, uoce magna conclamantes, nobis uidentibus arma deponunt, manus submittunt, inducias uel usque mane supliciter postulantes.

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Outros, por seu lado, tendo aberto covas debaixo da máquina e aí permanecendo, dispersavam as bolas de fogo. Uns, nos andares cimeiros, através de postigos regavam de cima os couros que se retesavam; aí havia uns renques de vassouras de cauda, pendentes da parte de fora, que molhavam toda a máquina. Os restantes, porém, dispostos em linha de batalha, resistiam com ardor aos que tinham avançado desde a porta. Foi assim a máquina defendida nessa noite em esforço digno de admiração, por um punhado dos nossos, sob a ajuda de Deus, sem grandes feridas, enquanto a maior parte dos mouros, pelo contrário, mais de perto ou mais de longe, tinham caído mortos. Ao romper da manhã 188, a nossa máquina, com a subida da maré fica novamente isolada. Novamente surgem os mouros ao nosso encontro, uns, vindos pela porta, abatem-se sobre os nossos (foi neste embate que o comandante das galés dq rei foi ferido e veio a morrer), outros, a partir das muralhas, atiram sobre os nossos uma chuvada de pedras, pois que tinham para aí acarretado as balistas. Além disso sobre as nossas máquinas, que apenas ficam a uma distância de oito pés das muralhas, lançam baldes repletos de materiais inflamados em tal quantidade que é mais que dificil dizer quanto trabalho, suor, golpes e feridas sem número aguentaram na maior parte do dia, sem terem qualquer apoio dos companheiros. Até o nosso especialista dos engenhos 189 ficou ferido numa perna por causa de uma pedra e deixou-nos privados de qualquer esperança no seu apoio. Também os franceses, ao verem-se rodeados de água, e estando ou feridos ou fazendo-se feridos, uns atirando com as armas, outros ficando com elas, optam vergonhosamente por fugir e passar um vau, não ficando mais que seis de todos eles. Finalmente, na baixa-mar, os inimigos, já cansados, abandonam o combate, desiludidos de qualquer expectativa de futuro. Por sua vez, os nossos cavaleiros e aqueles que tinham sido escolhidos para guardarem a máquina, uma vez entrados outros dos seus apoiantes a rendê-Ios190, deixam aquele lugar, depois de terem estado dois dias e uma noite, sem tirarem as armas, a defender a máquina em angústia quase insuportável. Pela hora décima, porém, na baixa-mar, os nossos juntam-se na praia para aproximarem a máquina até quatro pés das muralhas e assim lançarem uma ponte com maior facilidade. A defender esta parte da muralha chegam os mouros todos vindos de toda a parte. Ao verem, porém, a ponte já içada uns dois côvados e nós já prestes a entrar, como se nem a vida viesse a ser deixada aos vencidos, gritam em grandes brados e, à nossa vista, depõem as armas, baixam os braços e suplicam tréguas, ao menos até ao dia seguinte.

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20. Aduocato itaque Frinando Captiuo ex parte regis, Herueo de Glanuilla ex nostris partibus, date sunt inducie, acceptis inde obsidibus quinque, ne machinas nostras [142v] noctu impedirent uel sibi aliquid interim nostri detrimento repararent; noctuque insuper deliberandum, ut in erastino ciuitatem nobis traderent, si sic aput eos deliberatum foret, sin aliter, armis experiri cetera. Frinandus uero Captiuus et Herueus de Glanuilla cum iam fere esset noctis uigilia prima, acceptis obsidibus, eos regi tradunt, quod fere maximum discordiae seminarium fuerat, quod non nostris eos tradidissent; nam existimabant proditionem per hos a rege, nam moris sui erat uelle fieri, Frinandum Captiuum et Herueum de Glanuilla in hoc succensentes. Summo igitur mane, conuocatis Colonensibus et Flandrensibus, constabularii nostri una cum senioribus castra regis adeunt, auditum quid ueteratores illi sibi deliberassent. Interrogati, urbem regi tradendam, aurum et argentum ceterasque omnes ciuium facultates in manibus nostris dandum fauent. Ad hec responsuri nostri exeunt. Fremit igitur et tabescit hostis antiquus, iure pristino nunc demum spoliandus. Vasa iniquitatis sue in omnes et per omnes excitat. Cuius adeo malitiae uirus inualuit ut uix aut nullatenus alter alteri assensum per diem prebuerit, inuicem discindentes. Nam cum iam fere ad introitum portarum uentum, nisi sue propitiationis dexteram Deus noster opposuisset, concordia lesa foret. Ea namque bonitatis sue clementia ab initio societatis nostre semper erga nos usus est, ut cum multis et intractabilibus discidiorum causis etiam duces nostri moderaminis sui gubemacula desperati relinquerent, tum denique Spiritus Sancti inspirans fauonius, quasi quodam solis meridiani uibraculo caliginose nubis intemperiem reuerberans, concordiae recurrentis gratiorem nexum conficeret. Cum igitur in consilio nostre responsionis essemus, naute nostri cum sibi similibus fatuis, conspiratione facta per quendam sacerdotem Bristowensem

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20. Ocupação da cidade: negociações com os mouros e desavenças entre grupos de cruzados (21 de Outubro). Intervindo Fernão Cativo, por parte do rei, e Hervey de Glanville, pela nossa 191 , foram concedidas tréguas e recebidos logo de seguida cinco reféns, tendo sido acordado em como durante a noite não atacariam as nossas máquinas ou como eles, entretanto, não procederiam a qualquer reparação que revertesse em nosso prejuízo; além disso, durante a noite, deviam deliberar como é que nos entregariam a cidade no dia seguinte, se é que era assim que queriam decidir entre eles, pois, caso contrário, o resto ficaria sujeito à sorte das armas. Fernão Cativo e Hervey de Glanville, por sua parte, sendo já quase a primeira vigília da noite, recebem reféns. e entregam-nos ao rei. Foi isso motivo de grande discórdia, pelo facto de não os terem entregues aos nossos, pois consideravam que através deles se prepararia uma traição por parte do rei, admitindo que era hábito seu assim proceder 192 , e por isso mostravam-se indignados contra Fernão Cativo e Hervey de Glanville. De manhãzinha, pois, convocando os colonienses e os flamengos, os nossos condestáveis juntamente com os anciãos, dirigem-se ao acampamento do rei, para ouvirem o que aqueles embusteiros teriam deliberado. Interrogados, são favoráveis a entregarem a cidade ao rei e a deixarem o ouro, a prata e outros haveres dos habitantes da cidade nas nossas mãos. Para darem a isto uma resposta, os nossos saem fora. Freme então, até definhar, o antigo inimigo, ao sentir que finalmente vai ficar despojado do velho direito. Contra todos e através de todos, excita os vasos da iniquidade 193 • A tal ponto se encarniça o vírus da maldade que dificilmente ou irremediavelmente alguém chega algum dia a ':oncordar com o outro, ficando em ruptura mútua. De facto, ao chegarem já perto da entrada das portas, se não fosse o nosso Deus contrapor a sua dextra de propiciação, a boa harmonia ter-se-ia rompido. Efectivamente usou sempre Ele para connosco de clemência da sua bondade desde o início da nossa associação, a tal ponto que, quando já os nossos chefes abandonavam o leme da governação por múltiplas e desesperadas causas de divisão, era então que a brisa do Espírito Santo, trazendo a sua inspiração e como que fazendo reverberar as nuvens caliginosas do temporal com a vibração de um raio de sol do meio-dia, tornava mais agradáveis os laços da concórdia que regressava. Foi o caso que, quando estávamos em assembleia para darmos a nossa resposta, os nossos marinheiros, com outros tresloucados a eles semelhantes, se juntam na praia em conspiração montada por um certo sacerdote de Bristol,

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sacrilegum, in harena conuenere. (Erat autem hic moribus pessimis, ut postmodum eo latrociniis deprehenso cognouimus.) [143r] Qui ab humili sermone paululum incitari ut ad uociferationem usque pertransirent incepere; indignum ferentes tot et tantos domi militieque preclaros ditioni senatuique paucorum subiacere, quibus potius super hiis negotiis consulto opus non fore sed impetu. Quippe qui preueniente Spiritu huc aduecti quicquid agerent eius impetu optime fieri. Nam penes primates suos neque consilium neque ceptum usquam nisi frustra fuit. Nam illis absentibus suburbium captum est, hiisdem nescientibus Elmada subacta; si hoc ut deceret ueherentur impetu, iampridem urbem recepisse uel aliquid lucri maius egisse aiebant.

Sed quid de huiusmodi iniuriosis dicemus, nisi uim quandam malis moribus insitam naturaliter, ut paucorum scelus multitudinis innocentiam deuenustet, cum e diuerso bonorum raritas flagitia multorum excusare nequeat, si uelit? Sed quis non exacerbescat cum uirtutum sinceritatem uitiorum criminatione sordidari uideat, cum 172 quid uelint, quidue nolint, nec in bonis quid placeat, nec in malis quid displiceat, discementes nesciant? Si humilem uiderint, abiectum uocant. Si erectum, superbire censen!. Si minus instructum, propter imperitiam irridendum credunt. Si aliquatenus doctum, propter scientiam dicunt inflatum. Si seuerum, horrent tamquam crudelem. Si indulgentem, facilitate culpant. Si simplicem, ut brutum despiciunt. Si acrem, uitant ut callidum. Si diligentem, supersticiosum decemunt. Si remissum, neggligentem iudicant. Si sollertem, cupidum. Si quietum, ignauum pronuntiant. Si abstemium, auarum predicant. Si prandendo pascatur edacem dampnant. Si pascendo ieiunantem, uanum loquuntur; liberum, pro improbo condempnant. Verecundum, pro rustico. Rigidos ab austeritate caros non habent. Blandi aput eos communione uilescunt. Ac si utrolibet genere uiuatur, semper tamen bonarum partium mores, pungentibus maledicorum linguis, bicipitibus hamis inuncabuntur173 •

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homem sacrílego; efectivamente, tratava-se de alguém de costumes mais que reprováveis, como algum tempo depois tivemos conhecimento por ter sido apanhado a roubar. Começaram eles paulatinamente a incitar à revolta, desde simples falas até chegarem a vociferar, para declararem que era indigno que tantos e tão grandes homens, ilustres na sua terra e nos feitos militares, se sujeitassem a estar a mando de uns poucos reunidos em assembleia, aos quais, nas circunstâncias presentes, não seria propriamente necessário conselho, mas valentia. Na realidade, os que tinham até ali chegado, trazidos pelo Espírito Santo, fosse o que fosse que tivessem feito, tinham agido de modo excelente, sob a sua inspiração. Ora, entre os seus magnates não se registava assembleia ou empreendimento que alguma vez não tivessem sido em vão. Efectivamente, sem eles, tinha sido tomado o arrabalde, sem eles saberem tinha sido submetida Almada; se, como convinha, se tivessem deixado levar pelo seu entusiasmo, já há muito, diziam, teriam tomado conta da cidade ou teriam tido alguma vantagem maior. Mas que havemos de dizer de homens que injuriam desta maneira, senão que há uma certa capacidade naturalmente implantada nos maus comportamentos de tal modo que o crime de uns poucos deslustra a inocência de muitos e que, em contrapartida, a escassez dos bons, ainda que queira, não consegue desculpar os crimes de muitos? Todavia, quem não se irritará ao ver que a virtude sincera fica manchada pela alegação de vícios, quando não conseguem discernir o que querem ou deixam de querer nem o que lhes agrada nas coisas boas ou o que lhes desagrada nas coisas más? Se vêem uma pessoa humilde, chamam-lhe abjecto; se anda de cabeça levantada, pensam que é por soberba; se é menos instruído, consideram que deve ser posto a ridículo devido à sua falta de conhecimentos; se tem alguma ciência, dizem-no inchado por causa do saber; se é severo, têm-lhe horror porque é cruel; se é indulgente, culpam-no por facilitar; se é simples, desprezam-no como se fosse estúpido; se é áspero, evitam-no como a um malicioso; se é diligente, consideram-no escrupuloso; se é vagaroso, julgam-no negligente; se é perspicaz, têm-no por ambicioso; se é sossegado, chamam-lhe preguiçoso; se é parco, clamam que é avaro; se, quando come, fica saciado, condenam-no por comilão; se faz jejum na comida, falam dele como dissimulado; ao que anda em liberdade condenam-no como criminoso; ao modesto, como homem rude; aos que são pessoas de rigor por causa da austeridade não os estimam; os mansos por afabilidade para eles são pessoas vis. Se alguém vive de outra maneira, ainda que os seus comportamentos sejam sempre de boa qualidade, ao serem espicaçados pelas línguas dos maldizentes, ficarão dependurados de anzóis de duas pontas.

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21. Huius igitur tumultus eruptio in Herueum de Glanuilla delata est, qui non sibi sed regi [143v] obsides tradidisset, simulque quosdam ex ipsis, quasi degeneres, expertes urbis peccuniarum abiudicasset. De quibus amplius quadrigentis ex castris proruentes circumquaque armati perscrutantur, licet eum absentem nouerint, uoce magna clamantes "Tollatur impius, puniatur proditor". Hoc itaque comperto cum castris interessemus regis, a quibusdam senioribus nostrorum obuiam itum est compescendum eorum uehementie initia. Hiis retroactis, ad ea que superius responsuri conuenimus. Obsides uero comperto quod inter se nostri contentiose egissent, orationis prime uerba retractantes dissimulant. Regi uero et suis omnia nobis superius promissa uel predicta uelle facere et tenere aiebant: nostris, nec pro morte quicquam; nam impuros, imfidos, impios, crudeles, qui nec dominis suis etiam parcere nossent. Que res nostros maximo pudore suffudit. Iterum cum rege in concilio uentum est; maxima diei parte sic consumpta, acquieuerunt 174 tandem in hoc obsides, ut si eorum alcaiz una cum genero suo omnibus facultatibus suis libere potireturm, conciuesque cuncti cibariis suis, fore uti ciuitas traderetur nobis. Sin autem, armis experiri cetera.

Normanni quoque et Angli quibus bellorum casus grauissimo oneri fuerat, longa fatigati obsidione, concedi oportere aiebant, honestumque nec peccuniam uel cibaria honori urbis capescende preponendum. Colonenses uero et Flandrenses quibus semper habendi innata cupiditas, longi itineris dispendia suorumque interitum multumque itineris superesse commemorantes, nil reli[n]qui fieri posse hostibus decemebant. In hoc tandem luctamine adducti, ut omnes facultates sue et cibaria soli alcai[d]e donarentur, sola eius Arabica iumentina excepta, quam ut sibi aliquo extorqueret argumento comes de Aerescot concupierat. In hoc demum eorum fixa sententia stetit, nostris quam indigne ferentibus.

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21. Apaziguamento de tensões entre cruzados e acordo de actuação em concertação com o rei português. O alvoroço deste tumulto é, pois, dirigido contra Hervey de Glanville, que tinha entregue os reféns ao rei e não a eles e tinha bem assim deixado alguns deles fora da atribuição dos dinheiros da cidade, como se eles fossem de outra raça. Mais de quatrocentos correm para fora dos acampamentos e, de armas na mão, procuram-no por todo o lado, ainda mesmo onde sabem que ele não está, clamando em altas vozes: "fora o ímpio, castigue-se o traidor"! Tendo tomado conhecimento disto, quando estávamos no aca.rnpamento do rei, alguns dos nossos anciãos tomaram a iniciativa de lhes ir ao encontro para reprimirem estes assomos de violência. Logo que eles voltaram, reunimo-nos para respondermos ao que anteriormente estava em causa. Os reféns, por sua parte, tendo-se dado conta de que os nossos tinham entrado em disputas, dissimulam e intentam retractar-se das palavras da primeira proposta. Ao rei e aos seus homens diziam que pretendiam guardar a sua palavra e manter todas as promessas que anteriormente nos tinham afiançado; aos nossos, nem com a morte algo fariam, pois tinham-se apercebido que éramos corruptos, desleais, sem piedade, cruéis, que nem os nossos próprios senhores poupávamos. Tudo isto deixou os nossos prostrados na maior vergonha. De novo se voltou a conselho com o rei; passou-se nisso a maior parte do dia e ao fim anuíram os reféns no seguinte: o alcaide, com um genro seu, ficaria de posse de todos os seus bens em liberdade e todo e cada um dos homens da cidade ficaria com o que tinham para comer e a cidade render-se-ia; de contrário, tentariam a sorte das armas. Os normandos e bem assim os ingleses, para quem os incidentes de guerra tinham sido particularmente gravosos, cansados do longo cerco, diziam que seria razoável aceder e que não seria honesto antepor o dinheiro ou os víveres à honra de tomar a cidade. Os colonienses e os flamengos, por sua parte, com a sua inata cupidez de deitar a mão, lembravam o desgaste de uma longa viagem e a perda dos seus bens como o longo caminho a percorrer ainda, argumentavam que não era admissível deixar alguma coisa aos inimigos. Chegados a este ponto de discussão, por último, acediam a que todos os haveres e mantimentos do alcaide lhe fossem concedidos, com excepção de uma égua árabe que o conde de Aerschot cobiçava para si e se propunha tirar-lhe sob que pretexto fosse. Finalmente, a este respeito, a opinião deles tomou-se inabalável, os nossos suportavam-na com grande indignação.

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Nocte dirimente concilium, obsides in sententia sua perseuerant, Francis ad utrumlibet se habentibus, pacem uel bellum scilicet. In crastino autem urbis aditum ferro experiendum decreuerunt, reuersis omnibus ad castra. Cum ínterim Colonenses et Flandrenses indignati quod rex obsidibus, ut uidebatur, fauisset, ex castris armati proruunt, ut obsides a castris regis uindicandum in eos uiolenter eriperent, tumultus atque armorum strepitus fit undique. [144r] Nos uero, cum in meditullio inter regis et eorum castra adhuc colloquentes expectaremus, que parabantur regi nuntiamus. Christianus uero dux Flandrensium et comes de Aerescot, eorum tumultu comperto, uix etiam armati eorum inceptum compescunt. Dein conciliatum pro suis sedato tumultu regem adeunt, protestantes huius actionis immunes se fore. Accepta itaque ab eis securitate, tandem animo recepto, iubet suos arma deponere, obsidionem relicturum in crastinum se multum asserens; sed et honestatem urbi capescende non postposuisse, immo pro nichilo omnia ducere, si ea caruisset, aiebat; uerumptamen hiis affectum iniuriis, hominibus impuris, audacissimis, quodlibet ausuris ultra associari nolle.

Recepto uix tandem animo, ut quid in crastino uellet deliberaret, aqquieuit. Deliberatum est itaque in crastino ut omnes utrimque duces nostri pro se et suis fidelitatem regi tenendam facerent, dum in terra sua morarentur. Hiis ita utrimque firmatis, sicut pridie poposcerant 176 Mauri, concessum est de urbe tradenda. Decretum est itaque inter nos ut centum XL armatorum ex nostris partibus et centum LX ex Colonensibus et Flandrensibus ciuitatem pre omnibus ingrederentur, atque munimentum superioris castri in pace tenerent, ut in ipso hostes peccunias et facultates suas omnes iuramento probatas coram nostris deferrent, et hiis ita coadunatis, urbem postea a nostris perscrutari, si quid amplius allati penes aliquos inuentum in cuius penatibus fuerit, dominum ipsius capite plectendum, et hoc modo omnes spoliatos extra urbem in pace dimittendos.

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A noite põe termo à reunião, os reféns mantêm a sua opinião, os francos dispõem-se a qualquer das alternativas, à paz ou à guerra. No dia seguinte, porém, decidiram tentar a entrada na cidade à força das armas e voltaram todos ao acampamento. Entretanto os colonienses e os flamengos mostram-se indignados, porque parecia que o rei ~ra benevolente para com os reféns, e saem armados dos acampamentos para, à força, roubarem os reféns ao acampamento do rei e se vingarem neles. Gera-se confusão e embate de armas por todo o lado. Nós, pela nossa parte, estando no meio, entre o rei e os acampamentos dos outros, e esperançados em que se voltasse a parlamentar, fizemos saber ao rei o que se preparava. Porém, o duque de Flandres e o conde de Aerschot, dando-se conta do motim, armam-se também e a custo travam o levantamento dos seus. Apaziguado o motim, seguidamente, vão ter com o rei para urna conciliação em favor dos seus, declarando que estavam completamente fora do acontecido. Garantida que foi por parte deles a sua segurança, o rei, urna vez serenado o ânimo, manda que os seus deponham as armas, assegurando firmemente que deixarb para o dia seguinte o cerco, mas não posporia a sua dignidade à tornada da cidade; antes, pelo contrário, dizia, tudo consideraria de menos se ficasse sem ela; no entanto, que se sentia atingido por aquelas injúrias, e nada mais queria em comum com homens corruptos, sem contenção, e dispostos a tudo. Tendo a custo serenado finalmente o ânimo, anuiu a que se deliberasse sobre o que pretendia para o dia seguinte. Deliberou-se, pois, que no dia seguinte todos os nossos chefes, de urna parte e de outra, por si e pelos seus, prometessem manter fidelidade ao rei enquanto permanecessem na sua terra. Confirmado isto por ambas as partes, anuiu-se ao que no dia anterior os mouros tinham pedido relativamente à rendição da cidade. Decidiu-se, pois, entre nós, que 140 homens de armas dos nossos e 160 dos colonienses e flamengos entrariam antes dos outros na cidade e que ocupariam pacificamente a fortaleza do castelo superior, por forma que os inimigos pudessem trazer os dinheiros e todos os seus haveres, comprovados, sob juramento, perante os nossos; feita assim a recolha, a cidade seria depois inspeccionada pelos nossos: se algo mais do que o alegado fosse encontrado com alguém, o dono em cuja casa fosse achado pagaria com a vida. Deste modo, depois de espoliados, todos seriam mandados em paz para fora da cidade.

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22. Aperta itaque porta et ad hoc delectis data intrandi copia, Colonenses et Flandrenses argumentum fallendi callidum excogitantes, ut sui honoris causa preintrarent, a nostris impetrarunt. Accepta itaque huiusmodi licentia et preintrandi occasione, amplius ducentis ex eis cum denominatis supra subintrant, exceptis aliis quos iam per muri ruinam que ex eorum patebat partibus intromiserant, nullo nostrorum nisi denominatis presumente aditum. Precedente itaque archiepiscopo et coepiscopis cum dominice crucis uexillo, duces nostri una cum rege [144v] et qui ad hec fuerant delecti subintrant. O quanta omnium Ietícia! O quanta omnium specialis gloria! O quanta pre gaudio et pietate lacrimarum affluentia, cum ad laudem et honorem Dei et sanctissime uirginis Mariae crucis salutifere uexillum in summa arce positum subacte in signum urbis ab omnibus uideretur, precinente archyepiscopo et episcopis cum clero et omnibus, non sine lacrimis, admirabili iubilo Te Deum /audamus cum Asperges me et orationibus deuotis! Rex ínterim muros editioris castri pedes circuit.

Colonenses igitur et Flandrenses, uisis in urbe tot adminiculis cupiditatis, nullam iurisiurandi uel fidei religionem obseruant. Hinc illinc discurrunt; predas agunt; fores effringunt; penetralia cuiusque domus rimantur; ciues proturbant, et contra ius et fas contumeliis afficiunt, uasa uestesque dissipant, in uirgines contumeliose agunt; fas et nefas equipendunt; furtim omnia distra[h]unt quae fieri omnibus communia debuerant. Episcopum uero ciuitatis antiquissimum, preciso iugulo, contra ius et fas occidunt. Ipsumque ciuitatis alcaiz, asportatis omnibus a domo sua, capiunt. Iumentinam suam, de qua superius, ipse comes de Aerescot propriis manibus arripuit, eamque requisitus a rege et ab omnibus nostris in tanta obstinatione retinuit, ut diceret ipse alcaiz, quod iumentina sua sanguinem migturiens 177 pullum perdidisset, actionis obscene callide imprimens uitium. Normanni uero atque Angli, quibus fides et religio maximo constabat, contemplantes quid huiusmodi portenderet actio, in loco denominato quieti sedebant, malentes obseruare manus ab omni rapina quam fidei et societatis

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22. Entrada solene na cidade, desm~dos de alguns cruzados e êxodo dos moradores. Aberta, pois, a porta e dada autorização de entrarem, os colonienses e os flamengos, concebendo um astucioso ardil, solicitam aos nossos que seja deles a honra de serem os primeiros a entrar. Dada, pois, a anuência para tal efeito e chegada a ocasião, fazem entrada mais de duzentos com os que anteriormente haviam sido designados, fora outros que se tinham intrometido pela brecha da muralha que ficava à sua mercê da parte em que se encontravam, enquanto ninguém dos nossos, que não fosse dos designados, presumira proceder à entrada 194 • À frente, pois, ia o arcebispo e os outros bispos com a bandeira da Cruz do Senhor e a seguir entram os nossos chefes juntamente com o rei e os que para este efeito tinham sido escolhidos. Oh! Quanta não foi a alegria de todos! Oh! Quanta não foi a honra especial que todos sentiam! Oh! Quantas não foram as lágrimas que afluíam em testemunho de alegria e de piedade, quando todos viram colocar no mais alto da fortaleza o estandarte da Cruz salvífica em sinal de sujeição da cidade, para louvor e glória de Deus e da santíssima Virgem Maria. O arcebispo e os bispos com o clero e todos os outros, nãc sem lágrimas de júbilo, cantavam o Te Deum /audamus com o Asperges me e orações de devoção 19' . Entretanto, o rei dá a volta a pé pelas muralhas do castelo cimeiro. Os colonienses e os flamengos, ao lobrigarem na cidade tantas oportunidades de se saciarem não respeitam qualquer observância de juramento ou de palavra dada. Correm por aqui e por ali, saqueiam, arrombam portas, espreitam pelos interiores de qualquer casa, assustam os habitantes e, contra o direito divino e humano, infligem-lhes injúrias, dispersam vasilhames e roupas, actuam sem respeito contra as donzelas, põem no :nesmo prato da balança o lícito e o ilícito, às escondidas tudo subtraem, mesmo o que deveria ficar em comum para todos. Ao bispo da cidade, um ancião de muitos anos, cortam-lhe o pescoço, contra o direito divino e humano 196 • Aprisionam o próprio alcaide da cidade, depois de lhe terem tirado tudo de casa. A pequena égua, de que falámos acima, o próprio conde de Aerschot a arrebatou com as suas mãos. Tendo ele sido intimado pelo rei e por todos os nossos a entregá-la, reteve-a com tanta obstinação que o próprio alcaide disse que a sua pequena égua ao urinar sangue tinha perdido um potro, exprimindo de maneira astuta a fealdade de uma acção obscena. Os normandos e os ingleses, que tinham em máximo apreço a palavra dada e o respeito divino, observavam onde poderia levar uma actuação destas e permaneciam quietos no lugar que lhes fora determinado, preferindo manter

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coniuratae statuta uiolare, que res comitem de Aerescot et Christianum et eorum primarios maximo pudore suffudit, quorum iam euidenter iureiurando postposito nostris non permixta patebat cupiditas.

Sed tandem in se reuersi, precibus obnixis aput nostros impetrauerunt, ut reliquas urbis partes nostri pariter cum suis pacifice ad partes adunarent, ut sic denique post portiones acceptas omnium, [145r] iniurias et subreptiones in pace discutiant emendatum parati quod male presumpsissent. Despoliatis igitur in urbe hostibus, a primo sabati mane per tres portas usque ad quartam feriam subsequentem indesinenter exeuntes uisi sunt tanta gentium multitudo ac si tota in ea Hyspania confluxisset. Compertum est deinceps magne admirationis miraculum, quod ante urbis captionem per dies quindecim hostium cibaria fetore intolerabili ingustabilia sibi facta que postmodum nobis et ipsis grata acceptaque gustauimus. Spoliata igitur ciuitate, inuenta sunt in fossis admodum VIII. M. summarum tritici et [h]ordei, olei autem ad modum XII. M. sextariorum. De ritu et eorum religione que supra diximus oculis postmodum uidimus. Nam in eorum templo 178 quod vn columpnarum ordinibus cum tot cumulis in altum consurgit, mortuorum cadauera ferme ducenta, exceptis languidis amplius octingentis, cum omni squalore et feditate sua in eo manentibus inuenta sunt.

23. Capta uero urbe, cum eam xvn [h]epdomadibus obsedissemus, Suctrienses, data munitione sui castri, regi se dedere. Castrum uero de Palmella a custodibus relictum, a rege uacuum suscipitur. Receptis igitur circumquaque munitionibus ciuitati pertinentibus, magnificatum est Francorum nomen per uniuersas Hyspanie partes, irruitque timor super Mauros quibus uerbum huius actionis diuulgabatur.

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as mãos limpas de qualquer roubo a violarem os princípios de solidariedade firmada por um juramento de fidelidade 197 • A atitude tomada deixou grandemente cobertos de opróbrio o conde de Aerschot e Cristiano com os seus nobres, cuja cupidez ficava à vista de todos, sem equívocos, depois de terem com toda a evidência atirado para trás das costas o seu juramento. No entanto, voltando finalmente a si, com pedidos insistentes, suplicaram junto dos nossos que fossem os nossos, juntamente com os seus, a congregar as restantes partes da cidade para uma partilha pacífica, de tal forma que, depois de aceites as respectivas partilhas, debatessem em paz as injúrias e as subtracções de todos, estando eles dispostos a emendarem o que indevidamente se tinham antecipado a retirar. Espoliados, pois, os inimigos na cidade, foram vistos sair, sem despegar, pelas três portas, desde o início da manhã de sábado até à quarta-feira subsequente, em tão grande multidão de gente que era como se nela tivesse confluído a Espanha inteira. Verificou-se seguidamente um prodígio que causou muita admiração: os alimentos dos inimigos que antes da conquista da cidade e ao longo de quinze dias se haviam revelado intragáveis por cheiro insuportável, pudemos saboreá-los pouco depois, já que tanto para nós como para eles se apresentavam bons e agradáveis. Saqueada, pois, a cidade, foram encontradas em fossas cerca de oito mil cargas 198 de trigo e de cevada, enquanto as de azeite eram de uns doze mil sextários 199 • Relativamente às observâncias da sua religião, logo depois vimos com os olhos o que acima tínhamos referido. Efectivamente, no seu templo, que se levanta em sete ordens de colunas com outras tantas abóbadas, foram encontrados uns duzentos cadáveres dos que ali tinham morrido, fora mais oitocentos doentes que aí haviam ficado no meio daquela imundície e na sua fealdade. 23. Epílogo da conquista: restauração da diocese de Lisboa, com novo bispo; situação miserável dos mouros.

Tomada, pois, a cidade, após dezassete semanas de cerco, os habitantes de Sintra fizeram oferta da guarnição do seu castelo e entregaram-se ao rei. Por sua vez, o castelo de Palmela foi abandonado pela sua guarnição e foi tomado pelo rei já sem ninguém. Rendidas, pois, todas as fortalezas que nas redondezas estavam ligadas à cidade, foi celebrado o nome dos francos por todas as terras de Espanha e abateu-se o terror sobre os mouros aos quais ia chegando a notícia destes acontecimentos.

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Electus est subinde ad sedem pontificatus ex nostris Gislebertus Hastigensis, rege, archyepiscopo, coepiscopis, clericis, laicis omnibus electioni eius assensum prebentibus. Die uero qua omnium memoria sanctorum celebratur, ad laudem et honorem nominis Christi et sanctissime eius genitricis purificatum est templum ab archiepiscopo et coepiscopis quattuor et reparatur inibi sedes episcopatus, cum hiis castris et uicis subscriptis: trans Tagum, castro Alcacer, castro de Palmella, Elmada prouincia; citra Tagum, castro Suchtrio, castro Scalaphio, castro Lora. Sunt autem termini eius ab Alcacer castro usque ad castrum Lora, et a mari occidentali usque ciuitatem Eburensem. Subsequuta est deinceps tanta Maurorum lues ut per heremi [145v] uastitates, per uineas et per uicos et plateas domorumque ruinas innumera cadauerum milia feris auibusque iacerent exposita, exanguibusque similes uiui super terram gradirentur, signumque crucis supliciter amplectentes deoscularentur, beatamque Dei matrem Mariam bonam predicarent, ut ad omnes actus uel sermones etiam in extremis agentes Mariam bonam, bonam Mariam intermiscerent, miserabiliterque reclamarent.

24. Et quid aliud nobis hec intuentibus uideri potest, nisi illud Y saye uaticinium impletum in nobis cum gaudio, quo dicitur "et frenum erroris quod erat in maxillis populorum uersum est in canticum facte solempnitatis?" Recolentes igitur nos tales fuisse gratias agamus Creatori, quod a seruitio creature colla mentis excussimus. Nam dum freno erroris maxillas constricti laudem confessionis Deo dare nesciebamus; ergo dum confessionis laudem Deo reddimus in sanctificata sollempnitate gaudemus. Respondeamus ergo moribus tante misericordie Redemptoris nostri, et quia lucem cognouimus, prauorum operum tenebras declinemus, predicantes magnalia Dei que operari dignatus est in nobis. Tradidit enim Deus noster crucis aduersarios in manibus nostris. Seuerissima namque super eos ultio diuina adeo incubuit, ut dum urbem destructam castrumque euersum, agros depopulatos, terram 179 in solitudinem redactam, nullum in agris incolam, luctus gemitusque eorum conspicimus, uicis eorum et euentus malorum misereri libeat, condolerique

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Seguidamente200 , foi eleito para a sede episcopal um dos nossos, Gilberto de Hastings, tendo dado o seu assentimento para a eleição o rei, o arcebispo, os bispos, o clero e todos os leigos201 • No dia em que se celebrava a Festa de Todos os Santos, em louvor e honra do nome de Cristo e da Sua Santíssima Mãe, foi feita a purificação do templo pelo arcebispo e por mais quatro bispos sufragâneos202 e restaurada a diocese como sede do episcopado, com os seguintes castelos e terras: para além do Tejo, o castelo de Alcácer, o castelo de Palmela, a zona de Almada; aquém do Tejo, o castelo de Sintra, o castelo de Santarém, o castelo de Leiria. Os limites vão do castelo de Alcácer até ao castelo de Leiria e do mar, a ocidente, até à cidade de Évora203 • Sobreveio seguidamente uma peste tão grande entre os mouros que pelas vastidões dos ermos, pelas vinhas e pelas aldeias e praças, bem como pelas casas em ruínas jaziam inúmeros milhares de cadáveres à mercê das feras e das aves; os que ainda tinham vida, semelhantes a fantasmas que andassem errantes à face da terra, abraçavam-se ao sinal da cruz e beijavam-no, confessavam que Maria, cheia de bondade, é a bem-aventurada Mãe de Deus, de tal modo que em tudo o que fazem ou dizem, mesmo nos momentos extremos, misturam invocações a Maria boa, boa Maria e lhe dirigem apelos angustiados 204 • 24. Meditação após a vitória. Que outra coisa nos poderá sugerir, a nós que observámos isto, senão o cumprimento feliz, nos nossos tempos, do vaticínio de Isaías, que diz: "O freio do erro que estava nos maxilares dos povos converteu-se em cântico de solenidade perfeitamos. Ao recordarmos, pois, que nós assim andámos, dêmos graças ao Criador por termos sacudido da servidão da criatura a cerviz do espírito. Efectivamente, enquanto tínhamos os maxilares aperreados pelo freio do erro, não sabíamos dar a Deus o louvor da fé; por isso, ao darmos a Deus o louvor da confissão fé, alegramo-nos em solene expressão de santidade206• Correspondamos, pois, com o nosso comportamento a tanta misericórdia do nosso Redentor e, já que conhecemos a luz, ponhamos de lado as trevas das obras perversas, anunciemos as maravilhas de Deus, pois se dignou exercer a sua acção em nós. Deus entregou, efectivamente, nas nossas mãos os adversários da Cruz. Extremamente severo foi, de facto, o castigo divino que recaiu sobre eles. Quando olhamos para a cidade destruída e para o castelo arruinado, para os campos devastados, para a terra reduzida a solidão e não vemos qualquer morador nos campos e tudo é luto e gemido, seja-nos consentido sentir

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et compati eorum infinnitatibus, et quod nondum finem habeant flagella celestis iusticie, certe quia nec inter nos Christianos etiam correcte sunt inter flagella actionis culpe. Dolendum et gaudendum est. Nam cum peruersos quosque Deus omnipotens percutit, pereuntium miserie condolendum et iusticie iudicis congaudendum. Ergo nostrum quisque semetipsum districte diiudicans, diuina consideret iudicia, non solum ad uindictam malorum sed ad eruditionem bonorum facta, donis quosdam reficiens, alios flagellis erudiens. Non autem in iustificationibus nostris hostes prostrauimus, sed in miseratione Dei multa180 • Mentem ergo nostram donorum abundantia non eleuet, nec nos habere quod alteri deest iactemus, nec hostium miseriam gloriam nostram existimemus, quos forsan miseria trahet ad gloriam, nos autem elatio ad miseriam; quos enim uult Deus indurat, et quos uult ad [146r] misericordiam prouehit 181 ; ut in Iob dicitur, "ipso concedente pacem quis est qui condempnet? ex quo absconderit uultum suum quis est qui contempletur eum?"l82 Nemo ergo discutiat cur stantibus nobis Christianis gentilitas hec in infinnitate succubuerit. Nemo discutiat cur alius uenustetur ex dono, alter aftligatur ex merito. Si enim miretur quis nos Christianos uenustatos, "ipso concedente pacem quis est qui condempnet?" Si hostes consumptos obstupescit uel aftlictos, "ex quo absconderit uultum suum, quis contempletur eum?" Itaque consilium summe et occulte uirtutis sit satisfactio aperte rationis. Unde in euangelio Dominus cum de huiusmodi causa loqueretur, ait "confiteor tibi, Domine Pater celi et terre, quia abscondisti ea 183 a sapientibus et prudentibus et reuelasti ea paruulis" 184 . Atque mox tamquam rationem, quandam absconsionis ac reuelationis adiungens, ait "ita, Pater, quoniam sic placitum fuit ante te" 185 . Quibus nimirum uerbis exempla humilitatis accipimus, ne temere supema consilia discutiamus de aliorum electione et aliorum depressione. Videntes ergo sed non intelligentes diuine animaduersionis iudicium hostibus inculcatum, conscientie nostre immunditiam atque impuritatem consideremus, et cum timore et angustia spiritus dicamus Deo: "Parce iam, Domine, parce operi manuum tuarum. Quiescant, Domine, opera ire tue. 'Cesset iam manus tua, sufficit' 186, Domine. Iam uero iam satis est, quod hucusque

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compaixão pela sua sorte e pelos males que lhes aconteceram, condoer-nos e consolá-los nas suas enfermidades, até porque não chegaram ainda ao fim os flagelos da justiça celeste, certamente porque também entre nós, os cristãos, não foram corrigidos os erros dos nossos comportamentos. Há que sentir pena e experimentar alegria. De verdade, quando Deus omnipotente fere os perversos, quaisquer que eles sejam, há que sentir pena pela infelicidade dos que perecem e experimentar alegria pela justiça do juiz. Examine-se, pois, cada um de nós com muito cuidado e dê atenção aos juízos divinos, que são dados não apenas para castigo dos maus, mas para ensinamento dos bons, pois com os dons restabelece alguns, com os castigos dá ensinamento a outros. Não foi, porém, por sermos justos que vencemos os inimigos, mas por misericórdia de Deus que é grande. A abundância de dons não leve o nosso espírito a envaidecer-se, nem nos vangloriemos por termos o que a outros falta, nem julguemos que a infelicidade dos inimigos é a nossa glória, pois a eles possivelmente a infelicidade leva-os à glória, enquanto o orgulho nos conduz à infelicidade. De facto, Deus endurece a quem quer e a quem quer leva-o à misericórdia207 • Como se diz no livro de Job: "Se Ele concede a paz quem será que o condena? Desde o momento que Ele esconde o seu rosto, quem consegue contemplá-lo?"208 Ninguém, pois, discuta porque é que enquanto nós, cristãos, nos mantemos de pé e estes pagãos sucumbiram na debilidade. Ninguém discuta porque é que um é agraciado sem qualquer título e outro é vilipendiado não obstante o seu mérito209 • Se alguém se admira por nós, cristãos, sermos agraciados ... , "quem será que o condene se Ele concede a paz?". Se deixa os inimigos estarrecidos no seu aniquilamento e aflição, "quando esconde o seu rosto, quem poderá contemplá-lo?". E assim, conselho de suprema e oculta virtude seja satisfazermos a uma manifesta razão. Daqui que, no Evangelho, quando fala a este respeito, o Senhor diga: "Dou-te graças, Pai, senhor do céu e da terra, pois escondestes estas coisas aos sabedores e aos aconselhados e as revelastes aos pequeninosm•o. Logo a seguir, como que a dar a razão do ocultar e do revelar, diz: "Sim, ó Pai, porque assim foi do teu agrado na tua presença"211 • Com essas palavras recebemos, sem dúvida, uma advertência de humildade, para não discutirmos as decisões supremas quanto à escolha de uns e à rejeição de outros. Ao vermos, pois, ainda que sem o entendermos, o juízo da divina condenação inculcado aos inimigos, tenhamos em consideração a imundície e a impureza da nossa consciência e com temor e tremor de espírito digamos a Deus: "Põe termo, Senhor, sem mais delongas, põe termo ao que as tuas mãos fazem! Cessem, Senhor, as intervenções da tua ira.

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aduersus hos pro nobis decertasti. Sed conuertatur potius si fieri potest luctus eorum in gaudium, 'ut cognoscant te solum Deum uiuum et uerum, et quem misisti lesum Christum' 187, filium tuum, qui uiuis et regnas per omnia secula seculorum. Amen."

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Deixe de descarregar a tua mão! Basta, Senhorf2 12 Já basta, efectivamente, teres até agora combatido por nós contra estes. Agora, se é possível, converta-se o luto deles em alegria 'para que te conheçam a ti, único Deus vivo e verdadeiro e àquele a quem enviaste, Jesus Cristo' 213 , teu filho, tu que vives e reinas por todos os séculos dos séculos". Amen 214 •

NOTAS DO TEXTO LATINO Nota prévia. O códice Cambridge, Corpus Christi College, Ms. 470, em que se encontra o nosso texto é constituído por uma recolha factícia e foi legado à instituição pelo arcebispo de Cantuária Matthew Parker (1504-1575); anepígrafo (pela boa razão de que se apresenta como epístola), tal texto está numa unidade materialmente autónoma que abrange os fls. 125-146, num total de quatro cadernos e 25 fólios, mas apenas ocupa 22 de escrita. Ao ser encadernado com outros materiais, foram-lhe amputadas as margens e com isso foram afectadas correcções e anotações ao texto. Bastariam as correcções para denunciar o carácter apógrafo e não autógrafo da peça. Várias edições foram constituídas ao longo do tempo (delas se dá conta noutro local desta edição). A edição de Charles Wendell David, De expugnatione Lyxbonensi, New York, 1936, é superior a todas as anteriores, mas foram-lhe apontadas incorrecções de leitura por Ruy de Azevedo, "A carta ou memória do cruzado inglês R. para Osberto de Bawdsey sobre a conquista de Lisboa em 1147", Revista Portuguesa de História, 7, 1957, 343-371. Tomamos em consideração as leituras deste ilustre paleógrafo, independentemente da retenção completa das suas propostas, por interpretação nossa, em eventual conjectura de reconstituição. Anepigraphus adespotaque codex extat; titulum ex editore Charles Wendell David (infra WD) adequatum sumimus. Lectiones huius editoris cum notis a Rui de Azevedo (infra RA) collatis nobis magni pretii fuerunt. Pro orthographia e caudatum notamus ae. 2 Restitutionem nominum ex coniecturis a melioribus scholaribus factis admisimus. 3 Qualicumque RA quecumque WD. 4 ex (pro anticipatione exercitus) uidetur scripsisse et deinde eRAsum. pignora: marg. 6 retinet corr. ex retineat 7 confiteantur corr. 1 scilicet RA: saltem WD 9 postea conatus pro scribendo detenti licet cerni sed deletum supponit WD 10 comperimus integrum scriptum deinde abbreuiatum er WD. 11 oborta RA: aborta WD 12 marg. script. 13 rhemata WD 14 pro reditus 15 pom[is ab]und[ans]: marg. scrip. scissum a religatore. 16 Mineum PMH: Onnem Hamilton: Ouier Stubbs. 17 Cadiuaforsan script. 11 date supl. WD 19 Profontibus partis sermonis Portuensis episcopi Panormiam (= Pan.) et Decretum (= Dec.) ab luo Carnotensi necnon a Gratiano (= Grat.) una cum Collectione Caesaraugustana (=Caes.) proponit Ernst-Dieter Hehl, "Kanonistische Vorlagen in der Predigt des Bischofs uon Porto zu den Kreuzfahrern", in Kirche und Krieg im 12. Jahrhundert: Studien zu kanonischem Recht und politischer Wirklichkeit, Sttugart, 1980, pp. 259-261. 20 Psal. 32, 12 21 beata 22 sanctitati RA: societati WD 23 1ohan. 20, 29. 1

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legem WD: legis Mat. 19, 16-22. quid sequatur RA: quod sequitur WD lactaetium relictis omnibus nobis primitiue ecclesiae filiis huc aduecti: a superimpositum omnibus b superimpositum huc; ordinem restituimus. Psal. 117, 23. Hebr. 13, 13. Isa. 55, 6. suum adiec. WD 2 Cor. 9, 10. Deprimi scrip. margine. [ge]neris [v]itio scrip. margine. contortionis WD: extortionis Stubbs. ualetudine WD ualitudine Prou. 14, 30. surrepit WD: subripit surrepunt WD: surripiunt Aroganum desolationis quandam scipt. margine. [e]cclesia scrip. margine. Psal. 149, 7 Hieron. Ep. 58, 2 Math. 15, 5. Ambrosius, De officiis, I, 36;forsan ex Pan. 8, 58; Decr. lO, 120; Caes. 8, 112; C. 23 q. 3 c. 7. Pan. 8, 56; Decr. 10, 118; Gratian. -.-: Vim .... aestimetur. Math. 26, 52. Pan. 8, 44; Decr. 10, 110; C. 23 q. 4 c. 36. Pan. 8, 5; Decr. 10, 11; C. 23 q. 5 c. 39: Sunt enum maxime constituti [se. Príncipes} propter homicidas, raptores, ut i/los damnent. Pan. 8, 33; Dec. 10, 96; C. 23 q. 5 c. 40: Rex debetfurta cohibere... jilios suos non sinere impie agere. infirmos: inimicos exfontibus correctionem proponit Emst-Dieter Hehl, loc. cit. Pan. 8, 34; Decr. 10, 37; C. 23 q. 3 c. 5. Pan. 8, 40; Dec. 10, 97; C. 23 q. 5 c. 16. Pan 8, 21; Dec. 10, 72; C. 23 q. 8 c. 13. Juxta Dec. supl. Pan. 8, 54; Dec. 10, 116; Caes. 8, 11; C. 23 q. 2 c. l. Pan. 8, 53; Dec. 10, 115 et 171; Caes. 8, 110; C. 23 q. 5 c. 31. Pan. 8, 49; Dec. 10, 112; C. 23 q. 5 c. 28. Pan. 8, 51; Dec. 10, 114 et 171; C. 23 q. 5 c. 29. Cf. Pan. 8, 57; Dec. 10, 119; C. 23 q. 2 c. 3. uobis WD persecutus est WD : persecutus (?) RA : persequebatur nos Cf. Aug. Epist. 173, 3. Pan. 8, 17; Dec. 10, 63; C. 23 q. 4 c. 38. Psal. 105, 31. Chrisostomus, In Matthaeum, Homil. 27, 5; cf. Pan 8, 18; Dec. lO, 65; C. 23 q. 8 c. 14.

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siromasten WD: chyromachen auctoritatem corr. WD 69 seueritate corr. WD 70 Hier., Epist. 109, 3. 71 uoluerit WD 72 Cf. Deut. 13, 6. Legi... ipsorum: Pan. 8, 21; Dec. 10, 72; C. 23 q. C. 13. 73 quid WD 74 Cf. August., Sermbnes de Scripturis, PL 38, 484. 15 Rom. 6, 19. 76 sei/. "seruire iustitiae et sanctificationem". n Pan. 8, 60 ; Dec. 10, 125 ; C. 23 q. 1 c. 5. 71 Aug. E[mt. 1&9, 4-6; cf. PL 33, 1098 (Epist. 3, alias 194). 79 Pan. 8, 43.; Dee. 10, 109. 10 ad taudcm et }WjiiQI'an scrip. o/ia manus sup. eras. 11 Pcneq~r'.J'çt\9. .!wiiUIIfiU sup. eras. IZ Deut.. ]i,...:: ' 67 61

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scrip. lli!a ·~ *b fi~~e lilw~. ~-..: lC ~iliuotp. (1/iQ

Leuit. ~·a.;~.: . . Pan. s, ...S.·~ &Q. inde RA oa ;,r,~ ·

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•org. ~......,.~ id~ mei[on]. Voga R.4: \'ala WD. . 92 hostia 93 dissipiUit C* mlllrdl rD. M Cf. Solinu$..2l, 6; Pliilius, HN ... 115. 95 U0S moJIIiata inte/lif-r.. 96 Cf. Solinus 2.3, '; Plilrius, HN 4, 113. 97 Phthisimque mdflil car. WD. 91 cetria 99 Cf. Sotinus 23, 7; Pfillius, HN4, 116; 8, 166; Verg. Georg. 3, 273-275. 100 enim marg. 101 pro Scalabis 102 mercatoribus marg. 103 operis ~t~arg. 104 rex cor: 105 commississemus cor. WD 106 cor. ex quibus to

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script. marg. noto scripta margine: non his uerbis sed hoc ... persua... tibus in modo.

innsequitur summite quia RA : quod WD iunctis RA : uinctis WD sunt

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fuere pro Viaricus felicior est RA: felicior WD Seneca, Epist. 22, l. contraitis protraam etiam RA: iterum WD hostes bis script. qua: qui WD restitum WD: restitutum script. margine. temptorio inexpugnati: inexpugnato WD etiam RA: iterum WD uero nos satis nos: sed WD suppl. WD pro micturientes Cf. Rom. 1, 26. suppl. WD. hummani peractis RA: pactis WD erecti RA: erectis WD cassatos: cassata WD nostri WD: nostre script. margine cum RA: quando WD sepeliendi WD angebant WD defendendam WD pro ericii WD Rom. 113, 7. Malach. 1, 7-8. insipientie ultime 1 Cor. 3, 19. Sap. 1, 4. Iac. 3, 15-17. script. margine et RA: ad WD Cf. Eccl. 10, 15. Eccl. lO, 14. femina natus est script. marg. Psal. 24, 7. 1 Tim. 1, 13. Matt. 3, 8. Psal. 61, 11. Cf. Phil. 1, 21.

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Cf. 1 Cor. 9, 23. Cf. Rom. 8, 35 ss. 163 mandatum Dei bis script. 164 Cf. Rom. 9, 3. 165 Psal. 77, 70. 166 Psal. 112, 7. 167 Cf. Sir. 18, 13. 161 Cf. Zach. 11, 15. 169 primum scrips. murum 17o scope 171 quasi: scrip. margine si 172 scrip. margine 173 muncabuntur 174 aqquieuerunt 175 potiretur RA: potietur WD 176 poposcerunt 177 micturiens WD 171 templum 179 eorum post script. eras. 110 Non autem ... Dei multa script. ante donis quosdam reficiens ali os flagellis erudiens; post, ordinem restituit notis a... b superimpositis. 111 Cf. Rom. 9, 18 112 Iob 34, 29 113 ea RA: [hec] WD 114 Matt. 11, 25 1ss Matt. 11, 26 116 lac. 2, 17 117 Iohan. 17, 3 161

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NOTAS DA TRADUÇÃO 1

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O manuscrito não apresenta título, como, de resto, se compreende, dado que a forma literária é epistologrâfica; os vários editores aceitaram o que lhe foi atribuído por William Stubbs, De expugnatione Lyxbonensi, que altera ligeiramente o de N. E. Hamilton, na leitura que fez a pedido da Academia das Ciências de Lisboa (aproveitada pela edição dos Portugaliae Monumenta Historica, Scriptores, I, 391-405, "Crucesignati anglici Epistola de Expugnatione Olisiponis"). Assinalaremos, complementarmente, que, para o nosso trabalho de fixação de texto e comentário, nos louvamos sobretudo no aparato de notas constituído por Charles Wendell David, De expugnatione Lyxbone - The conquest of Lisbon, New York, 1935, não sem tomar em consideração trabalhos posteriores cujas referências são constituídas abaixo ou dadas na introdução, mas procedendo a alguma rectificação de leitura ou proposta de conjectura textual. Foi anteriormente esta obra utilizada por outros, nomeadamente por Alfredo Pimenta, "A conquista de Lisboa", in Fontes Medievais da História de Portugal, Lisboa, 1948, pp. 109-123, onde também é reproduzida, mas de forma incompleta, a tradução de J. Augusto de Oliveira, Conquista de Lisboa aos Mouros (1147), Lisboa, 1935; esta mesma tradução, na sua forma completa, foi retomada com o título de Conquista de Lisboa aos Mouros em 1147- Carta de um Cruzado Inglês que participou nos acontecimentos, Lisboa, 1989, em opúsculo com notas de José da Felicidade Alves. A forma abreviada do endereço com a respectiva saudação obedece aos cânones da epistolografia medieval e a ordem dos elementos leva a tomar o primeiro nome como sendo o do destinatário e o segundo do remetente. Note-se, quanto a isso, que, segundo as regras da epistolografia clâssica, o remetente era enunciado em primeiro lugar; no entanto, dentro da epistolografia cristã e medieval, a ordem dos termos invertera-se, para acentuar a expressão de humildade. Cf. Caro I Dan Lanham, Salutatio formulas in /atin Letters to 1200: syntax, sty/e and theory, Munique, 1975; A. A. Bastiaensen, Le ceremonia/ épistolaire des chrétiens latins, Nimega, 1964. Tem sido problemâtica a identificação dos nomes que aparecem sob forma de abreviatura e das respectivas personagens: Osb. e R. Dados recentes de documentação permitem considerar hipóteses de particular relevo. Quanto ao topónimo, não hâ dúvidas: trata-se de Bawdsey, pequena povoação do condado de Suffolk. Quanto às personalidades de remetente e destinatário, a identificação não é consensual. A reconstituição do nome sob a forma de Osberto (depois de anteriormente lhe ter sido atribuída a de Osbemo) apresenta-se como provâvel; cf. Harold Livermore, "The 'Conquest of Lisbon' and its Author", Portuguese Studies, 6, 1990, 1-16. Harold Livermore, /oc. cit., propõe que se interprete R. como abreviatura de Rao/ (forma menos habitual de Ra[n]dulfus), cruzado que participa na tomada de Lisboa e é autor de uma doação feita em 1148 a Santa Cruz de Coimbra, doação essa testemunhada pelas mais altas dignidades, como são o rei e os quatro bispos portugueses (ANTI, Santa Cruz, m. 3, doc. /8; documento publicado por Jorge Hugo Pires de Lima, "Propriedades de Santa Cruz de Coimbra em Lisboa no século XII", Arquivo Histórico Português, 2, 1941, 340-347; cf. infra, Apêndice 11). Tratar-se-ia de um sacerdote franco ou anglo-normando, para mais com ligações à familia de Hervey de Glanville, sendo porventura até o capelão do cruzado; ter-lhe-ia pertencido a exortação do exército cristão antes do ataque final. Aceitando a hipótese de H. Livermore, não nos parece que deva haver objecção para considerar que o facto de estar ligado ao bispo D. Gilberto teria evitado o testamento em favor de Santa Cruz de Coimbra: sendo homem piedoso e eventualmente devedor da sua cura a D. Teotónio, prior

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de Santa Cruz (local onde se deslocou), pretenderia que a entrega do seu ermitério lhe granjearia um sufrágio certo no presente e no futuro. Se, além disso, se trata de Radulphus, que é referido na pequena carta n. 0 318 de Bernardo de Claraval para D. Afonso Henriques, explicar-se-ia ainda melhor a sua visita a Coimbra, dadas as relações que existiam entre Teotónio e Bernardo (de acordo com a Vita Theotonii; cf. Hagiografia de Santa Cruz de Coimbra, ed. trad. de Aires A. Nascimento, Lisboa, 1998); cf. Jonathan Phillips, "St. Bernard of Clairvaux, The Low Countries and the Lisbon Letter of the Second Crusade", Journal ofEcc/esiastica/ History, 48, 1997, 485-497. O seu nome de família seria Raul de Glanville, embora não descendente de Hervey de Glanville (cf. mais abaixo). É mais que evidente que o autor do nosso texto é testemunha presencial dos acontecimentos, pertence ao contingente inglês (nada impedindo que no documento citado se inclua na designação genérica de "francos", pois assim era conhecido o contingente dos cruzados) e a ele se mantém ligado, demonstrando o ponto de vista de tal grupo, mas revelando estar a par do que se passava com os outros contingentes e estar particularmente informado das actuações do rei português e dos seus apoiantes eclesiãsticos, manifestando simpatia por uns e por outros e deixando de parte aspectos menos lisonjeiros que outros relatos registam. Pertencerá ele ao grupo dos eclesiãsticos que ficarão com o bispo Gilberto, após a tomada de Lisboa? A admitirmos essa hipótese, explicar-se-ia bem que tenha reconstituído os discursos que integram a sua narrativa e que, na própria diversidade (nomeadamente por parte do embaixador muçulmano), supõem alguém com convívio dilatado com comunidades de culturas diferentes. Uma permanência alargada ajudaria também a explicar a descrição da costa portuguesa, aspecto desconhecido de outras crónicas paralelas, e bem assim a inclusão de limites das dioceses portuguesas. Trata-se certamente de alguém dotado de carãcter sereno e atento aos desmandos das tropas, moderado na condenação que exprime e condoído com o sofrimento das populações muçulmanas (com quem eventualmente terá convivido, em consonância com a nossa hipótese). Aceitamos a hipótese aduzida por H. Livermore, ainda que continuem problemas em aberto, por falta de atribuição testemunhal. Efectivamente, Raol não é o único candidato a uma atribuição fundada na inicial do nome. No entanto, acentuaremos, pela nossa parte, que as coincidências entre o nosso relato e o documento avulso parecem encontrar apoio decisivo na própria estrutura menos habitual do documento: um falsãrio procuraria ater-se a formas comuns; a ingenuidade e espontaneidade da parte narrativa e dispositiva depõem em favor da autenticidade. Não parece, aliãs, que a alteração de mão no registo documental possa ser invocado como viciação, pois a variante grãfica verifica-se na parte de sanções. Para maior informação, cf. a introdução inicial. 4 Não é certamente de ter em pouca conta a proximidade afectiva entre remetente e destinatãrio, relação que parece poder reconhecer-se entre as duas figuras apontadas nas notas anteriores. Notar-se-ã que o nosso autor não se serve de formas de respeito, com tratamento requintado, como as que encontramos em Arnulfo ou em Duodequino. Parece, efectivamente, proceder por iniciativa própria e não a mandado de outro (Duodequino: iussioni uestre, pater karissime, in omnibus parere cupientes... quoniam idem uestra deposcat auctoritas); atendo-se à forma de carta, não fica preocupado com a extensão que o tema lhe possa exigir (ao contrãrio de Duodequino); não se preocuparã, no final, com situar a sua escrita e apontar acontecimentos posteriores à tomada da cidade (como Duodequino), porque a sua perspectiva é a de viver a festa da libertação espiritual, mais que a de enalte· cera empresa militar (veja-se o final do texto). ' Esta pequena introdução, em forma de carta, conclui certamente o trabalho de redacção que o cruzado R(aul) terá realizado ainda em Lisboa, presumivelmente em periodo de inverno,

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se é que não em tempo algo posterior (se admitirmos que aqui tenha permanecido entre os colaboradores do bispo D. Gilberto). Teria assim tido oportunidade de reconhecer no terreno o que eventualmente conhecia de fontes literãrias e assim se justificará e explicará o pormenor com que descreve a região de Lisboa e dá conta de alguns episódios ocorridos fora do enquadramento do cerco. Não será de excluir que tenha tido acesso posterior aos discursos pronunciados pelos intervenientes nos momentos mais significativos dos acontecimentos, mas deverá reconhecer-se sobretudo a sua capacidade de variar o tom das intervenções, sendo magistral a apreensão do discurso que coloca nos lábios do representante mouro e a reprodução das missivas trocadas entre os sitiados de Lisboa e o governador muçulmano de Évora. O seu texto é de colocar em correlação com outros que relatam os mesmos acontecimentos; cf. H. Livermore, loc. cit.; Susan B. Edgington, "The Lisbon Letter ofthe Second Crusade", Historical Research, 69, 1996, 328-339. 6 A concentração dos cruzados fez-se em Dartmouth, porto de mar, no Sul de Inglaterra, de onde costumavam sair as expedições para o Sul, fosse em peregrinação fosse em outras iniciativas. Para aí se dirigiu o contingente alemão que saiu de Colónia no domingo 27 de Abril de 1147 e recebeu a bênção do bispo Milon de Thérouenne, na costa francesa, depois do que chegou a Dartmouth na segunda-feira, 19 de Março, sendo ai esperado pelo conde Aerschot (Flandres, na área de Lovaina), sobrinho do duque Godofredo I da Baixa Lotaríngia Cristiano de Ghistelles (na área de Ostende, na província da Flandres ocidental), Hervey de Glanville (Calvados, na Normandia) bem como os restantes são nomes cuja identificação não é totalmente líquida, embora provável. 7 O nome de família deriva provavelmente de uma povoação da Normandia (Pont-l'Évêque, Calvados). Relacionado com esta família parece estar o presumível autor do nosso texto, cujo pai seria homónimo do comandante do contingente inglês dos cruzados. Cf. Ch. W. David, loc. cit., p. 55, n. 2. 1 A necessidade de adequar os quatro condestáveis aos contingentes da armada leva-nos a fixar pontuação diferente da que tem sido seguida por outros editores e a assumir a copulativa et do original como elemento que liga frases e não meros elementos de frase, não nos parecendo argumento suficiente admitir que os homens de Norfolk e Suffolk ficassem sob o mesmo comando. Quanto aos números referidos no texto, retenha-se que as diversas fontes se inclinam para um quantitativo próximo de 200 navios. O número de homens andaria por 13 000. 9 O indictum remete para uma ordenança que tem por objectivo garantir a ordem no interior de um grupo. O termo reaparece algumas linhas mais abaixo. 10 A expressão latina iudices et coniurati, através de uma hendíadis, deixa entender que os juízes deviam prestar juramento para as funções de que eram incumbidos e que eram fundamentalmente as de resolver contendas e proceder a distribuição equitativa da presa arrecadada. De todas as fontes é o nosso texto o que melhor informa sobre a organização da expedição e as funções destes magistrados na manutenção da disciplina; cf. Ch. W. David, op. cit., p. 13. 11 O nosso autor presta extrema atenção às cláusulas do pacto aceite pelos cruzados; provavelmente a própria experiência de anterior cerco de Lisboa tinha-lhe avivado a sua recordação, já que tinha sido necessário invocá-lo para manter a boa harmonia entre homens de diversas origens cujas motivações não eram sempre das mais nobres e isentas nem os comportamentos de acordo com ordem ética superior. Ao que parece, não é caso único esta assinatura em Dartmouth, pois era o ponto habitual para tal acto, mas o nosso texto é um dos mais minuciosos entre os conhecidos, com a particularidade de implantar um regime

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de decisões bastante democrático. É possível, como sugere Henri Pirenne, que as cláusulas procedam de /eges pacis que constavam de cartas de municípios flamengos e germânicos; a própria terminologia para os cargos, como os de iurati, iudices e/ecti qui iudices et coniurati dicerentur, teriam aí a sua origem. Cf. Ch. W. David, ad /oc. 12 Estava-se a 23 de Maio de 1147. A Páscoa caíra a 20 de Abril e o Pentecostes seguir-se-ia a 8 de Junho. A chegada ao Porto será a 16 de Junho, havendo aí demora de onze dias. Em dois dias os cruzados percorrem a costa portuguesa, desde o Douro até ao Tejo, onde surgem a 28 de Junho, véspera da festa de S. Pedro. 13 Esta designação parece ser desconhecida de outras fontes; a explicação dos nomes por via etimológica está presente no texto e a própria forma de "Baleares" é explicada a partir do grego, mas não é de levar em menos atenção a subordinação a esquemas habituais em que a forma vemácula aparece acompanhada de uma outra pretensamente erudita, com apropriação de designações geográficas de outros lados. 14 São conhecidos os fortes temporais que frequentemente se levantam no Golfo de Biscaia. 15 Entre os monstros mencionados por Isidoro, Et., 11, 3, 30 ss., contam-se as sereias: "imagina-se que eram três, com metade do corpo de donzela, e outra metade de pássaro, dotadas de asas e de garras, uma cantando com voz humana, outra tocando flauta, outra, lira; com o canto atraíam os navegantes fascinados, arrastando-os para o naufrágio. Certo é que eram meretrizes que levavam à ruína os que passavam ... ". Note-se que a arte medieval mantinha a representação das sereias, como acontece no lanço sul do claustro do mosteiro de Santes Creus, na Catalunha (releve-se, no entanto, que é obra mais tardia, 1320-1360). Na simbólica cristã, a sereia é símbolo de tentação e de pecado. Os bestiários medievais falam das sereias como criaturas mortíferas, que cantam admiravelmente para encantarem os navegantes, a quem, depois, fazem desaparecer. Cf. E/ Fisiólogo- Bestiario medieval, trad. por Marino Ayerra Redín e Nilda Guglielmi, Buenos Aires, 1971, p. 52, n. 0 XV; lgnacio Malaxecheverría, Bestiario Medieval, Madrid, 1986, pp. 132-137; J. Leclercq-Marx, La sirene dans la pensée et dans /'art de /'antiquité et du moyen âge, Paris, 1998. O nosso texto apresenta a particularidade de acentuar o comportamento sinistro do monstro marinho. 16 O nosso autor, homem piedoso, interpreta em perspectiva religiosa o que não é mais que um incidente. O desenvolvimento da viagem e sobretudo o comportamento dos cruzados no cerco de Lisboa comprovarão que, se as razões explícitas eram de cunho religioso, outras havia que levavam homens mais ou menos desenganados das riquezas do mundo a buscá-Ias longe da sua terra, noutras partes, ainda que à custa da vida dos outros, independentemente dos compromissos assumidos com os companheiros e sem prejuízo de porem a vida deles em risco. 17 Provavelmente trata-se do porto de Gozón, que se deverá identificar com Luanco, que não fica muito longe de Penas de Gozón, na região de Oviedo, propõe Ch. W. David, ad /oc., baseado na aproximação de várias fontes. 18 Não parece possível identificar nem o acontecimento nem a igreja em causa. Ch. W. David, ad /oc., interroga-se sobre a hipótese de se tratar de San Miguel de Quilonio. 19 As referências são muito concretas e deixam entender que os ingleses estavam largamente relacionados com a costa espanhola. Efectivamente, a Historia Compostelana dá conta de participação de ingleses em acções que envolvem o próprio arcebispo de Santiago, Diego Gelmírez, no ano de 1112. A peregrinação a Santiago de Compostela, por parte das gentes do Norte da Europa, tomava a costa bem conhecida. O nosso autor dá uma indicação muito precisa relativamente a uma passagem por aquela zona dois anos antes desta viagem de

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1147. A peregrinação santiaguesa era efectivamente um acto habitual para os homens do Norte. Cf. Derek Lomax, "Los peregrinos ingleses a Santiago" in Paolo Cauci von Saucken (coord.), Santiago- La Europa dei Peregrinaje, Barcelona, 1993, pp. 373-383; Wendy R. Childs, "Inglaterra. Peregrinos a Santiago", in Santiago. La Esperanza - Xacobeo '99, Galicia, Santiago de Compostela, 1999, pp. 237-242, com remissão para D. W. Lomax, "The first English Pelgrims to Santiago de Compostella", in H. Mayr-Harting & R. I. Moore (coord.), Studies in Medieval History presented to R. H. C. Davis, Londres, 1985, pp. 165-175. 20 Segundo outras fontes (Dodequino, e Fonte Teutónica; cf. Ch. W. David, ad loc.), também outros cruzados, pelo menos os de origem germânica, se dirigiram a Santiago de Compostela em peregrinação e aí celebraram a festa de Pentecostes. 21 Trata-se de Padrón, a antiga Iria Flavia, onde, segundo a tradição, aportou milagrosamente o corpo de Santiago numa barca, antes de ser transferido para o local onde se ergueu depois a igreja catedral. 22 Possivelmente, segundo Ch. W. David, ad loc., trata-se do torpedo torpedo, que se distingue de outras espécies de raias pelas características apontadas. 23 Segundo Ch. W. David, ad loc., corresponderia à ilha Tambo, na Baía de Pontevedra. A relação entre as duas formas poder-se-ia explicar por deficiência de registo por parte do nosso autor ou por erro paleográfico em transcrições sucessivas. Atenda-se a que o nome de Framio ou Flamia aparece em textos do século X (Tumbo A de Santiago de Compostela, ed. M. Lucas Álvarez, Santiago de Compostela, 1998, doc. 21, p. 78) e na Historia Compostelana I, 103, 11 (ed. Ema Falque Rey, p. 245, n. 673). Nenhum dos editores, porém, localiza o topónimo, mas Tambo, que no Tumbo A aparece sob a forma de "Tanao", tem em seu desfavor a dimensão exígua da ilhota e a própria proximidade de Pontevedra, que, sendo importante porto de mar já no séc. XII, não deveria ter sido esquecido pelo cruzado. Mais provavelmente, segundo opinião de A. Herculano (PMH, Scriptores, p. 393) estaremos numa das Cies, na embocadura da Baía de Viga. A conjectura apoia-se na enumeração das ilhas costeiras feitas pela Historia Compostelana, onde "Flamia", a identificar provavelmente com "Framio", é a primeira ilha no caminho de sul para norte na costa galega e que, para o cruzado, seria o ponto de referência para a descrição que imediatamente depois continua para sul, a partir do rio Minha. 24 A existência de plantas cujas folhas serviam para colorir de púrpura é apontada por Plínio para a Lusitânia: HN 9, 141; 16, 32; 22, 3. Trata-se, provavelmente, do vermelhão, "vermiculum, rubrum, siue coccineum. Est enim vermiculus ex silvestribus frondibus, in quo Iana tingitur, quae vermiculum appellatur", segundo interpreta Papias. Aponta Ch. W. David, ad loc., que um glossário do séc. XI elucida sobre a variante worma do texto latino: "ostrum, wurma". As fontes britânicas não parecem abonar o termo; cf. Revised Medieval Latin Word-Listfrom British and Irish Sources, ed. R. E. Latham, Londres, 1973. 2s O nome de "Baleares" estende-se como designação comum às ilhas que circundam o continente europeu e pode ter na base uma interpretação errónea de autores antigos, como Salino, 23, 10-12 e Plínio, HN, 4, 119-120, 3, 76-78, se é que não há influência também de alguma carta antiga, como a dos Beatos, que colocam as Baleares no círculo que rodeia o disco continental; cf. mais abaixo. 26 Não parece possível chegar a uma identificação deste nome, pois na região são diversos os lugares com tal designação. 27 Estranha A. Pimenta que o autor tenha prestado atenção a um riacho como o Leça. É provável que isso não seja senão sinal de que se serve de alguma carta em que ele estava

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assinalado, ou está a seguir reminiscências de autores antigos, pois ele é referido por uma fonte como Pompónio Meia: "correm o Ave, o Leça, o Neiva, o Minho e o Lima, que tem o cognome de rio do esquecimento" (Corog. III, l, 10). 28 Pelas 15 horas. 29 Uma vez mais, o autor procede a uma interpretação formal do nome tal como o transcreve, muito embora a sua história remeta para origem diferente e Portus cale não seja outra coisa senão uma tautologia formada pela equivalência em línguas diferentes de dois termos que se mantêm juntos e acabam por se fundir. 30 O nome de moabitas vem da Bíblia, onde representa um povo vizinho de Israel estabelecido a leste do mar Morto, em período que vai do séc. XIII a VI a. C.; tem por epónimo Moab, concebido pela filha mais velha de Lotem relações incestuosas com o pai; cf. Gen. 19, 37. Nas fontes hispânicas (cf, por exemplo, Historio Compostelana), o termo é assumido como equivalente a almorávidas, certamente mais por assonância que por acinte. Na origem, esta segunda designação refere-se um movimento islâmico, nascido no segundo quartel do séc. XI com intenções reformistas e ganha importante desenvolvimento no decurso daquele século no Norte de África, sendo depois responsável na Península Hispânica por derrotas sofridas pelos cristãos nos anos imediatos à recuperação de Toledo, em l 085 (Zalaca, l 088; Córdova e Sevilha, l 091; Badajoz e Lisboa, l 094; Valência, 11 02), mas as suas forças esbateram-se algum tempo depois e permitiram o avanço da reconquista cristã, ao mesmo tempo que os almóadas surgiam em África. A Chronica Gothorum (Era de 1180 = A. D. 1142), opõe os Ismaelitas aos Moabitas, id est, Andaluces aduersus Arabes. Pode daí deduzir-se que os moabitas (ou árabes) eram considerados povo estranho à Península e por isso todos se levantavam contra eles e o seu nome constituía ofensa agravada. 31 Conhecidas desde a antiguidade eram as termas medicinais e as areias com pepitas de ouro. Estas são normalmente apontadas no rio Tejo; cf. Ovídio, Am. I, 15, 34; Lucano, Fars. 1, 755. No séc. XV, ainda D. João III manda procurar o ouro das areias do Tejo para fazer um ceptro; cf. Duarte Nunes de Leão, Descrição do reino de Portugal, Lisboa, 1785, p. 78. No entanto, também André de Resende se faz eco de particularidade semelhante para o Douro, referindo Sílio Itálico: "Se ignorássemos que o Douro leva ouro, poderíamos ser lembrados por Sílio, quando diz: 'Destes lados, Pactolo, vencem-te o Tejo e o Douro'." (Pun., I, 234); cf. André de Resende, Antiguidades da Lusitânia, trad. e com. de Raul M. Rosado Fernandes, Lisboa, 1996, p. 126. Não se conhece passo de autor antigo que atribua também propriedades medicinais às areias dos rios. 32 Segundo Duodequino, a recepção é festiva, com danças. O acolhimento prolonga-se pelos dias seguintes, enquanto se espera a chegada do conde Amulfo que andava perdido, após o temporal; segundo o mesmo Duodequino, o rei tinha previsto a venda de "vinho e de outros mimos" (aequam v.enditionem tam vini quam ceterarum deliciarum ex benivolentia regis habuimus, ou seja, "-tivemos uma venda a preço razoável tanto de vinho como de outros mimos, por deferência f-Io rei"). 33 A notícia fora transmitida peJos primeiros barcos que, não tendo sido apanhados pelo temporal, se haviam adiantado ~a chegada. Não é de excluir, todavia, que a expedição tivesse outros antecedentes, com1 preparação e intervenções de personalidades várias, como Bernardo de Claraval, que teria aceitado ou estabelecido contactos com o rei português. Cf. introdução inicial. 34 Já A. Pimenta chamou a atenção para o problema da equivalência do termo latino cimiterio (aliás, coemeterium). Notar-se-á que é justamente pelo séc. XII que se fixa uma

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topografia sagrada, em que o edificio da igreja (espaço "sacra!") é rodeado por um espaço funerário reservado à sepultura colectiva dos mortos, espaço este que, de "religioso" (para tal bastava que um corpo de cristão aí estivesse sepultado) passa a "santo" e protegido com privilégio de imunidade e isenção, uma vez delimitado e consagrado; em torno deles se implantavam as populações, fenómeno que se verifica então pela primeira vez na história ocidental. Mas, embora lugar religioso, o cemitério permanece, na Idade Média, "um espaço muito aberto, onde se desenrolavam inúmeras actividades habituais que nós qualificaríamos de profanas", depõe Michel Lauwers, "Le cimetiere dans Ie Moyen Âge Latin: Lieu sacré, saint et religieux", Annales, 54, 1999, 1047-1072. Em todo caso, porque não estamos com uma oposição entre espaço de igreja e espaço funerârio, mas se pretende definir um local junto da casa episcopal (episcopium), não parece ser o mais adequado o correspondente directo em português e por isso mais que "recinto sagrado", preferimos entender "recinto de protecção" ou "terreiro", como se pode testemunhar em outros usos e documentos do tempo; cf. J. F. Niermeyer, Mediae Latinitatis Lexicon Minus, s. u. "coemeterium". 35 Reconheça-se a multiplicação do termo "omnes", que mantemos na tradução. 36 Note-se que o latim é aqui assumido como língua comum de toda a cristandade e não propriamente como língua litúrgica; não estâ aqui, aliâs, em causa a pregação normal dentro da celebração eucarística, onde, segundo prâtica instituída desde o concílio de Tours, em 813, a homilia devia ser em língua vernâcula. Apenas indirectamente, e mais tardiamente, se pode recolher algum elemento nesse sentido em sínodos portugueses, como é o de Braga de 1285, que permite ordenar clérigos com mais de trinta anos, mesmo que não saibam latim; cf. Aires A. Nascimento, "Língua portuguesa e mediações religiosas", Revista do ICALP, 14, 1988, 82-99. Atente-se aqui também num aspecto formal da exposição do cruzado, na iteração do pronome "omnes" - todos; mais que na inabilidade de expressão parece revelar intenção de salientar o envolvimento de todo o contingente dos cruzados, num acto de comprometimento colectivo. 37 O discurso do bispo do Porto é uma peça oratória representativa da formação jurídica do seu autor, pois nele é possível descortinar uma sequência de elementos colhidos em fontes que utilizam as autoridades fundamentais que mais directamente são referidas; efectivamente na base estâ o conhecimento de textos como a Panormia e o Decretum de Ivo de Chartres, o Decretum de Graciano, a /sidoriana ou Pseudo-Decretais. Cf. Ernst-Dieter Hehl, "Kanonistische Vorlagen in der Predigt des Bischofs von Porto zu den Kreuzfahrern", in Kirche und Krieg im 12. Jahrhundert: Studien zu kanonischem Recht und politischer Wirklichkeit, Sttugart, 1980, pp. 259-261. As referências são assinaladas, a partir desta anâlise, na versão latina, para onde remetemos. 38 Ps. 117, 23. 39 Cf. Heb. 13, 13. 4 Cf. Isa. 55, 6. 41 Luc. 8, 5-ll. 42 2 Cor. 9, lO. 43 Cf. Gal. 3, 27. 44 Isa. l, 16. 45 Prov. 14, 30. 46 Parece ter-se aqui em conta que hâ momentos distintos na história da intervenção muçulmana na Península, jâ que os almorâvidas (moabitas) correspondem a tempos recentes. 47 Não parece haver razões para menção destes três topónimos: a Galécia é província jâ

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recuperada das invasões muçulmanas, Aragão é um reino com vida própria, Numãncia é cidade sem relevo especial naquele momento. Apenas se descortina uma intenção retórica pela dimensão geográfica e histórica que os três topónimos permitem sugerir. Na documentação de Braga, nas disputas de dignidade e de território com Compostela, ocorrem elementos similares. Na Historia Compostelana apenas uma vez (11, 52, 22) aparece 0 nome de Numantia para assinalar a ausência do arcebispo de Braga (D. Paio Mendes) de um sinodo em Compostela, em 1122; no caso, o arcebispo encontrava-se em Zamora, 0 que parece evidente que o nome invocado apresenta conotações que ultrapassam uma referência geográfica tão precisa como pareceria à primeira vista. Psa. 149, 7. Cf. Hier., Ep. 58, 2. É a partir deste passo que o discurso do bispo portuense apresenta uma cadeia de citações formada à base da utilização de fontes juridicas canónicas. Vejam-se as referências na parte latina do texto (aqui apenas são marcadas por aspas simples). Cf. Judit 10, 3; 16, 9. Cf. Lev. 18, 6. Mat. 15, 5. Amb., De off. 1, 36. Mat. 26, 52 Hier., Ep. 109, 3. lsid., Et. 18, 1, 2. Cf. Deut. 2, 26 ss. Cf. Aug., Ep. 173, 3. Num. 25, 7; Ps. 105, 31. Gen. 22, 16-18. Ioan. Chrysost. In Matth., Hom., xvn, 5. A forma do manuscrito é chyromachen que Ch. W. David, de acordo com as edições de Jerónimo, corrige para siromasten; João Balbo, no Catholicon, por sua vez, a esta palavra, que, em sentido literal, significaria espada, interpreta-a como correspondendo a 'fortitudo'. A forma do manuscrito tem a aparência de uma recomposição, a partir de elementos eventualmente conhecidos, chyro e machen, que permitiriam levar a entender "luta à mão armada". Hier., Ep. 109, 3. Os passos biblicos citados por Jerónimo são: Num. 25, 7; 1 Reg. 18, 40; Luc. 6, 16; Act. 5, 1-11; Act. 13, 11. Cf. Deut. 13, 6 ss: 6 si tibi voluerit persuadere frater tuus filius matris tuae aut filius tuus vel filia sive uxor quae est in sinu tuo aut amicus quem diligis ut animam tuam clam dicens eamus et serviamus diis alienis quos ignoras tu et patres tui 7 cunctarum in circuitu gen· tium quae iuxta vel procul sunt ab initio usque ad finem terrae 8 non adquiescas ei nec audias neque parcat ei oculus tuus ut miserearis et occultes eum 9 sed statim interficies sit primum manus tua super eum et post te omnis populus mittat manum 10 lapidibus obrutus necabitur... Rom. 6, 19. Cf. PL 33, 1098: dado como Aug., Ep. 13 (aliás 194), não parece ser texto autêntico. O texto da PL, aliás, apresenta uma variante relativamente ao nosso manuscrito: em vez de ocu/is apresenta coe/is. Deut. 32, 30. Lev. 26, 8. Esta previsão supõe que o rei português estaria a par dos planos dos cruzados; sem termos

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de conjecturar que as informações lhe teriam chegado por via terrestre, a partir da Galiza (hipótese sem dados a confirmá-la), não é de excluir que Afonso Henriques tivesse sido informado da pregação da segunda cruzada por parte de Bernardo de Claraval, tanto mais que as raízes familiares de ambos remontavam à Borgonha. A carta n. 0 308 de Bernardo para o rei português, através de um irmão deste (carta essa que não é formada por mais que algumas linhas, mas que sabemos suficientes, noutras ocasiões, para introduzir um mensageiro que apresentava elementos complementares), ganharia assim alguma consistência histórica e por isso garantirá a autenticidade que se pretendeu em algum momento infirmar. Além de H. Livermore, ad loc., cf. Jonathan Phillips, "St. Bernard of Clairvaux, the Low Countries and Lisbon Letter of the Second Crusade", Journal of Ecclesiastical History, 48, 1997, 485-497, onde se aponta que a própria espera feita pelos cruzados em Portugal era ajustada à movimentação de outros contingentes que deviam partir para o Oriente, o que leva a considerar que a participação no cerco a Lisboa não foi decisão inopinada, mas provavelmente combinada com o próprio rei português. Trata-se de D. João Peculiar, arcebispo de Braga entre 1138-1175, antigo bispo do Porto e um dos fundadores de Santa Cruz de Coimbra, figura fundamental no relacionamento de D. Afonso Henriques com a Cúria Romana. A Vila Tellonis reconhece-lhe uma passagem por França, em 1126 funda ou reorganiza o cenóbio de S. Cristóvão de Latões, é mestre-escola de Santa Cruz, a sua pessoa terá sido decisiva para a acção de D. Telo; é nomeado bispo do Porto por indicação de D. Afonso Henriques, em 1136, mas logo em 1138 passa a Braga; grande diplomata nas relações com a Cúria Romana, sabe ignorar as exigências do arcebispo de Santiago e intervém onde julga conveniente, sem temer reacções de adversários, nomeadamente na oposição entre Santa Cruz de Coimbra e o bispo desta cidade. Cf. Avelino de Jesus da Costa, "D. João Peculiar, co-fundador do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, bispo do Porto e arcebispo de Braga", in Santa Cruz de Coimbra: do século XI ao século XX, Coimbra, 1984, pp. 59-83. Para a Vida de D. Te/o, cf. Hagiografia de Santa Cruz de Coimbra, ed. trad. com. Aires A. Nascimento, Lisboa, 1998. A expressão de tempo é aproximativa; as fontes parecem apontar para o dia 27 de Junho como partida do Porto; cf. Ch. W. David, ad toe., que remete para a Fonte Teutónica. A informação procede de Solino, 23, 12, que interpreta mal Plínio, HN 4, 78. O mesmo que alcaçuz, palavra de origem árabe, e que na terminologia mais habitual tem o nome de "erva doce" ou "funcho". Ainda André de Resende, Antiguidades da Lusitânia, ed. cit., p. 121, refere: "O que Meia disse da Eritreia, ilha junto à Lusitânia e que hoje não se encontra em parte alguma, pode verificar-se, por provas bastante numerosas, que se adapta aos campos e ilhas do rio, quer se procure a riqueza dos produtos da terra quer a abundância da pastagem". O passo de Meia, III, 6, 47, é algo diverso: "In Lusitania Erythia est quam Gerionae habitatam accepimus, aliaeque siue certis nominibus adeo agris fertiles". A fonte é certamente Solino, 23, 12, que deriva também aqui de Plínio, HN, 4, 120; parece que o nosso autor se equivoca (ou será erro de transmissão do texto) ao dar a Peniche o nome de Gades, a ilha em que se situa Cádis. Cf. Ch. W. David, ad toe. A confusão geográfica pode ser resultado não apenas de um equívoco por assonância de nomes mas também de uma falsa imagem de mapas como o dos Beatos, em que as Baleares são colocadas ao longo da costa de Lisboa, a seguir à Ilha do Solstício que fica situada frente à Galiza; cf. Beato de Burgo de Osma, in Los Beatos, Bruxelas, 1985, pp. 38-40. Em hipótese, altamente remota, por dificil de confirmar para o tempo, poderá encarar-se a possibilidade de uma relação com o nome de Baal, cujo culto se confundia com o de Saturno

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e a Ora Maritima de Avieno situa precisamente nas Berlengas. Cf. Manuel Salinas de Frias, "EI «Hieron Akroterion» y la Geografia dei extremo occidente según Estrabón", Actas de/ l.er Congreso Peninsular de Historia Antigua (Santiago de Compostela, 1-5 Julio 1986), ed. Pereira Menaut, Santiago de Compostela, 1988, 11, pp. 135-147. Encontramos aqui a mais antiga referência a uma lendária fuga do rei Rodrigo para uma ilha ocidental, que noutros textos é considerada refúgio de sete bispos que com os seus fiéis, fugidos aos sarracenos, fundam sete cidades; o reconhecimento dar-se-ia no momento em que a Hispânia voltasse a ficar liberta dos invasores. Um traço desta lenda está mais atrás vinculado à ponte alçada junto à Torre do Farol. Para outras fontes, que se prolongam pelo séc. XV, seja-nos permitido remeter para o que dissemos na nossa introdução à Navegação de S. Brandão em fontes portuguesas medievais, Lisboa, 1998. Segundo D. Rodrigo da Cunha, Catálogo dos bispos do Porto, Porto, 1623, I, pp. 13, 16, 185, teria sido D. Sisenando I, bispo do Porto, quem teria dedicado à Virgem Maria as terras de Santa Maria. Sabido é que, em dias claros, o castelo avista-se do mar. Medica in Frigore no texto. Miguel de Oliveira propôs a identificação com Mesão Frio, a situar na "região de Albergaria-a-Velha, chamada em documentos antigos «Albergarie veteris de Meigonfrio»", onde, por 1117, Gonçalo Eiriz terá criado uma albergaria. "O monte que domina o território é chamado Mesão Frio em outros documentos antigos", confirma Miguel de Oliveira, Lenda e História- Estudos hagiográficos, Lisboa, 1964, p. 100 ss., n. 36. C f. igualmente Pierre David, "Sur la relation de la prise de Lisbonne ( 114 7), rédigée par un clerc anglo-normand", Bulletin des Études Portugaises, 2, 1947, 241-254. Depõe também Miguel de Oliveira, loc. cit.: "A única memória deste santo em território do Castro ou Castelo de Santa Maria( ... ) era uma ermida situada no termo da paróquia de Ovar e largamente documentada desde o princípio do século XI", a mesma que "no séc. XVII tinha por padroeiro S. Goldrofe e hoje é dedicada a Nossa Senhora da Ajuda". É óbvio que o texto troca a ordem das terras no que se refere a Soure e a Montemor (o pormenor, no entanto, vale mais pela retenção dos nomes que pela deficiência da ordem geográfica). Não será porventura de todo inócua esta precisão de fronteira para interpretar os conhecimentos que o cruzado recolhera num tempo em que as relações entre bispados derivadas de divisões de terras não eram totalmente pacíficas. Para que disso se pudesse aperceber, o cruzado deve ter passado localmente tempo mais largo que o do cerco à cidade de Lisboa. É óbvio que a redacção do nosso texto é anterior à implantação dos cistercienses na zona de Alcobaça e assim se explicará o seu silêncio a esse respeito; note-se todavia a expressão correspondente a ermamento, termo por demais marcado para poder tomar-se como pacífico. A deturpação dos nomes não é menor que a incorrecção das distâncias, mas, para se dirigir ao seu destinatário distante, ao cronista bastavam aproximações que concediam crédito ao seu relato. Isidoro, Etim. 13, 21, 33, pode ser a fonte: "Este rio tem grande quantidade de areias auríferas e, por isso, é mais celebrado que os restantes rios hispânicos". Cf. André de Resende, Antiguidades de Lusitânia, p. 121. A leitura do manuscrito é uos e não nos, garante Ch. W. David, ad loc.; a possibilidade de confusão entre u/n não pode deixar de ser levada em conta se tivermos presente que em nenhuma outra ocasião o narrador se dirige ao seu destinatário e por essa razão preferimos emendar como já fizera N. E. S. A. Hamilton, na transcrição solicitada pela Academia das Ciências de Lisboa e utilizada pelos PMH. De novo a fonte literária é Solino, 23, 5, fundado em Plínio, HN 4, 113. O passo deste é

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como segue: "Na Lusitânia, situada na Hispânia, existe um promontório a que dão nome de Ártabro, outros de Olisiponense, o qual separa o céu, terras e mares. Quanto às terras, domina ele um dos lados da Hispânia e assim divide o céu e o mares, porque rodando-o começa o Golfo da Gasconha e a frente setentrional, depois de se ter chegado ao fim do Oceano Atlântico e do Ocidente. Aqui se situa Lisboa, fundada por Ulisses, o rio Tejo, que sobreleva aos outros rios por causa das suas areias auríferas". Hâ um erro geogrâfico que é confundir o cabo Finisterra (Ártabro) com o cabo da Roca (Oiisiponense). Assinala pertinentemente Ch. W. David, ad loc., que o texto do anónimo parece depender de uma versão corrompida de Solino, por sua vez fundado no de Plínio. Escrevera este (no texto traduzido na nota anterior), HN, 4, 113-114: " .... promonturium ... Artabrum... terras, maria, caelum disterminans. lllo finitur Hispaniae Iatus et a circuitu eius incipit frons. Septentrio hinc oceanusque Gallicus, occasus illinc et oceanus Atlanticus.» Solino, 23, 5, apresenta: "Artabrum ... Hoc caelum terras maria distinguit: terris Hispaniae latus finit: caelum et maria hoc modo diuidit, quod a circuitu eius incipiunt Oceanus Gallicus et frons septentrionalis, Oceano Atlantico et occasu terminatis". Tendo em conta o texto das fontes, adaptamos uma pontuação diferente da de Ch. W. David, considerando a terris do nosso texto como membro independente da frase anterior, ainda que retomando-a: celum, terras, mario distingui/; a terris, eo quod... Na base, parece estar de novo Solino, 23, 6. Porém, as outras crónicas da conquista de Lisboa (Duodequino, Anónimo, Arnulfo) remetem explicitamente para "histórias dos sarracenos", o que esvanece um pouco a dependência de fonte latina conhecida, para deixar entender que a origem da cidade é recebida provavelmente da boca dos habitantes, após a conquista da cidade. Todavia, não é de excluir que o texto tenha sofrido corruptelas; se tivermos em conta que jâ anteriormente a forma da cidade é Lyxibona e aqui se apresenta a variante Ulyxibona, parece evidente que hâ intenção de buscar a maior aproximação possível do nome do epónimo Ulyxis. Não se nos afigura que o relativo inicial da frase latina tenha ligação directa com o que se acaba de enunciar; admitindo, porém, que se trate de elemento de passagem para a frase que se segue, preferiríamos admitir que quo escamoteia uma causal e que a frase estâ alterada no latim por outra que seria: Quod ab Ulyxe Ulyxibona oppidum ab eo conditum creditur. Assim traduzimos. Um texto de Marciano Capela, De nuptiis Mercurii et Philologiae, 6, 628-630, refere também a lenda da fundação de Lisboa: "Oiisipone illic oppidum ab Ulixe conditum ferunt, ex cuius nomine promunturium, quod maria terrasque distinguit. Nam ab eius ambitu inchoat mare Gallicum et facies setentrionalis Oceani, Atlanticus uero et occiduus terminatur, qui tum Hispaniae limitatur excursibus". Isidoro, Etim., 15, 1, 70, repete: "Oiisipona ab Ulixe est condita et nuncupata; quo loco, sicut historiographi dicunt, caelum et terra et maria distinguuntur a terris". Até aqui o anónimo serve-se do texto de Solino, 23, 1-4, relativo à Hispânia. Ainda no séc. XVI, Damião de Góis, na sua Urbis Olisiponis Descriptio, refere que no Chafariz d'EI Rei hâ uma fonte onde a âgua brota quente. As termas romanas da Rua da Prata são testemunho de uso antigo das âguas para fins medicinais. O cronista Edrisi celebra a fonte de âgua quente, tanto de verão como de inverno (cit. ap. A. Herculano, História de Portugal, III, p. 11). Neste passo, combinam-se passos das fontes literârias com a racionalização naturalista; na base estâ de novo Solino, 23, 7, que se funda em Plinio, HN 4, 116; 8, 166. O tema interessou eruditos como André de Resende, Antiquitates Lusitaniae, li v. I; cf. As Antiguidades da Lusitânia, introdução, tradução e comentârio de R. M. Rosado Fernandes, Lisboa, 1996,

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pp. 99 ss., com as respectivas notas, pp. 244 ss., onde se encontram também citados os artigos do mesmo R. M. Rosado Fernandes, "O vento, as éguas da Lusitânia e os autores gregos e latinos", Euphrosyne, 12, 1984, 53-77; "O vento, as éguas de Lisboa e os humanistas do Ocidente peninsular", in Actas de Primera Reunión Gallega de Estudios Clásicos, Santiago de Compostela, 1981, pp. 369-388. Para uma perspectiva antropológica, com pressuposto de um antigo mito anterior à presença romana, cf. José M" Blázquez, "Ultimas aportaciones a las religiones de Hispania", in Estudios dedicados a C. Callejo Serrano, Cãceres, 1979, p. 13. José C. Bermejo Barrera, "Los caballos y los vientos: un mito lusitano antigo", in Mitologíay mitos de la Hispania Prerromana, Madrid, 1982, pp. 87-100. 93 O número afigura-se "exageradíssimo, apesar daquele inexperado aumento", comenta A. Herculano, toe. cit., p. 16. 94 Assim traduzimos "ritus religionis" do texto, considerando que "religio" mantém aqui o primitivo valor mãgico que vincula a divindade e aquele que presta culto. 95 O nome parece poder interpretar-se como "Campo do Olival". A igreja do culto dos mãrtires terã sido uma ermida levantada junto do local onde os corpos dos mãrtires foram lançados à ãgua, provavelmente onde hoje se ergue a igreja paroquial de Santos-o-Velho. Segundo explica Damião de Góis, loc. cit., o nome de Santos "foi dado ao local por ali terem estado guardados durante longos tempos os corpos dos santos mãrtires Verissimo, Mãxima e Júlia". A transferência do lugar do culto para junto do rio parece ser jã do tempo de D. Afonso Henriques e aí se consolida no tempo de D. Sancho I, que faz doação à Ordem de Santiago, em 1192, da igreja construída por seu pai. 96 As formas do manuscrito remetem para identificação diferente da que se apresenta habitualmente, em que os nomes são Veríssimo, Mãxima e Júlia (tal como, mais abaixo, D. João Peculiar referirã); como aqui figuram, os nomes, todavia, coincidem com alguns dos "calendãrios moçãrabes do norte, que por vezes dão forma masculina a Mãxima ou feminina a Verissimo"; cf. Carmen Garcia Rodríguez, El culto de los santos en la Espana romana e visigótica, Madrid, 1966, pp. 280 ss.; Pasionario Hispánico (siglos VII-XI), ed. Ángel Fãbrega Grau, Madrid, 1953, Tomo I, pp. 216 ss. Não presumimos de qualquer valor das diferenças, mas não é de excluir que estejamos com duas tradições diferentes, embora com alargamento de culto documentado nessas mesmas variantes. A festa dos Mãrtires celebrava-se a 1 de Outubro, estando registada no Martirológio de Usuardo (composto por 875), e o martírio teria tido lugar na perseguição de 304, ao tempo do imperador Diocleciano, sendo governador Daciano, figura comum dos martírios no Passionãrio Hispânico. O culto é certamente antigo, mas os testemunhos existentes não parecem ser anteriores ao séc. IX. Note-se o registo dos calendãrios hispânicos: "Et in ipso est christianis festum lulie et sociorum eius, interfectorum in Ulixisbona, super mare occeanum". 97 Possivelmente hã aqui uma alusão a uma tentativa gorada por parte dos cruzados em anos não muito distantes e que a Chronica Gothorum coloca em 1140 ou 1142. Cf. Monica Blõcker-Walter, Alfons I von Portugal, Zurique, 1966, p. 155. 91 A expressão original é um tanto inãbil na forma; julgamos que, não obstante isso, o sentido é claro: o estado de alerta, por receio de serem surpreendidos, leva a manter a armadura durante a noite, o que leva a celebrar deste modo o oficio nocturno da vigilia. 99 Parece óbvio que a primeira acção foi individual e descoordenada do conjunto; estando entre os primeiros, o nosso anónimo não deixa de reclamar a prioridade para o seu grupo. 100 Esta família inglesa, que teria o apelido de "Calf', tem largas referências na documentação do tempo, até pela sua participação a favor da imperatriz Matilde e do conde Roberto de Gloucester contra o rei Estêvão nas guerras civis de Inglaterra. Raul é mencionado numa

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carta de Henrique 11, rei da Inglaterra e duque da Normandia, em favor da abadia de Santo Estêvão de Caen (1156); Guilherme é referido em outros documentos. Cf. Ch. W. David, op. cit., pp. 101-103. Ou Raul, em aportuguesamento mais linear. O termo scotti tinha âmbito mais largo que o de habitantes da Escócia. É jã dentro do séc. XII que scottus e Scottia deixam de ser aplicados a Irlanda por autores ingleses. A forma Iraland ocorre jã na tradução anglo-saxónica de Orósio feita pelo rei Alfredo (c. 871-901 ); por 1075, Adão de Bremen nas suas Gesta escreve "Hybernia quae nunc Irland dicitur". Cf. Mario Esposito, "Notes on Latin Learning and Literature in Mediaeval Ireland- V'', Hermathema, 25, 1937, 139-183 (rep. in M. Esposito, Latin Learning in Mediaeval Jreland, London, Variorum Reprints, 1988). Retenham-se os elementos fundamentais do pacto: I) os cruzados ficam senhores de todos os haveres dos mouros, nada cabendo dessa parte ao rei ou à sua gente; 2) os prisioneiros podem pagar resgate, mas o dinheiro vai todo para os cruzados, embora as pessoas fiquem sob dependência do rei; 3) uma vez tomada a cidade, ela fica à mercê dos cruzados, com direito a saque e à percepção do resgate; 4) posteriormente, a população, a cidade e as terras ficam sob administração do rei que faz a repartição como julgar melhor, atendo-se para tanto ao direito dos francos; 5) os navios e bens dos que tiverem participado na conquista ficam isentos de pedãgio para todo o sempre nos portos do rei. A expressão "aduocationis dominio" tem sido interpretada de vãrias maneiras. Herculano, op. cit., p. I 9, entende-a como "domínio eminente da coroa"; José Augusto de Oliveira considera possível admitir que se trata de "senhorio de vassalagem", mas opta por "direito de apelação", enquanto Ch. W. David propõe "overlordship of an advocate". Considerando que estamos perante uma relação feudãlica, não serão de excluir os direitos de vassalagem, nomeadamente o direito de assistência e serviço; por essa razão preferimos uma tradução que intenta respeitar um sentido mais global. No Elucidário de Santa Rosa de Viterbo, distingue-se a "portagem" ou "portadigo", de "pedãgio" ou "passagem"; no primeiro caso, a tributação é sobre as coisas, no segundo sobre as pessoas, mesmo que "não entrem à praça". Parece-nos que em pedatica do nosso texto estã em causa o pedagio quasi a pedibus, "pois só calcando a terra de certo senhorio se pagava", mas com a restrição para mercadorias. Trata-se de D. Hodório ou Honório, antigo regrante de Coimbra. No documento, chama-se a Fernão Mendes sogro do rei, o que é erróneo, pois o pai da rainha era Amadeu III, conde de Mauriana e Sabóia. A identificação destas testemunhas pode ser feita pela documentação do tempo. Trata-se: I. D. João Peculiar, arcebispo de Braga ( 1138-11 75); 2. D. Pedro Pitões, bispo do Porto (1146-1152); 3. D. Mendo, bispo de Lamego, anteriormente cónego de Santa Cruz de Coimbra; 4. D. Odório, bispo de Viseu, também antigo cónego de Santa Cruz; 5. Fernão Mendes, cunhado (e não sogro, como erroneamente se regista no documento); 6. Fernão Mendes Cativo, alferes-mor entre 1130-1136 e mordomo-mor da cúria em 1146-1155; 7. Gonçalo Rodrigues (1128-1154); 8. Gonçalo Mendes de Sousa (1129-1167), que foi mordomo-mor em 1157-1167; 9. Mendo Afonso (1128-1160), copeiro ou submordomo-mor do rei; 10. Moço Viegas, de Lamego (I 139-1162), filho de Egas Moniz de Riba-Douro; 11. Pedro Pais, que foi alferes-mor em 1147-1169; 12. João Viegas, por alcunha Ranha ( 1116-1148); 13. Gonçalo Sotero é nome desconhecido. Cf. Rui de Azevedo, Documentos Medievais Portugueses, Vol. I, tomo I- Documentos Régios, doc. n. 0 223, p. 274; tomo 11, apêndice, nota XLVII, pp. 717-725.

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Alexandre Herculano, História de Portugal, III, p. 20, interpreta esta clãusula como denúncia de comportamento menos correcto por parte do rei que, em tempo anterior, teria desertado sem dar conhecimento aos seus aliados. O sentido não parece sofrer dúvidas, ainda que a expressão latina seja menos clara; em tradução literal seria "não fosse parecer que os atacãvamos senão contrariados". O termo latino "ingratos" sugere, no contexto, uma relação de inimizade que a expressão "persona non grata" exprime por outra forma. A expressão reflecte certamente a intenção de chamar a atenção para o que se pretende fazer: restabelecer os direitos que nunca cessaram e por isso se invoca a figura do rei, que não pode ser outro que Rodrigo, sacrificado por causa dos pecados do seu povo, cuja expiação chegava agora ao fim, segundo interpretação da própria Chronica Gothorum, pois os mouros eram escorraçados da Hispânia. Faz notar Ch. W. David, ad loc., que a data de 789 corresponde ao tempo em que os muçulmanos consolidaram o seu dominio através da acção de Abderramão I (756-788). Deverã reter-se que essa data, apresentada como aproximativa, corresponde também ao periodo em que, segundo a Chronica Gothorum, se situa a acção de Afonso I em campanhas sucessivas, contra os mouros; a pretensão de recuperar a terra ocupada por outros retirava a estes a legitimidade da posse. Os "varões apostólicos", ou fundadores das mais antigas igrejas episcopais hispânicas, aparecem jã em Actas escritas pelo séc. VIII. Os seus nomes são: Torquato, de Acci (Guãdix), Tesifonte, de Bergium (Bejar); Esicio, de Carcer (Carcesa); Indalécio, de Urci (Aimeria); Secundo, de Abula (Abla); Eufrãsio, de Iliturgi (Andújar) e Cecilio, de Illiberis (Elvira). Teriam sido enviados a Espanha por Pedro e Paulo a partir de Roma. Tendo chegado a Acci, foram perseguidos pelos pagãos, mas deles foram milagrosamente salvos, pois, quando eles corriam no seu encalce, desabou uma ponte que atravessavam. Dispersaram-se eles pela região hispânica a evangelizã-Ia. Foi-lhes dedicado um monumento em Guãdix, onde todos os anos lhes era prestado culto no dia 1 de Maio junto de uma oliveira que florescia nesse dia. Esse culto espalhou-se e entrou nos martirológios, calendãrios e livros litúrgicos. A legenda deriva certamente de tentativas mais ou menos generalizadas de garantir apostolicidade para as diversas igrejas. Cf. Dom Henri Quentin, Les Martyrologes historiques du Moyen Âge, Paris, 1908, p. 102; J. Vives, "Varones apostólicos", in Diccionario de Historia Ecclesiástica de Espana, Madrid, 1975; J. Vives, "Tradición y legenda en Ia hagiografia hispânica", Hispania Sacra, 18, 1965, 495-508; Ángel Fãbrega Grau, Pasionario Hispánico, Madrid, 1953, I, 125-130. A legenda deve ter tido ramificações, mas é praticamente impossivel seguir o seu percurso; é provãvel que sob o nome de Victor pretenda João Peculiar referir-se a S. Victor de Braga, que, segundo o Pasionario Hispánico, era apenas catecúmeno; sob o nome de Pelãgio estã certamente o célebre mãrtir de Córdova do ano 925, cujo culto se difundiu rapidamente, chegando até ao Reno e ganhando os favores da corte Ieonesa. Posteriormente, junta-se-lhe S. Pedro de Rates como discipulo de Tiago, o qual teria sido o primeiro bispo de Braga; na mesma sequência Basileu, também discipulo de Tiago, seria o fundador da igreja do Porto. Para Évora jã o Livro das Calendas da Sé de Coimbra, para o dia 21 de Maio, mencionava o nome de Manços, que André de Resende admite como tendo participado na entrada trioofal de Cristo em Jerusalém e acompanhado a Última Ceia. Cf. Miguel de Oliveira, "Lendas apostólicas peninsulares", in Lenda e História, Lisboa, 1964, pp. 79-110; J. Femãndez Catón, San Maneio; culto, leyenda y re/iquias, León, 1983. Ainda que a forma do nosso manuscrito seja "Ageiano", esta costuma ser interpretada

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como deformação de Daciano, nome que aparece habitualmente consagrado nas actas dos mártires hispânicos, a partir certamente da antiga legenda de S. Vicente de Valência; para os problemas levantados por este "ciclo", cf. Baudouin de Gaiffier, "Sub Daciano praeside. Étude sur Ies passions espagnoles", Analecta Bollandiana, 72, 1954, 138-152, onde se contestam opiniões de A. Fábrega Grau, Pasionario Hispánico, Madrid, 1953, I, pp. 67-78. Quanto à figura histórica do governador hispânico, às ordens de Diocleciano e Maximiano, aduz o mesmo autor que as notícias são escassas e sobretudo inseguras, ainda que lhe tenha sido alegadamente atribuída uma inscrição, pois esta não apresenta base de autenticidade: CIL, t. li, p. 5*, n. 0 17; Act. SS., Oct., t. XII, p. 195; A. Périn, Totius /atinitatis onomasticon, I, p. 453; ThLL, Onomasticon, Ill, col. 8. 116 Note-se que o nome dos mártires dado por D. João Peculiar difere do que atrás lhe havia sido dado, mas as variantes são possíveis e podem significar que o cruzado não intentou resolvê-Ias ou será também de admitir que as diferenças existiam nos diversos calendários locais (sem que isso constituísse óbice de um mesmo culto). 117 Há confusão óbvia neste passo, pois não consta que tenha havido qualquer concílio em Toledo no reinado de Sisebuto (612-621) e sob a presidência de Isidoro de Sevilha (600-636) e muito menos com a presença de um bispo de Lisboa de nome Viárico; de facto, este assiste ao IV Concílio de Toledo, em 633, ao tempo de Sisenando, sendo um dos sessenta e seis bispos que assinam as actas, sob a presidência de Isidoro, voltando a estar no V Concílio de Toledo, em 636, mas já sob a presidência de Eugénio, e no seguinte, em 638. A referência ao concílio de Toledo entra numa ordem de provas que não deixariam de ter importância para os próprios interlocutores do lado muçulmano. 118 Aqui D. João Peculiar não é tão concreto como o cruzado, pois este refere-se a uma igreja dedicada aos mártires na zona de Campo lide. 119 Note-se que, pelo IV Concilio de Toledo, can. 57, se proibiam as conversões forçadas. 12° Cf. Séneca, Ep. 22, I. Na verdade, já o escritor romano o apresenta como provérbio: "Diz um antigo provérbio que o gladiador só forma o seu plano na arena a partir da observação do rosto do adversário, do modo como mexe os braços, da própria postura do corpo". 121 Em anos relativamente recentes, deve ter havido incursões da parte do rei português combinadas com os cruzados. A Chronica Gothorum situa pelo ano de 1140 uma acção movida por forças cristãs, em que o rei português teria sido apoiado por uns setenta navios de homens vindos de partibus Galliarum e se dirigiam a Jerusalém. A expressão é vaga: eodem quoque tempore, mas deixa entender momento posterior, que se supõe ser por 1142. Os cruzados, "vindos inopinadamente das partes das Gálias", seriam gente de várias origens e tiveram contacto com o rei português na cidade do Porto. A acção sobre Lisboa não resultou em mais que devastação dos arrabaldes. As palavras do representante mouro e do próprio bispo do Porto deixam entender que os ataques se haviam multiplicado nos últimos anos; a própria relutância dos cruzados em aceitar as propostas do rei português pode ser encarada como resultante de algum entendimento menos feliz em acções anteriores. Cf. Ch. W. David, op. cit., pp. 16 ss. 122 A expressão utilizada, "nostra magnanimitas", corresponde a fórmula de solenização bem conhecida na linguagem curial desde a antiguidade tardia e pode, uma vez mais, traduzir a estilização com que o nosso narrador marca a intervenção do representante muçulmano. 123 Repare-se como o fatalismo islâmico está aqui bem retratado pelo bispo do Porto. 124 A resposta do bispo do Porto é tão directa como altiva relativamente às invectivas do orador muçulmano. 12' As conjecturas indicam que se trata do Monte da Graça, também designado por Monte de

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S. Gens; assim Júlio de Castilho, Lisboa antiga, Parte 11, 11, p. 111, a quem segue Ch. W. David. 126 Está-se a I de Julho. 127 Mantemos o tenno latino que leva a entender mais a função que um local plenamente instalado; teremos de admitir que o rei tinha o seu espaço reservado para tratar fonnalmente dos assuntos e receber quem a ele se dirigisse. 128 Este procedimento do bispo deixa entender que se fonnam os preparativos espirituais para a luta decisiva. 129 Segundo reconstituição de Júlio de Castilho, Lisboa Antiga, Parte 11, 11, p. 127, o cemitério situar-se-ia na vertente do Monte da Graça e seria a identificar com o Almocavar, onde até ao séc. XVI ficava o cemitério de mouros e judeus e hoje é o Intendente. 130 Anota A. Herculano que, ao todo, em depósito, haveria "mais de um milhão de alqueires ou dezasseis mil moios". 131 Consideradas como sendo a Porta de Alfofa, Porta de Ferro e Porta do Mar. Cf. Augusto Vieira da Silva, A cerca moura de Lisboa, Lisboa, 1899, pp. 47-68. 132 A carta de Amulfo é mais larga na notícia, mas menos precisa na localização: "Os corpos de alguns dos nossos innãos, falecidos em várias ocasiões, estão sepultados nas imediações de Lisboa. Da sua paz eterna dão testemunho alguns mudos de nascimento, a quem a divina clemência fez falar: a um, na festa de S. Gens e seus companheiros; a outro, despertou-o do sono, levou-o ao sepulcro dos mártires pela mão de um homem que lhe apareceu muito resplandecente, e aí prostrou-o em êxtase e soltou-lhe a língua. De igual modo, ouvimos um outro, por graça da mesma clemência, a falar ali na festa de Todos os Santos e dando louvores Àquele que é admirável nos seus santos". Tratava-se da igreja de S. Vicente de Fora, a oriente, e da igreja de Santa Maria aos Mártires (segundo expressão do lndiculum fundationis monasterii S. Vincentii), no Monte de S. Francisco, a ocidente (não no local onde depois se viria a situar igreja da mesma invocação, ao Chiado, porque só para aí foi transferida em 1769, na sequência do terramoto de 1755, mas algum tanto mais a sul, a meio da colina). O lndiculum dá a notícia de que uma das sepulturas era a do cavaleiro Henrique de Bona e que, em razão dos milagres que ali se realizavam, os cristãos passaram a considerá-lo mártir da fé, pois tinha vertido o sangue contra os mouros; por outro lado, os surdos-mudos eram da armada dos francos (a tradução portuguesa medieval fá-los-á companheiros do próprio Henrique). Terá sido motivado por estes milagres, interpreta de novo a tradução medieval, que o rei projectou fazer no sítio dos cemitérios dois mosteiros. Pelo contrário, o texto latino do lndiculum salienta que o voto da construção dos mosteiros é de iniciativa anterior e pretendia satisfazer os sufrágios por alma dos que tombavam em combate (motivo comum na piedade medieval). Não é senão posterionnente que o mosteiro de S. Vicente, mantido como fundação régia e isento da jurisdição episcopal desde a fundação, passa a comunidade regular (primeiro entregue a um pequeno grupo de monges que pretendiam colocar o mosteiro sob regra premonstratense, depois como cónegos regrantes). Cf. a edição do Indiculum que damos em apêndice. 133 O "suíno", também conhecido por "vínea", ou manta de guerra, servia para os soldados se abrigarem quando se aproximavam das muralhas e para abrirem fossos; o "aríete" era uma máquina destinada a investir directamente contra as paredes da muralha. 134 O milagre aparece com mais desenvolvimento no lndiculum. Anota Ch. W. David, ad loc., que a prática do pão bento distribuído como protecção antes das batalhas parece ter sido uma prática comum. O lndiculum chama-lhe eulogia, tenno antigo que aparece no ltinerarium Egeriae. Os outros textos das crónicas da conquista de Lisboa não narram este

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milagre; nesta singularidade estará mais um indício de que o nosso autor permaneceu em Portugal após a tomada da cidade, mas sem que o seu relato dependa da versão proposta pelo lndicu/um, como se pode ver na interpretação que surge já de seguida. A interpretação do lndicu/um é diferente, ainda que relacionada com juizo também desfavorável aos cruzados, pois se vem a descobrir que o pão (que não é eucarístico) tinha sido feito com farinha roubada. Literalmente, "fundas baleares". Segundo Ch. W. David, a expressão fundae baleares aparece nas crónicas da primeira cruzada e teria a sua origem na leitura incorrecta de um passo das Etimologias, XIV, 6, 44, em que o nome das ilhas Baleares é interpretado a partir do grego baile in e associado a "funda", pela boa razão de ter sido ali que pela primeira vez se teriam usado as fundas de atirar pedras. Procuramos manter a nossa tradução o mais próximo possível da versão latina da carta, para melhor se poder apreciar a diferença de registo de escrita que o próprio cruzado inglês pretendeu manter. A. Herculano interpreta como "wali ou kayid". No original, em substantivo abstracto, "calamitas", o que torna a expressão mais pungente. Note-se como se reduzem ao minimo os elementos epistolográficos, respeitando, aliás, a norma da prática medieval. Entenda-se "vossa prudência" como uma forma de tratamento, não confinada a fontes muçulmanas, pois tal modalidade era comum desde longa data na própria administração imperial e alargou-se em período medieval, não faltando ainda hoje traços em expressões como "vossa santidade, vossa beatitude, vossa mercê, vossa excelência", que procedem de tratamentos cerimoniosos. A expressão original é "liberdade de corpos", mas o sentido não parece oferecer dúvidas. Fazem notar os comentadores, como Ch. W. David, que não se conhece qualquer documento a esse respeito, mas era política de Afonso Henriques procurar entendimentos com os chefes muçulmanos, no que era bem sucedido, dadas também as rivalidades existentes entre estes. Cf. A. Herculano, História de Portugal, 11, pp. 200-212; III, pp. 53 ss. A. Herculano, /oc. cit, p. 30, deixa em suspenso a autenticidade desta carta, mas não parece haver razões para a sua existência ser considerada mero expediente literário criado pelo nosso cruzado. As outras crónicas salientam a extrema miséria de fome a que se encontra votada a população mais humilde, que é obrigada a comer animais domésticos (cães e gatos, diz Duodequino, horrorizado). Não parecem manifestas as razões que tenham levado o rei português a dispersar os seus homens. Porque estava convencido de que a cidade se renderia em breve? Precisaria deles ao menos para assegurar o cumprimento do pacto... Porque desconfiaria que estava em perigo a segurança de Santarém? Ou, como manobra de diversão, pretendendo assim enganar os sitiados, levando-os a acreditar que a desmobilização lhes dava oportunidade de virem a campo expulsar os estrangeiros? Porque considerava duro cumprir as condições que os cruzados haviam negociado com ele? É duvidoso que o rei tomasse a iniciativa de retirar os seus homens, a não ser que, como lembra A. Herculano, /oc. cit., p. 31, esses mesmos homens considerassem ter caducado o tempo em que se haviam obrigado a acompanhar o rei na guerra, tempo que, "por via de regra não excedia a três meses". De qualquer modo, o bispo do Porto, que servira de mediador junto dos cruzados, permanece com eles. Não se diz, no texto, em que momento o rei e os seus, incluindo os bispos que o acompanhavam, voltaram ajuntar-se aos estrangeiros.

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Fazem notar os comentadores que é algo estranho que o nome da cidade "Sancta Hyrenea" não coincida aqui com a designação mais antiga, Sca/abis, usada pelo nosso autor em passo anterior. Cf. A. Herculano, op. cit., 111, 31 ss. Qual delas seria mais familiar ao nosso autor? A substituição parece anterior ao séc. X, a julgar por fontes muçulmanas. O culto de Iria I lrene, mártir de tempos visigóticos e vítima de desejos não correspondidos ou pretensamente atraiçoados (estes aspectos nunca foram devidamente explicados pelos estudiosos da legenda). O advérbio "utrimque", que tem outras ocorrências no texto (oito, no total) supõe, em princípio, duas partes; não serã de excluir que possa entender-se como reportando-se à ponderação dos prós e dos contras em decisão a tomar. O fosso subterrâneo situava-se "na extensão que vai da Rua da Padaria, entre o Largo de Santo António da Sé e a esquina junto ao arco da rua das Canastras; esta mina viria a ser inutilizada pelos mouros na segunda-feira 29 de Setembro, dia de São Miguel, conforme nos diz Arnulfo" (José da Felicidade Alves, /oc. cit.). Outras fontes colocam esta acção entre 8 de Setembro e meados de Outubro. Segundo Duodequino, foi um engenheiro de Pisa, "homem de grande engenho" (quidam Pisanus natione, uir magnae industriae) quem arquitectou o aparelho que foi colocado justamente no local em que antes havia sido destruída a torre dos ingleses; as despesas foram cobertas pelo rei e o exército todo colaborou na execução (pormenores que o nosso texto omite e que A. Herculano, op. cit., p. 33, atribui "a malevolência do cruzado inglês para com Afonso 1"). Cf. Duodequino, Fontes Medievais da História de Portugal, ed. A. Pimenta, Lisboa, 1948, p. 128; Arnulfo, HF, XIV, 326. A torre tinha nada menos que 25 metros de altura (83 pés). Segundo A. Vieira da Silva, A cerca moura de Lisboa, p. 43, a acção desenvolver-se-ia no pano de muralhas do lado oriental, entre o local do Limoeiro e a Calçada de S. João da Praça. A falta de alimentos é assinalada por outras crónicas do cerco; Duodequino salienta que, devido à fome, os muçulmanos se entregavam e pediam o baptismo. A correspondência com "lenha" estã subjacente à expressão de Duodequino, "multis Iignibus", embora o nosso texto prefira uma expressão diferente "ignis materia". Segundo informa Arnulfo, na noite de 16 de Outubro (festa de S. Galo) foi lançado fogo à mina e, tendo ardido a madeira, deu-se a derrocada de um pano das muralhas, numa extensão de uns 60 metros (cerca de 200 pés, refere Duodequino). Seria provavelmente na zona de Alfama, pelo lado das Portas do Sol. Segundo Duodequino, os cristãos são acordados com o estrondo da derrocada, prova que ela não estava directamente prevista para momento determinado. Reconheça-se que, ao desespero de situação vivida pelos mouros, se acrescentam reflexões do nosso autor, dispostas em cadeia formada pela mesma partícula "nam"; no inicio do parãgrafo, as adversativas "at vero" introduzem um inopinado de situação que esperaríamos fosse descrita antes, mas compreende-se que a atenção esteja prioritariamente centrada no acontecimento da derrocada da muralha. Enquanto o nosso autor atribui as dificuldades de progressão à natureza do terreno, Duodequino aponta que os obstãculos vinham do tapume que os sarracenos haviam levantado durante a noite e que era formado por um monte de pedras da altura de um homem: "Sarracenni vero reliquum noctis in restauratione muri Iaborantes, terra ex Iapidibus aggerem ad mensuram humanae staturae comportauerunt". Segundo Duodequino, funcionaram também as balistas (mangenis) a fim de impedirem que os sarracenos construíssem alguma barreira.

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Segundo outras fontes (cf. Amulfo, Fontes medievais... , p. 138, I. 20), a luta que havia começado à meia-noite (cf. Brief des Priesters Winand, cit. ap. Ch. W. David, ad toe.) só terminou pela hora nona, o que corresponde às 15 horas do dia. 158 A versão de Arnulfo é diferente e talvez complementar: não é tanto a expectativa da rendição por cansaço dos inimigos que se anota, mas sim que são os cristãos que, "debilitados pelas feridas, se retiravam da luta, à espera de que se fizesse a aproximação da torre e por esse meio fosse abatido o povo dos sarracenos". Por outro lado, "à mesma hora, enquanto os lotaríngios simulavam um ataque junto da brecha da muralha, o exército da nossa parte investia contra os sarracenos com ímpeto que causava admiração". Advirta-se igualmente que o nosso texto é omisso relativamente a outros pormenores, possivelmente para não melindrar; assim, o mesmo Arnulfo aprecia negativamente o comportamento dos portugueses: "Entretanto, os soldados do rei, que combatiam no alto da torre, amedrontados pelas manganelas [sic. balistas] dos mouros, lutavam com tão pouca valentia que os sarracenos teriam queimado a torre se os não impedissem alguns dos nossos que por acaso vinham até eles". C f. op. cit. 159 Como se pode verificar, cada grupo pretende garantir a sua posição e não admite intromissões alheias, ainda que comprometendo ou atrasando o êxito final. De acordo com esta perspectiva, não hesitámos em modalizar a expressão "rogantes", traduzindo-a por "instar", ainda que esperássemos um verbo mais forte para exprimir a reacção dos flamengos e colonienses frente ao aproveitamento que os normandos e ingleses se apressavam a fazer. 160 Cf. Rom. 13, 7: reddite omnibus debita cui tributum tributum cui vectigal vectigal cui timorem timorem cui honorem honorem. 161 Cf. Mat. 26, 67; 27, 29-30; Marc. 14, 65; 15, 17-19. 162 Malac. 1, 7-8. 163 1 Cor. 3, 19. 164 Sap. 1, 4, 165 Cf. Col. 3, 1-2: igitur si conresurrexistis Christo quae sursum sunt quaerite ubi Christus est in dextera Dei sedens quae sursum sunt sapite non quae supra terram. 166 Sir. 10,15. 167 Sir. 1O, 14. 168 O texto é também aqui muito rebuscado, sem que isso tenha de imputar-se a dificuldade de reconstituição por parte do nosso autor (que alguns pretendem identificar com o próprio orador no caso presente). 169 Psal. 24, 7. 170 1 Tim. 1, 13. 171 Mat. 3, 8. 172 Psal. 61, 11. 173 Psal. 36, 3-4. 174 Reminiscências da liturgia dos defuntos estão patentes em cada uma das frases do orador. Diferentemente da apreciação de Ch. W. David, ad toe., parecem-nos elas mais evidentes que qualquer relação com o triunfo de Constantino ou com a própria festa da Exaltação da Santa Cruz que celebra a invenção do madeiro da crucifixão por Santa Helena, mãe de Constantino, e recuperação da mesma frente aos bârbaros de Cósroas. m Cf. Phil. 1, 21. 176 Cf. 1 Cor. 9, 23. 177 Cf. Rom. 8, 35 ss. 157

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Rom. 9, 3. Psal. 112, 7. 110 Psal. 77, 70. 111 Com esta conjectura intentamos sanar uma lacuna de texto notada por editores precedentes; para isso baseamo-nos em passo bíblico que parece estar na base da formulação do nosso autor; cf. Sir. 18,13: "qui misericordiam habet et docet erudit quasi pastor gregem suum". 112 Cf. Zac. 11, 15: et dixit Dominus ad me adhuc sume tibi vasa pastoris stulti. 113 No dia 20 de Outubro. 114 Anota José Felicidade Alves, op. cit., nota 45: "Essa torre da Cerca Moura estava situada no saliente sudoeste, ligada à muralha por uma quadrela do muro. A sua função era a de proteger a norte o lanço da muralha que ia até à Porta do Ferro (actual largo de Santo António da Sé), e para nascente até à porta que hoje se chama Arco de Jesus. Vieira da Silva conjectura que seria a Torre da Escrevaninha, que desapareceu talvez cerca de três séculos depois da conquista. A porta férrea, a que se alude no texto, não é de identificar com a Porta de Ferro (actual Largo de Santo António da Sé), mas a que depois se chamou Porta do Mar (actualmente Arco Escuro)." m Faz notar Ch. W. David, ad loc., que pode haver aqui alguma incorrecção e o autor devesse ter escrito sinistram em vez de dextram. O facto é que tudo depende da perspectiva, sendo inversa a orientação de sitiadores e sitiados. 116 Entende A. Herculano, op. cit., p. 37, que se trata de "cem portugueses e cem anglo-normandos", que não corresponde ao texto. Também não se pode entender"gallicianis" como galegos, pois o termo nada tem a ver com "Galicia", mas com "gallus", sendo bem comprovada a sua atestação desde longa data, c. 730; aliãs, embora sejam conhecidas as ligações à Galiza por parte das forças inglesas desde o tempo do arcebispo Gelmires, não havia qualquer contingente galego antes mencionado. 117 Ou "galês". Anota A. Herculano, loc. cit., p. 37, que a gata é uma máquina de guerra cujo nome provinha do facto de servir para minar à raiz dos muros. O termo waliscus aparece em fontes inglesas, a partir de 1086, aplicado a galeses. 111 Dia 21 de Outubro. 119 Provavelmente o engenheiro de Pisa que acompanhava os cruzados e construíra a máquina de ataque; cf. Duodequino, loc. cit., p. 128, I. 9. 190 Segundo outras fontes, como Duodequino, são os lotaríngios que, sobressaltados pelo desânimo em que se tinham deixado cair os soldados do rei, tomam a iniciativa de subir à torre e empreender de novo a luta; fazem-no com tal veemência que os sarracenos pedem tréguas. Cf. Ch. W. David, ad loc., que transcreve o texto de Brief des Priesters Winand, pp. 6-7. 191 Fernão Cativo é o alferes-mor português. Sublinha A. Herculano que não é de todo anódino que seja o alferes-mor português acompanhado pelo comandante dos normandos a conduzir as negociações, pois isso revela a importância estratégica da intervenção de uns e de outros perante os demais intervenientes. O peso dos lotaríngios e dos flamengos, ainda que acentuado por Amulfo, não foi certamente tão determinante. Por seu lado, o lndiculumfundationis monasterii S. Vincentii sublinha sobretudo a acção do rei português. 192 De novo vem a campo ressentimento anterior, sem que saibamos que factos se tenham dado em ocasião anterior que tenham prejudicado as relações entre os cruzados e o rei português. 193 Esta expressão "vasa iniquitatis", aqui utilizada no nosso texto, apenas aparece uma vez 171

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na Bíblia, em Gen. 49, 5, quando Jacob se despede dos filhos, antes de morrer, em aplicação a Simeão e a Levi. 194 O dia de entrada é assinalado pelo lndiculum como sendo o dia 25 de Outubro. Porém, jâ a Chronica Gothorum antecipa para o dia 24 (IX Cal. Nouembr.), uma sexta-feira. A. Herculano, op. cit., p. 46, n. 2, chama a atenção para as discrepâncias entre as fontes e admite que a rendição estâ consumada em 21, com a suspensão dos ataques e a entrega dos reféns, mas provavelmente terão decorrido dois dias para combinar os pormenores de entrada de forma disciplinada, o que, não obstante todos os esforços, acabou por não ser totalmente conseguido. 195 A cerimónia de entrada tem carácter de júbilo e de purificação, sendo isso expresso nos cantos que se entoam. 196 A existência de um bispo moçârabe na cidade não é de espantar como não é de admirar a condenação que o nosso autor faz do acto praticado pelos cruzados francos. Também D. Teotónio, prior de Santa Cruz de Coimbra, invectivarâ Afonso Henriques por ter aprisionado os cristãos que havia encontrado entre os mouros. Não hâ, porém, outras informações relativas à organização da presumível comunidade cristã que se encontraria dentro da cidade; e facto é que nem o rei nem os cruzados ou os próprios bispos se parecem ter preocupado com a sorte dos cristãos. Estes teriam o seu culto, ao que hoje se pensa, na igreja de Santa Cruz do Castelo; cf. Maria João Branco da Silva, "Reis, bispos e cabidos: a diocese de Lisboa durante o primeiro século da sua restauração", Lusitania Sacra, 2.• série, 10, 1998, 55-94. 197 Não se esquecerâ, uma vez mais, que o nosso testemunho é parte interessada no retrato que faz dos seus companheiros. 198 A carga tem valores diversos conforme o tipo de besta pressuposto: 1Oarrobas para o gado muar ou cavalar; 5 arrobas para o burro; 20 arrobas para o carro de bois. Cf. Fr. Joaquim de Santa Rosa de Viterbo, Elucidário, s. v. "carga". 199 Trata-se de uma medida de correspondência diflcil de estabelecer em razão das variedades apresentadas; algumas vezes, para os líquidos, equivaleu ao almude ou a uma parte dele. ""'""Cf. Elucidário, s.v., "cesteiro". 200 Pela sucessão de acontecimentos relatados pelo cruzado, a eleição e a sagração decorrem nos dias imediatos à entrada na cidade, entre 24 de Outubro e o dia 1 de Novembro, festa ~ de Todos os Santos. Faltam, porém, dados que comprovem e expliquem tal rapidez. 201 '·Como salienta Ch. W. David, ad toe., não se conhece qualquer documento de tal acto. Num documento de 1 de Janeiro de liSO, Gilberto é explícito em declarar que a sua sagração episcopal é posterior à tomada da cidade. O primeiro testemunho da sua actividade como bispo de Lisboa é jâ de ll49. Trata-se de um documento de D. Afonso Henriques e da rainha D. Mafalda, de 8 de Dezembro de 1149, a concederem à Sé de Lisboa trinta e duas casas com bens anexos; provavelmente, é no seguimento desta doação tão generosa que, em 1 de Janeiro de 1150, organiza o bispo o Cabido da Sé, com 31 cónegos e respectivas dignidades, serviços e beneficios. Para o culto, terâ tomado o costume litúrgico da diocese de Salisbúria. O bispo foi ainda em 1151 a Inglaterra, constando que procurou recrutar forças para uma expedição a Sevilha (ou para a conquista de Alcâcer do Sal, supõe A. Herculano, op. cit., p. 65), mas não se sabe quanto tempo por lâ se demorou. A partir de Março de 1152 deixa de figurar como testemunha nos diplomas régios, mas entre 1156 e 1162 hâ documentos por ele expedidos ou confirmados; talvez em Outubro de 1164 jâ tivesse dado lugar a um sucessor na diocese, na pessoa do bispo D. Álvaro, embora segundo D. Rodrigo da Cunha, História ecclesiástica da Igreja de

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Lisboa, Lisboa, 1690, parte 11, fl. 73, a morte de D. Gilberto teria ocorrido a 27 de Abril de 1166. À escolha de bispo de origem inglesa não é certamente indiferente o apoio que o contingente inglês deu ao rei. Já quanto à rapidez com que parece ter-se procurado colocar um bispo na cidade conquistada talvez seja de considerar a tentativa de evitar intromissões por parte de Santiago de Compostela e opor-lhe um bispo livre das suas influências, já que, em condições normais, Lisboa, porque dependia tradicionalmente de Mérida, devia considerar-se integrada na província eclesiástica transferida para aquela cidade. De facto, Gilberto promete obediência ao arcebispo de Braga. Por outra parte, confia as dignidades do cabido (deão, chantre, mestre-escola, tesoureiro) a estrangeiros, talvez porque menos vulneráveis a influências. Cf. Maria João Branco, "A conquista de Lisboa revisitada: estratégias de ocupação do espaço físico e simbólico", in Actas do 11 Congresso Histórico de Guimarães, voi. 11, Guimarães, 1996, pp. 121-13 7. A sua acção é pouco conhecida, presumindo-se que se terá perdido documentação arquivística primitiva. Entenda-se sufragâneos de Braga, única província eclesiástica existente em território português. Atendendo ao estado da organização diocesana do tempo, os intervenientes na cerimónia de restauração da sé terão sido os bispos que acompanhavam o rei. Mencionados expressamente no texto estão: João Peculiar, arcebispo de Braga, e Pedro Pitões, bispo do Porto; é menos consensual entre os historiadores a identificação dos restantes. No entanto, a organização diocesana do tempo tinha entre os bispos sufragâneos de Braga: Mendo, bispo de Lamego; Odório, bispo de Viseu; João Anaia, bispo de Coimbra. Não é plausível que Gilberto de Hastings estivesse já presente como bispo, pois a sua sagração não teria sido anterior à restauração da catedral. Cf. Ruy de Azevedo, "A carta ou memória do cruzado inglês R. para Osberto de Bawdsey sobre a conquista de Lisboa em 1147", Revista Portuguesa de História, 7, 1957, 343-371. Não deixa de impressionar a minúcia com que se delimita a diocese de Lisboa; no mínimo é prova de que o autor acompanhou os pormenores do processo de restauração e que provavelmente não era testemunha desinteressada, deixando supor relações pelo menos de proximidade com os que ocupavam cargos na diocese. De facto, não é certamente de menos importância o seu registo: "foi eleito para a sede episcopal um dos nossos". Os limites da diocese podem ser elementos para datação, mormente para norte, onde haverá que colocar a fronteira antes de 1153. É verdade, por outra parte, que para sul as menções vão até Alcácer e Évora. As datas parecem assim recuar até 1158, ano da conquista da primeira, e 1166, ano da tomada da segunda. Melhor será assumir que se trata de referências globais e não de confrontos geográficos precisos e muito menos de delimitações de dioceses contíguas (como seria o caso de Évora, cidade, aliãs, com a qual o próprio rei Afonso Henriques tinha um acordo de tréguas no momento do cerco de Lisboa). Não é possível dirimir se este comportamento pertence apenas a cristãos moçãrabes que se encontravam na cidade ou se é assumido também por outros; não parece que o nosso autor se tenha preocupado com tais distinções nem seria fácil perceber nas circunstâncias do momento (in extremis) qual a fé de cada um. Cf. Isa. 30, 28 ss. Literalmente, "solenidade santificada". Cf. Rom. 9, 18. Job 34, 29. A expressão "ex merito" pode ter outra interpretação, mas, no contexto, em que a oposição entre graça e justiça está patente (em clara utilização das reflexões paulinas da Eplstola aos Romanos), julgamos que se deverá dar-lhe o alcance que deixamos na tradução.

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Mat. 11, 25. Mat. 11, 26. Cf. Joel2, 17; I Chro. 21, 15. loba. 17, 3. O teor da conclusão do nosso texto é tão inesperado quanto certamente sincero da parte de quem assume a peregrinação da cruzada como acto necessârio para a revelação de Deus aos infiéis. Fica de fora qualquer informação relativamente à permanência ou partida de cruzados. A. Herculano, op. cit., pp. 52-53, lembra que muitos apelidos de nomes de confirmantes em documentos do tempo se reportam a estrangeiros. Que não eram também modelos de comportamento fica bem assinalado em penas previstas nos forais, como no da Lourinhã (em que o assassínio tem pena de enterramento vivo, com um cadáver em cima). Que não se sentiam solidârios com as populações locais está presente em disposições acrescidas relativamente ao que ocorria com outros forais, como acontece no de Atouguia, em que se tomava necessârio lembrar a obrigação de prestar serviço militar.

APÊNDICE I NOTÍCIA DA FUNDAÇÃO DO MOSTEIRO DE S. VICENTE DE LISBOA

11 DOAÇÃO DO CRUZADO RAUL A SANTA CRUZ DE COIMBRA (texto latino e tradução)

I INDICULUM FUNDATIONIS MONASTERII BEATI VINCENTII VLIXBONE (Lisboa, ANTI, CF, ms 152)

I. A quo, uel quando, seu qualiter fundatum sit monasterium beati Vincentii, quod situm est circa urbem, que appellatur Vlixbona, ad plagam eius orientalem, qui scire uoluerit, hanc paginam legendo percurrat. lbi enim breui et sinplici stilo ponimus hec pro relatu eorum qui sese profitentur rebus his interfuisse dum gerebantur. E quibus adhuc supersunt aliqui, Femandus Petri, scilicet homo militaris, magnum in ciuitate sem per obtinens locum sibi a rege constitutum, et apud eius ciues• suos fide preclaros, non 2 prefectus nec iudex in illis gratus existens, Otha quoque, uir natione theutonicus, et prefati monasterii bonus conuersus fere a prima eiusdem fundatione uitam ducens ibidem satis religiosam. Hii duo, dei miseratione adhuc superstites, quasi de uno conferunt ore que hic ponimus, ad presentis negotii fidem astruendam, ac certam inde noticiam posteris relinquendam. Verum, de cetero, narrationi insistamus, rerumque summam3 ordine prosequamur.

Assumptio narrationis propositorum 2. Anno igitur ab Incamatione Dom in i M° C0 XL o VII 0 , christianissimus Portugalensium rex Alfonsus, comitis Henrici et Regine Tharasie filius, inimicorum crucis Christi mirificus extirpator ac uoluntarius XVIII regni sui anno, etatis autem XL0 , collegit exercitum suum, ut annis singulis solitus4 erat, aduersus sar[r]acenos, aplicuitque ad Vlixbonam tunc ciuitatem illorum, et obsedit eam mense Iunio, fixis in circuitu papilionibus. Habuitque' in comitatu suo electam uirorum fortium manum, quos illi auxilio in CLXL nauibus, quas barcias nominamus, de diuersorum partibus septentrionis, zelo suo Dominus misit accensos. Hos itaque rex a parte maris, quod predictam circunfluit urbem,

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NOTÍCIA DA FUNDAÇÃO DO MOSTEIRO DE S. VICENTE DE LISBOA 1

1. Quem quiser saber por quem ou quando e de que modo foi fundado o Mosteiro de S. Vicente que está situado nas imediações da cidade de Lisboa, como é chamada, na sua zona oriental, faça o percurso de leitura desta página2. Aí, efectivamente, colocamos tudo isso, em estilo breve e simples, segundo relato de pessoas que atestam terem participado pessoalmente no desenrolar dos acontecimentos. Algumas delas ainda estão vivas, como, por exemplo, Fernão Peres3, cavaleiro que sempre tem mantido na cidade posição de relevo que lhe foi conferida pelo rei e que, entre os seus concidadãos, é tido em grande consideração pela sua palavra honrada e bem aceite, ainda que sem ser alcaide nem juiz entre eles; é o caso também de Ota, pessoa de nacionalidade teutónica e converso de bom nome do dito mosteiro, que aí tem passado, quase desde a primitiva fundação, uma vida muito edificante. Estes dois, que, por misericórdia de Deus, estão ainda vivos, coincidem, a uma voz, com o que aqui nós colocamos, pelo que se confere credibilidade ao presente trabalho e fica com isso uma notícia fidedigna para os vindouros. Mas, quanto ao mais, atenhamo-nos à narrativa e sigamos pela devida ordem o essencial dos acontecimentos.

Início da narrativa proposta 2. No ano, pois, da Encarnação do Senhor de 1147, o cristianíssimo rei de Portugal, Afonso, filho do conde Henrique e da rainha Teresa, extraordinário e decidido exterminador dos inimigos da cruz de Cristo, no ano 18 do seu reinado, ou, por outra, aos 40 anos de idade, reuniu o seu exército contra os sarracenos, como era seu costume todos os anos, acercou-se de Lisboa, então cidade deles, e sitiou-a no mês de Junho, montando acampamentos em seu tomo. Tinha na sua companhia um punhado de homens fortes e seleccionados, que o Senhor lhe enviou em auxílio e que, abrasados no seu zelo, chegavam, vindos de diversas regiões do Norte, em 190 navios, a que chamamos barcas4 • A eles, pois, deu ordens o rei de atacarem pelo lado do mar, que rodeia

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oppugnare constituit. Erant enim ui ri bellatores fortissimi rob[ o ]re, uniuersi loricati, galeati, hastas scuta[que] portantes et gladios, intendentes6 arcum, eruditique ad prelia. Qui, iussa regis libenter7 suscipientes, mox anchoratis in alto nauibus atque decenti statione dispositis, ad litus prosiliere intrepidi, sua certatim aduersus urbem castra metantes, singuli tamen per generationes et linguas suas. Porro castra Teutonicorum ceterorumque secum de uicinis qui uenerant prouinciis domos occupant suburbiorum, que sunt ad plagam urbis orientatem, et, expulsis inde sarracenis, ingressi habitant ibi. Angli uero et reliquus Britannie Equitanieque populus in suburbi[i]s, que sunt ad1 urbis oc[c]asum, suas constituunt mansiones, fugatis inde paganis. Nam rex cum ducibus et ceteris baronibus suis a parte septentrionis prestabat obsidionem per colles uallesque que 9 prope sunt fusa multitudine uulgi.

3. Factum est igitur ut a terra marique pugna uehemens sar[r]acenis daretur inclusis, firmatis contra se undique munitionibus et instructis machinis. Cumque Franci, erat enim hoc uocabulum commune omnibus qui de finibus Galliarum aderant ibi, uellent audacius agere, pars eorum conflictui sepe ruebat in ipso, nam animis accensi nisique uiribus ac mole corporea, uidebantur quippe gigantea membra gestare, propius 10 accedebant ad muros, telorum desuper hostilium pluentibus nimbis, spretaque pro Christo corporis morte, uulnera uulnerati usque ad necem 11 non cessabant infligere. Ad quorum corpora more catholico danda sepulcris, rex accelerat habere consilium, comouebantur quippe super eis uiscera eius. Quamobrem mox accersire facit Bracarensem archiepiscopum dominum Johannem reuerentissimum dei sacerdotem. Cui protinus aduenienti rex ait: "Contemplor barones istos fortissimos de terris suis ad hoc egressos fuisse, et ad hoc uenisse ut hic moriantur pro Christo, eius bella bellando, et contra hostes fidei dimicando uiriliter. Qui nichil curantes de uita presenti, ipsos etiam per enses infestos conantur delere paganos, nam zelus domus Dei tantus feruet in illis. [ 1b] Opportet igitur ut et nos circa humandos artus eorum qui cadunt ex ipsis curam exibeamus et humanitatem, unde, ut martyrum Christi, eorum exequias dignis prosequamur honoribus. Non enim hesito eos

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a dita cidade. Eram eles, de facto, guerreiros dos mais fortes pelo vigor, todos com couraças e capacetes, empunhando lanças, escudos e espadas, atiradores do arco, treinados para a guerra. Receberam eles de bom ânimo as ordens do rei e logo que os navios ancoraram ao largo, dispostos em formação adequada, saltaram intrépidos em terra, instalando à porfia os seus acampamentos defronte da cidade, atendo-se cada qual, no entanto, à sua gente e à sua língua5 • Assim, os acampamentos dos teutónicos e dos restantes que com eles tinham vindo das províncias vizinhas ocupam as casas dos subúrbios na parte oriental da cidade, e, expulsando de lá os sarracenos, entram e instalam-se aí. Por sua parte, os ingleses e a restante gente da Bretanha e da Aquitânia assentam arraiais nos subúrbios a ocidente da cidade, depois de escorraçarem de lá os pagãos. Entretanto, o rei, com duques e outros barões, organizava o cerco pelo lado norte, por entre as colinas e os vales que ficam nas proximidades, espalhando por lá grande multidão de povo. 3. Aconteceu, pois, que tanto a partir de terra como de mar se travou luta feroz contra os sarracenos que estavam encurralados, assestando sobre eles munições de todos os lados e construindo engenhos. Querendo os francos (era na verdade esta a designação comum a todos os que vinham dos confins das Gálias e aí se encontravam) intervir com certa afoiteza, uma parte deles começou a lançar-se em acções repetidas de combate, pelo que, inflamados de espírito e confiados nas suas forças e na corpulência do seu vulto (parecia, realmente, que eram dotados de membros de gigantes), se chegavam bastante perto das muralhas. Caía sobre eles uma saraivada de dardos inimigos, mas eles, sem temerem a morte do corpo, por amor de Cristo, mesmo feridos até à morte, não cessavam de infligir golpes. Para dar sepultura aos corpos destes homens, segundo o rito cristão, o rei apressa-se a convocar o conselho, pois estava realmente emocionado o seu coração com o que se passava com eles. Por tal motivo, manda chamar de u~ência o arcebispo de Braga, D. João~ sacerdote de Deus muito respeitável. Logo quê ele chega~ o rei diz-lhe: "Ponho os olhos nestes fortíssimos barões que saíram das suas terras para combaterem e vieram para aqui pela boa razão de darem a vida por Cristo, travarem as suas batalhas e se baterem varonilmente contra os inimigos da fé. Sem se preocuparem com a vida presente, tentam sobretudo destruir pela espada os infestos pagãos. Tão grande, de facto, é o zelo da casa de Deus que neles arde! Importa, pois, que também nós demonstremos cuidado e dedicação por eles, no que toca a enterrar os corpos daqueles que caem de entre eles, e por isso levemos a cabo as suas exéquias com honras dignas de mártires de

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fore Dei dignatione sanctis martyribus associandos in celis, quorum uestigia tanto studio sequi comprobantur in terris. Quare, pater meus pontifex ultra non differat consignare illis loca cimiterii congrua et a castris eorum non ualde remota. Ad uestrum quippe spectat officium hoc ordinare". Et addidit uotum etiam uouens hoc 12 Domino dicens 13 : "Si Dominus Deus noster tradens tradiderit seruis suis ciuitatem hanc, placueritque sibi deleri nomen infidelium istorum de terra, nouerit ipse omnino me seruum suum sibi constructurum in ipsis locis, in quibus cimiteria hec fieri rogo, duo monasteria, et positurum in eis religiosorum collegium, qui, pro me et ipsis qui ibi sepulti fuerint, officiis intenti diuinis coram Domino semper assistant".

Tunc sanctus archiepiscopus tantam in rege comendat pietatem uotumque collaudat, nam in eius assumptionibus 14 nimis letus fuerat effectus magnumque susceperat gaudium. De loco igitur uelox consurgens, coepiscopos qui aderant conuocat omnes, regisque aperit uoluntatem, illisque secum as[s]umptis, subsequenter pariter cum clero, adit castra Francorum, ut rex imperarat, utraque. Quo adueniens notat loca cimiteriis apta, et inuocato trino deo, ut mos est, )atices aspergit sanctificatos. Hoc facto, duos 1s statim lapides signat tradiditque regi ad ecclesias, ut promiserat, in illis fundandas 16 • Quos rex acceptos mox curat erigere, cupiens preuenire quod uouerat uotum, dum non hesitat dei pietatem sibi tradere urbem quam tenebat obsessam.

4. Ex illis itaque figit unum in cimiterio 17 Teuthonicorum 18, ubi situm est nunc monasterium gloriosissimi martyris Vincentii, pro quo suscepimus ista narrare, alterum uero in cimiterio ponit Anglorum, ubi nunc ecclesia est nuncupata Sancte Marie ad Martires, propter eos scilicet sic dieta qui usque ad mortem certantes pro Christo ibidem sepulti sunt 19• His ita gestis cepere Franci, ecclesiastica consuetudine, interfectos suos mandare sepulchris, et inchoatas super eos fabricare basilicas, opemque ferre de propriis sumptibus, proposito regis, cuius animum cernebant esse promptissimum ad construenda20 ibi, in proximo, cenobiorum edificia ceteraque [commoda ad] diuina officia que celebra[re]nt deuotissimi clerici qui secum

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Cristo. Efectivamente, não tenho dúvidas de que, por misericórdia de Deus, no céu serão associados aos santos mártires, pois fica comprovado, pelo seu grande empenhamento, que seguiram os passos deles na terra. Por esse motivo, o meu senhor e pontífice não adie por muito tempo consignar-lhes lugares adequados do cemitério e não muito afastados dos seus acampamentos. Às vossas funções pertence realmente dar seguimento a isto". Acrescentou ele um voto, prometendo isto ao Senhor, por estas palavras: "Se o Senhor Nosso Deus entregar de uma vez nas mãos dos seus servos esta cidade e se lhe aprouver que seja eliminado da terra o nome destes infiéis, tenha Ele por bem certo que eu, seu servo, hei-de construir-lhe dois mosteiros6 nestes lugares, em que peço que sejam feitos esses cemitérios, e hei-de instalar neles uma comunidade de religiosos, que, por mim e por aqueles que aí tenham sido sepultados, se devotem aos oficios divinos e perpetuamente j prestem assistência diante do Senhor". O santo arcebispo congratula-se com tão grande piedade do rei e enaltece o seu voto. Na realidade, ficara cheio de alegria pelas suas declarações e experimentava grande contentamento. O arcebispo levanta-se, pois, rápido do seu lugar e convoca todos os outros bispos que por ali se encontravam e revela-lhes a vontade do rei. Tomando-os consigo, e, logo de seguida, juntamente com o clero, dirige-se a ambos os acampamentos dos francos, como o rei mandara. Quando lá chega, demarca dois lugares apropriados para cemitérios e, invocando o Deus Trino, seguindo o ritual, procede à aspersão da água benta. Feito isto, imediatamente abençoa7 duas pedras e levou-as ao rei para fundar com elas as igrejas, como este prometera. O rei recebe-as e sem demora procura fazer a construção, no desejo de antecipar o que estabelecera em voto, não duvidando de que Deus, na sua piedade, lhe entregaria a cidade que estava a cercar. 4. Ergue assim uma das duas pedras nQ cemitério dos teutónicos, onde agora fica situado o mosteiro do gloriosíssimo mártir Vicente, em honra de quem assumimos narrar estes acontecimentos; a outra, por seu lado, depõe-na no cemitério dos !ngleses, onde presentem~nte se encontra a igreja designada por Santa Maria, aos Mártires8, assim denominada por causa dos que tinham combatido até à morte por Cristo e ali haviam sido sepultados. Estando as coisas neste ponto, começaram os francos, seguindo o rito eclesiástico, a enterrar os seus mortos em sepulturas e a lançar os caboucos de basílicas em sua honra, suportando os custos das obras, sob proposta do rei, cujo espírito viam estar totalmente determinado a levantar aí, sem demora, os edifícios e os restantes cómodos dos mosteiros para os oficios divinos

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uenerant plurimi et sacris litteris eruditi ad plenum. E quibus nonnulli monachi erant religiosisimi, et in timore Domini anbulantes solliciti.

5. Porro Teutonici basilice sancti Vincentii, que in cimiterio construebatur eorum, preposuerunt presbiterum nomine Roardum, uel ut alii dicunt Winandum, qui singulos dies missas cantaret, qui oblationes reciperet que ibi large fiebant a populo ad basilice21 fabricam erigendam. Constituerunt et alium bone uite nomine Henricum laicum, qui more patrie sue pulsaret ad horas campanam, quam ibi suspenderant, excubansque pre foribus ecclesie atentius atrium custodiret intus et foris.

Hic iam quedam occurrunt de stupendis dei mirabilibus narratibus nostris interponenda 6. Ea nempe silentio preterire ueremur ne inde aliquam iustam incurramus accusationem apud eum qui operando uoluit hec in palam uenire. Dum enim agerentur ea que prediximus, contigit quendam militem Coloniensem nomine Henricum, oriundum in uilla que est ultra Coloniam per quatuor leugas nomine Bonna, uirum utique stemate nobilem et moribus, in urbis cormisse conflictu. Quo sepulto ut ceteris in eodem cimiterio sancti Vincentii indicare ceperunt miracula ad tumbam eius diuina operatione crebrer[r]ime facta, eundem fuisse uerissimum martyrem Christi mortemque eius in conspectu Domini preciosam existere22 • De quibus uidelicet miraculis hic uel pauca attingere nitimur, ut liquido pateat quanta dei beneficia comitantur eos qui ex toto corde querunt illum.

7. Factum est igitur ut duo iuuenes ambo surdi, ambo muti a natiuitate, [lva] qui uidelicet in stolo cum ipsis uenerant Francis, singillatim iuxta sepulchrum Christi militis Henrici excubarent, ipso ut fertur martyre in efigie peregrini palmam ad scapulas deferentis, illis apparente, et ad excubias inuitante. Vbi cum paululum quieuis[s]ent, mirabile dictu, inuenerunt se ita diserte loquentes, simul et audientes, ac si semper loquela usi fuisent pariter et auditu. Quodque multo23 mirabilius est, ut terra diuersi erant et natione, sic

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que celebrariam os muito devotos clérigos que o haviam acompanhado em grande número e que eram plenamente versados nas letras sagradas. Alguns destes eram monges de muita piedade e solícitos em caminharem no temor do Senhor. 5. Entretanto, os teutónicos da basílica de S. Vicente, que se estava a construir no seu cemitério, adiantaram-se a colocar um presbítero chamado Ruardo, ou, como outros dizem, Winando, que todos os dias cantasse as missas e recebesse as ofertas que aí generosamente eram feitas pelo povo para erguer a fábrica da igreja. Nomearam também um outro, um leigo de vida santa, chamado Henrique, que, de acordo com o costume da sua terra, tocaria para as horas canónicas o sino que aí haviam erguido e, vigiando às portas da igreja, guardaria com o devido cuidado o átrio, por dentro e por fora.

Aqui ocorrem já alguns dos admiráveis milagres de Deus, que são de meter de permeio na nossa narração. 6. Em boa verdade, receamos passá-los em silêncio, não aconteça que com isso incorramos nalguma censura, que seria justa, por parte d' Aquele que ao actuar quis que eles viessem a público. Efectivamente, enquanto ocorriam os factos de que já falámos, aconteceu que certo cavaleiro de Colónia, de nome Henrique, nascido numa cidade chamada Bona, que fica a quatro léguas de distância de Colónia, homem indubitavelmente nobre de estirpe e de costumes, tombou em combate na cidade. Tendo sido sepultado, tal como outros, neste cemitério de S. Vicente, começou-se a falar em milagres, feitos por acção de Deus, e em grande número, junto do seu túmulo, e que ele era um verdadeiro mártir de Cristo e que a sua morte era preciosa aos olhos de Deus9 • São alguns destes milagres que procuramos descrever aqui para que fique bem claro como são grandes os beneficios de Deus que acompanham os que de todo o coração O procuram. 7. Aconteceu, pois, que certa vez dois jovens, ambos surdos-mudos de nascença (os quais, aliás, tinham vindo na tripulação com os francos), faziam guarda, à vez, cada um, ao sepulcro de Henrique, cavaleiro de Cristo; conta-se que o mártir lhes apareceu na figura de um peregrino que segurava ao ombro uma palma e os convidava a fazerem a guarda. Logo que sossegaram um pouco, causa admiração que se diga, acharam-se a falar com tal desenvoltura e também a ouvir que era como se sempre tivessem tido o uso tanto da fala como do ouvido. E o que era muito mais extraordinário era que, de

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diuersa conceditur eis et ipsa loquela. Propalato igitur in castris tam mirabili facto, cuncti qui uidebant et audiebant glorificabant Dominum semper mirabilem in sanctis suis2\ habentes de cetero militem Henricum utpote dilectum martyrem Christi.

8. Post paucos uero dies accidit ut armiger eius cecidisset in helio, quem tollentes contribules eius sepelierunt aliquantulum longius a sepulcro domini sui. In somno25 , itaque, Christi miJes Henricus adit eum qui excubabat in atrio prefate basilice Sancti Vincentii, de quo paulo ante fecimus mentionem, et, uocans eum nomine suo, rogat multumque precatur ut surgat tollatque de nocte armigerum suum a loco in quo est et ponat eum iuxta se. Quod factum est semel et bis. Cumque ille deprecanti non aquieuisset, uenit tertio, uultum 26 gerens quasi iratum multumque ter[r]ibilem, et iam minabatur ei si ultra differet implere rogata. Quamobrem ille expergefactus surrexit tremens, pauensque, erat enim solus in loco, uenitque27 ubi humatus erat armiger ille. Quem leuans sepeliuit circa dominum suum, seorsum tamen in proprio monumento. Qui, narrans de mane quod acciderat, dicebat se nullum in leuando uel deponendo sensisse laborem, nullamque molestiam.

9. Dicam et aliud quod per idem tempus in eadem basilica, operatione diuina, contigit miraculum. Factum est autem ut populus ad certamen iturus, peractis missarum sollemniis, eulogiis, id est28 , pane benedicto cuperet premuniri. lta enim cotidie consueuerat. Cumque sacerdos uellet facere partículas quas singulis porrigeret, et iam uni ex panibus secandis cultef9 immiteretur, res miranda, ecce secati panis medietas cruentata reperitur [et] sanguis desudans. Tunc sacerdos omnesque qui aderant in stuporem conuersi sunt subitum, nam, uisa re, uehementer fuerant perterriti. Cumque causam30 rei indagatione sedula quereretur, inuentum est panem illum fuisse confectum de usurpata farina, quam quidam moriens egenis preceperat erogarP 1• Quod tandem cum annunciatum esset in castris ad spectaculum concurrunt uniuersi, uidentesque quod factum fuerat, reuertebantur ammirantes, et diuinum adiutorium secum esse non dubitantes, plena fide laudabant, et glorificabant Dominum, qui facit mirabilia solus.

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acordo com a diversidade de terras e de povos a que pertenciam, assim lhes era concedida também a cada um fala diferente. Propalado, pois, pelo acampamento tão admirável acontecimento, todos e cada um dos que os viam e ouviam glorificavam o Senhor, sempre admirável nos seus santos 10 , tendo, além do mais, o cavaleiro Henrique como mártir verdadeiramente dilecto de Cristo. 8. Por outro lado, poucos dias depois, aconteceu que caiu em combate um seu escudeiro. Pegaram nele os seus correligionários e sepultaram-no um tanto longe do sepulcro do seu senhor. Em sonhos, o cavaleiro de Cristo Henrique aproxima-se de um que estava de sentinela no átrio da referida basílica de S. Vicente, e de quem há pouco fizemos menção, e, chamando-o pelo seu nome, roga-lhe com grande insistência que se levante e de noite retire o seu escudeiro do lugar em que está e o ponha junto de si. Isto acontece uma primeira vez e repete-se. Não tendo ele atendido à interpelação que o outro lhe fizera, veio este uma terceira vez, tomando um aspecto como que de irritado e aterrador, faz-lhe ameaças, caso adiasse por mais tempo a execução do que lhe solicitava. Por tal motivo, ele acorda e, levantando-se a tremer, apavorado, pois estava sozinho no local, dirigiu-se aonde estava enterrado o escudeiro. Pegando nele, sepultou-o ao pé do seu senhor, em separado, mas no mesmo túmulo. Contando, de manhã, o que acontecera, dizia ele que não sentira nenhum cansaço nem nenhum mal-estar, quer ~o pegar nele, quer ao sepultá-lo. 9. Contarei também um outro milagre que ocorreu, por esse tempo, nessa mesma basílica, por acção divina. Aconteceu, certa vez, que a gente que ia entrar em combate, mal terminaram as solenidades da missa, ansiava por munir-se com as "eulógias", ou seja, com o pão bento. Assim, de facto, se tornara hábito diariamente. Quando o sacerdote queria partir os bocadinhos, para distribuí-los a cada um, e já metera a faca a um dos pães para o cortar, eis que (coisa digna de admiração) metade do pão cortado se encontra ensanguentado e o sangue ainda vivo. Então, o sacerdote e todos os que estavam presentes ficaram tomados de estupefacção repentina, pois, à vista do sucedido, o pânico apoderara-se deles. Ao investigarem logo ali a razão do acontecido, descobriram que aquele pão fora confeccionado com farinha roubada, que alguém, ao morrer, mandara distribuir pelos pobres. Quando, por fim, isto foi revelado no acampamento, todos acorrem a ver e, pondo os olhos no que acontecera, regressavam cheios de assombro e, não duvidando que o auxílio divino estava com eles, cheios de fé, louvavam e glorificavam o Senhor, o único que faz milagres.

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I O. Castra igitur Dei tantis illustrata uirtutibus, talibusque nutri ta fomentis, resumunt uires, acies firmant, machinas erigunt, muros per circuitum arietibus cassant, instant menibus telis et iaculis, hostes undique coangustant, nec sinunt uel ad momentum quiescere. Pagani uero tantam christicolarum constanciam, tantamque cementes instanciam, desperant anplius posse resistere, urbemque tradunt, bellicos ultra non ualentes ferre sudores. Erant enim iam pene consumpti, foris gladio, intus inedia panis et aque.

II. Anno igitur ab Incamatione Dom in i M° C0 XL o VII0 , mense octobris, ecclesiis dei sanctorum martyrum Crispini et Crispiniani natalícia celebrantibus, illustrissimus rex Alfonsus, ope diuina, optato potitus triumpho, cum omni exercitu suo captam ingreditur urbem, cordi[bu]s Ietantium laudes [I vb] dei resonantibus in ex[c]elsis, eique immensas referentibus grates de uictoria sibi celitus concessa.

I2. Igitur post aliquot dies dispositione ciuitatis peracta, ordinatisque rebus, domibus quoque agris, uineis, uictori populo distributis, rex deuotissimus beneficiorum dei circa se, et misericordiarum eius non immemor, uotum quod uouerat, cum ad[h ]uc esset in castris, persoluere curat atque circa edificationem monasteriorum que fundauerat in cimiteriis Francorum, ut pretractauimus, diligentiam 32 ad[h]ibet. Ob quam causam ad se facit uenire antistitem ciuitatis, quem tunc nouiter fecerat ordinari, Gilibertum nomine, natione Anglicum, uirum utique bene instructum litteris sacris, et pia senper memoria dignum. Hunc Rex accitum talibus alloquitur: "Ego, inquit, bone pontifex, cum adhuc essem in castris aduersus ciuitatem istam expugnandam paratus, motus pietate super illis qui hostili ense uulnerati cadebant in bello, gratuito me uoto constrinxi apud Dominum meum Ihesum Christum, amore cuius mori et ipsi non dubitabant. Voui siquidem in basilicis quas incohatas apud sepulcra martyrum 33 uidetis uiros aggregare religionis qui, diuinis obsequiis iugiter incunbentes, pro mea eorumque defensione in conspectu Domini semper assisterent, si dumtaxat diuina me pietate contingeret, hostium me

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I O. Ilustrado que estava, pois, o acampamento com tantas graças de Deus e fortalecidos com tais favores, retomam forças, cerram fileiras, levantam engenhos, derrubam muros, em tomo, com aríetes, fazem cair sobre as muralhas dardos e flechas, encurralam os inimigos por todos os lados, não os deixando descansar por um momento sequer. Ao verem tanta firmeza e tanta persistência da parte dos cristãos, os pagãos, por seu lado, perdem as esperanças de poderem resistir por mais tempo e entregam a cidade, incapazes de aguentar mais os esforços da guerra. Estavam, na verdade, já quase exaustos, de fora, pela espada, de dentro, pela míngua de pão e de água. 11. No ano, pois, da Encarnação do Senhor, de 1147, no mês de Outubro, no dia em que se celebra nas igrejas de Deus o aniversário dos santos mártires Crispino e Crispiniano, o ilustríssimo rei Afonso, por intervenção divina, alcança o almejado triunfo e entra na cidade rendida com todo o seu exército, os corações de gente em festa a erguerem louvores a Deus até às alturas e a entoarem imensas acções de graças pela prodigiosa vitória que lhes era concedida dos céus. 12. Deste modo, alguns dias depois, realizada a ocupação da cidade, dispostas as coisas e feita também a distribuição de casas, campos e vinhas pelo povo vencedor, o rei, muito reconhecido pelos benefícios de Deus para consigo, e não esquecido dos seus actos de misericórdia, procura cumprir o voto que fizera quando ainda estava no acampamento e mostra empenho em dar andamento à construção dos mosteiros que fundara nos cemitérios dos francos, como antes referimos. Por tal motivo manda chamar à sua presença o bispo da cidade, que fizera ordenar havia pouco tempo. Chamava-se ele Gilberto, era de nacionalidade inglesa, e era um homem realmente bem instruído nas sagradas letras e merecedor de perpétua e piedosa memória. Quando ele chega, o rei dirige-lhe estas palavras: "Eu, bom pontífice, quando ainda estava no acampamento defronte desta cidade e me encontrava já preparado para a atacar, movido de piedade por aqueles que caíam feridos em combate pela espada inimiga, sem qualquer constrangimento, tomei um compromisso por voto junto do meu Senhor Jesus Cristo, por amor de quem também eles não hesitaram em morrer. Fiz voto, efectivamente, de nas basílicas que vedes começadas junto dos sepulcros dos mártires, reunir uma comunidade de religiosos que se ocupassem incessantemente dos ofícios divinos e se encarregassem da minha salvação e da sua perante o Senhor, se entretanto me acontecesse, por misericórdia de Deus, usufruir da vitória

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perfrui uictoria, ut est hodie. Nunc ergo cupiens quod pollicitus sum efectui mancipare, consilium pontificis peta pariter et auxilium, nam res huiusmodi eflici non potest, nec debet absque episcopi prouidentia simul et opere." Ad hec episcopus: "Votum, inquit, quod uouit dominus meus Rex saluber[r]imum est, deoque gratissimum, ac perfecta indiget consumatione. Scriptum est enim: «Vouete et redite Domino deo uestro». De sufragio uero dando in hoc opere tam sancto, tamque preclaro, quid seruus regis debeo facere nisi quod ipse imperare uoluerit? Indicet mihi seruo suo dominus meus rex quod ipse me facere uult et ego libenter suscipiam." Cui rex: "Valo, ait, bane pontifex, quatinus, partem sancti tolerando laboris, ad porcionem recipiendam perueniatis tribuende mercedis, unius sane supradictarum basilicarum, que, si licet, uobis placuerit, curam suscipiatis habendam, cedatque uobis uestrisque suces[s]oribus hereditario iure cum omnibus que34 possidet et posses[s]ura est in omne tempus, alteram uero mihi meeque posteritati, cum omni iure suo possidendam libere relinquatis. Eam quippe que scilicet mihi cesserit, uolo liberam semperque ab omni redditu manere immunem, cum omnibus facultatibus que ibP5 collate fuerint a me ceterisque fidelibus, ad sumptus in ea degentibus necessarios. Fas ergo sit uobis quamlibet et ex illis statim eligere, uestreque supponere potestati." Respondit episcopus: "Si regi placet quod sibi respondeamus ad hec, det inducias consulendi capitulum meosque fratres quorum consilio talia gerere debeo." At rex: "Michi, inquit, placet omnino eatis uestrosque consulatis canonicos et certum de re mihi dare responsum non differatis." Perrexit igitur episcopus, conuocatisque in unum uniuersis clericis suis, ait illis: "Hec et hec mihi locutus est rex. Conuocaui ergo uos ut in com[m]une decernatis quid illi respondere debeamus." At illi respondentes dixerunt episcopo: "Quod regi placet faciendum est; omnes sui sumus, de suo accepimus quicquid possidemus; ipse, Christo sibi fauente, gladio suo paganos expulit de terra quam incolimus. Verum, quia nobis obtio data est, basilica sancte Marie ad Martyres potius est eligenda, quippe uicinior est urbi, et largiores ibi fiunt oblationes. Altera uero que sancti Vincentii est, ut libet, regi libera relinquatur." Hoc episcopus, accepto consilio, mox ad regem retulit idem. At rex libenter annuit.

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sobre os inimigos, como acontece hoje. Desejando agora, pois, levar a efeito o que prometi, peço o conselho e bem assim o apoio do pontífice, já que coisa desta natureza não pode nem deve ser levada à prática sem a providência e intervenção do bispo." A isto o bispo responde: "O voto que o senhor, meu rei, emitiu é muito salutar, muito grato a Deus e necessita de plena execução, pois está escrito: «Fazei votos ao Senhor Vosso Deus e satisfazei-os». Quanto ao parecer a dar sobre esta obra tão santa e tão admirável, o que é que eu, servo do rei, devo fazer senão o que ele próprio quiser ordenar? Seja o senhor, meu rei, a indicar-me, a mim, seu servo, o que ele próprio pretende fazer, e eu de bom grado o assumirei". Responde-lhe o rei: "Quereria, bom pontífice, que, tomando uma parte do santo trabalho, e em ordem a virdes receber o quinhão da recompensa, tornásseis efectivamente a vosso cuidado uma das referidas basílicas, a que, com vossa licença, for do vosso agrado, ficando ela para vós e para os vossos sucessores, por direito hereditário, com tudo o que possui e vier a possuir ao longo de todo o tempo, e quereria que a outra a deixásseis para mim e para os meus descendentes, com todas as prerrogativas que aí forem conferidas por mim e por outros fiéis para os gastos necessários com os que nela viverem. Esteja, pois, nas vossas mãos escolher uma delas de imediato e colocá-la sob o vosso domínio". O bispo respondeu: "Se apraz ao rei que lhe respondamos a esta proposta, dê ele tempo para consultarmos o Cabido e os meus irmãos, sob cujo conselho devo tomar tais decisões". Retoma o rei: "Quanto a mim, estou plenamente de acordo em que vades consultar os vossos cónegos e não demoreis a dar-me uma resposta precisa sobre o assunto". Pôs-se, pois, o bispo a caminho e, reunidos todos os seus clérigos em assembleia, diz-lhes: "O rei disse-me isto e aquilo. Convoquei-vos, portanto, para que em comum decidais o que lhe devemos responder". Em resposta, disseram eles, por sua vez, ao bispo: "Há que fazer o que apraz ao rei; todos somos dele; dele recebemos tudo o que possuímos, foi ele que, com a protecção de Cristo, expulsou os pagãos da terra que habitamos, com a sua espada. No entanto, já que nos foi dada opção, devemos escolher de ~referência a basílica de Santa Maria, aos Mártires, uma vez que est.á mais próxima.da cidade-e-é--aí que se razem maiores ofertas. Quant~ à outra, que é a de S. Vicente, já que assim é do vosso consentimento, deixe-se à disponibilidade do rei". Assumindo tal conselho, imediatamente o bispo o transmitiu ao rei. Por sua parte, o rei anuiu de bom grado.

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Ex eo igitur tempore Vlixbonensis episcopus cum [2ra] clericis suis cepit ad integrum possidere basilicam sancte Marie ad Martyres, quam Rex Alfonsus concessit illis ob perpetuam libertatem basilice sancti Vincentii, quam semper possidendam cum omni iure suo, tali condicione sibi retinuit.

13. Post hoc, querente diligentius Rege sancte conuersationis uiros quos in eadem basilica constituere posset, ad sepulcrum Christi militis Henrici diuina renouantur miracula. Nam palma, more peregrinorum ad scapulas Iherosolimis allata, secumque in sepulcro ad caput deposita, paruo post tempore reuirescens ascendit de terra. Que creuit in altum, factaque est arbor uestita foliis atque uirore. Omnes ergo male habentes ad sepulcrum illius, suplicandi gratia uenientes, tollentes de palma illa suspendebant ad collum, uel redactam in puluerem bibebant36 statimque 'curabantur a quacumque detinebantur infirm itate' 37 • Stetitque38 ibi, sicut peribent qui uiderunt, donec tota languentium manibus inde leuata est. Sunt autem qui dicunt nullo custodiente furtim inde fuisse eradicatam ut alias transplantaretur.

14. Cogitante interea rege, ut prediximus, de constituendo ibi collegio, ecce quidam summe sanctitatis abbas nomine Galterus flamengus natione Vlixbonam aduenit, comitantibus se quatuor sui ordinis fratribus, cuius itineris causa erat nouam uelle edificare congregationem. De quo rex audiens bana plurima dici in eius aduentu nimis letus efficitur iamque parat preponere illum prefate basilice, circa cuius com[m]oda tenebatur sollicitus. Predictus igitur abbas cum intrasset ad regem et ab eo postulas[s]et locum edificare congregationi aptum, rex petitioni eius tale fertur dedisse responsum: "Est mihi, abbas, quedam basilica de nouo fundata, quam apud me uehementer diligens usque modo seruaui, sperans de die in diem mihi destinari a deo hominem bonum., cui securus regimen eius committere39 passem. Nunc ergo cemens spem meam diuino nutu ad uotum esse completam, opto uos eiusdem basilice libenter suscipere curam et consilium plane nostrum et auxilium cum patrocinio eque regia uos senper commitabuntur." His a rege peroratis, ecclesie sancti Vincentii gubemacula suscipit abbas

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A partir desse momento, o bispo de Lisboa com os seus clérigos entrou em posse plena da basílica de Santa Maria, aos Mártires, que o rei Afonso lhes concedeu contra a liberdade perpétua da basílica de S. Vicente, cuja posse de futuro, com todos os seus direitos, lhe pertenceria e com tal estatuto a reteve para si. 13. Depois disto, procurando o rei, com bastante diligência, homens de santa observância para os poder instalar nesta mesma basílica, recomeçam os milagres divinos junto do sepulcro de Henrique, cavaleiro de Cristo. Foi o caso que uma palma, trazida aos ombros de Jerusalém segundo o costume dos peregrinos, que tinha sido deposta no sepulcro, à cabeça do mártir, pouco tempo depois, reverdeceu e rebentou da terra, cresceu em altura e tornou-se uma árvore revestida de folhas e de verdura 11 • Ora, todos os que tinham doenças vinham àquele sepulcro a fim de aí fazerem as suas súplicas e, tirando daquela palma, penduravam-na ao pescoço ou, reduzindo-a a pó, bebiam-no e imediatamente ficavam curados de qualquer doença que os afectasse. Permaneceu ela aí, como contam os que viram, até que finalmente foi completamente levada por mãos dos doentes. Há, no entanto, quem diga que, não estando ninguém de guarda, foi de lá arrancada, sem ninguém saber, para ser transplantada para outro lugar. 14. Entretanto, planeando o rei, como já dissemos, constituir aí uma comunidade, eis que um abade de altíssima santidade, de nome Gualter, de nacionalidade flamenga, chega a Lisboa, acompanhado por quatro irmãos da sua ordem; o motivo da sua viagem era a intenção de fundar uma nova comunidade. Ouvindo o rei falar muito bem dele, fica muito satisfeito com a sua chegada e logo tudo prepara para o colocar à frente da referida basílica, em cujos aposentos trabalhava com solicitude. Quando, pois, o dito abade veio à presença do rei para lhe pedir a construção de um lugar conveniente para a comunidade, diz-se que ele deu ao seu pedido a seguinte resposta: "Abade, tenho uma basílica por mim fundada de raiz; tenho grande afecto por ela e reservei-a até agora para mim, esperando de dia para dia que me fosse destinado por Deus um homem bom, a quem com segurança pudesse confiar o seu governo. Agora, portanto, vendo que, por disposição divina, a minha esperança de cumprir o voto se realiza, pretenderia que vós recebêsseis de bom grado o encargo desta mesma basílica e ser-vos-ão sempre postos a vosso lado, tanto o nosso conselho sem reservas como a ajuda juntamente com a protecção régia". Exposta esta situação pelo rei, o abade Gualter assume o leme da igreja

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Galterius, et ex inde cepit rex eidem ecclesie delegare agros, uineas, ortos, molendina, greges ouium, equarum, armentorum, porcorumque, et cetera stipendiis fratrum in ea commorantium necessaria. Omnes etiam qui ibi sepulturam eligere deliberarent, partemque de suis conferrent facultatibus suos coheredes fecit in ea. 15. Super cuius confirmatione rei fecit etiam scriptum, quod tale est: "Quare, inquit, principum ac regum est loca sancta ditare40, benefactoribus concedere, posses[s]ionibus ampliare, iccirco ego rex Alfonsus41 uobis ciuibus Vlixbone atque omnibus aliis fidelibus, facio kartam possidendi mecum ecclesiam sancti Vincentii, quam in captione Vlixbone a Mauris tuli, ut uidelicet quicumque apud ipsam ecclesiam sepulturam suam habere suumue ibi beneficium uel elemosinas dare uoluerint, ipsi et filii et progenies eorum sint mecum et filiis omnique progenie mea, heredes perpetuo in eadem ecclesia. Quod etiam scriptum uobis ego rex Alfonsus propriis manibus roboro, meoque sigillo communio, as[s]istentibus mihi et subscribentibus Giliberto Vlixbonensis eclesie episcopo, et Gonsaluo de Sausa meo maiore domus, et Petro Pelagii meo alferaz."

16. Talibus sane studiis circa constitutionem prefate basilice rex Alfonsus operam dabat, talibusque eam beneficiis fouebat, quam de nouo nuper fundauerat. Verum de cetero restat dicere qui eiusdem fuere rectores usque ad tempora nostra. Nam in prima eius fundatione rexit illam idem rex Alfonsus per uices in ea constituens presbiteros [2rb] qui missas cotidie cantarent. Quorum primus fuit Rohardus, cuius supra memoriam fecimus, secundus Hicia genere anglicus, tercius Salericus similiter anglicus, qui et monacus42 fuit. Deinde uenit abbas Galterius, qui, ut prediximus, rege constituente primo primus43 prelatus est ei. Sed cum uellet eam subdere premonstratensi44 monasterio, ut esset filia eius, rex uero non acquieuisset, dimissa ea cum pace, in terram suam reuersus est ad suos. Quo abeunte, rex priorem constituit quendam canonicum Ecclesio1e, Dauid nomine. Qui et post paucos annos redit unde uenerat, rege iubente. Huic succes[s]it in prioratum quidam canonicus de Balneo nomine Godinus, qui post extitit episcopus Lamacensis ecclesie. Post hunc autem rexirs eam fere per annos VIII 0 bone memorie Menendus, qui similiter fuerat canonicus de Balneo. Quo mortuo in senectute bona, regimen eius suscepit Donnus

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de S. Vicente e, a partir de então, passou o rei a entregar a essa igreja campos, vinhas, hortas, moinhos, rebanhos de ovelhas, de cavalos, de gado bovino, de porcos, e as demais coisas necessárias à manutenção dos irmãos nela residentes. Também a todos os que resolvessem escolher aí sepultura e que entregassem parte dos seus recursos, o rei tomava-os beneficiários dela 12 • 15. Em confirmação disto, o rei mandou fazer também um rescrito, cujo teor era este, segundo as suas palavras: "Posto que é próprio dos príncipes e dos reis enriquecer os lugares santos, fazer-lhes concessões por benfeitores, ampliá-los nas suas propriedades, assim também eu, rei Afonso, a vós, cidadãos de Lisboa, e a todos os outros fiéis faço carta de posse juntamente comigo da igreja de S. Vicente, que eu tomei à minha conta na conquista de Lisboa aos mouros, por tal forma que todos aqueles que quiserem ter a sua sepultura nessa igreja ou aí constituir benefícios ou esmolas, eles e os seus filhos e os descendentes deles, sejam comigo, com os meus filhos e com toda a minha descendência, beneficiários para sempre nesta igreja. O que fica por escrito, também eu, rei Afonso, o roboro por minhas próprias mãos e certifico com o meu selo, tendo como testemunhas e subscritores Gilberto, bispo da igreja de Lisboa, Gonçalo de Sousa, meu mordomo, e Pero Pais, meu alferes". 16. Tal era o empenho posto em acção pelo rei Afonso em tomo da construção da referida basílica e tais eram os benefícios com que a favorecia, pois ela acabava de ser fundada de raiz. Quanto ao mais, falta dizer quais foram os seus responsáveis até aos nossos dias, já que no início da sua fundação a governou o próprio rei Afonso, colocando nela presbíteros que se revezavam a cantar as missas no dia a dia. O primeiro de entre eles foi Roardo, que atrás recordámos; o segundo foi Hícia, de ascendência inglesa; o terceiro foi Salérico, igualmente inglês, que também era monge. Depois chegou o abade Gualter, que, como dissemos, foi o primeiro a ser nomeado pelo rei e foi o primeiro a ser seu prelado. No entanto, ao pretender ele fazê-la depender de um mosteiro premonstratense como se nele estivesse filiada, e estando, por sua vez, o rei em desacordo, ele largou-a em boa paz e voltou à sua terra, para junto dos seus. Tendo ele partido, o rei constituiu como prior a um cónego de Grijó, chamado David. Este, poucos anos depois, por ordem do rei, regressa ao lugar de onde viera. A este sucedeu no priorado um cónego do Banho, por nome Godinho, que depois foi bispo da igreja de Lamego 13 • Depois deste, governou-a durante quase oito anos Mendo, de boa memória, que igualmente fora cónego do Banho. Após a morte deste, em idade já avançada, foi

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Pelagius, qui adhuc superstes, deo auctore, curam illius agit satis strenue rege Santio prefati regis Alfonsi filio, tercium regni sui annum agente, anno ab Incarnatione Dom in i M° C0 LXXX0 VIII046 • Vt ergo ex predictis colligitur, monasterium beati Vincentii de Vlixbona fundatum est a rege Alfonso et constructum in anno ~ C0 XLo VIII 0 ab Incarnatione Domini Nostri lhesu47 Christi, qui est benedictus in secula. Amen.

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D. Paio, que ainda vive, quem, por mercê de Deus, tem assumido o seu cuidado de forma denodada, durante a governação do rei Sancho, filho do referido rei Afonso, governação essa que leva já três anos decorridos no ano da Encarnação do senhor de 1188. Como se deduz, pois, do que ficou dito, o mosteiro de S. Vicente de Lisboa foi fundado pelo rei Afonso e construído no ano de 1148 da Encarnação de Nosso Senhor Jesus Cristo, que é bendito pelos séculos. Amen.

NOTAS DO TEXTO LATINO ciues: ciuues non: nec PMH 3 summaPMH 4 solicitus s habuitque: habuittque 6 intendentos 7 Iibenti 1 ad ad s. I. 9 quiPMH 10 marg. scrip. propinquius 11 nescem 12 hecPMH 13 uotum uouit Rex alia manus margine ad. 14 assutibus /egimus sed uix intelligitur 15 duos bis scrip. 16 lapides fundandas signat, tradiditque Regi ad ecclesias, ut promiserat, in illis PMH ordinem mutans 17 cemiterio PMH 11 theuthonicorum PMH 19 Sancta Maria ad Martyres marg. ad. alia manus 20 construendam 21 baselice primo scrip. Deinde subsc. e supra scrip. i 22 Cf. Psal. 115, 6. 23 multe scrip. sup. /in. 24 Cf. Psal. 67, 36 25 somne 26 Multum PHM 27 uenittque 21 id est (.i. scriptum) : uno PMH 29 cultePMH 30 eamPMH 31 erogare prius scribebat deinde subscr. e supra scripsit i. 32 pretaxauimus diligentiam PMH 33 eorum 34 quiPMH 35 que ibi bis scrip. primum eras. 36 bibant PMH 37 Cf. Iohan. 5, 4 38 stetique PMH 39 comittere PMH 40 dictare PMH 41 Affonsus PMH 42 monocus 43 om. PMH 44 premonstemensi sic etiam PMH 2

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reixit subscr. primum i M" C0 XL0 VIII 0 scriptum inuenimus sedforte ex numero quem deinde scribitur falsum ducendum; data quam emendamus uera est secundum tertium annum initii regni Sancii quodfuit ab anno M" c• LXXX" v". Idem senti/ P MH. Jezu PMH

NOTAS DA TRADUÇÃO 1

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Entre as fontes históricas sobre a tomada de Lisboa deve contar-se este texto, citado em n. 0 14 por Alexandre Herculano, História de Portugal, III (Livro 11, 2.• parte, Livro III), Lisboa, s. d., pp. 309. A edição incluída nos PMH, Scriptores, I, p. 92, supera a de A. Brandão, Mon. Lusit., P. 3, Appendix, Escrit. XXI (edição esta que Herculano considerou "substancialmente errada" e "transumpto cheio de erros intoleráveis, sendo provavelmente tirado por mão imperita"), mas não é também isenta de falhas. O testemunho do ANTT, CF, ms 152, é certamente cópia (como A. Herculano salienta, bastando advertir em deficiência de datas transcritas). Provavelmente, como também acentua aquele historiador, estamos perante um testemunho material já do tempo de D. Afonso 11. Não é isento de deficiências que não foram sanadas na edição dos PMH; nesta, efectivamente, nem houve fidelidade completa ao registo nem se superaram erros explicáveis paleograficamente. Se o texto se reporta à fundação do Mosteiro de S. Vicente de Lisboa, tem a ver com a própria conquista da cidade. Deixando de lado aspectos como o da disputa das relíquias de S. Vicente, aspecto patente em outro texto, Mirqcula S l(inc~atii. da autoria de Estêvão, chantre da catedral de Lisboa (Cf. a nossa edição em S. Vicente de Lisboa e seus milagres medievais, Lisboa, 1988, pp. 34-35), a sua redacção primitiva é possivelmente anterior a esse episódio que data de 1173, vinte e seis anos após a tomada de Lisboa. Isso obriga a considerar que a parte final do texto deve representar um acrescento, a datar de momento que, a aceitar as conjecturas de A. Herculano, deve ser já do tempo de D. Afonso 11. Advirta-se no período final do texto que supõe uma preocupação de garantir aceitação da origem régia da fundação. "Pagina" e não "libellus" nem muito menos "liber", nem tão-pouco "documentum". Parece tratar-se de uma notícia particular, sem intenção de constituir instrumento de registo de memória (como acontece, por exemplo, no Exordium Monasterii S. lohannis de Tarouca). Sem outra intenção declarada que não seja a de satisfazer o interesse de quem se interroga sobre as origens de uma instituição, acentua a preocupação de veracidade pelo recurso a pessoas que foram testemunhas dos acontecimentos. As rubricas denotam programação escalonada do texto e o seu estilo (nomeadamente da segunda rubrica) que deixa vislumbrar mão do próprio autor. A ser boa a hipótese que formulamos relativamente a data anterior à chegada das relíquias de S. Vicente a Lisboa, o texto teria sido redigido no início da segunda geração de cónegos regulares, ainda longe do momento da entrada de Fernando Martins, o futuro Santo António, cujo nascimento as fontes datam de 1195 (mas mais provavelmente a antecipar para 1190). Talvez se possa identificar este Fernão Peres com o Fernão Peres Cativo que era mordomo-mor de Afonso Henriques à data da conquista de Lisboa, embora, a ser o mesmo, devesse ter idade muito avançada à data da redacção desta notícia. Fernando Peres Cativo seria, segundo os livros de linhagens, o primeiro dos Soverosa, filho do conde de Sobrado, originário da Galiza. Aparece na documentação de Afonso Henriques como alferes-mor desde 1129 a 1137 e como mordomo-mor entre 1146 e 1159, data após a qual não aparece mais na documentação régia. Foi governador de terras em Viseu, Oliveira do Hospital, Latões e Vouzela. Para todos estes elementos e reconstituição dos seus elementos biográficos, tal como para a análise do percurso das carreiras de seus filhos e netos, que também desempenharam cargos de alferes e mordomo-mor nas cortes de Afonso Henriques e seus sucessores, cf. José Mattoso, Identificação de um País. Ensaio sobre as origens de Portugal (1096-1325). 1- Oposição, 5.• ed., rev., Lisboa, Estampa, 1995, pp. 173-175; Leontina Ventura, A Nobreza de corte de Afonso 111 (disssertação de doutoramento apresentada à

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Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, policopiada), Coimbra, 1992, vol. 11, pp. 988 e 991, com as respectivas notas. Atendo-se à sua presença na documentação régia, esta autora chama a atenção para o facto de Fernão Peres Cativo aparecer também referido como consiliarius, potestas et consiliarius et vexillifer, o que é bem expressivo do papel de relevo que desempenhava junto ao rei, tal como aparece referido no relato da conquista de Lisboa. A confirmar-se a identificação, poder-se-ia inferir uma ligação a Lisboa com raízes mais duradouras do que é hábito aduzir, visto que se costuma aceitar que o seu desaparecimento da documentação régia seria devido a ter já morrido. 4 Sublinha A. Herculano que estas barcas não deviam transportar mais de 60 a 70 homens. 5 A iniciativa de todas as operações vai neste texto para o rei português, ao contrário do que acontece com as outras fontes dos acontecimentos, todas elas constituídas por estrangeiros. 6 Estão em jogo não apenas duas igrejas, mas também duas comunidades religiosas, com as suas residências ou mosteiros. 7 Parece tratar-se de duas pedras de fundação e por isso interpretamos como acto de bênção o gesto do bispo, dando a "signat" um valor de marcação com o "sinal da cruz". 8 Não se estranhe esta designação, pois a igreja era dedicada à Virgem Maria, no lugar dos Mártires, ou seja, no sítio em que se encontravam as sepulturas dos que haviam tombado pela fé. 9 Expressão bíblica (Psal. 115, 6) consagrada pela liturgia dos mártires e dos defuntos. 1° Cf. Psal. 67, 36. 11 Duarte Galvão, Crónica de D. Afonso Henriques, cap. XXXVI-XXXVIII, tem em conta estes factos: "A palma que lhe nasce junto à cova"; "Por estes milagres e outros que Nosso Senhor aprouve fazer pelos seus santos mártires que ali morreram, tinha el-Rei neles mui grande devoção". Camões, Lus. VIII, 18, 5-8 canta: "Olha Henrique, famoso cavaleiro, I A palma que lhe nasce junto à cova./Por eles mostra Deus milagre visto I Germanos são os mártires de Cristo". 12 A expressão latina "coheredes fecit in ea" deve entender-se necessariamente como referida aos beneficios espirituais dos sufrágios. 13 D. Godinho Afonso, bispo de Lamego, foi cónego de Santa Cruz de Coimbra, onde recebeu hábito das mãos de D. Teotónio. A partir de 1140 foi superior e reformador do mosteiro · de S. Salvador do Banho, perto de Barcelos. Dali o chamou D. Afonso Henriques, com o acordo de D. Teotónio, para o mosteiro de S. Vicente de Fora, a fim de exercer o cargo de prior. Durante a sua estada em Lisboa, em 1160, funda o mosteiro de S. Miguel das Donas, uma espécie de recolhimento para damas a quem era dado o título de cónegas regulares. Em 1162, adquiriu a um tal Paio Árias umas casas ao lado da igreja de S. Martinho. Por renúncia de D. Mendo, foi eleito D. Godinho coadjutor e futuro sucessor na sé de Lamego, em 1174. Dez anos antes da sua morte, em Dezembro de 1189 (falecido que foi em Abril de 1198), deixou os cuidados do governo a D. João e regressou ao sossego de Grijó. Cf. Manuel Gonçalves da Costa, História do Bispado e cidade de Lamego, Lamego, 1977, I, pp. 105 ss., a corrigir, no entanto, segundo dados analisados por Maria João Violante Branco, Poder real e eclesiástico. A evolução do conceito de soberania régia e a sua relação com a praxis política de Sancho I e Afonso 11 (diss. de doutoramento apresentada na Universidade Aberta), Lisboa, 2000, vol. 11, p. 116.

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In nomine Patris et Filii et Spiritus Sancti. Amen. Ego Raol presbiter una cum ceteris sodalibus francorum in obsidionem Olixbone ueniens dum adhuc sarraceni cum omnibus finibus suis Olixbonam possiderent, primus omnium nauigancium egrediens procul a ciuitate et omnibus habitatoribus eius intus et extra expulsisque archu proprio paganorum omnibus, in quodam solitario loco oratione facta signum sancte crucis posui ibique secunda die nostri aduentus ad seruiendum deo et domino Ihesu Christo altare erexi. In quo loco ex illa die habitans, licet cum ceteris sodalibus cotidianam expugnationem non oblitus, ad laudem domini mei Ihesu Christi ex propria peccunia mea cum labore etiam et sudore proprio sub honore beate uirginis Marie heremitarium tabemaculum non sine maxima deuotione construxi. In cuius cimiterio anglici tam propria morte quam sagittis sarracenorum interfecti sepulti sunt. Capta uero ciuitate et omnibus paganorum spurciciis remotis, fauente domino Ildefonso portugalensium rege et auctoritate domini Iohannis bracarensium archiepiscopi uobis canonicis Sancte Crucis in Colimbriense monasterio sub beati Augustini regula uiuentibus uestra fratemitate cognita supradicti loci cum omnibus suis pertinenciis et possessionibus testamentum facio. Et hoc pro remedio anime mee meorumque parentum et eorum qui ibi sepulti esse peribentur. Si· forte aliqua ecclesiastica persona uel secularis hanc testamenti paginam cuiuscumque potencie sit in aliquo inquietare uel dissipare temptauerit coactus regali iudicio predictam ecclesiam monasterio Sancte Crucis in decuplum componat necnon nisi resipuerit anathematis uinculo ligetur et a comunione domini et a consorcio fidelium christianorum priuetur. Attamen

n DOAÇÃO DO CRUZADO RAUL A SANTA CRUZ &E C.OIMBRA ANTI, Santa Cruz de Coimbra, maço 3, n. 0 18

1148 (Era ll86). O presbítero Raul, afirmando-se cruzado interveniente activo na conquista de Lisboa aos mouros, lega em testamento a Santa Cruz de Coimbra os lugares por ele edificados nos arrabaldes da mesma cidade por ocasião do cerco.

Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Eu, Raul, sacerdote, juntamente com outros meus companheiros, ao tomar parte no cerco de Lisboa, ao tempo em que a cidade com todo o seu território ainda se encontrava na posse dos sarracenos, tendo sido o primeiro de todos os navegadores a pôr o pé em terra, ainda longe da cidade e de todos os seus habitantes, de dentro e de fora, uma vez escorraçados por mão armada todos os infiéis, feita oração em certo lugar solitário coloquei nele a bandeira da santa cruz e no segundo dia da nossa chegada levantei um altar para servir a Deus e ao Senhor Jesus Cristo. Vivendo em tal lugar desse esse dia, embora sem me esquecer de tomar parte na luta diária com os restantes companheiros, levado pela maior devoção, com o meu dinheiro pessoal e bem assim com o meu próprio trabalho e suor construí um ermitério em honra da bem-aventurada Virgem Maria e para louvor de Nosso Senhor Jesus Cristo. No seu cemitério, foram sepultados os ingleses que faleceram ou foram mortos pelas setas dos sarracenos. Uma vez, porém, tomada a cidade e removidas todas as impurezas dos infiéis, com o patrocínio de Afonso, rei de Portugal e com autorização de D. João, arcebispo de Braga, eu, tendo tomado conhecimento da vossa vida em comum sob a Regra de Santo Agostinho, faço testamento, a vós, cónegos de Santa Cruz do Mosteiro de Coimbra, do dito lugar com tudo o que lhe pertence e tem de possessões. Isto, para remédio da minha alma e dos meus parentes e de todos aqueles que consta terem sido aí sepultados. Se acaso alguma pessoa, eclesiástica ou secular, tentar pôr em causa ou infirmar esta página de testamento, qualquer que seja o seu alcance, seja obrigado por tribunal régio a indemnizar dez vezes a dita igreja em favor do mosteiro de Santa Cruz e se não o fizer fique sob vínculo de excomunhf.o e privado da comunhão e do convívio dos fiéis cristãos. De qualquer modo,

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hoc meum factum perpetuum habeat uigorem et centum marchas argenti probati pariat canonicis Sancte Crucis. Facta testamenti serie mense aprili era Maca LXXXa VIa. Ego supradictus Raol presbiter qui hanc paginam facere iussi coram idoneis testibus roboro atque hoc signum + facio. Qui presentes fuerunt: Ego Ildefonsus Portugalensium rex, conf. Femandus Petr4z, ts. Rodericus Pelaiz alkaide ts•. Menendus Alfonso, ts. Ego Iohannes Bracarensis archiepiscopus, conf. Ego Iohannes Colimbriensis episcopus, conf. Ego Petrus Portucalensis episcopus, conf. Ego Honorius Visiensis episcopus, conf. Ego Menendus Lamecensis episcopus, conf. SALVATVS SVBDIACONVS NOTVIT.

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Rodericus p'ri Pelaiz d. ts: notas non erasas ducimus.

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este meu acto tenha validade perpétua e pague ele cem marcas de prata genuína aos cónegos de Santa Cruz. Feito este instrumento de testamento no mês de Abril de 1186 (a. D. 1148). Eu, o dito Raul, sacerdote, que este documento mandei fazer perante testemunhas idóneas, o roboro e nele faço este sinal+. Estiveram presente: Eu, Afonso, rei de Portugal, confirmo; Fernão Peres, testemunha; Rodrigo Pais, alcaide, testemunha 1; Mendo Afonso, testemunha. Eu, Eu, Eu, Eu, Eu,

João, arcebispo de Braga, conf. João, bispo de Coimbra, conf. Pedro, bispo do Porto, conf. Honório, bispo de Viseu, conf. Mendo, bispo de Lamego, conf. SALVADO, SUBDIÁCONO, NOTÁRIO.

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A interpretação do original nesta linha é problemática; a constituição do nome não obedece aos padrões habituais; a abreviatura de p 'ri não parece adequar-se ao que se esperaria (de excluir presbiteri, pois o genitivo não condiz com o nome em nominativo); a abreviatura d., a ser interpretada como de exigiria um topónimo que não se regista. Julgamos que se trata de hesitações de cópia que não foram corrigidas.