A cientificidade na fenomenologia de Husserl
 9788515045648

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Marcus Sacrini ACIENTIFICIDADENA FENOMENOLOGIA DE HUSSERL

Edições Loyoli

95

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Marcus Sacrini A Coleção Filosofia se propõe reunirtextos de filósofos brasileiros contemporâneos, traduçõesdetextos clássicose de outros filósofos da atualidade, pondoa serviço do estudioso de Filosofia instrumentos de pesquisaselecionados segundo os padrões científicos reconhecidos da produçãofilosófica. A Coleção é dirigida pela Faculdade Jesuíta de Filosofia eTeologia (Belo Horizonte. MG).

FACULDADEJESUÍTADE

Fn.OSOFIA E TEOR.OGIA(VIAJE) DELIRA:LAMENTODE FILOSOFIA

Av.[h. Cristiano Guimarães,2127 31720.300Belo Horkonte, MG

ACIENTIFICIDADENA FENOMENOLOGIA

DE HUSSERL

DIRETOR

João A. Mac Dowell, SJ CONSELHO EDITORIAL:

Clarlos Roberto Drawin FALE Danilo

Mlarcondes

Filho

PUC-Rio

Femando Eduardo de BarcosRey Puente UFMG FranklinLeopoldoeSilva

USP

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UNISINOS

Paulo Roberto Margutti Pinto FALE MarmeloPerine PUC'SP

Edições Layola

-, } '

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP.Brasíl) Sacriní. Marcus A cientificidade na fenomenologia de Huss«l / Marcus Sacrini.

São Paulo

Edições Loyola. 2018. - (Coleção filosofia)

Bibliografia ISBN 978-85-15-04564-8 1 . Fenomenologia 2. Filosofia 3. Husserl. Edmund. 1 859-1938 1.Título. 11.Série.

CDD-142.7

18-21992

Índices para catá]ogo sistemático 1. Fenomenologia : Filosofia

142.7

Preparação: Mana Almeida de Sá Capa: Manu Santos Diagramação: So Wai Tam

Revisão: Fernanda Guerriero Antunes

Para Cartas Alberto R. de Moura

Edições Loyola Jesuítas Rua 1822,341 -lpiranga 04216-000 São Paulo,SP

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ISBN978-85-15-045644 © EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo,Brasil, 2018

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Pode-sever claramente que a ciência que tem a função específica de exercera crítica de todas as outras e, ao mesmo tempo, de si mesma não é outra senão a fenomenologia

Edmund Husserli

1. 1deerzzu eíner reinam Pbdrzomeno/ogfe und pbdnor7zeno/ogisc/zenPhi/osopbie ErsfesBuch: A/lgemeirze Eínfühmng in die reírzePAãnomeno/ogíe. Hua 111.Den Haag

MartinusNijhoff,1950,S62,147

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Sumário

Siglas das principias obras de E. Husserl citadas.

13

Introdução....

15

Capítulo l Da fenomenologia noética à fenomenologia transcendental

25

Apresentação

25

A) A fenomenologia como complemento filosófico à lógica pura

26 26

O prometo lógico de Pro/egómerzos à /ógícapura .......'......'. O domínio da lógica pura A lógica pura e as ciências empíricas As tarefas da lógica pura e as condições do conhecimento.

30 34 36

A evidência das idealidades lógicas Análise fenomenológica das vivências

49

B) A fenomenologia como ciência autónoma. Reconfiguração da doutrina da ciência . Lógica noética e fenomenologia transcendental .

54 54

A investigação transcendental como fenomenologia

62 69

A fenomenologia entre investigaçãoeidética e transcendental

81

Capítulo ll A fenomenologia como ciência eidética e transcendental Apresentação

A) A fenomenologia como ciência eidética Posição do problema Fatos c essências

87 87 90 90 91

r Ciências factuais e ciências eidéticas. O problema de uma eidética material descritiva Critérios gerais do rigor descritivo B) Passagem à problemática transcendental

Ciências filosóficas e ciências dogmáticas

Orientação natural e redução fenomenológica.. As relações entre consciência e mundo

98 105

114 116 116 118

Da atestação do ser aos modos de ser atestados.

124 128

O ser absoluto da consciência

134

Uma legitimação eidética para o transcendental

141 144

C) A fenomenologia como ciência transcendental A investigação de irrealidades O caráter intencional da consciência

144 146

Aplicação da ePoc/zéàs ciências As tarefas clarificadoras

149

A fundamentação das ciências pela clarificação, e o caso especial da psicologia

154

A) As correlações estáticas entre regiões eidéticas e orientações teóricas

Os fios condutores para a análise constitutiva O problema da especificidade do espírito

158

165 165

166 166 168 170

A natureza segundo as ciências naturais.

175

Naturalismo versus personalismo.

182

A prioridade do espírito sobre a natureza

189 198

B) Análise genética do mundo da experiência

203

Um novo caminho

203

A tragédia da cultura científica

208

A análise da experiência pré-científica

212 222

A crítica filosófica às ciências As classificações das ciências As estruturas pré-teóricas fundentes do conhecimento

243

A ontologiado mundo da experiência

251

Capítulo IV As ciênciascomo produção histórica no mundo da vida

225 232

259

Apresentação

259

A) O problema da história ..

261

Uma relação ambígua com a história ..

261

As ciênciascomo parte da cultura

268

A investigaçãode sentido...

275

Atestação da crise das ciências A gênese europeia da cientificidade

285 295

As condições motivacionais da orientação teórica

302

A humanidade guiada por normas racionais

305

B) A crise das ciências e o papel fundante do mundo da vida da crise

309

A matematização da natureza

309 314

A interpretação objetivista do ser e da ciência

327

A oncologia do mundo da vida

338

Os componentes eidéticos do mundo da vida como fundamentos das ciências C) Passagemà orientação transcendental

A orientaçãonaturalista

Dificuldades

A eidética do psíquico

A gênese histórico-intencional

Capítulo lll Método estático e método genético na fundamentação das ciências. Apresentação

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35 1

O a pHod do mundo da vida e a fenomenologia...

366 366

A redução fenomenológica em A case das cíê7zcías..

369

O papel fundante da subjetividadc transcendental O retorno crítico à orientação natural .

382

Conclusão Referências bibliográficas

373

387 399

'4.&

PP,

Siglas das principais obras de E. Husserl citadasí

As edições utilizadas são as da coleção Husserliana (Hua) e Husser.

nana Materialien (HuaM).

MC

Cartesíalzisc/ze Medítatíorzen und PaHserVorfrdge. Hua l

Idl

Ideen zu eíner reírzerzP/zdnomerzo/ogíe urze p/zdnomerzo/ogís-

Den Haag: Martinus Nijho#,

1973.

chen P/zí/osopbíe. Ersfes Buc/z: Ai/gemeíne Eín/ü/zmrzg ín díe

reirzeP/zdnomeno/ogíe. Hua 111.Den Haag:Martinus Nijhoff. 1950 )

Idll

Ideen zur einer íeinert Phãnomenologie und phdnomenologischen Philasophie. Zweites Buch: Phãltomenologische

Untersuc/zurzge?z zur Korzsfífufíon.Hua IV. Den Haag:Mar-

tinusNilhoa, 1952.

Idlll

Ideen zur einer reinar Phdnomenologie

und phanameno-

logischerl Philosophie. Díittes Buch: Die Phãnomenologie

l . Outros textosde Husserl serãomencionados no correr doscapítulos 13

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A cientificidade na fenomeno]ogiade Husser]

.f

}

und díe Fundamente der Wfssenscha/ten.Hua V. Den Haag: Martinus NijhoK, 1971

K

Díe Krísís der europdíschen Wfssenscha/ten und díe trarzszen-

dentale Phãlzomenologíe. Hua VI. Den Haag: Martinus NijhoK, 1976 PP

PhdnomenoZogische Psychoiogíe. Vorlesungen Sommersemes-

Introdução

ter. 1925.Hua [X. Den Haag: Martinus Nijhoff, 1968. P

Logísche Untersuchungen. Erster Tear.Prolegomena zur reínelz LogíÉ. Hua XVIII. Den Haag: Martinus NijhoK, 1975.

LUI/LU2

Logísche Untersuchurzgen.Zweíter TeíJ.Untersuc/zu7zgenzur P/zdnomeno/ogíe und TheoHe der Ertenntnís. Zwei Bãnden.

Hua XIX/l ; XIX/2. Den Haag:Martinus Nijhoff, 1984

LFT

Formale und hanszerzdenta/e LogíÉ. Hua X\rll.

Den Haag:

Martinus NijhoK, 1974.

ILTC

Einleítung in díe LogíÊ und ErÉerzntnísfheoríe. Vor/esungen

1906-07. Hua XXIV. Den Haag: Martinus Nijhoff, 1985. PSW

P/zíZosoP/zíe aZsstrenge WíssenschaÊ, in AuÉsdtze und Vodrdge

(]91 1--]921). Hua XXV. Den Haag: Martinus Niihoff: 1987, 3-62

Kll

Díe Krisís der europaíschen Wíssenscha/ten und díe transzeTZ

UXÍ:;:Bm;;f?:H"gH=:!'d=:.'E,!'" NG2

N.ztur u7zdGeíst: Vor/esungen Sommersemester1927. Hua

XXXII. Dordrecht: Kluwer, 2001.

NG

Ncztur und Geíst. Vorlesungen Sommersemester 1919. HuaM

IV. Dordrecht: Kluwer, 2002.

Este livro se dedica a uma leitura e interpretação de textos de Edmund Husserl, fundador da fenomenologia. O título escolhido é ambÜuo em relação ao papel da cientificidade na fenomenologia hus-

serliana.A cientificidade se deixa entender tanto como um tema privilegiado das análises fenomenológicas quanto como uma caracteüs-

tícczdessasanálises.A formulação ambígua não é gratuita, pois almejo mostrar que em certos núcleos da obra de Husserl essesdois sentidos foram desenvolvidos correlativamente. E verdade, assim, que a exploraçãodaquilo que atribui cientificidade às ciências constitui um dos assuntos centrais das análises fenomenológicas husserlianas, como já no-

tado por vários comentadores'. Porém parece importante delinear de modo mais claro que essaproblematização dasciências contribui para a formulação de diferentes apresentações do prometofenomenológico

Tenho em vista aqui o fato de que uma das principais preocupações de Husserl ao tematizar as ciências é demarcar as características dessas 1. Cf., p. ex-, Gurwitsch, 1974,parte 1, e mais recentemente Hardy, 2013, cap 2 15

14

A cientificidade na fenomenologiade Husser] Introdução

Em relaçãoa essaprogressão,selecionei quatro momentos em que um prometofilosófico específicoé atribuído à fenomenologia e escolhi textosque, a meu ver, melhor expõem e elaboram as tesesmarcantes sesmomentos. Em termos gerais, tenciono mostrar que nessasquatro formulações a tematização da cientificidade,

embora não da mesma

forma, é uma operação.privilegiada para a circunscrição daquilo que a própria fenomenologia pretende ser. Essesmomentos serão exposem sua ordem cronológica, e a cada um deles corresponderáum capítulo desta obra. Não descarto que seja possível discernir na vasta

obrade Husser]outrosmomentos-chave em que o prometofenomenológico tenha sido novamente reconfigurado, nem que outras preocupaçõesteóricas tenham acompanhado o autor nesselongo percurso

Contentar-me-ei em mostrar que em algumas dasobras principais de Husserl a configuração das tarefas da fenomenologia ocorre por meio de uma tematização da cientificidade das ciências (do ponto de vista da demarcação e da fundamentação), o que leva , dumareflexão correspondente acerca do estatuto científico da própria fenomenologia.

] '0 momento inicial que buscarei caracterizar é o da apresentação da fenomenologia ao grande público quando da publicação do livro Pro/egóme7zos à /ógíca pura, em 1900. É ali que Husserl usapela primeiravez em suaobra publicada o termo "fenomenologia", indicando por meio dele uma disciplina filosófica autónoma responsávelpor fun. damentaro conhecimento científico. É obvio que a problemática con . em Pro/egõmenos poderia ser remetida a textos prévios do autor, sendo então caracterizada como uma maturação de posições anteriores; No entanto,

acredito

que Husserl

oferece

nesse livro

um prometo

filosófico autossuficiente,o qual, embora respondaa dificuldades teóricas enfrentadas pelo autor em seu período pré-fenomenológico, pode ser estudado por si só como o momento inaugural da fenomenolo râ.'

16

17

i A cientificidade na fenomenologiade Husserl

Deste momento inaugural, salientarei uma distinção conceitual que servirácomo veículo para tornar visível a paulatina complexificação do prometofenomenológico nos momentos posteriores. Trata-se da distinção, exposta no parágrafo 32 de Pro/egõmenos, entre condições ob/etívas e condições sub/etívas do conhecimento. Ambas são pressupos-

tos, de ordens diferentes, da produção do saber. Para Husserl, uma das

Introdução

Essadivisão de tarefas sobre a sistematização das condições da cientificidade permaneceno correr da obra de Husserl de modo cada vez mais complexificado. Ainda no final do primeiro capítulo, veremos que Husserl admite, já em l7zvestigaçõé?s /ógícas e de modo mais desenvolvido no curso llztrodução à /ógíca e à feoría do con/zecímento,

principais característicasda cientificidade é seucaráterfundamentado. Nessesentido, conhecimento científico é aquele remissívela princí-

de 1906-1907,que não só restriçõesformais compõem as condições objetivaspara a produção de teorias, mas também restriçõesreferentes à própria estrutura dos domínios objetivos a que as ciências se de

pios teóricos que justifiquem sua formulação. Ocorre que muitos desses

dicam. Esboça-seaqui a formulação das ontologias materiais enquanto

princípios fundacionais do saberoperam de modo obscuro na prática

disciplinas científicas que deveriam circunscrever as possibilidades ideaisque constituem os diferentes tipos de domínios objetivos possí-

científica. Ainda que essaausência de clareza não impeça a obtenção

de resultadosválidos, Husserl insistirá em afirmar que a compreensão plenamente racional do sentido e do alcance da cientificidade das ciências exige a explicitação dessascondições que tornam possível o conhectmen\o. Esboça-se aqui a tarefa de fundamentação do saber cien

típico colho explicitação e sistematização dos pressupostosteóricos que condicionam a produção desseúltimo. Os pressupostosobjetipos são res-

trições formais para a formulação de teorias significativas e portadoras de teses verdadeiras acerca de quaisquer domínios temáticos. Eles devem ser sistematizados por meio de métodos lógico-matemáticos, o

que levará ao desenvolvimentode uma ciência formal fundente de to das as demais disciplinas científicas, a saber, a lógica pura. Por sua vez, os pressupostos subjetívos referem-se às restrições de apreensão e ates-

veis. Em paralelo a essaampliação das condições objetivas do conhecimento, Husserl formula a versão franscendenfa/ da fenomenologia lançando o prometode investigação das condições subjetivas de atribuição de sentido não só das restrições formais explicitadas pela lógica pura

jcomo era o casoem Pro/egómenosl,mas de toda a experiência. E a partir de então que Husserl consideraráa cientificidade não somente como tema das análisesfenomenológicas, mas também como um com potente da fenomenologia. Em sua versão transcendental, a fenome-

nologia é designadacomo ciência da c07zscíêncícz pura, e issoabrirá a problemática acerca daquilo que compõe a cientificidade da própria fenomenologia No segundo capítulo, eu reconstruo a versão madura da fenome-

tação evidente dos conteúdos teóricos pela subjetividade cognoscente. A descrição das estruturas subjetivas responsáveispela atestaçãodo co-

no[ogia transcendental estática, desenvolvida em ]deíczsparcauma

nhecimento (qualquer que seja o seu conteúdo) exige uma disciplina especial, uma vez que nenhuma ciência, bem mesmo a lógica pura,

prometode Bolzano de uma Wíssenscbaáts/e/zre; no sentido estrito, ela é então definida

preocupa-se em aclarar as condições cognoscentes d pdorí pelas quais

pomo uma teoria de todos os tipos de teoria. Mas parece legítimo estender essadoutrina da ciência para uma teoria do conhecimento e construí-la como uma doutrina geral da razão e do Juízo" (Fisette, 2003a, 42). Husserl reconstrói o ideal clássico de uma dou-

elas mesmas se exercem. Desde então, Husserl propõe a áerzomeno/agia

trina da ciência clariâcadora da cientiflcidade ao complementa-la, inicialmente, com a

como a doutrina filosófica que complementará a lógica pura na tarefa global de oferecer fundamentaçãoparatodo sabercientífico'.

investigação fenomenológica das fontes noéticas de atestação evidente do conteúdo lógico. Esse prometoserá paulatinamente expandido conforme reflexões posteriores acerca

da especificidade dasciências empíricas e dos diferentes níveis de análise fenomenológica. Fisette apenasindica no final de seu artigo parte dessaexpansão,enfatizando o acréscimo das ontologias materiais e da ética no prometo husserliano (cf. F'isette, 2003a,

4. D. Fisette nota que, dessamaneira, Husserl reformula o profeta clássico de dou crina da ciência: "no sentido estrito a doutrina da ciência aparece como uma retomada

do prometoleibniziano de uma matbesísuníversa/ísou como uma versãoenriquecida do

49-57). Neste livro, pretendo descreverde modo bastante detalhado a montagem do prometode uma doubina da ciência em Pro/egómenose a sua expansãoposterior por meio da ideia de ontologias materiais.

18

19

A cientiflcidade na fenomenologiade Husserl

Introdução 4

Deste momento inaugural, salientarei uma distinção conceitual que sewirá como veículo para tornar visível a paulatina complexifica-

Essadivisão de tarefas sobre a sistematização das condições da cienti6icidade permanece no correr da obra de Husserl de modo cada

ção do prometofenomenológico nos momentos posteriores. Trata-se da

distinção, exposta no parágrafo 32 de Pro/egõmenos,entre cozzdíções ob-

vez mais complexificado. Ainda no final do primeiro capítulo, veremosque Husserl admite, já em Irzvesfígações /ógícase de modo mais

/efípczse condições sub/efívas do conhecimento. Ambas são pressupos-

desenvolvido no curso J7zfrodução à /ógíca e à teoria do conhecíme7zto,

tos, de ordens diferentes, da produção do saber. Para Husser], uma das

de 1906-1907,que não só restrições formais compõem as condições

principais características da cientificidade é seu caráter fundamentado.

objetivas para a produção de teorias, mas também restrições referen-

Nessesentido, conhecimento científico é aquele remissívela princípios teóricos que justifiquem sua formulação. Ocorre que muitos desses

tes à própria estrutura dos domínios objetivos a que as ciências se de-

dicam. Esboça-seaqui a formulação das ontologias materiais enquanto

princípios fundacionais do saberoperam de modo obscuro na prática

disciplinas científicas que deveriam circunscrever as possibilidades

científica. Ainda que essaausência de clareza não impeça a obtenção de resultados válidos, Husserl insistirá em afirmar que a compreensão plenamente racional do sentido e do alcance da cientificidade das

ideais que constituem os diferentes tipos de domínios objetivos possíveis.Em paralelo a essaampliação das condições objetivas do conheci-

ciências exige a explicitação dessascondições que tornam possível o co-

çando o prometode investigação das condições subjetivas de atribuição de sentido não só das restrições formais explicitadas pela lógica pura

mento, Husserl formula a versão transcendenfa/ da fenomenologia lan-

rxheclmento. Esboça-seaqui a tarefa de fundamentação do saber cien!íPco como explicitação e sistematização dos pressupostosteóricos que

jcomo era o caso em Pro/egõme7zos), mas de toda a experiência. É a

condicionam a f)redução desseúltimo. Os pressuf)oitos objetivos são res-

partir de então que Husserl considerará a cientificidade não somente como tema dasanálisesfenomenológicas, mas também como um comporzenfeda fenomenologia. Em sua versão transcendental, a fenome-

trições formais para a formulação de teorias significativas e portadoras de teses verdadeiras acerca de quaisquer domínios temáticos. Eles

devem ser sistematizadospor meio de métodos lógico-matemáticos, o que ]evará ao desenvolvimento de uma ciência formal fundente de to-

nologia é designadacomo ciência da consciênciapura, e issoabrirá a problemática acerca daquilo que compõe a cientificidade da própria fenomenologia.

das as demais disciplinas científicas, a saber, a lógica pura. Por sua vez, os pressupostos sub/etívos referem-se às restrições de apreensão e ates-

No segundocapítulo, eu reconstruo a versãomadura da fenomenologia transcendental estática, desenvolvida em Ideias para uma

tação evidente dos conteúdos teóricos pela subjetividade cognoscente A descrição das estruturas subjetivas responsáveis pela atestação do co-

nhecimento (qualquer que seja o seu conteúdo) exige uma disciplina especial, uma vez que nenhuma ciência, nem mesmo a lógica pura,

prometo de Bolzano de uma Wísse7zscha/ts/e/zre; no sentido estrito. ela é então definida como uma teoria de todos os tipos de teoria. Mas parece legítimo estender essadoutrina da ciência para uma teoria do conhecimento e construí-la como uma doutrina geral da

preocupa-se em aclarar as condições cognoscentes czpüorí pelas quais

razãoe do Juízo" (Fisette, 2003a, 42). Husserl reconstrói o ideal clássico de uma doutrina da ciência clari6icadorada cientificidade ao complementa-la, inicialmente, com a investigaçãofenomenológica dasfontes lloéticâs de atestaçãoevidente do conteúdo ló-

elas mesmas se exercem. Desde então, Husserl propõe a áenomeno/ogía

como a doutrina filosófica que complementará a lógica pura na tarefa global de oferecer fundamentação para todo saber científicos

gico. Essepro)eto será paulatinamente expandido conforme reflexões posteriores acerca da especificidade das ciências empíricas e dos diferentes níveis de análise fellomenológica. Fisette apenas indica no final de seu artigo parte dessa expansão, enfatizando o acréscimo das ontologias materiais e da ética no prometohusserliano (cf. Fisette, 2003a

4. D. Fisette nota que, dessamaneira, Husser] reformula o prometoclássico de doutrina da ciência; "no selltido estrito a doutrina da ciência aparece como uma retomada

49-57). Neste livro, pretendo descrever de modo bastante detalhado a montagem do prometode uma doubina da ciência em Pro/egómerzos e a sua expansãoposterior por meio da ideia de antologias materiais

do prometoleibniziano de uma rrzafAesfs uníversa/zsou como uma versãoenriquecida do 18

19

l

A cientificidade

na fenomenologia

Introdução

de Husserl

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áenomeno/agiapurcze umcz/í/oso/ía áe7zomeno/ógíca 1, ou simplesmente Ideíczs1, publicada em 1913. Nesse texto, a exploração das condições

4

do conhecimento, o que implica que os fios condutores para asanálises

ções subjetivas do saber continua uma tarefa da fenomenologia, porém

propiciarão formulações mais amplas do próprio prometofenomenológico. No terceiro capítulo, após acompanhar a tentativa de fundamentar fenomenologicamente as ciências naturais e humanas em Ideias ll, reconstruo alguns dos elementos envolvidos nas análisesgelzétícczs da cientificidades. No período anterior, aquele das Ideíczs,os pressupostos

inserida em uma problemática

fundentes da cientificidade

objetivas do conhecimento é atribuída a um sistema de ontologias responsáveis por ordenar as restrições d f)doH formais e materiais a que o conhecimento científico deve se submeter. Já a explicitação das condicientífica

própria,

a saber, as aná/ases

são considerados

em correlações

estátícczs:

corzstíMfívas do sentido das experiências possíveis da consciência pura.

aosconceitos ontológicos basilares das disciplinas científicas deve cor-

Vale notar que em Ideias 1, Husserl sedebruça demoradamente sobre o caráter científico da fenomenologia, o qual é remetido a dois principais

respondero sistema de fitos subjetivos nos quais seu sentido era constituído. Por sua vez, no correr da década de 1910 e 1920, o filósofo re-

aspectos, o eídéfíco e o tra7zscenderzta/. A fenomenologia será, assim,

conhece que essetipo de análise não esgota a exploração das condi-

uma descriçãodas estruturasd pHori de uma regiãoontológica específica, a consciência.Porém essaregião exerceráuma função especial;a

çõesfundacionais do conhecimento. As ontologias devem estudar as restriçõesa pHorí formais e materiais das ciências; mas tais restrições sãopor elas abordadascomo um tema teórico pronto, sem que haja

saber, ela será a fonte de sentido por meio da qual setornará compreensível a possibilidade de acessoa qualquer tipo de objetividade. Quanto à tarefa de fundamentação das ciências pela explicitação de suascondições subjetivas,veremos que Husserl a propõe como uma espécie de ap/ícczçãoda fenomenologia transcendental(Cf.

Idl, S62). Essa

tarefa é desenvolvida principalmente em alguns trechos de Ideias lll (texto escrito na mesma época de Ideias 1, porém publicado postumamente). Fica claro ali um esquema de análise que Husserl manterá até o fim de sua carreira: tomar as análises sobre as condições objetivas do conhecimento (as quais devem ser realizadas por ciências devidamente

voltadas a essestemas, tais como as antologias formais e materiais) como /ios condutores para a explicitação das operações transcendentais

fundentes de todo sabercientífico. Esseprocedimento fenomenológico de pautar-sepelo objeto constituído para então revelar a atividade subjetiva constituinte já está de certo modo em vigor desde Pro/egõmenos à

rógíca pura. Trata-se da empreitada de c/arí/ícação do sezztídode algum tópico objetivo pela remissão à sua origem fenomenológica. Porém em Ideias IIJ esseprocedimento é sistematizado como a atividade por meio

uma preocupação em evidenciar as camadas de experiência fundente nas quais essaspróprias restrições podem ser inicialmente reconhecidas e isoladas como tema científico. Husserl aponta, assim, para pressu-

postosdo conhecimento na experiência pré-teórica do mundo, na qual os diferentes temas das ontologias aparecem entrelaçados em vivências intencionalmente densas. A exploração sistemática da experiên-

cia pré-teóricalança, desse modo, nova luz sobre a legitimidade das investigaçõescientíficas, das distinções entre asdisciplinas e da conveniência dos seusmétodos. Acerca dessevasto horizonte temático, privilegiarei o exemplo da distinção entre ciências humanas e ciências naturais por meio da remissão à experiência pré-teórica, tema desenvolvido por Husserl nos dois cursos intitulados Naturez e espírito (ministrados respectivamente em 1919 e 1927). Importa tornar visível de que maneira Husserl inclui a exploração do mundo da experiência pré-teórica como parte da clarificação dos pressupostoscondicionantes da produ-

çãocientífica. Veremos,quanto a isso, que o filósofo proporá no curso

Psíco/ogía áerzomeno/ógíca (ministrado em 1925,1926e 1928)uma

da qual a fenomenologiapoderá explicitar osfundamentos últimos que garantem a cientificidade de qualquer sabercientífico.

Nos dois capítulos finais deste trabalho, mostro de que maneira Husserl desenvolve ainda mais a sistematização das condições objetivas 20

5. Não pretendo reduzir a complexa elaboração do método fenomenológico genético a uma respostaao tema da cientificidade, embora essemétodo, como veremos ofereça uma nova abordagem a essetema 21

A cientificidade

na fenomenologia de Husserl

Introdução

#

ciência específicapara tratar dessepressupostogenético, a saber,uma

iniciais dos livros Meditações caüesícznczs(publicado em 1931) e Lógica

oito/agia do mulzdo da expeHêncíaque servirá como fio condutor para a consecução das análisesfenomenológicas constitutivas genéticas.

Óomza/e trcznscende7zta/ (publicado em 1929) A análise das condições históricas da cientificidade não se con-

No correr da décadade 1920e em particular na décadade 1930,

funde com aquela das condições genéticasda sua produção. No en-

as análises husserlianas do mundo da experiência pré-teórica desembocam, ao menos em parte, no tema do muradoda vida, cuja explora-l

tanto, em A crise das cíêrzcías europeias e a Óerzomeno/ogía trarzscende7z-

ção científica (entenda-se,por meio de uma ontologia própria) permi-

fundaçãogenéticano mundo da vida, oferecendo um fio condutor ex-

tirá esclarecer de modo bastante detalhado os pressupostos pré-teóricos

tremamente abrangente para as descrições fenomenológico-transcen-

condicionantesda cientificidade, além de oferecer uma nova via introdutória à fenomenologia transcendental. No quarto capítulo, recons-

dentais.Pretendo, no correr do quarto capítulo, tornar compreensível

truí a análise husserliana da cientificidade à luz do tema do mundo da

6icidade,a crise anualda humanidade europeia e o papel fundante do

vida, além de pormenorizar a especificidade do prometofenomenoló-

mundo da vida para asciências, tendo em vista que todos esseselemen-

gico transcendental correspondente à ênfase nesse tema. O texto em que essaanálise é mais bem desenvolvida e que será aqui privilegiado é

tossãoordenadoscomo uma via introdutória para a fenomenologia

A case das ciências europeias e a Óenomerzo/ogíatranscende7zfa/, publi-

cado parcialmente em 1936.Ocorre que, como fica claro na parte ini-

Eis o percurso a ser seguido por esta obra. Trata-se, em termos gerais, de acompanhar a complexificação de um problema lançado em

cial dessetexto, a oncologia do mundo da vida rzão opera de modo íso/ado

Prolegõmenos à /ógíca pura: que a peúeição estrutural das ciências

como explicitação dos pressupostospré-teóricos da cientificidade e, por conseguinte, como fio condutor para as análisesconstitutivas transcendentais. A exploração genética do mundo da vida é entrelaçada a outro

exigea clarificação de todos os pressupostosque condicionam a pro-

tema, o que torna bastante difícil expor de modo fidedigno a posição final de Husserl sobre a cientificidade e o papel da fenomenologia. Esse

reira, até sua última obra publicada em vida (A crise das cíêrzcíaseuro-

outro tema é aquele da /zístóría. Husserl considerará, e issoao menos a partir da década de 1910, que as ciências são historicamente constituí-

o alcance dessascondições. Expus os momentos-chave em que ascondições objetivas do conhecimento, delineadas inicialmente como res-

dasconforme o ideal de conhecimento absolutamente fundamentado

trições formais, são desdobradas em condições formais e materiais, em

originalmente propostona Grécia Antiga. Dessamaneira, a produção científica não se encerra nos arosindividuais daquelesque atualmente

seguida são exploradas em sua infraestrutura pré-objetiva e por fim são

a conduzem, mas deve ser também avaliada do ponto de vista da reati-

faJ, Husser] tematizará con/urzfamé?ntea historicidade das ciências e sua

a articu]ação proposta por Husser] entre o caráter histórico da ciente

transcendental

dução do saber científico enquanto devidamente fundamentado. Esses

pressupostossão de ordens objetivo ou subjetiva. No correr de sua carpeias e a áenomeno/ogía tr rtscendenfa/), Husser] ampliou o sentido e

remetidasa uma tradição histórica que em muito excede a atividade científica anual.Em paralelo, mostrei que essaabertura temática em

vação de uma ideia fundadora que deveria justamente nortear as produções contemporâneas. Desde então, o caráter histórico do sentido da

relação aos fundamentos objetivos das ciências supõe sucessivasreela-

cientificidade é reconhecido por Husserlcomo um tipo de pressuposto da ativídade científica, o qual permitirá mesmo diagnosticaruma crise

investigaçãonoéticada lógica pura, então expandidoem fenomeno-

no estado atual das ciências. Para tornar explícito essetema da historicidade das ciências, utilizarei vários textos de Husserl, em particular o artigo A #/oso/ia como cíêncíczrigorosa (publicado em 1911) e as partes

genéticae por fim elaboradacomo uma ciência universal da consciên-

22

23

boraçõesdo prometofenomenológico apresentado inicialmente como logia banscendental estática, a qual será ampliada em fenomenologia cia que assume a tarefa de refundar o ideal histórico de cientificidade por meio do qual a própria humanidade poderá superar a crise presente

A cienti6lcidadena fenomenologia de Husserl

./ r;'} ;l,;

e almejar a instituição de unia cultura racional. Note-seque as pretensõesde Husserl em relação à fenomenologia são crescentes,bem como

a complexidade de suasanálises,o que se refletirá na construção dos capítulos destelivro. Não é, assim,casualque o capítulo final seja bem maior que os iniciais. Simplesmente há cada vez mais elementos eu jogo para responder a uma mesma problemática de fundo. Por meio do percurso aqui delineado, espero ter levado em conta os tópicos mi-

CAPITULOI

Da fenomenologia noética à fenomenologia transcendental

nimamente necessáriospara se compreender o tratamento do tema da cientificidade em quatro momentos da obra de Husserl

Uma primeira versãodestaobra foi apresentadacomo teseem um concurso de livre-docência a que me submeti na Universidade de São

Paulo em 2016. Agradeço aos professores-membrosdaquela banca (Ricardo R. Terra, Franklin Leopoldo e Silva, Mário A. G. Porta, Jarro J. da Silvo e JoséTornes) pelas sugestõese pelos comentários críticos que contribuíram para a versão final deste livro.

Apresentação

Na primeira parte do capítulo, reconstruo a primeira versãoda fenomenologia lançada ao grande público no livro Pro/egõmenosà/(igíca

pura, volume inicial da obra Investigações/ógícas(publicada inicialmente em 1900-1901 e reeditada em 1913 e em 1921:). Cabe à feno-

menologia, nesselivro, complementar a lógica pura na tarefa de explicitação dos fundamentos das ciências. Em seguida, contrasto o sen-

tido e o alcancedessaprimeira fenomenologiacom a fenomenologia transcendental tal como sistematizada de modo inicial por Husserl no curso lízüodução à /ógíca e à teoríczdo con/zecímento, ministrado em 1906-1907.

1. Todas ascitações de Investigações/ógícas referem-se, salvo menção explícita em contrário,à segunda edição 24

25

A cientificidade

na fenomenologia

de Husserl

Da fenomenologia noética à fenomenologia transcendental

./ rj'

Ã,b

A) A fenomenologia como complemento filosófico à lógica pura

necessário desenvolver uma investigação sobre a legitimidade

O prometológico de Prolegâmenos à lógica pura

supostos que condicionam

O livro Pro/egõmenos é comumente associadoà crítica ao psicolo. cismo, corrente filosófica que pretende atribuir à psicologia (enquanto ciência empírica) a tarefa de esclarecer os fundamentos teóricos da ló-l Bica. Em ao menos sete dos onze capítulos desselivro, Husserl critica duramente as tentativas de explicar a validade lógica por remissão a fatos psíquicos, tachando a empreitada psicologista como confradítóría, uma vez que ela seserve do caráter universal e necessáriode princípios

lógicos básicospara construir suas teses,as quais justamente tentam mostrar que as leis lógicas no fim das contas não são necessárias,mas

no máximo remetem a regularidadesnaturais (Cf. P, SS21-24). Sem detalhar muito mais essacríticaz, importa notar que, apesarda extensão da temática do psicologismo, o próprio Husserl não a considerava

o núcleo de Pro/egóme7zos;. Na verdade,a refutaçãodo psicologismo constitui uma etapa preliminar de um prometobem mais audacioso,a saber,propor uma doutrina geral acercadaquilo que atribui cientificidade às disciplinas ditas científicas. Há duas motivações gerais para esse prometo.A primeira delas é o reconhecimento de que as ciências em ge-

ral, apesar de seu crescente sucessotécnico, permanecem em um estado de impeúeição teórica. Segundo Husserl, falta clareza em relação aos métodos e conceitos basilares utilizados nas investigações científi-

dos pres-

a construção das teorias científicas.

Ao estabelecera necessidade de uma investigação dos fundamen-

tos lógico-conceituaisdas ciências, Husserl logo encontra a segunda motivaçãoparao prometode Pro/egõmenos.E que a própria lógica estaria em estadode inacabamento teórico. Os grandeslógicos estudados

no início do séculoXX não concordavamnem quanto ao conteúdo da disciplina lógica e nem mesmo quanto à própria definição desta Tecnologia da ciência, arte do reto pensar, cálculo de consequências, etc. Diferentes concepções da lógica vigoravam, sem que se elucidas-

semplenamente quais tipos de vínculo ou hierarquia existiam entre elas. Essa situação de desacordo exige um retorno

às "questões de prin-

cípio" (P, S2), o que significará oferecer a delimitação evidente do do-

mínio de atuaçãoda lógica bem como uma sistematizaçãodasdiferentes abordagens por meio das quais os temas lógicos são estudados

Husserldistingue inicialmente a lógica como díscíp/irz prática e como dÍscíp/ínanor77zafiva. Enquanto disciplina prática, a lógica atua como uma arte ou um conjunto de técnicas submetidas a uma finalidade geral, a saber, a obtenção confiável de conhecimento científico nas mais diversassituações concretasõ. Além disso, em termos mais gerais, a lógica é uma disciplina normativa, isto é, um conjunto de normas relativas às operações lógicas ordenadas conforme relações de hierarquia,

cas. Os cientistas supõem a vigência de certos conceitos e procedimen-

e issoindependentemente de sua instrumentalização por finalidades

tos que permitem a construção de teorias convincentes, embora normalmente não se preocupem em Justificar explicitamente a validade

práticasimediatas. Desseponto de vista, as disciplinas práticas supõem

dessespressupostos lógicos sobre os quais trabalham'. Torna-se, assim, 2. Uma excelente coletânea de artigos em torno dascríticas de Husserl ao psico-

logismoé EdmundHusser/:$erzomerzo/ogía, psfcoZogísmo, psíco/ogía, de Mário A. G

disciplinas normativas em sua base que justamente ordenam as regras relacionadas aos procedimentos a ser aplicados para os casos em vista

dosúltimos fundamentos de sua atividade, e embora os resultados obtidos possuam para eles e para outros a força de um convencimento racional, eles não podem pretender ter

Porta (2013) 3. No primeiro fragmento do esboço de um prefácio a Invesflgações/ógícas, escrito

provado no geral as premissas últimas de suas conclusões e dos princípios

em 1913 mas só pub]icado postumamente, Husser] lamenta que muitos leitores se li-

detodasasciências"(P,S4, 25-6)

mitem à discussão do psicologismo "para poder ajuizar sobre o sentido dos esforços que

eu tentei em lógica e em teoria do conhecimento, e sobre o valor filosófico da obra

(Husser1, 2002a,S2,276)

4. "Mesmo o matemático,o físico e o astrónomonão necessitam,para conduzir

suas operações ILesífungenl científicas mais significativas, da visão evidente IEinsfchtl 26

sobre os quais

repousaa validade [Tn/tígÊeítl de seusmétodos. A isso se refere o estado de imperfeição

5. "Hoje ainda estamosmuito distantes de um acordo multilateral em relação ao tema da de6lnição da lógica e do conteúdo de suasteorias essenciais" (P $ 1, 19). 6. "Uma lógica orientada para a prática é um postulado inevitável de todas as ciên-

cias,e a estefato correspondetambém que a lógica se originou historicamente por motivos práticos ligados ao empreendimento científico" (P, $ 13, 44) 27

A cientificidade na fenomenologiade Husserl

Da fenomenologia noética à fenomenologia transcender.tal

#

Além disso, Husserl defende que toda norma pressupõe um conteúdo

circunstânciasconcretas. Essasleis nos permitem pensar sobre fatos e

teórico sobre o qual se estabeleceo deversernomativo em vista para cada caso.Isso significa que a lógica como uma disciplina normativa

situações particulares, mas não são derivadas dessas últimas. Conforme

supõe a validade independente dos seusconteúdos temáticos, os quais

insisteo filósofo, "as leis denominadas como 1(5gicas em sentido pleno (...) possuemexatidão absoluta. Toda interpretação que lhes atribua

podem ser investigadospor uma disciplina puramente teórica, que os

indeterminações empíricas, que pretenda tornar a sua validade depen-

estude de modo autónomo, antes mesmo de serem convertidos em re-

dente de 'circunstâncias'vagas,alteraria profundamente o seu signifi-

gras para guiar a produção do conhecimento. Essateseé formulada de

cado" (P, S 21, 73). Ora, se esseconteúdo teórico da lógica (as estrutu-

modo bastante claro no parágrafo 14 de Pro/egõmenos: "Toda disciplina normativa e, do mesmo modo, toda disciplina prá-

ras formais regidas por leis a priori) fosse derivado da investigação psi-

tica assentamsobre uma ou mais disciplinas teóricas,na medida ern

sujeito a mudanças conforme o avanço do saber experimental (Cf. P,

cológica, então ele seria apenas mais ou menos provável, uma vez que

que as suasregras têm de possuir um conteúdo teórico separável do pen-

S 21). Mas essenão é o caso;o conteúdo estritamente teórico dasnor-

samento da normatividade (do dever ser), conteúdo cuja investigação

mas e dos procedimentos

científica compete precisamente àquelas disciplinas teóricas" (P, 53).

menfevá/ído' É claro que, ao se referir às leis lógicas, os sujeitos têm certas expe-

Consideremos,por exemplo, uma norma segundoa qual se deve evitar o uso de contradições em uma cadeia dedutiva. Essanorma su-

põe um conteúdo teórico do que é uma contradição lógica e de suas consequências. Por sua vez, esseconteúdo não é normativo; ele exige outro tipo de investigação para ser devidamente tematizado. Daí que

a lógica, enquanto disciplina normativa, suponha uma ciência teórica do conteúdo temático de que suasnormas se compõem. E é em relação a essapassagemdas normas lógicas para seu conteúdo teórico de base que se instaura a polêmíca com o psicologismo. Todo o problema é esclarecer qua/ díscíp/ína teóríccr deve investigar os conteúdos

lógicosem sua autorzomiafanática. Segundo a interpretação psicologista da lógica, a disciplina teórica fundente deve sera psicologia, tese que Husserl julga ter refutado ao apontar para o caráter necessárioe a

lógicos utilizados

nas ciências é necessaría-

riências psíquicas particulares, as quais são mais ou menos claras e intensas.Mas não se devem confundir as vivências com o conteúdo lógico

yísczdo por e/as.Os fitos psíquicos sãoeventos reais, compostosde causas

e efeitosparticulares, que se desenrolam num tempo determinado; já asestruturaslógicas têm uma validade onitemporal, a qual não se mo difica conforme a variação das vivências psíquicas. Essasestruturas são

baseadas em conceitos ou categoriasformais cujo sentido não é derivado de experiências particulares, as quais são, por sua vez, o material básico da investigação psicológica (Cf. P, S 37).

Voltarei a tematizar a referência subjetiva à validade a priori da lógica. Por ora, basta enfatizar que, diante da recusa da psicologia como

disciplina teórica fundente da lógica, Husserl almeja o seguinte resul-

priori dos temas lógicos, especificidade não abarcável por uma ciên-l cia que trata de fatos. A investigação psicológica, assim crê Husserl, almeja a construção de teorias explicativas quanto aos estados psíquicos humanos. As tesesveiculadas por tais teorias se baseiam em constata-

tado: "a delimitação IAussondemngl de uma ciência nova e puramente teórica que constitui toda técnica do conhecimento científico e possui

çõesempíricas e se apresentamcomo generalizaçõesindutivas passí-

de um conjunto de normas, a lógica deve ser desenvolvida como uma

veis de aperfeiçoamento aTltea obtenção de novos dados experimen-

disciplinateórica independente,a /ógíc pura, uma disciplina cujo

o caráter de uma ciência a príoH puramente demonstrativa" (P, S 3, 23-

24).Trata-sede mostrarque muito além de uma tecnologia prática ou

tais. Por sua vez, as estruturas lógicas exibem uma validade absoluta, as

leis que regem as inferências dedutivas não se originam de generalizações empíricas, mas são válidas czpríod, isto é, independentemente 28

das

7. As leis lógicas "enconbam a sua fundamentação e )usti6lcação não por meio de

indução,mas por evidência apodítica" (P, S 21, 74) 29

A cientificidade na fenomenologia de Husserl

Da fenomenologia noética à fenomenologia transcendental. .;é ,..')'}

escopo, como se verá a seguir, será aquele das condições de sentido e validade basilaresde qualquer investigação científica.

4

do conhecimento científico exige, desde então, que todos os resultados

remetam aosrespectivosprincípios legitimadores. Porém, conforme já mencionado na seção anterior, o diagnóstico husserliano é de que na prática científica falta clareza em relação aos fundamentos últimos do conhecimento obtido. Os métodos de legitimação de conhecimentos

O domínio da lógica pura A meta das investigações científicas, como nos expõe Husserl, é a

mediatos, os princípios nos quais se baseiam, nada disso está sistemati-

obtenção de conhecimento verdadeiro justificado (Cf. P, S 6). No en-

:ado, de forma que falta ainda uma compreensão racional da produção científica conforme suascondições teóricas mais básicas.

tanto asciênciasnão se limitam a formular conhecimentosde modo esparso, mas os propõem de forma sistemática. Essa sistematicidade,

Segundo Husserl, cabe investigar em sua czutonomía feódccztodos

por sua vez, não é derivada de alguma idiossincrasiaestética dos sujeitos cognoscentes;ela é exigida pelos próprios temas científicos, os quais por si mesmosse encadeiam de forma sistêmica'. Os laços sis-

esses métodosde fundamentação (bem como seusconceitose princí-

temáticos das teorias devem, assim, refletir a ordenação objetivo dos

vestigados.Essaautonomia teórica remete sem dúvida ao próprio modo

assuntos estudados. Contudo, essa ordenação não é desvelada de ma-

como essesmétodos por si sós operam. Afinal, eles são (Cf. P, S 7):

pios constituintes) que permitem o estabelecimento de teorias legítimas em sua tarefa de expressar as características definidoras dos domínios in-

neira imediata. O conhecimento evidente, que se impõe sem media-

a) conjuntos de procedimentos fixos, quer dizer, uma sequên-

ções, ocorre somente em relação a um grupo muito restrito de temas

cia não arbitrária de operações; b) procedimentos típicos, isto é, que não selimitam a situações únicas, mas podem ser aplicados a inúmeros casossimilares; c) procedimentos cuja forma não depende das particularidades concretas do domínio em que são aplicados

Diante disso,o edifício científico deve contar com vários métodos que legitimem a obtenção de conhecimentos mediatos confiáveis com base naqueles imediatos9, de maneira a construir teorias capazes de ex-

primir as características e relações dos domínios objetivos estudados. Deve-se acentuar aqui que para Husserl o caráter marcante da cientificidade é a legitimidade ou a justificação teórica de todos os passosna

Os métodos de fundamentação do saber (e seus componentes conceituais elementares bem como as leis que regem sua validade) cons-

produção

tituem o núcleo teórico mais geral do qual as mais diversasinvestiga

do conhecimento.

Conhecimento

científico

é, assim, con/ze.

cimento /ulzdame7ztadoem métodos e princípios que legitimem as vá

rias etapasdas construçõesteóricas'o.O ideal de conhecimento científico aponta, dessemodo, para "teorias cristalinas, nas quaisa função de todos os conceitos e tesesestivessecompletamente concebida, todos os pressupostos rigorosamente analisados, e o todo estivesse assim ele-

ções científicas se desenvolvem. O estudo dessas estruturas, em sua pu-

rezaformal, circunscreve o domínio temático da lógica pura, a qual, dessamaneira, se caracteriza como "doutrina da ciência" IWíssens cba/ts/ebrel (P, S 5, 271, quer dizer, como investigação daquilo que

confere cientificidade

às disciplinas científicas''.

Husserl retoma

vado acima de qualquer dúvida teórica" (P, S 4, 26). A cientificidade 11. Husserl encontra inspiração para seu prometona obra Wissensc/za/ts/gare de

8. "A sistematizaçãoque é própria à ciência (...) não somosnós que a inventa'

Bolzano. Ali, "encontramos

ela reside nas coisas, nas qu ais nós simplesmente a encontramos, a descobrimos

ciplina" (P, S 12,43), afirma. Essaobra, de 1837, "no que concerne à 'teoria lógica ele-

excelentes ideias concernentes à delimitação

de nossa dis-

mentar', ultrapassade longe tudo o que a bibliografia mundial nos oferece como esboço

(P,S6 30-sserl chama esses métodos de"fundamentos" IBegdndungenl (P,S6) 10. Husserl afirma isso explicitamente no parágrafo 62: "o conhecimento cientí-

fico é, comotal, conbecímenfo co«z/andamento"(P,233) 30

de uma lógica sistemática" (P, apênd. S 61, 227). No entanto, Husserl nota que falta naobra de Bolzano "investigaçõesque façam compreender de ulll ponto de vista propriamente filosófico as funções lógicas do pensamento e, por aí, a apreciação filosófica 31

A cientificidade na fenomenologiade Husserl

Da fenomenologia noética à fenomenologia transcendental

.} ,r'$'} H

explicitamente aqui o ideal leibniziano da mczt/zesís uníversa/is,querdi. zer, do conhecimento universal fundente dossaberesparticulares (Cf. P, S 60). Essa mat/zesís seria uma "disciplina de forma e rigor matemá-

tico em todo o seusentido mais vastoe supremo" (P, S 60, 222), e con. teria os princípios geraisque regem a produção do conhecimento nas mais diversasáreas.A lógica pura permitiria realizar esseideal da filosofia moderna ao elucidar a armadura formal que sustentaas teorias científicas. E, segundo Husser], a ordenação sistemática que permite melhor fundamentar a extração de consequências teóricas em uma in.

Vale notar que a lógica pura, tal como exposta,ainda não é uma ciência plenamente desenvolvida. Haveria já explorações teóricas consideráveisacerca dos temas centrais da lógica pura'', mas não aindaj sistematização unificadora dos seus resu]tados em uma só ciência. ]il

importante destacara centralidade da mczfemátícapara o amadurecimento da lógica pura. Os encadeamentos proposicionais que permitem a construção de teorias válidas bem como aspropriedades formais de qualquer domínio pensável, tudo isso será investigado por recur-

soslógico-matemáticos. Husserl tem aqui em vista as notáveistrans-

vestigação científica é a axiomática-dedutiva'Z. Vale notar que essaé a

formações nos estudos lógicos do final do século XIX geradas pela in-

forma que a própria lógica pura deve ter, de maneira que ela fundamenta a si própria, quer dizer, a forma sistemático-dedutivada lógica

trodução em seu âmbito dos métodos matemáticos. Essastransforma-

pura é regida pelas leis lógicas a f)ríoH acerca da sistematicidade dedu-

formasde encadeamentos dedutivos desconhecidas até então. Tal am-

tiva, leis que fazem parte de seu conteúdo teórico';.

pliação dos recursos lógicos pela aplicação dos métodos matemáticos confirma para Husserl que o domínio das puras significações formais e

Conforme já mencionado, as teoriascientíficas buscam exprimir a unidade sistemáticade um domínio objetivamente delimitado. Cabe aqui acentuar que essacorrelação é levada em conta pela lógica pura, que analisa não somente os conceitos que formam proposições e seus encadeamentos dedutivos, mas também as propriedades e relações for-

mais que os objetos correspondentes estabelecem entre si. A lógica

pura também inclui, assim,uma teoria /)ura do ob/eto,ou seja,uma

çõesrevelaramoslimites da sílogísticabadicional e explicitaram novas

suasinterações deve ser tratado conforme os métodos matemáticosiÕ.

Na verdade,Husserl crê que, de maneira geral, no que tange a todos os pressupostos lógicos das teorias científicas, a forma matemática "é a única que é científica, a única que apresenta o caráter e o acabamento de um sistema fechado, uma visão de conjunto sobre todas as questões e suasformas de solução possíveis" (P, S 71, 254). Notemos aqui que

análise em termos de categoriasformais de qualquer tipo de objeto pos-

esseestilo matemático do desenvolvimento da lógica pura não está li-

sível em qualquer domínio concebível''.

gadoà noção ingênua de quantidade, e sim ao rigor dedutivo das conexões estabelecidas, o que permitirá exprimir com segurança as uni-

dadessistemáticasformais que garantem a cientificidade das ciências da própria disciplina lógica" (P, apênd. S 61, 228). A empreitada husserlianaserá mar-

(Cf.P,S70)

cada exatamente por incorporar uljla e/ucídação /í/osó/íca à lógica, conforme veremos

12. "A unidade sistemática da totalidade idealmente fechada de !eis, as quais repousam em uma legalidade fundamental como seu fundamento último e sãodele derivadas por dedução sistemática, é a urzídade de uma teoHa sfsfematicamente como/efa

Essalegalidade fundamental consiste aqui seja em uma lei fundamental, seja em uma reunião de leis fundamentais homogêneas" (P, S 63, 234). 13. "Que a ciência que se refere a todas asciências no que concerne à sua forma se

15. Em um texto pub]icado em 1903, Husser] sugere que devem compor a lógica pura "a silogística tradicional, mas também a teoria pura das numerações, a teoria pura dosnúmeros ordinais, a teoria cantoriana da multiplicidade, etc." (Husserl, 1979a, 205) 16. "Recentemente os matemáticos reivindicaram e se apropriaram da tarefa de

apeúeiçoara teoria do silogismo,a qual por todo tempo tinha sido computadana es-

aplique também eo ipso a si própria, eis o que soade maneira paradoxal, mas que não envolve nenhum tipo de incompatibilidade" (P, $ 42, 165) 14.Trata-sede "categorias objetivas puras ou formais", tais como "objeto, estado

fera mais específica da filosoüla, e ela recebeu de suasmãos um desenvolvimento insuspeito (. . .). E ao mesmo tempo descobriram-se (. . .) teorias de novos gêneros de raciocínios, que a lógica tradicional havia omitido ou desconhecido. Ninguém pode interditar

de coisas, unidade, pluralidade, número, relação, enlace, etc." (P, S 67, 245). Paraapro-

osmatemáticos de reivindicar para eles mesmos tudo o que deve ser tratado com uma

fundamentos quanto a esseduplo desenvolvimento da lógica pura, cf. Smith, 2003

forma e um método matemático" (P, S 71, 254)

32

33

A cielltiRlcidade na fenomenologia de Husserl

Da fenomenologia noética à fenomenologia transcendental 4

A. lógica pura e as ciências empíl'ices

progressodas ciências empíricas está submetido a regrasformais de va-

proposiçõesderivadasde princípios apodíticos não se cumpre plena-

lidade universal,passíveisde estudo pela lógica pura. Ocorre que essasleis que regulam a construção do saberempírico não determinam

mente em relação a todas as ciências. Apenas as ciências abstratas ou

necessariamenteos resultados obtidos, mas sim de modo prováve/. O

nomológicas (cujo tema decorre totalmente de leis .zpHod) veiculam adequadamenteessepadrão de cientificidade. Essasciências (a mate.

caráterprováveldo conteúdo teórico das ciênciasempíricas implica

mítica formal, a física matemática, a mecânica a príoH etc.) se desen-

píricos futuros alterem o grau de probabilidade atribuído às tesesde

volvem somente com base em conceitos categoriais e oncológicos pu-

que asteorias originalmente secompunhamt8. Issovale mesmo para as leis empíricas, asquais, justamente por isso, estabelecem regularidades

A realização da cientificidade como unidade sistêmica dedutiva de

ros, sem que sejam limitadas por circunstâncias factuais. Por sua vez, não é issoo que ocorre com as ciências empíricas. Para Husserl, a uni-

a sua provisoriedade, uma vez que sempre é possível que dados em-

que não se impõem de forma necessária tal como ocorre com as leis

dade teórica das disciplinas empíricas não decorre somente de leis a

lógicas:9.Em todo caso,vale notar que as teoriasda probabilidade não

f)ríorí, apreensíveisem armaduras conceituais dedutivas, pois também

são elas mesmas eventos empíricos prováveis, mas estruturas formais

depende de determinações oriundas do domhio empa'hcoestudado

construídas de modo válido a priori, o que permite que, ao menos par-

jseja uma só coisa, como é o caso da Terra para a geografia, seja um gênero material, por exemplo, asespéciesde animais e plantas para a zoo-

cialmente, a cientificidade das ciências empíricas seja tematizada pela lógica pura. Segundo Husserl, numa situação epistêmica em que di-

logia e botânica -- Cf. P, S 64). As características dos domínios empíricos não são deriváveis de leis a priori, mas devem ser apreendidas experimentalmente. Desse modo, as teorias relativas aos domínios empíricos estão sempre abertas à revisão diante da obtenção de novos dados con-

versasteorias sobre domínios empíricos competem entre si deve haver

cretos. Quanto

a esse ponto,

Husserl admite no final

de Pro/egõmerzos

uma escolhaótima, quer dizer, deve haver uma teoria que forneça explicaçõescom a maior probabilidade possívelem relação ao domínio factual que e]a mesma circunscrevezo. Essa é a norma ]ógica suprema que guia o progresso do saber empírico: as regras da probabilidade de-

uma concepção bastante arrojada de mudança teórica segundo a qual não somente as teorias se modificam, mas também o próprio domínio

vem permitir escolher justificadamente, ainda que não de modo defi-

dos fatos a serem explicados. Segundo o autor, não existe somente uma

nio factual. A esfera das leis da probabilidade constituiria, dessa ma-

sucessão de teoriascom vistasà explicaçãode um domínio empírico fixo e totalmente alheio à investigaçãoem pauta. Mesmo aquilo que se

neira, um segundo grande conjunto de temas lógicos que guiariam as pesquisascientíficas empíricas até a produção de teorias sistemáticas,e

julga fato consumado altera-seconforme a aplicação de novos métodos

esseconjunto também encontraria suasbasesteóricas na lógica pura

nitivo, uma teoria ou conjunto de teorias ante um determinado domí-

e conforme os pressupostos teóricos das novas explicações propostas'

Assim, os domínios empíricos não são campos inertes em relação aos quais as diferentes teorias seriam isentamente testadas.

Essaatribuição de um caráter dinâmico intrínseco aos domínios

factuais não exclui o reconhecimentode que ao menos em parte o

18. As teorias empíricas são "de uma probabilidade evidente, elas são apenas teo rias provisórias e ílão definitivas" (P, $ 72, 257) 19.Em um texto de 1903, Husserl explica a diferença entre as leis empíricas (reais) e asleis puramente lógicas: "no contexto crítico de Pro/egómenos,lei real não significa toda proposição gera[ re]acionada a algo de real, mas um fato gera], ou ao menos uma proposição que é carregada de um conteúdo de fato, à maneira de nossasafirmações sobre as

leisda natureza. De modo essencial,trata-seda diferença ente verdadesde fato e ver17. "É dos lfatosl que nós partimos, nós os consideramos como dados, e nós queremos meramente explica-los. Mas quando aí chegamos por hipóteses explicativas e após haver feito uso da dedução e da verificação (. ..), os próprios fatos não permanecem in-

teiramente imutáveis,eles também se transformam" (P, S 72, 2 57). 34

dadesconceituais puras (leis ideais, leis no sentido mais esbito)" (Husser1, 1979b, 160> 20. "Nós pretendemos que haja a cada vez apenas um comportamento justificado na avaliação das leis explicativas e na determinação dos fatos verdadeiros, e isso para cadadegrau alcançado pela ciência" (P, S 72, 258). 35

A cientificidade na fenomenologiade Husserl

Da fenomenologia noética à fenameno]ogia transcendental.

.} +'1'} %,'.

Entretanto, sem justificar sua decisão, Husserl anuncia que não tratará

dessedomínio em Irzvesfígações Lógicas (Cf. P, S 72). Seja como for.

dedutivos, também devem ser descritas conforme as leis a príoH que as regem

vale ressaltar que a abordagem das ciências empíricas em Pro/egõmeno$

b) a fixação das /eís fundadas sobre as categorias formais que re-

não é isenta de problemas. Por um lado, Husserl atribuiu à forma teó-

gulam a validade de configurações complexas formadas pe-

rica axiomática-dedutiva o papelde expressão máximada cientifici.

los encadeamentosproposicionais e seus correlatos visados

dade. Por outro, admite que as ciências empíricas, ainda que não se

ICf. P S 68). Husserl menciona as teorias do raciocínio, tais

exerçam conforme essaforma teórica, partilham, em parte, da cienti-

como a silogística, como exemplo de conjuntos de leis sobre

ficidade. Husserl não parece dispostoa reduzir toda a cientificidade à

asconexões dos conceitos de significação em proposições; e

aplicação de formas teóricas cabíveis apenas para as ciências abstratas

a teoria pura dos números, como exemplo de um conjunto

e também não parece totalmente seguro a respeito de como circunscrever a cientificidade esPecz'Hca do saber empíricozi. Veremos no final destecapítulo e no próximo de que maneira esseproblema é resol-

de lei relativo às características formais dos correlatos possíveis dos encadeamentos proposicionais. Em suma, trata-se, nessenível, de investigar as leis referentes ao valor objetivo das formas de unidade resultantes dos conceitos categoriais,

vido por meio do desenvolvimento de uma noção de validade teórica a pHorí que não estálimitada aos conteúdos formais da lógica pura.

As tarefas da lógica pura e as condiçõesdo conhecimento Detalhemos quais são as principais tarefas da lógica pura concebida como sistematização geral da cientificidade das ciências. Dessa

maneira, seráfinalmente possível marcar, por contraste, a especifici-

dade da reflexãofenomenológicana constituiçãodo prometo da dou-

ou seja, leis segundo as quais se delimitam a validade e a não validade das conexões proposicionais em geral e o ser e o não

ser de seus correlatos objetivos c) a fixação das formas possíveis de teoria decorrente da ordenação sistemática das conexões proposicionais, tendo em vista a expressão corneta das características dos correlatos objetivos

(cí. p, S õ9).

trina da ciência. Husserl retrata essastarefas nos parágrafos 67 a 69 de

Configura-se,assim,a lógica pura como doutrina daforma da cientificidade. Por meio dela, espera-serecensear os principais conceitos

Pro/egómerzos.Cabe à lógica pura:

formais em torno dos quais se ordenam dedutivamente cadeias propo-

a) a fixação das categoriaspuras de significação e das categorias objetivas correlatas (Cf. P, S 67). Trata-se de discriminar os

sicionais que, por sua vez, circunscrevem

formas de teorias possíveiszz

Husserl havia mencionado que as ciências se encontram em um estado

conceitos primitivos que constituem a própria ideia de uni-

de imperfeição por falta de clareza no que se refere aos próprios funda

dade teórica (por exemplo, verdade, idealidade, proposição,

mantos que garantem, em todas as etapas da investigação, o caráter legí-

conceito etc.) e aquelesque se referem formalmente a qualquer domínio possível (por exemplo, objeto, estadode coi-

timo do conhecimento obtido. A lógica pura elucida um determinado tipo de condição que deve ser preenchida para que o conhecimento

sas, multiplicidade etc.). Além disso, as formas elementares

proposicionais (por exemplo, forma disjuntiva, conjuntiva, hipotética etc.), porquanto constituintes de encadeamentos

22. Eis como Husserl apresenta resumidamente, no parágrafo 10 de Pro/egómenos, a tarefa da lógica pura: "tratar das ciências enquanto urzídadessistemáticas de ta/ ou fa/ rzahreza, quer dizer, disso que as caracteriza enquanto ciência quanto à sua forma, disso

que determina sua delimitação recíproca, sua articulação intrínseca em domínios, em 21. Para uma exposição deta]hada acerca dos limites do prometofundacionista de Pro/egónzerzos para as ciências empíricas, cf. Phil ipse, 2004.

teorias formando relativamente um todo, das diferenças essenciais entre suas espécies e

36

37

suasformas, etc." (P, $ 10, 40)

A cientificidade na fenomenologiade Husserl

Da fenomenologia poética à fenomenologia transcendental

científico seja alcançado:;. Trata-se daquilo que Husserl chama de con-

negracontingente a alguns juízos; ela é um tipo particular de vivência, um modo específico de se relacionar com os objetos. Toda experiência da evidência se caracteriza como doação originária daquilo que é visadoem tal experiência. Tal como afirma Husserl, "a coisa julgada com evidência não foi somente julgada (...) mas, na experiência do juízo

dições ob/etívas do conhecimento. Tem-se em vista aqui o arcabouça

formal (naqueles três níveis explorados pela lógica pura) em que asteo-

rias devem estar baseadas(Cf. P, S 32). As leis a príoH da lógica pura devem ser o que sãode modo objetivo, quer dizer, independentemente de sua possível apreensão em episódios psíquicos de uma subjetividade cognoscente. Husserl caracteriza as leis e asverdades objetivas puras re-

ferentes à lógica pura como ideais, quer dizer, polos de unidade idên-l ricos, cuja validade não oscila nem se altera, apesarde serem apreendidos por inúmeros atou subjetivos diferentes entre si:'. Voltarei a tratar do caráter ideal das leis lógicas. Por ora, insisto em

afirmar que elas constituem as condições objetivas das teorias em geral, inclusive da lógica pura. Importa notar que, ao lado delas,Husserl enumera condições sub/etívas que também devem ser preenchidas para

/ ,rJ'} #

vivido, dadacomo presente" (P, S 5 1, 193). A possibilidadede doação evidentedo tema visado é, assim,condição básicado conhecimento Sem ela, Husserl argumenta, seríamos conduzidos a um ceticismo ab-

soluto,já que nenhum raciocínio pareceria racionalmente melhor que qualquer outro26.E porque, por exemplo, certos juízos se impõem com evidência (por exemplo, aqueles derivados de estruturas formais válidas tais como modas to//ens, silogismo hipotético etc.) que o conhecimento aí veiculado se estabelece como conhecimento objetivo, por

mento válido. De nada adiantaria que uma teoria preenchesseas con-

oposiçãoà mera opinião injustificada. Mesmo a lógica pura, teoria universal das formas de teorias possíveis,deve respeitar as condições de evidência. Afinal, a lógica pura também deve vigorar como um conhecimento, e, assim, deve ser pas-

dições objetivas em sua formulação se os sujeitos não pudessem reco-

sível de uma apreensão cognitiva evidente (Cf. P, S 32). No entanto a

nhecer sua correção. As estruturas teóricas devem vigorar para sujeitos que conhecem os domínios objetivos por meio delas. Para tanto, certas condições, ligadas ao reconhecimento da validade das estruturas teóri-

lógica pura nela mesma, ao menos no sentido de mat/zesísuzlíversa/ís puramente objetivo, nada enuncia sobre as condições de sua doação

que o conhecimento esteja adequadamente fundamentado (Cf. P, S 32). Essascondições subjetivas referem-se à czPreeizsão do conheci-

cas, tem de ser cumpridas para que o conhecimento seja atestado coma

epistêmicaz7.Tal mat/zesísdiscrimina os axiomas básicos e os encadeamentos válidos a pdorí que permitem a aquisição de conhecimentos lo-

racionalmente fundado. Husserl enfatiza como condição subjetiva bá-

gicamente correios em qualquer investigação científica, mas essesaxio-

sica do conhecimento a experiência da evidência:s, quer dizer, a atesta-

ção clara de que certo estado de coisas é o ou não é aquilo que parece ser. A evidência não é um sentimento acessório acrescentado de ma-

mase encadeamentos não se referem, no interior da lógica pura, ao sujeito cognoscente.

Como vimos no início deste capítulo, o conteúdo temático da lógica pura é formado por conceitos e leis ideais a pHorí, com validade

23. Deve-se enfatizar que, para Husserl, o conhecimento científico pode ser obtido ainda que não se tenha total clareza em relação àssuascondições fundantes. Esseponto

6tcarámais claro no que se refereàs condições "subjetivas" do conhecimento 24. "0 que é verdadeiro é verdadeiro absolutamente, é verdadeiro 'em-si'; a verdade é ídenticamente una quer sejam homens, super-homens, anjos ou deusesque a

26. "Se nós não mais pudéssemos con6lar lla experiência, como poderíamos ainda, em geral, emitir a6lrmações e defendê-las racionalmente?" (P, S 40, 156)

apreendam peia juízo. É da verdade nesse sentido de unidade ideal, opondo-se à multiplicidade real das raças, dos indivíduos e das experiências vividas, que falam asleis ló-

de suaprópria efetuaçãoenquantoconhecimento, mas ela se limita a fixar as regras

gicas"(P,$ 36,125).

da teorização.Ela simplesmente elucida conhecimentos (os a priori formais da malha çísurzfversa/ís), mas não o ato de conhecer como tal. Ela trata de verdades,masnão da evidênciaque elas produzem no e para o sujeito cognoscente" (Bégout, 2001, 584)

25. "0 conceito de conhecimento vai até onde se estende o de evidência" (P, $ 6, 29) 38

27. Conforme comenta B. Bégout, "a lógica pura não determina (. . .) ascondições universais de toda ciência possível. Ela é uma 'teoria das teorias', mas não uma teoria

39

A cientificidade ]ta feilomenalogia de Husserl

Da fenomenologia noética à fenomenologia transcendental 4

absoluta. Ora, essesconceitos e leis assim caracterizados exigem UU

cíveis.Por sua vez, esse será justamente o tema da investigação filosó-

tipo particular de apreensão subjetiva na qual se confirma sua validade

Hlca,que, ainda veremos, se cumprirá como fenomenologia. Em outras

apodítica. Não é por um acúmulo de atestaçõesfactuais que, induti. vamente, é possível conhecer tais conceitos e leis em sua universali-

palavras,é justamente por causa da necessidade de correlacionar, p:lr

dade. Deve-se supor aqui, como condição subjetiva fundente da lógica pura, uma capacidade de atestação evidente dessesprincípios e leis eu

um lado, verdadese leis lógicas, definidas como objetivamente válidas,e, por outro, a subjetividade cognoscente que a problemática ÓenomenoZÓgíca vai serpela primeira vez montada na obra publicada de Husserlz9. O próprio autor confirma a importância dessetópico muitos

sua pureza d pdorí. Além disso,vimos também que a lógica pura possui a particularidade de fundar a si própria, quer dizer, a sua ordena. ,nos depois do lançamento de Irzvestígações Lógic.zs, num trecho do ção sistemáticase conforma aosprincípios e leis que ela mesma des-l curso PsÍco/agia Fenomeno/ógíca, de 1925, intitulado "Tarefa e signifivela, sem depender de outra ciência ainda mais básica (o que levaria cado de Irzvestígações Lógicas". A fenomenologia, ali nos conta o autor, a uma regressão ao infinito). A lógica pura repousa, assim, sobre prin-

é a investigação que transforma "em tema de pesquisa essacorre/ação

cípios últimos que se estabelecempor si próprios sem remeter a nada particular entre ob/elos ídeczísda esfera lógica pura e o vivido subjetívo de anterior. E issotambém deve ser reconhecido pelo sujeito cognos-l enferzdído como anão ITunl constíMinfe" (PP, S 3b, 26). A tarefa inicente. Segundo Husserl: "é então evidente que a exigência de uma Jus- cial de Pro/egõmenos foi delimitar um domínio puramente ideal dasestificação de princípio para todo conhecimento mediano somente pode

ter um sentido possívelse nós formos capazesde reconhecer imediata-

truturas teóricas responsáveis pela cientificidade das ciências em geral Mas não cabe ao filósofo estudar sistematicamente essasestruturas for-

mente e com evidência leínsic/ztíglcertos princípios últimos nos quais

mais. O desenvolvimento da lógica pura é tarefa dos matemáticos. O

toda fundamentação em basesúltimas se alicerça" (P, apêndice SS 2526, 94). Deve haver, assim, uma apreensãosubjetiva evidente não só

que apareceentão como operação exclusivamente filosófica, e que será

das leis e dos princípios lógicos, mas também do caráter último, auto-

1(5gícas que sucedem a Pro/egõmenos, é tematizar as capacidades subje-

fundante, dessesprincípios e dessasleis.

tivasresponsáveis pela apreensãode tal domínio ideal. A investigaçãodas condições subjetivas da lógica pura aparente-

Vimos que em si mesmaa lógica pura nada legisla acercada apreensão subjetiva dos princípios e das leis czpriori que ela enumera.

Daí que se deva complementa-la com outro tipo de investigação,que tematize a doaçãoevidente de seu conteúdo para a subjetividade cog-

laboriosamente elaborada por Husserl no correr das seis Irzvestígações

mente significa um retrocesso em relação aos resultados antipsicologistasobtidos até então. Afinal, Husserl se esforçadapor delimitar o âmbito

noscente. É exatamente aqui que aparecerá a especificidade da inves-

da lógica pura como aquele das estruturas d pdorí de toda a cientificidade,âmbito que não caberia remeter à psicologia, )á que essaciência

tigação /iZosó/ica em Pro/egõmenos. Em várias passagens desse livro,

avança d posteríoH. No entanto, ao apontar condições sub/etívas da ló-

Husserl reconhece que o desenvolvimento da lógica pura é uma tarefa dos matemáticos, que, por meio de seusmétodos de axiomatização, isolam as condições formais das ciências como um sistema de relações d

gicapura, não estariaincoerentemente Husserl submetendo o âmbito

príoriz8. Entretanto a investigação das condições de apreensão subje-

lógico-objetivo àquele psicológico-factual? Para responder a essaquestão, basta esclarecer o que o autor entende por condições subjetivas de toda teoria. Nesse ponto, vale a pena expor uma citação mais longa

tiva escapa a essasistematização das estruturas formais de teorias pos29.Tal como já notava R. Schérer, "o problema em torno do qual a fenomenolo28. "A construção de teorias e a solução rigorosae metódica de todos os problemas formais permanecerão sempre o domínio próprio das matemáticas"(P, S71, 254) 40

gia nasceé aquele da natureza da subjetividade para a qual a verdade pode se dar como

tal"(Schérer, 1967,28) 41

A cientificidade na fenomenologiade Husserl

Da fenomenologia noética à fenomeno]ogia transcendental

+ ,/';'}

por condições subjetivas de possibilidade, não se deve entender aqui

etc. A evidência aqui é psicologicamente impossível e, entretanto,

condiçõesreaisque tenham sua raiz no sujeito singular do juízo ou

idealmente falando, e]a é sem nenhuma dúvida uma experiência

na espécie mutável de seresque julgam (por exemplo, sereshuma-

psíquica possível (P, S 50, 188)

nos), mas condições ideais que se enraizam na forma da subjetividade em geral e na relação desta com o conhecimento. Para distingui-las das primeiras, nós as chamaremos condições noéfícas (P, S 32, 1 19)

Husserl separa claramente o sub/etívo que condiciona as teorias científicas e o psicológico.Assim, ao se referir a condiçõessubjetivas, o autor não tem em vista as particularidades empíricas, seja dos sujeitos tomados individualmente, seja tomados como espécie humana.

Nenhuma dessasparticularidades reais dos existenteshumanos deve ser assumidacomo condicionante da validade puramente objetívadas teorias. As condições subjetivas do conhecimento partilham com o domínio lógico-objetivo

a ídea/idade, quer dizer, são condições válidas

Esseexemplo esclarece que, embora factualmente certos conhecimentosexcedam as capacidades reais da mente humana, ainda assim é possível examina-los do ponto de vista de suas condições noéticas, quer

dizer, do ponto de vista de sua doação evidente em uma experiência, mesmo seessaexperiência estiver fora do alcance da subjetividade real humana;'. A psicologia empírica pode se dedicar a um estudo dascon dÍçÕesou restriçõesrea;s das experiências vividas com evidência e, assim, explicar as conexões causaisefetívas em que tais experiências surgem e se esvaecem. No entanto, acima dessasrestrições reais, Husserl

reconhece condições subjetivas ideais, que não dependem dos sujeitos existentes,mas delimitam a forma geral da subjetividade;:

não porque demarcam singularidades factuais mas porque distinguem certas estruturas idênticas a priori que constituem a /oma ou a essência

Vale notar que em várias passagens de Investigações /ógicas Husserl afirma que a descrição das condições noéticas do conhecimento é uma

da subjetividade independentemente de sua realização nos sereshu-

tarefapara um tipo especial de psicologia que não estávoltado para os

manos passados, presentes e futuros. Para evitar a confusão com os con-

dicionantes empíricos da atividade subjetiva humana, Husserl nomeia

temasfactuais, para uma "psicologia descritiva", que é identificada à fenomenologia3z.Esseuso do termo psicologia para nomear a tarefa

essascondições subjetivas ideais, referentes à essência a priori da subjetividade, de ízoétícczs.

A investigação das condições noéticas das teorias não será uma tarefa da psicologia empírica ou experimental. Eis por que o apelo a tais condições não implica uma recaída no psicologismo. Para Husserl, a

psicologia empírica é uma ciência que investiga fatos da vida psíquica humana, e que, assim, se refere somente às condições pelas quais certas

circunstâncias reais ocorrem. Por sua vez, as condições dizem respeito às estruturas subjetivas gerais que permitem a apreensão com evidência

de dados objetivos. Essasestruturas determinam possibilidades ideais de doação evidente dos temas em questão. Husserl exemplifica da seguinte maneira a especificidade dessaspossibilidades ideais de evidência em oposição a meras possibilidades reais:

há números decimais com cifras de grilhões,e há verdadesque a eles se relacionam. Mas ninguém pode representar verdadeiramente

tais números nem efetuar realmente suasadições,multiplicaçõcs, 42

30. Husserl reafirma essaideia em outro parágrafo: "se não há seres inteligentes, seeles são excluídos pela ordem da natureza e por conseguinte são impossíveis real-

itlente (. . .), então as possibilidades ideais permanecem desprovidasda realidade que devepreenchê-las (. . .). Mas toda verdade em si permanece o que ela é; ela conserva a suaexistência ideal" (P, S 39, 135-136). 31. Essa é uma das principais diferenças da filosofia de Husserl em relação à de

Kant. Conforme formula S. LuR, a fenomenologia de Husserl "é uma doutrina da expe riência-como-tal,da consciência-como-taie, correlativamente, do fenómeno-como-tal Não se tala acerca da maneira específica humarza de experimentar, mas a experiência humana é somente uma maneira possível na qual uma subjetividade concreta experi-

menta o mundo. O que essafenomenologia prevê é, por assimdizer, uma eidética da experiência como ta], do ser como ta] dado a um sujeito-como-tal. Husserl, assim, radi-

caliza o modelo antropocêntrico kantiano levando-o ao nível eidético (. . .), a situar-se não na consciência bumcl7zamas na consciêrzcíacomo ta/". (LuR, 2007, 66)

32. Essadistinção entre uma psicologia descritiva e uma psicologia genético-em plrica havia sido proposta por Franz Brentano e fora aceita inicialmente por Husserl Na primeira edição dasInvestigações/ógícas, lê-se no parágrafo 6 da introdução geral às

seisinvestigações;"a fenomenologia é psicologia descritiva. Por conseguinte, a crítica doconhecimento é, no essencial,psicologia ou, pelo menos, algo que só no campo da 43

A cientificidade na fenomenologia

de Husserl

r'

fenomenológica alimentou mal-entendidos sobre o alcance do psico-

logismo nessaobra.Já na recensãode um livro de Elsenhans,publicada em 1903, Husserl rejeita essadefinição. Ali, ele reconhece que toda psicologia parte da experiência cotidiana dada antes de qualquer crítica, e incorpora certas determinações conceituais aí ingenuamente

Da fenomenologia noética à fenomenologia transcerldental

.} P'i'} IP;A

apreendemos'a verdade como um conteúdo empírico que emerge do fluxo de experiências, depois desaparece novamente; ela não é um fe nâmeno entre fenómenos, mas ela é uma experiência vivida em um sentidototalmente diferente no qual se diz que um universal, uma ideia é uma experiência vivida" (P, S 39, 134-1 35). A experiência evidente da

exterior)3;. Ora a investigação das condições puras do conhecimento não deve se limitar por essasdeterminações reais em sua tarefa de ex-

verdadelógica tem uma estruturanoética própria; nela há a tomada de consciênciade uma idealidade idêntica que não se afeta pela duraçãotemporal e que permite subsumir diferentes eventossingulares

plicitar o modo como a subjetividade, em seusaspectosessenciais,se

como instâncias da sua universalidade. Quanto a esseponto, o filósofo

relacionacom asestruturasda lógica pura. Conforme crê Husserl,"a elucidação IAu#/drulzgl crítica do conhecimento edificada sobre es-

afirmaque a verdade"é uma ideia e, como ta], além do tempo lÍiberzeít/Ícbl" (P, S 39, 134). O que Husserl parece ter aqui em vista é que

sasanálises não é senão uma abstração adequada, intuitiva, que, nisso

a atribuição de verdade a certas proposições teóricas, ao menos àque

que foi fixado fenomenologicamente, leva a uma consciência evidente,

lasque exprimem relações conceituais puras3õ,não é um evento singu-

e então a uma compreensão'clara e distinta', a essênciageral, o 'conteúdo verdadeiro e próprio' dos conceitos e das leis lógicas";'. Desde então Husserl recusaa expressão"psicologia descritiva" para rotular a

lar, que se esgota na vivência concreta do Juízo que veicula tal prC)posi-

descrição das condições noéticas do conhecimento e mantém somente o termo "fenomenologia" para designar essatarefa;s.

tido de uma espécieou de um "ente" universal, que se deixa apreender

A evidênciadasidealidadeslógicas

Husserl: "a 'validade' ( . . .) não cabe à asserção como essavivência tem-

em vigor (tais como a distinção entre interioridade psíquica e mundo

ção.A verdade não é um conteúdo particular da experiência do Juízo,

que surgee desaparececom tal experiência. Ela é uma ideia, no sencomo algo idêntico nos inúmeros juízos particulares que a veiculem. Consideremos,como exemplo, o Juízomatemático "2 x 2 = 4". Afirma poral, mas à asserção ín sPecie, à asserção (pura e idêntica) 2 x 2 = 4" (P,

A principal condição noética do conhecimento teórico é, conforme já anunciado, a capacidade de apreensão evídertfe das estruturas

lógicas por meio das quais as disciplinas científicas avançam em suas investigações. Por sua vez, cabe investigar com mais detalhes qual é a estrutura dessaexperiência da evidência. Segundo Husserl, "nós não psicologia se pode edificar" (LUI, 24). Essetrecho foi significativamente reformulado nasegunda edição 33. A psicologia e a física "partem do mundo no sentido habitual, sihado antes de toda crítica, com a separação dos fatos em materiais e espirituais. Ambas permanecem

não críticas, quaisquerque sejam as modificações que elas fazem lsicl ao conteúdo da representaçãooriginária do mundo. Enquanto. ciências explicativas, elas pressupõem

S51, 194).Os juízos particulares que veiculam essasentençasomente instanciama proposiçãopura "2 x 2 = 4", a qual permanececomo um polo ideal idêntico que não se confunde com nenhum dos seuscasos particulares, mas permite reconhecê-los justamente como casosda espécie ideal em vista. A atestação de uma verdade puramente teórica exige,assim, que o sujeito não se limite ao caso concreto que é tematizado,mas reconheça a estrutura universal avessaàscircunstâncias concretas que marcam o caso estudado.

uma objetivação pré-dada, sem sentir a necessidade de conhecer o sentido, de elucidar

36. Por suavez, asasserçõesque se referem a circunstâncias concretas ou que, no geral,servem-sede termos indexicais ou ocasionaisdependem ao menos em parte de

a possibilidade dessaobjetividade" (Husser1,1979a, 206)

atestaçãointuitiva circunstancial para confirmar sua verdade. Husserl não explora a sua

3 5. "Não se deve então designar sem mais a fenomenologia como uma psicologia descritiva"(Husser1, 1979a, 206)

ocasionais, cf. Weigelt, 2008

34. Husser1. 1979a. 207.

especi6lcidadeem Pro/egómenos,mas trata do tema no parágrafo 26 da primeira investigaçãológica. Para uma análise detalhada do tratamento husserliano das expressões

45

A cientificidade na fenomenologiade Husserl

A idealidade da verdadesuscitou diversascontrovérsiaslogo em seguida à publicação

Da fenomenologia noética à fenomenologia transcendÉdtá{ ;?'f

Essecaráter ideal da verdade exige que a subjetividade apreende

de Investigações Zógícas. Em 1913, no esboço de

com evidência estruturas czpdoH3ç.A distinção obJetiva entre o caso sin-

prefácio a Jrzvestígações /ógicas, Husserl ainda lamentava as incom-

gular e a estrutura lógica ideal deve corresponder uma distinção subjetiva entre diferentes tipos de vivência40.Com efeito, Husserl identifica

preensões referentes a essetema. Ali, ele nota que, diante da noção de

idealidade, muitos leitores julgavam se defrontar com uma versãodo platonismo, ou seja, da doutrina metafísica que atribui rea/idade aos conceitos em geral. Ora, a doutrina dos objetos ideais ganha algum

um determinado ato ou uma vivência subjetiva como responsável pela

conteúdo justamente por oposição aos objetos reais. Essesúltimos são indivíduos submetidos a leis causais e circunscritos a certa posição espaçotemporal. Por sua vez, a idealidade é um objeto gera/ e onífemPo-l

ciasde Juízosparticulares. Entretanto, além disso,há um ato capaz de

raZ.Em suma, ela rzãoexistecomo rea/idade; a idealidade "se mostra como algo que é verdadeiramente,ou em outras palavras,como algo de objetivo que existe e que entretanto não é real";7. Paracompreender essadoutrina dos objetos ideais, é preciso aceitar uma ampliação da própria noção de ser, de maneira que o ser real não esgote a totalidade daquilo que existee de maneira que admitir a idealidade não signifique

atestaçãoevidente dasidealidades. Como vimos, as idealidades operam como espécie às quais os casos particulares

se subsumem nas experiên-

atestarde modo evidenteo ser ideal dos princípios e dasleis da lógica pura. Trata-se da ídeação ou absü'ação ídea/;za7zte, que também é um

"pressuposto da possibilidadedo conhecimento"(P, S 29, 109),uma condiçãosubjetiva para a efetuação do conhecimento científico. Por ideação deve-seentender a capacidade de reconhecer o universal que seinstancia nos casosparticulares, quer dizer, a capacidade de referisseà significação ou à lei ideal idêntica acima da infinidade de juízos

atribuir rea/ídczde(com todos os seusqualificativos próprios) a essaca-

seruma só e a mesmacoisa, quando se diz, por exemplo, de difereTltespessoasque elas

tegoria ontológica. Alguns anos antes, em 1903, em uma recensão de um livro de

a6nmama mesma coisa (. . .). [Elsse sentido idêntico não é senão o gera], a espécie, em

Palágyi, Husserl já tentava esclarecer sua posição. As idealidades, afirma ali, não são um tipo especial de entes reais. Afinal, os entes reais são sempre indivíduos submetidos à causalidade e limitados a certa extensão espacial e duração temporal. Por sua vez, as idealidades são "ob-

jetos gerais" ou "espécies" válidas independentemeílte de limites espaçotemporais. As idealidades devem ser consideradas espéciesem rela-

ção ao conteúdo dasexperiênciasparticulares em que se reconhece a validade de uma tese para além das circunstâncias concretas em que ela é enunciada. A atestação da verdade de uma proposição em uma

ocasiãoparticular remete,nessescasos,à suaforma ideal, que não é uma parte integrante da vivência, massim o princípio de identificação

relaçãoa um certo momento presente em todos os enunciados anuaisdo mesmo sentido, que torna possível a identificação, enquanto habitualmente o conteúdo descritivo dosvividos muda de maneira considerável" (Husserl, 1979b, 156-157) 39. Essa exigência configura mais uma característica particular da fenomenologia

anteo kantismo. D. Pradelle a expõe com acuidade: "não que as estruturasantropológicas do entendimento prescrevam possibilidades categoriais aos obÍetos, mas, inversamente,essasúltimas se atestam em modalidades de pensamento que sãoas mesmas

paratodo entendimentoem geral". Segueum exemplo:"não é a naturezado entendimento humano que prescreve,com base nas leis subjetivas do ato de contar, as leis aritméticas, mas, inversamente, a pensabilidade dos domínios de números implica um eídos do entendimento

humano"

(Pradelle, 2003, 171). Assim, são as características es-

senciaisde uma região objetivo que sugerem à investigação fenomenológica as particularidades da visada noética a ela correspondente. Tal como aüjrma D. F;anck, a análise husserliana se ordeíla segundo os objetos, que servem de /íos condutores para o desvelamento das síntesesintencionais que tornam possível a sua experiência como tal. A dedução kantiana da objetividade tinha como Riocondutor o Juízo; já a análise da cons-

tituição da objetividade por Husserl toma como fio condutor o próprio objeto, que indica a estrutura de consciência por meio da qual pode se manifestar (Cf. Franck, 1989)

do caso em pauta38.

37.Husser1, 2002a,S4, 282.

Em diversosmomentos deste trabalho, servir-me-ei da noção de fio condutor para tornar visíveisas particularidades do prometofenomenológico 40. "Se nós nunca tivéssemostomado consciência da racionalidade, do apodítico que difere de um modo tão característico de nossatomada de consciência da factici-

38. "Por 'proposição em si', leãose deve entender nada de diferente do que é de-

dade, nós tampouco teríamos a noção de ]ei, nós seríamos incapazes de distinguir uma

signado como o 'sentido' do enunciado na linguagem cotidiana (. . .), e que é declarado 46

lei de um fato" (P, S 39, 141-142) 47

Da fenomenologianoética à fenomenologia transcendent41

A cientificidade na fenomenologiade Husserl

./ F;'}

particulares reais em que tal objeto idêntico é exemplificado. Para Husserl, são dois atos noéticos estruturalmente diferentesvisar a uu exemplar empírico(e. g., "eis um livro vermelho") e visar à idealidade a que esseexemplar está submetido (a espécie "vermelho",

no que se re-

H

Issoque dizer que a idealidade dos temasda lógica pura não é 'ameaçada" ao tematizar a sua doação subjetiva. Ao descrever a idea-

çãocomo uma condição noética do conhecimento, Husserl não pretende reduzir os temas lógicos a elementos das vivências subjetivas.

fere à cor do objeto em questão). Husserl admite sem problemas que o

Não setrata de tomar asvivências particulares como origem psicogené-

ato de ideação seja fundado em aros de intuição singulares, de maneira

tica da validade lógica pelo sujeito. Trata-se, antes, de explicitar condi-

que se deva tomar um exemplar como suporte para a visada da espécie

çõesde record/zecímento evidente dessavalidade, o que circunscreverá,

le. g., "esse vermelho percebido é um casoda espécie vermelho"y' No entanto essapeculiaridade da ideaçãoem nada corrompe a pureza

como veremos a seguir, o tema central da primeira doutrina fenomenológica proposta por Husserl

ideal do conteúdo por ela apreendido, já que não se trata de derivar dos casos concretos em questão as leis e verdades a prior, mas somente de servir-se deles como apoio para alçar-se até a apreensão da idealidade.l

Análise fenomenológica das pi'pências

Tal como argumenta Husserl, "ninguém pode afirmar seriamente que

A descriçãodas condiçõesnoéticas da lógica pura é a primeira ta-

os casos particulares concretos (.. .) sobre a 'base' dos quais se realiza

refa fenomenológica formulada por Husserl en] sua obra publicada. O termo "fenomenologia", embora presente nas reflexões de vários auto-

nossavisão justa da lei exercem uma função de base lógica, de premia-l sas, como se a universalidade da lei pudesse resultar da existência do

fato singular" (P, S 24, 86). A ideação é a capacidade de visar ao ideal ídê7ztícopor meio dos casosconcretos, mas essacapacidade não envolve a menor pretensão de gerar o primeiro com base no segundo.

resdo período43, foi fixado de uma maneirainconfundível (tornandoseo nome de um método e de uma doutrina em particular) somente com Husserl. A primeira vez que o termo apareceupara o grande público com essesentidoparticular foi nos Pro/egõmenos à /ógícapura

Na já citada recensão de 1903, Husserl retorna à ideação incomo-l dado com as incompreensões suscitadas por essanoção. Palágyi apre-l sentara a vivência do juízo descrita por Husserl como uma junção inex-

Paraser mais preciso, na primeira edição dessetexto, em 1900, o termo

plicável entre um componente supratemporal ou ideal e o conteúdo

fenomenologiadescritiva da experiência interna" (P, S 57, nota 215)

real da vivência. Para Husserl, trata-se aqui de uma "desfiguração" que

Na segunda edição (1913), Husser] reformula essetrecho de maneira

impede a compreensão do correto papel da ideação.Afinal, asidealidades não seriam um componente da vivência no mesmo sentido que as sensações,por exemplo; as idealidades são a espéciede que o conteúdo

a marcar sua posição ainda mais claramente: "eu estabeleço uma dis-

vivido pela subjetividade é o caso;elas não se confundem com os ele-l mentos reaisque constituem o ato subjetivo':.

só apareceuma única vez, numa nota em que Husserl demarca a especificidade da sua investigação ao excluir do campo da psicologia "a

tinção profunda entre a psicologia empírica e a fenomenologia que Ihe servede fundamento (assim como essafunda, de uma outra maneira, a crítica do conhecimento)" (Id.). Em seguida, é explicado o sentido da investigaçãoali proposta: "entendo por fenomenologia uma doutrina pura eidética lreírze Weser2s/e/irei das experiências vividas" (Id.). Cabe

41. "Ninguém duvidará que o conhecimento das leis lógicas e.nquanto ato psíquico pressupoea experiência particular, que ele tem seu apoio fundamental em sua

à fenomenologia descrever as vivências subjetivas en] que seatestam as

baseconcreta"(P,S24,85) 42. E precisodistinguir entre "a espéciee o casoparticular, entre.o sentido.enquanto ideia que se torna objetiva por absbaçãoespec'picante. Is/lezifizíerendeAbshalfíon] e o momento do sentido psicológico-descritivo" (Husserl, 1979b, 157) 48

43. H. Spiegelberg indica que, além de autores da escola hegeliana, BrentaTlo, Maca e Hering já usavamessetermo antes de Husserl, embora com um sentido dife-

rente.Cf. Spiegelberg, 1960,8, 27-28,53 49

Da fenomenologia noética à fenomenologia transcendental

A cientificidade na fenomenologiade Husserl

.} #3'}it,.

idealidades lógicas, mas não como experiências factuais desenroladas

causalmenteno fluxo temporal, e sim como Óomzczs ou essências de estruturas noéticas independentes de sua realização empírica. Trata-se, como se vê, de propor uma doutrina acercados componentes a priori

rlUCenvolveuma clara demarcaçãoentre ambasbem como instaura urn prometode /ulzdamentaçãodas ciências pela filosofia. Vale notar ernvez de percorrer várias ciências em sua especificidade, Husserl sefoca na lógica pura (uma vez que ela sistematiza as condições obje-

da subjetividade. Não importa, assim, à fenomenologia descrever os arospsíquicos empíricos, e sim as estruturas subjetivas puras, isto é, as

tivas por meio das quais qualquer tipo de ciência pode se desenvolver)

essências das vivências intencionais

ambas, cabe aos matemáticos, como já foi mencionado acima, o de-

que se correlacionam

com as ver-

para marcar as relações com a filosofia. Quanto à demarcação entre

dadesobjetivasH Na segunda edição de Pro/egõmenos,Husserl acrescenta mais duas

senvolvimentodo conteúdo lógico-objetivo da lógica pura. Contudo, tal como bem formulado no esboço de prefácio a Investigações/ógí-

menções explícitas à investigação $enomenoZógícaque confirmam o ca-

cas, "torna-se necessário acrescentar à maf/zesís uníversa/ís (ou 'lógica

ráter puro da análiseem vista, conforme já expostona primeira edi-

pura') por assimdizer ingênua e indiferente a toda teoria do conheci-

ção's. No parágrafo 5 1, Husser] afirma que o acréscimo fortuito de um

mento uma filosofia dessamat/zesís,quer dizer, uma 'teoria do conhecimento matemático', uma certa elucidação de seu verdadeiro sentido

sentimento de certeza à vivência de um juízo não é o que constitui a estrutura noética da evidência, já que "o conteúdo fenomenológico do Juízoem questão,considerado em si e por si, permanece identica-

possívele de sua legitimidade"'8. Os matemáticos cumprem séu traba-

lho semse preocupar com os princípios subjetivos que garantem a le-

mente o mesmo, quer ele seja revestido por esse caráter ou não" (P.

gitimidade das suasteorias, quer dizer, sem sepreocupar com as condi-

S 51, 192)%.Aqui argumenta-seque a experiência da evidência tem uma estrutura própria, que não é modificada (e muito menos produzida) por sentimentoscontingentes. Essaestrutura é chamada de conteúdo fenomenológico, uma clara menção à disciplina cuja tarefa é

çõesde apreensão evidente das idealidades lógicas'ç. Cumpre aos filó-

descrever os diferentes tipos de estruturas noéticas. Já no parágrafo 67,

o autor indica que a realização da primeira tarefa da lógica pura (a fixação das categorias puras de significação e as categorias objetivas cor-

relatas) exige um retorno à "origem fenomenológica" (P, S 67, 246y' ou seja, exige o esclarecimento de como tais categorias podem se doar

com evidência à subjetividade noética. Essa remissão à origem áerzomerzo/ógíca implica uma concepção

bem definida acercadas relaçõesentre filosofia e ciências,concepção

sofoscomplementar o trabalho matemático com uma investigaçãodas estruturassubjetivasque permitem o reconhecimento evidentedos resultadosmatemáticos.A filosofia desenvolve,dessemodo, um trabalho de "crítica do conhecimento" (P, S 71, 256), isto é, de elucidação das fontes subjetivas por meio das quais se reconhece a legitimidade

das es-

truturas objetivas da lógica pura.

Deve ficar claro que esseretorno às fontes subjetivas não significa uma recaída no psicologismo. Afinal, não se trata para Husserl nem de tomar os atospsíquicos empíricos como tema de sua investigação nem de reconhecer os atos subjetivos como produtores das idealidades lógicas,como se essasse reduzissem a conteúdos reais das vivências. Em primeiro lugar, como já visto, a análise fenomenológica se centraliza na esbutura eidética da subjetividade em geral e não em experiências

44. "Não sãofenómenos individuais, masformas de unidades intencionais que se-

rãoanalisadas" (P,$ 47,178) 45 . Bégout afirma erroneamente que somente mais uma ocorrência do termo apa recenaediçãode1913.Cf.Bégout,2001,564.

.

.

,,.

.

.n,

46. Na primeira edição, Husser] se refere ao "conteúdo psicológico" do guizotUr. P, S 5 1, 192} romeira edição, a expressãoaí usada era "origem lógica" (Cf. P, S 67, 246)50

48. Husserl, 2002b, $ 1, 300

49. "0 matemático constrói teorias dos números, dasgrandezas, dosraciocínios, dasmultiplicidades, sem ter necessidade para isso de possuir uma visão definitiva da es-

sênciade uma teoria em gera], nem da essênciados conceitos e dasleis que as condi-

cionam" (P,$ 71,255) 51

A cientificidade

na fenomenologia de Husserl

Da fenomenologia noética à fenomenologia transcendental

.} Í3'} concretas particulares de pessoasreais. Em segundo lugar, os fitos subjetivos que serão descritos em sua pureza eidética são aqueles em que as idealidades lógicas são reconhecidas com evidência. Trata-se, assim, de

levar as construçõesobjetivasda lógica pura à intuição fundente; mas essaintuição não é um ato produtor, e sim atestados.Essaé a origem Óenomeno/ógíca que se trata de investigar: o modo noético ou intencio-

nal por meio do qual as objetividadeslógicas sãoapreendidascom evidência. E preciso distinguir essetópico daquele referente à origem psicológica, ou seja, da produção efetiva de algo por fitos psíquicos. Não

é esseo campo da fenomenologia em Pro/egõmenos.Os temas ideais da lógica são considerados polos objetivos autónomos e não conteúdos reais dasvivências. Em relação a essespolos interessaaclarar como eles são reconhecidos pela subjetividade, que, então, por meio de certas vi-

vências, atestaa validade universal dos princípios lógicos. Dessamaneira, pretende-se legitimar epistemicamente as construções teóricas da lógica pura. Como vimos, no correr de Pro/egõmenos,Husserl não só defende a objetividade ideal dos conceitos, das proposições e leis da

lógica, mas também propõe investigaras estruturasnoéticas que reconhecem tal objetividade, de maneira a elevar as reflexões sobre a inten-

cionalidade psíquica a um novo patamar, aquele da idealidade. À concepção puramente ideal da lógica corresponde uma análise da subjeti-

vidade em termos de suasestruturasideais.E por meio dessaanáliseda subjetividade que a filosofia cumprirá o seu papel específico.

Ao filósofo cumpre esclareceras condiçõessubjetivaspor meio das quais se reconhece a validade das formas puras de teorias. E então tarefa da filosofia investigar as condições noéticas da mathesís uníversa/ís objetiva, ou seja, investigar as estruturas intencionais subjetivas, em sua pureza

eidética,

que permitem

o acesso às idealidades

lógicasso.

Essatarefa específica da filosofia oferece um tipo muito particular de /undamentação do saber científico. Trazer à luz as condições noéticas

de atestaçãoevidente é tornar visível um pressupostoa priori da prá50. Conforme comenta D. Fisette, "a justificação racional da mafhesísdepende em última análise das condições noéticas de todo conhecimento teórico. Assim, a Jus-

tificação de uma lei ou de um princípio nada seria senãoa apreensãoevidente de sua essência(intuitiva)"(Fisette,

2003b, 151). 52

4

ricacientífica.Conforme Husserl havia deixadoclaro já no início de pro/egõmelzos, evidenciar os pressupostosprincipiais que condicionam a atividade teórica é realizar a fundamentação do conhecimento e, assim, dissipar as imperfeições teóricas que marcam as ciências atuais

ICf. P, S 4). Importa enfatizar, no entanto, que os fundamentos que a filosofia estudanão são componentes internos às teoriascientíficas, mas são as capacidades cognitivas puras, por meio das quais é possível

reconhecer a validade das teorias. Nesse sentido, a fundamentação filosófica não vai propor princípios alternativos capazes de corrigir even-

Hais falhas teóricas.A fundamentação filosófica não aperfeiçoa nem refuta as teorias científicas vigentes, mas as torna compreensíveis do ponto de vista de suas condições subjetivas. Trata-se de elucidar, em

suapureza ideal, a$capacidadessubjetivas que condicionam a formulação dasteorias válidas. Dessa maneira, o que a filosofia oferece como fundamentação para asciências é um gan/zo de c/drgzczquanto às suas fontes subjetivas, e não algum acréscimo de certeza acerca das teorias

vigentesou a se construir.

E importante enfatizar que essacrítica filosófica, capaz de fundamentar,à sua maneira, o conhecimento científico, se cumpre como umaáerzomerzo/ogía. Dado o sentido que Husserl atribui a esseúltimo termo, issoquer dizer que a fundamentação filosófica se dá não por análiseslógicas ou puramente conceituais, e sim por meio de descrições das essências subjetivas nas quais se atestam de modo evidente

os princípios lógicos. Por conseguinte, a crítica filosófica do conhecimento se demarca das ciências não só tematicamente, mas também do ponto de vista metodológico. Afinal de contas, vimos que a forma

teóricaque melhor exprime a cientificidade é a axiomática-dedutiva Diante disso,Husserl afirma que "a mera descrição(...) contradiz o nossoconceito padrão de ciência" (P, S 64, 237), uma vez que a descrição deve se guiar pela unidade temática do objeto a ser descrito, o que contraria a prioridade das leis formais puras na sistematização das teorias possíveis. Dessa maneira, tzmczdíscíf)/ina plzramente descritiva üão se caracteriza como científica, no sentido prescrito f)ela lógica f)ura

Daí que a fenomenologia deva ser exercida como crítica filosófica, a qual não se confunde com as ciências mas oferece um complemento 53

A cientifícidade

na fenomenologia

de Husserl

Da fenomenologianoética à fenomenologia transcendent41

# indispensável ao prometode fundamentação do conhecimento cientí-

urzÍversa/ís, masque universalizao problema crítico do conhecimento

fico. Parte dessafundamentação deve se cumprir por uma ciência, a IÓ.

independentemente dos desenvolvimentos da lógica pura.O texto

gica pura, que sistematiza as condições ob)etivas das teorias científicas

principal em que as etapas dessa ampliação são expostas é Introdução

de modo plenamente científico, isto é, ordenando-secomo disciplina nomológica, conforme a forma axiomática-dedutiva. No entanto, parte da fundamentação remete às condições noéticas de atestaçãodo saber,

à Lógica e à Teorí.zdo Conhecimento (doravante, ltXCI, curso ministradopor Husserl em 1906-1907 e publicado postumamente

Nos primeiros parágrafosde lt.TC, Husserl retoma em linhas ge

as quais não são devidamente apreciadas por nenhuma disciplina cien.

tais ao menos parte do movimento

tífica, nem mesmo pela psicologia, já que essase centraliza em eventos empíricos. Cabe então a uma disciplina filosófica, a fenomenologia, explicitar essascondições subjetivas, fornecendo, dessemodo, um complemento crítico à fundamentação objetivo do saberpela lógica pura.

concentrando-se em expor o prometode uma lógica pura como sistema

argumentativo

de Pro/egõmez70s,

geral dos princípios: métodos e formas de teorias possíveis, investigados em sua pureza ideal (Cf. IL:l'C, SS 1-19). Não é preciso reconstruir

sistematicamenteessetrecho da exposição de Husserl, mas sim as tesescontidas em alguns parágrafos posteriores, nos quais inicialmente

Husserlalterao escopoda lógica pura tendo em vista a especificidade B) A fenomenologia como ciência autónoma Recon$guração da doutrina da ciência

Vimos que Husserl retrata a fenomenologiacomo uma reflexão epistemológica cuja meta é elucidar a origem (no sentido da doação evidente) dos conceitos e leis que constituem a mat/zesísuniverso/ís ob-

jetivo. A reflexão fenomenológica complementaríao estudológico das categoriasgeraisde significação e de seuscorrelatos ontológico-formais

ao elucidar a sua justificação epistêmica, quer dizer, ao esclarecerde que maneira tal sistema ideal de categorias se dá a conhecer de moda

evidente para a subjetividade. Dessamaneira, unindo-se análise objefíva dos fundamentos do conhecimento (a qual deveria ser conduzida pelos matemáticos) e investigação sobre a legitimidade rzoétícade tais fundamentos, formular-se-ia, em toda a sua amplitude, a douü'ína da

cíê7zcia.Essaúltima não só conteria de modo sistemáticotodo o arcabouço conceitual e inferencial básico que atribui cientificidade a quais-

quer empreitadasditas científicas, maso conteria de modo justa/içado conforme os padrõescogllitivos da forma czf)ríorí da subjetividade. Nesta segunda parte do capítulo, veremos de que maneira nos anos posteriores à publicação de Investigações Lógícczs Husserl amplia

o escopoda fenomenologia de modo a apresenta-lacomo uma disciplina

que não se limita

a complemelltar

54

epistemicamente

a nzat/zesís

dasciências empíricas e, em seguida, altera a própria tarefa da reflexão fenomenológica diante do prometoda maf/zesísurzíversa/ís. Passemosà análise da nova Lematizaçãodas ciências empíricas por

Husserl.Vimos que em Pro/egõmenosas ciências empíricas tomavam parte na cientificidade somente enquanto aplicavam as leis ideais da

probabilidade na construção de suas teorias. Apenas nesseaspecto tais

ciênciasconstituíam estruturasformais válidas capazesde fundamentar as teses defendidas. A exploração dos domínios objetivos empíricos

eraconsideradamais como um entrave à realização adequada da cientificidade que expressãodo caráter específico de um tipo de saber.A referência a tais domínios significava, em Pro/egõmenos, que as ciências

empíricas eram ao menos em parte determinadas pelo acréscimo confízzgentede dados experimentais advindos da exploração do domínio material em questão. Nesse livro, como vimos, a lógica pura explicita as

estruturasde encadeamento proposicional cuja validade deriva exclusivamenteda articulação dedutiva das formas proposicionais e conceihais. Essesistema puro de estruturas argumentativas fundadas em princípios e leis imediatamente evidentes delimitava o caráter científico de qualquer investigação. Assim, a cientificidade

das investigações empí-

ricasse limitaria à aplicação das formas absolutamente válidas de Justificação de conhecimentos; no caso, a teoria formal da probabilidade.

Porsua vez, em ll.TC, Husserl reconhece que a especificidade material 55

A cientiHlcidade na fenomenologia de Husserl

[)a fenomenologia noética à fenomenologia transcendentl]

# das investigações empíricas não é um aspecto desprezível ou um eH.

pecilho apesardo qual tais investigações ainda poderiam ser ditas ciên. das, mas que ela deve ser tomada como consfífuinfe da cíe7zfj/ícídade. Segundo Husserl, as ciências empíricas desenvolveram um campa

importante de conhecimentos e de aplicações técnicas com base eH conceitos (que delimitam os domínios empíricos estudados) não eluci. dados plenamente, muitas vezes oriundos de modo impreciso da expe.

riência comum, tais como causa,corpo, vida etc. (Cf. ILTC, S 20, 9697). Faltaria, assim, uma compreensão clara acerca do sentido desses conceitos elementares, de seu âmbito de aplicação e de suas possibilidades de interação legítima com outros conceitoss' . E dada essaausên-

cia de clareza acerca dos conceitos básicosque demarcam os temas empíricos, as ciências correspondentes padecem de um tipo particular

de impeúeição teórica. Como vimos, em Pro/egõmenoso estadoatual

uma investigaçãoaprofundada sobre o sentido dos conceitos básicos dasdisciplinas empíricas favoreceria uma interpretação satisfatória do alcance e da validade dos resultados científicos empíricos. Tratar-se-ia,

nessecaso, de exibir as características definidoras dos temas básicos a queasciências se dedicam, esclarecendo, assim, as possibilidades e os

jimites das abordagensteóricas disponíveis. Husserl admite que esse tiPO de investigação das características gerais dos domínios reais tem sido buscado ao menos desde Aristóteles por meio da meta/Rica, enten-

dida como investigaçãosistemática sobre o sentido gera] do ser,sentido

pressupostopor todas as ciências particulares que estudam domínios

empíricos (Cf. ILTC, S20,99). No entanto, Husserl distingue duas maneiras pelas quais a investigaçãometafísica avançaria. Desse modo, ele parece tentar evitar asso-

de imperfeição teórica das ciências remete à ausência de clareza acerca

ciar o seu prometode fundamentação do saber às inúmeras polêmicas historicamente ligadas a essadisciplina tão controvertida. Por um lado,

dos pressupostosoperantesna produção do saber. Naquela obra, do

a metafísicapode partir das próprias ciências empíricas dadas, bus-

ponto de vista objetivo, Husserl limitava-se a apontar para pressupos-

cando esclarecer os fundamentos dessascom base nas decisões concei-

tos lógico-formais das teorias que deveriam ser tematizados pela lógica pura. Agora, ele reconhece que há outro tipo de pressupostoem vigor nas ciências empíricas, que não se refere à armadura formal pela qual a

tuais já operantes no seio das disciplinas anuais. Essa seria a "metaHsica

teoria é exprimida, massim às cczracfer&tícas matedaís dosdomhíos a se írzvesfígar, capturadas pelos conceitos basilares das disciplinas empíricas. Como consequência dessa ausência de clareza sobre o conteúdo e o limite dos conceitos fundamentais, sobram divergências relativas à interpretação dos resultados obtidos experimentalmente, divergências, por exemplo, sobre o alcance de certas noções e a conveniência de cer-

tos métodos para diferentes domínios empíricoss:. Husserl defende que

a posteriori" (ILTC, S 21, 102), que segue o deseíavolvimento concreto

dasciências. Não é essainvestigação que interessa a Husserl, já que, nessecaso, a metafísica supõe dadas restrições conceituais cujo sentido

último e origem caberia justamente esclarecer. Caberia então elaborar a "metafísica a priori" (ibid.), que não se limitaria a estudar as condi-

çõesantigas das ciências empíricas dadas, mas investigada asestruturas determinantes dos domínios empíricos em sua pureza ídea/s;. Essa meta/bica d priori permitiria compreender "a essência da rea-

lidade em geral, não da realidade efetiva, mas daquilo que no pen-

de decidir sobre o que de fato se possui, sobre o que, em sentido último, se obteve; por'

sarpertence de modo necessário jde7z&nofwendíglà realidade como tal, ao material isto/7] enformado como tal, mas não com respeito à mera forma" (]].-TC, S 22, 106). Essa investigação seria realizada de

tanto, sobreem que sentidose reivindica que os resultadossãoexpressõesdo serúltimo

modo a pdorí, e, ainda assim, explicitada as categorias fundamentais

51. "Sem dúvida, tem-se resultados importantes, mas dada a falta de compreen-

sãocrítica acerca do significado dos conceitos e princípios fundamentais, é-seincapaz

(ILTC, $ 20,98). 52. "Todos os cientistas naturais falam, por exemplo, de causa e efeito, permitem-

se guiar em toda parte pelo princípio de causalidade.Isso é parte do 'modelo básico Somente, não se pode questiona-lossobre o sentido último e a fonte desseprincípio'

(ILTC, $ 20,99). 56

53. Devo o reconhecimento da importância da metafísica a príorf em ILTC à dis cussãosobre essetema apresentada por J. Farges em sua notável tese de doutorado (Cf Farges, 2011, } 16-125) 57

A cientificidade

na fenomenologia de Husserl

Da fenomenologia poética à fenomenologia transcendental

determinantesnão só da realidade factualmente experimentada,mas da rea/idade em gera/, independentemente

de sua manifestação nas ex.

periências dos sujeitos empíricoss'. Husserl distingue essametafísica a

príoH da teoria pura do objeto, componente da lógica pura. Essatec.. ria pura investigada as características mais gerais pertencentes à noção de objeto em virtude da concatenação significativa das formas daspro. posições e de seus encadeamentos válidos; ela não está limitada àquilo

materiaisparticulares, dos quais se busca apreender as características geraiss'.Vale notar que a investigação metafísica também dá lugar a uma lógica, no sentido de uma doutrina das possibilidades a priori do conhecimento da realidade em geral. Trata-se, nesse caso, de uma "ló.

Bicareal" (ILTC, S 23, 112), de uma ciência que expõe as articulações básicasentre as categoriasmetafísicas, de maneira a reproduzir, no nível da realidade material possível, o recenseamento das formas válidas

que é designadocomo objeto no domínio mefcz/kíco,a saber,àquilo que pode ser ígcz/.Para a teoria pura dos objetos, "é ente tudo o que pode figurar como sujeito de um enunciado, tudo aquilo sobre o que

de conexãoentre conceitos que a lógica pura realiza num nível puramenteformal.

nós falamos, tudo o que pode ser designado como ente" (ILTC, S 21.

JnvestígaçÕes /ógícas" (ILTC, S 22, 106) pertencia a essetipo de investi-

100). Dessemodo, o tema dessateoria pura é o ente enquanto visado por enunciados

significativos,

independentemente

da sua realidade.

Por sua vez, a metafísica que Husserl tem agora em vista se dedicaa um âmbito bem mais restrito, a saber, as características gerais dos entes enquanto entes possivelmente reais. A diferença entre ambas as dis-

ciplinas se marca pelo tipo de conceito em que cada uma se constitui. Ambas são compostas de conceitos gerais, mas a generalidade metafí-

sica não é como a generalidade lógico-formal. Nesse último caso,almeja-seformular conceitos referentessomente à forma do objeto em geral, o que leva à exclusãode qualquer restriçãomaterial dos conteúdos particulares que serviram de base para a generalizaçãoss. É dessa exclusão de toda característicamaterial que se molda não só a teoria pura dos objetos, mastambém a lógica formal que Ihe é correlata. Por sua vez, para alcançar os conceitos metafísicos, parte-se de conteúdos 54. Husser] exemplifica da seguinte maneira essaanálise a priori da realidade: deve serpossívelum grupo de investigaçõesque examinam simplesmente tudo aquilo sem o que a realidade em geral não pode ser pensada.Dele fariam parte a doutrinaa pnod do tempo, a cinemática a priori e a geometria pura, se têm razãoaquelesque pensam que sem a relação de toda realidade a um espaçoeuclidiano tridimensional e ao tempo unidimensiona] (. . .) uma rea]idade em geral não pode ser pensada.Com tais investigações,nenhum conhecimento da realidade efetiva factual ainda estádado,pois eles concernem tanto à realidade efetiva factual quanto à realidade efetiva possível"

Husserlafirma que "a doutrina do abstratoe do concretode gaçãodoscomponentesa príod do real. Dessemodo, aquilo que é propostode modo desenvolvido em ll.TC ( 1906-1907) estavajá incubado na terceira investigação lógica ( 1901), intitulada "Sobre a doutrina dos todose das partes". Ali, Husserl explora as diferentes relações de depen-

dênciae independência entre objetos e mesmoentre suaspartes.Vale a pena destacar dois pontos contidos nesse texto: primeiro, as relações

queaí setem em vista não decorrem de diferentesmodos de representaçãosubjetivos, mas descrevem restrições objetivas, isto é, que vigo-

ramem relaçãoaosobjetos em gerals7.Em segundo lugar, essasrelaçõesde dependência constitutivas dos objetos não são explicitadas por

experimentaçãoempírica ou qualquer tipo de procedimento czposterior;. Husserl pretende revela-las como leis a priori, isto é, como porta-

dorasde uma legalidade necessáriaque restringe, em nível geral puro, aspossibilidadesde estruturação dos objetoss8

56. "Nessageneralização, o olhar é dirigido para a particularidade do conteúdo, sobresuaqualidade, sobre sua maneira de ser de tal e tal modo, e é justamente a maneira

deserh gentequenóssalientamos" (ILTC, S23, 109)

(irlc, S2i, ioi). 55. Segundo Husserl, nos conceitos da teoria pura dos objetos "não entra manifes-

tamente nada da maneira de ser do intuído" (ILI'C, $ 23, 109). 58

59

l

A cientificidade na fenomenologiade Husserl

Da fenomenologia noética à fenomenologia transcendental } #'i'} l}.'#

Por meio desses dois pontos, Husserl indicava

já em l?zvestígações

/ógícas que a vigência das relações de necessidade a priori não se res.

fundentedo conhecimento científico para além daquelapuramente formal.

tringe à esferapuramente lógico-formal, estudadapela lógica pura. Há

É exatamente essatentativa de esboçar uma ciência pura das restri-

possibilidades ideais que não se referem somente à forma vazia do ob. feto em geral, mas a gêneros materiais amplos, os quais supõem restri.

çõesczpdorí materiais que Husserl busca cumprir em IL'TC por meio

çõesczpriori em seu ordenamento objetivo, restriçõesque não sãore. dutíveis àquelas puramente formais. Distingue-se, nesse ponto, além

da ideia de metafísica a priori ou oncologia metafísica. Caberia a ela estabelecer os princípios czf'ríorí da /ógíca purcz reco/,em contraste com os princípios da [ógica pura.formal. Essa ]ógica rea] não está obviamente

do d priori formal, um a priori material ou sintético, conforme o qual diferentes tipos de gêneros objetivos podem ser investigados em suas

separadada lógica pura formal. Por um lado, a lógica real estásubsu-

restrições necessárias,as quais se impõem para a consciência como vá.

ordenam conforme as regras de conexão significativa formalmente estabelecidaspara quaisquer tipos de categorias concebíveis. A investigaçãometafísica está, assim, circunscrita em última instância, e como

lidas mesmosem serenaproduzidaspor essa(assimcomo já ocorria com a validade puramente formal dos temas da lógica pura). Husserl sugere já na terceira investigação lógica que a essadivisão de tipos de

a priori deveria corresponderuma divisão de disciplinas puras: "essa separaçãocardinal entre a esferadas essênciasformais e (...) materiais fornece a distinção autêntica entre disciplinas anca/ífícasa pHod e disciplinas sílzfétícasa priori" (LUI, 256). Antevê-seaqui que a teoria pura dos objetos,contida na lógica pura, não esgotaa legalidadea priori que atumcomo fundamento pressupostopara o conhecimento, em particular para o conhecimento empírico. Dessamaneira, Husserl

mida à lógica formal, uma vez que as categorias gerais da realidade se

qualqueroutra investigação metodicamente científica, às formas de fundamentaçãoestabelecidaspela lógica pura. No entanto, por outro lado, de maneira bem menos óbvia, Husserl reconhece que a investiga-

çãometafísicaforneceum tipo de baseou suportematerial paraastesesda lógica pura. Segundo o autor, as leis recenseadaspela lógica pura sereferem de modo geral a toda ciência possível. No caso das ciências empíricas, as provas, as leis e os princípios teóricos utilizados tratam de

domínios reais, ainda que de modo genérico. Dessa maneira, "tudo o

já reelabora no correr de Investigações/ógícas o veredito acerca do caráter não essencial dos domínios objetivos na constituição da cientifi-

gico, a um conteúdo objetivo ISac/z/za/fígÉeíf) que deve ser apreendido

cidade dasciências empíricas, tal como afirmado no parágrafo64 de

de modo lógico, mas que deve estar lá de início para que a apreensão

Proíegâmenossç.O que Htca sugerido f)ela terceira in'pestigação lógica é

lógica encontre algo a apreender" (ll.TC,

que os asf)actos materiais constituintes dos domínios objetivos empíricos

puraspressupõem esferasmateriais possíveis, das quais justamente as

que é lógico reenvia, com sua generalidade indeterminada ao extraló-

S 22, 104). As formas lógicas

estãotambém subordinadosa uma /ega/idade a priori própria, a qual

relaçõesformais indeterminadas são extraídas.Husserl chega a dizer

estabelece restrições que condicionam (e, assim, contribuem para fun-i

que, se toda matéria do conhecimento

damentarl a escolha dos métodos e o alcance das investigações empí-

absoluto,então o âmbito lógico puro "não teria mais sentido" (ibid.). Issoquer dizer que, embora a lógica pura seja construída justamente

ricas. Cabe desenvolver as disciplinas que sistematizam essasrestrições a priori materiais, de maneira a expandir a esfera da legalidade lógica essencial que separa as 'necessidades sintéticas' das 'analíticas"'

(LU 1, 256, texto da pri-

meira edição)

pudesse ser afastada de modo

por meio da análise das formas teóricas válidas í7zdependerzfemezzfe dos domínios materiais em que estas são aplicadas, ela não ignora essesdomínios, os quais permanecem vigentes em sua indeterminação justa-

59. "Há, porém, em segundo lugar, pontos de vista não essenciaispara a coorde-

mente como domínios de aplicação possível.O nível puramente ló-

nação de verdades em uma ciência, e ao mais óbvio chamamos a unidade da coisa em sentido literal" (P, S 64, 236, texto da primeira edição).

gico não está totalmente isolado dos domínios materiais, os quais, em

60

suageneralidade indeterminada, realizam o papel tácito de suporte de 61

A cientificidade

Da fenomenologia noética à fenomenologia transcendent41

na fenomenologia de Husserl

.} i/'$'} 1i,'.

aplicação dasformas puras- Essaremissão do âmbito puramente formal ao âmbito material indeterminado não era claramente mencionada eQ

Pro/egõme7zos, já que ali, como notamos, os domínios materiais eram avaliadoscomo inessenciaispara a cientificidade (Cf. P, S 64). Agora. Husserl admite que nem todo fundamento ob/efivo pressupostopelo conhecimento

científico

é /ormaZ.

Para as ciências

que não são absba.

tas, que não se dedicam aos puros encadeamentos formais e a seuscor. relatos materialmente vazios, há pressupostos acerca das características

definidoras do domínio a se estudar, e essespressupostospodem seres.

mudados em suageneralidadepura por meio de um tipo específicode lógica. E essalógica real ou material de certa maneira também é fun. dancedo próprio trabalho de formalização da lógica pura. Importa

notar, por fim, que por meio dessas ponderações

cientificidade. Cabe analisar os fitos subjetivos que reconhecem a vali-

dadedasestruturasobjetivas do conhecimento, de maneira a atribuir a elas uma )ustificativa epistêmica racional. Tal qual em Pro/egõmenos,

Husserlacentua que essaelucidação não remete a nenhum grupo de sujeitosempíricos determinados, mas à ideia geral de subjetividade, às característicaseidéticas que delimitam toda subjetividade possível: "sobre a essência dos aros se fundam exigências de direito, e (...) independentemente da contingência dos indivíduos e de sua especificidade

psicológicaenquanto humanos ou não humanos, formas de fundação sãoJustificadase outras são injustificadas" (ll.TC,

S 25b, 119). Daí que

o estudodessasestruturassubjetivas de justificação racional não seja uma tarefa da psicologia, e sim de uma disciplina específica, a rzoétíca:

Husserl

amplia notavelmente o alcance das colzdíçõesob/etívas do conhecimento. Inicialmente, no parágrafo 32 de Pro/egõmerzos,essascondições

objetivas referiam-se somente à armadura formal de conceitos e enca. deamentos proposicionais em correlação cona as formas vazias de ob. fetos quaisquer. Agora a investigação dos pressupostos objetivos do co.

que em Pro/egõmenos era identificada

com a própria fenomenologia

Veremosque Husserl manterá a ideia de uma noétlca como complementosubjetivopara a doutrina da ciência objetíva. No entanto, esta deixará de ser identificada com a fenomenologia. Cabe à noética propor a princípio uma modo/ogíczdos diferentes ti-

que estabelecem possibilidades ideais em relação aos domínios objeti-

pos de atos subjetivos, de maneira a distinguir aqueles que portam uma estrutura imediata de legitimação daqueles que oferecem justificativas de modo mediano. Oferece-se, assim, uma taxonomia dos diferentes ti-

vos a se estudar. A doutrina da ciência objetivo não poderá, portanto, se

posde arosque atribuem legitimação racional para seu conteúdo. Em

reduzir à lógica pura, mas deverá incluir disciplinas que sistematizem as restrições d Í)riorí materiais. Em lll.TC, Husserl apenas esboça uma

seguida, essas análises morfológicas

metafísica czf)ríorí para cumprir essatarefa. Veremos, ao analisar textos

análisemais refinada das funções específicas da cada tipo de ato em

posteriores do autor, a proposta de orzto/ogíasmczteríczís referentes aos

vista das diferentes formas de conhecimento possível.

nhecimento deverá levar em conta as determinações materiais puras

devem ser completadas

por uma

'fisiologiado conhecimento" (ll.TC, S 29, 138), quer dizer, por uma

Importanotar que os níveis morfológico e fisiológico dos fitos noé-

gêneros materiais supremos

ticosrzãoesgotamas questõesligadas àscondições subjetivas do conhecimento. Na verdade, segundo Husserl, há "camadas de problemas de

Lógica poética e fenomenologia transcendental Reproduzindo

o movimento

argumentativo

nossadoutrina do direito do conhecimento que são mais profundas de

Prolegõmerzos,

jlUXC, S 30, 139). Essascamadasexcedemo âmbito da noética tal

Husserl, na segunda seção de ll.TC, apresenta a investigação r20é-

como delimitado até então e se ligam aos problemas da "/í/oso/ía trans-

fíca como como/emerzto à doutrina da ciência objetivo.A circunscrição dos componentes formais elementares de toda investigaçãoteó-

cenderzta/, os mais difíceis de todos os problemas científicos em geral"

rica e das características gerais dos domínios objetivos correlatos não basta para oferecer uma elucidação completa acerca do que compõea

quea doubina objetivo da ciência nada esclarecea respeito da legitimi-

62

e também "os mais importantes de todos os problemas" (ibid.). Vimos dadedas apreensõessubjetivas de seu conteúdo, e que, por isso mesmo, 63

A cientihcidade na fenomenologiade Husserl

Da fenomenologia noética à fenomenologia transcendental

[ r'S'}]t;. ela deveria ser complementada pelas descrições das estruturas noéticas que justificam racionalmente a apreensão de certos temas como válidos ou verdadeiros. Husserl deixa agora claro que a análise descritiva das formas e funções dos atos subjetivos justificadores da doutrina

transcendentaldo reconhecimento de algo objetivo pela subjetividade

objetivo da ciência ainda é írzsu/ícíentepara respondera todasas ques-

tando seus condicionantes ideais. Assim, em correlação com a inves-

tões ligadas à teoria do conhecimento. Descrever as estruturas noéticas que garantem a apreensão legítima dos princípios da lógica pura ou da

tigação das formas possíveis de teorias, a análise noética acabará por elucidar "a ideia de conhecimento segundo seus elementos constitu-

lógica real metafísica, issotudo "não quer dizer ainda compreendero

tivos ou as suas leis" (ibid.). No entanto essa análise segue limites es-

sentido e a possibilidade de um conhecimento válido, e, portanto, atin-

tritos, estabelecidosjá em Pro/egõmerzos.A investigação noética do conhecimento progredirá no interior daquilo que é "a grande tarefa" de

gindo efetivamente uma objetividade" (ILTC, S 30a, 141). E é justamente o problema universal da possíbí/idadedo c07zbecímenfo, entendido como o problema do próprio reconhecimento pela subjetividade

De fato, a investigação noética que complementa a lógica pura é apre-

sentadacomo uma "teoria do conhecimento" (LUI, 27) que deve preceder todo exercício subjetivo empírico do conhecimento, explici-

Investigaçõeslógicas, a saber, " levar à clareza e distinção ePistêmica as ideias lógicas, os conceitos e leis" (LUI, 9). Assim, nessa obra, os pro-

de algo como objetivo, aquele que levará Husserl a desenvolver a fenomenologia de modo autónomo em relação à noética. Em Pro/egõmenos,esseproblema geral era reconduzido àquele da

blemasgeraisligados à possibilidade do conhecimento sãotratados por

correlação entre dois grupos de estruturas e princípios d priori: o pri-

Por que Husserl julga no curso de 1906 que a análise noética, tal como proposta em l?zvestígações /ógícas, não esgota a problematiza çãofilosófica do conhecimento? Lembremo-nos, de início, que o autor apontou como problemas profundos banscendentais aqueles relativos

meiro se refere àsformas objetivamente válidas de conexão entre significações puras, e o segundo, às essências dos ates subjetivos. Essesdois

tipos de d pHorí concordavam harmonicamente entre si, de maneira que bastava descrever, no nível da generalidade ideal, os fitos subjetivos capazes de apreender justificadamente as estruturas objetivas da lógica

pura para tornar visíveis,em termos da essênciada subjetividade e das formas mais gerais da objetividade lógica, quais eram ascondições teóricas para o conhecimento válido. Por sua vez, na introdução de Investigações /ógícas, Husserl explora

explicitamente o tema da possibilidade do conhecimento em gera/à luz do prometofilosófico caçado em Pro/egõmenos.No segundo parágrafo da introdução,

Husserl afirma que as investigações

subsequen-l

tes permitirão esclarecer problemas recorrentes da epistemologia, tais

como a relaçãoentre o caráter em si do objeto conhecido e o caráter subjetivo do conhecimento resultanteóo.Husserl antecipa aqui o tema 60. "0 que significa que o objeto seja 'em si' e 'dado' no conhecimento;coma

meio de uma clarificação íloética da lógica pura, o que é avaliado em ILTC como uma abordagem insuficiente

à possibilidade geral pressuposto por todos os casos de conhecimento, a

saber,que algo objetivo seja reconhecido como tal pela subjetividade. Asanálisesdessesproblemas devem se desenvolver no âmbito do puro direito, isto é, das condições que delimitam o sentido da própria ideia do conhecer objetivamente legítimo, independentemente de suasinúmeras realizações factuais. Na verdade, as situações factuais em que

ocorre efetivamente o conhecimento pressupõem o preenchimento dascondições a priori que justamente tornaram essassituações factuais

inicialmente possíveis,e são tais condições d priori que interessam à investigaçãotranscendental

O que essadistinção entre o direito e o fato do conhecimento implica para a investigação transcendental? E como isso nos ajuda a quesignifica a adaequafío rel ac ínfe//ectus cognitiva nos diferentes casos, conforme a apreendercognoscente diga respeito a algo individual ou geral, a um fato ou a uma lei?

a identidade do geral pode entrar, enquanto conceito ou lei, no fluxo de vivências psíquicas reais e tornar-se, enquanto conhecimento, património daquele que pensa,

Agora ficará claro que essas e ousas questões semelhantes são inseparáveis das questões

64

65

aludidasacima acerca do esclarecimento do puro lógico"(LUI,

l ã)

A cienti6jcidade ila fenomenologia

Da fenomenologia noética à fenomenologia transcendental

de Husserl

compreender as limitações da noética? Conforme visto, o pas:o i.niclal de Husserl aqui foi apontar para um problema episte.mológico

universal, aquele das condições ideais da relação entre subjetividade e objetividade. Em seguida, reconhece-se, como também mencionado há pouco, que nas situações concretas em que se produz sonhe. cimento simplesmente supõem-se cumpridas essascondições ideais, sem que se tenha clareza acerca de quais são elas e de como operam. Ora. diante disso, Husserl sugere que "nenhum dos resultados cien-

tíficos obtidos naturalmente estáisento [da ausência de clarezaj; nós não podemos então utilizar nenhum deles como premissa pa.ra.derivar o que nós buscamos"(ILTC, S 32c, 177). Uma vez que se trata de esclarecer como a relação entre subjetividade e objetividade é possível. não se deve utilizar como ponto de partida para a investigação transcendental nenhum conhecimento em que essapossibilidadeseja pressuposta, pois se trata de tematizar as condições gerais dessapossi-

n 4.

mentodasrelaçõesentre subjetividade e objetividade que tornam possívela obtenção de conhecimentos válidos. Esseserá um ponto marcante de divergência com a noética. E ver-

dade,como vimos, que o problema do direito do conhecimento já era tematizadopela investigação noética, que não se interessavapor ep:só' diosfactuais de cognição, mas pela ideia do conhecer evidente como correlata das teses 1(5gico-objetivas da lógica pura. Entretanto é exata-

menteessacorrelação esbutural entre noética e lógica pura que restringira a pureza das relações ideais explicitadas. Afinal, observa Husserl,

;a lógica formal e a lógica noética estão em conexão estreita; a pn' meira pode certamente ser elaborada independentemente

da segunda,

masnão o inverso" (ILTC, S 31a, 158). Essa dependência parece decorrer do seguinte: a noética almeja explicitar as condições subjeti-

vasideaisnas quais os conteúdos da lógica pura podem ser justificadamenteafirmados, tarefa que supõe o progressote(iríco dessaú/tímcz

bilida(i e, e não de aceita-lacomo já preenchida. A crítica transcendental do conhecimento que aqui se anuncia não se apoiará em nenhum

Desseponto de vista, a noética está atrelada aos avanços concretos da

sabercientífico já dado no qual as condiçõesde possibilidadedo co-

ideal dos temas da lógica pura, o que pressupõeque essestemczssejam detív merztesístematízczdos. Em ll.TC, para deixar explícita essacode-

nhecimento

são ingenuamente

pressupostas. Na verdade, segunda

lógica pura para se desenvolver. Ela esclarece as condições de atestação

Husserl, o avanço factual do saber não contribui em nada para a resolução da questão transcendental. Husserl imagina a hipótese de que as

pendênciaentre lógica pura e noética, Husserl chega a nomear essaúl-

teorias da matemática pura se desenvolvessemde maneira plena, de modo a esgotar,em uma cientificidade peúeitamente acabada,todo o domínio que Ihe cabe serinvestigador'. Mesmo diante dessahipótese, os problemas da crítica do conhecimento seriam ainda exatamente os mesmos" (ILTC, S 33c, 190), pois a perfeição teórica da matemática pura "seria um fato e nada mais. Diante da reflexão, ela seria um problema" (ibid.). Sugere-seclaramente aqui que a reflexão filosófica

o seu caráter compZemenfar em relação à lógica pura. Vale notar que

transcendental nada avança com o acréscimo paulatino de conhecimentos dos domínios objetivos. Afinal, interessa a essareflexão não a

tima de "lógica noética", conforme a citação acima, deixando patente emProlegõmenosnão só essaexpressão"lógica noética" não é usada como Husserl também faz questão de distinguir investigação lógica e investigaçãonoéticaõz.Agora em ll.TC a noética é retratada como um tipo de lógica, como um ramo de uma investigação global das estrutu-

rasteóricasfundantes do conhecimento.

Dessemodo, em ll.TC, Husserl distingue a reflexão filosófica sobre o conhecimento e a noética. Por sua vez, em Pro/egõmerzos, ambasestavamidentificadas; cabia à noética realizar a crítica filosófica

bato do conhecimento, mas a questão do direito, isto é, do estabeleci 62. "As condições ideais de possibilidade do conhecimento

podem ser ( . . .) de duas

espécies.São, a saber, rzoétícasse sefundam na ideia do conhecimento enquanto tal e a

ÚIÜM=;;H=:IH=UaH;B::Ig

f)dorí,semqualquer relação com a particularidade empírica do conhecimento humana emseucondicionamento psicológico; ou sãopuramente lógicas, i. e., fundam-sepuramenteno 'conteúdo' do conhecimento" (P, S 65, 239-240).

seriapensável"(ILTC, S 33c, 190)

66

67

Da fenomenologia naética à fenomenologia transcendental

A cientificidade na fenomenologiade Husserl

do conhecimento ao investigar as condições subjetivas da lógica pura.

uma investigação transcendental referente ao direito e ao sentido das

No entanto. Husserl avalia em ILTC que a noética estásubordinada

empreitadas científicas não examina as ciências em seus estágios atuais

aosavanços efetivos da lógica pura; por conseguinte, ela não atinge eH toda a sua pureza e amplitude a questão do direito do conhecimento. Para exprimir essapureza, como vimos, Husserl sugere que, mesmo se

depeúeição, masse dirige à própria ideia de cientificidade, tal como

a matemática pura (e, com ela, toda a mathesís uníversa/ís objetiva) estivesse terminada, isso em nada resolveria os problemas da crítica do

tegoriaspode ser legitimamente alcançada. Além disso, a investigação

aomenos esboçada em suas categorias e em seus métodos mais básicos, e investiga de que maneira a objetividade visada por tais métodos e catranscendental também se aplica "ao conjunto das categorias noéticas

conhecimento. De modo inverso, issoquer dizer então que, ainda que

jltXC, S 31d, 166), quer dizer, abarca a tarefa de recensear as fontes

a mathesís urzíversa/isnão esteja plenamente construída como dou-

subjetivasde justificação das leis e dos princípios lógicos que complementaa mat/zesísobjetiva

trina, a investigaçãofilosófica pode avançarde modo autónomo'; Uma conclusão importante se anuncia. A teoria transcendentaldo conhecimento cogitada por Husserl, ao perguntar pelo puro direito do

A investigação transcendental como 6enomenoZogía

saberobjetivo, não se reduz a um complemento da doutrina da ciên-

Essainclusão da noética no âmbito das doutrinas científicas a se rem c]arificadas pe]a investigação transcendental não só confirma a

cia objetiva, já que avança independentemente dos progressos dessaúl-

tima. Trata-se, como vimos, de uma reflexão que se situa em um nível diferente daquele do conhecimento científico atual e que, mesmo em

autonomização da crítica filosófica em relaçãoà construçãoda doutrina da ciência, mas também permite reconsiderar a especificidade metodológica da filosofia. Mencionei acima que o tema da justificação

relação à doutrina da ciência efetiva, pretende fornecer um tipo de fun-

damentação que falta ao saberobjetivo. A]ém das condições lógico-ob jetivas e lógico-noéticas pressupostaspelas ciências, há um pressuposto

epistêmico ainda mais básico: a posição de algo como objetivo pela

subjetivado conhecimento é herdado da noética pela reflexão filosó fica ampliada. Poder-se-iapensar que a diferença entre ambas é ape-

subjetividade. Cabe à reflexão transcendental elucida-lo, clarificando,

nasa ampliação do alcance da segunda, que não se limita a clarificar as

assim. o fundamento talvez mais primário do conhecer. Nesse sentido,

condiçõessubjetivasda lógica pura, e sim do conhecimento em geral.

a teoria transcendental do conhecimento tenciona realizar-se como /i-

Ocorre que essadiferença de alcance, essaproblematização do pressu-

doso/íaprimeira, quer dizer, como uma investigaçãodos princípios úl-

postouniversaldo conhecimentoem geral (o problemado acessoda

timos sobre os quais o sentido e a possibilidade do conhecimento obje-

objetividade pela subjetividade) supõe uma alteração radical no métododa investigação, o que, por fim, significará uma transformação da própriafenomenologia. Como vimos, a especificidade metodológica da reflexão transcen-

tivo se assentanlm.A teoria do conhecimento entendida, assim,como 63. Husserl extrai essaconclusão no apêndice B ll de ILTC: "pode-?epartir diretamente em busca de uma fenomenologia do conhecimento (e de uma fenomenologia em geral), sem ter o ponto de vista da doutrina da.ciência e os escrúpulos do ceticismo

dentaljá se faz notar em sua independênciaquanto ao acabamento ou aperfeiçoamentodas ciências efetivas. Se as ciências disponíveis

para começar ( . ..). Se eu inicio pela doutrina da ciência, então eu também..devo desen

fossemmais perfeitas do que são, isso em nada aliviaria os problemas

volver a fenomenologia independentemente dela, e vice-versa",(ILI'C, 405).. , . 64. Eis como Husserl expõea tarefa da filosofia primeira: "e/a é a.ciência dosPr.in. cíf''o* 'q rà l;,'.:' ;lã;l. a.l «p/l"çõ' úlÇfm', d' ;«sfí#"çã' ' :l'l d"çr' d' sem;da últimos, portanto, da clara/ilação'ú/fina, tudo issoserzdocompreerzdído no senffdoda ge' neralídadede pnncíPío. Ela não se esgotaem parte alguma, e entretanto sua 'crítica, suaclariHicaçãodesentido, concernem a tudo, pois concernem em p'incípio a todos os

fundamentos, a todos os procedimentos metódicas, a todos os atou de pensamento que portam reivindicações de direito, segundo a essência das operações que eles realizam'

(lnC, S 31d, 165-166) 69

68

l

A cientificidade

Da fenomenologia noética à fenomenologia transcendental

na fenomenologia de Husserl

4

epistemológicos transcendentais, assim crê Husserl. Além disso, cabe agora enfatizar que a resolução dessesproblemas não é um acréscimo

teórico para as ciências existentes.E é?sse não é o casoda noétíca. No apêndice B VI de ILTC, Husserl asseverao seguinte: "o ideal da ciên.

cia objetivo é a perfeição lógico-noética, é o ideal lógico (o ideal noé.

tico). Uma ciência realizou progressoà medida que é uma ciência idealmente rigorosa, à medida que o conhecimento consumado do seu campo foi obtido e nada mais aí resta para ser desejado" (ll.TC, 433).

O autor sugereque a obtençãode conhecimento noético auxilia na tarefa de apeúeiçoamento teórico da doutrina da ciência. Embora se deva distinguir entre os aros subjetivos examinadospela noética e os puros princípios formais recenseadospela lógica pura, o estudode ambos se une para formar

a doutrina

geral da ciência,

a qual, se estivesse

cientificamente sem investigar os princípios de que dependem o sen-

tido último, o direito, a fonte de validade verdadeiramenteobjetiva jltXC, S 31d, 164). Trata-sedaquilo que Husserl chamará posteriormentede orientação lzatura/ do pensamento, marcada pela ingenuidadeem relação às suaspróprias condições puras de realização. Aqui

não se devem confundir as ciências que, desseponto de vista epistêmico, são realizadasde modo natura/ com as ciências da lzatureza quer dizer, com as ciências que investigam os diferentes domínios do mundo real. Podem ser ciências da orientação natural mesmo ciências que compõem a lógica pura (a silogística, a álgebra, a teoria das multi-

plicidadesetc.), de maneira que o caráter puramente formal da investi-

gaçãoem nada a torna imune à ingenuidade epistemológica.Em relaçãoa essaorientação ingênua, a investigaçãofilosófica transcendental

plenamente realizada, exporia todas as formas de fundamentação lâ

seapresentacomo "uma orientação de pensamento totalmente antina-

Bica válidas de que as ciências particulares poderiam efetivamente di$

tural" (ll.TC, S 3 Id, 165).A antinaturalidade da filosofia deriva de sua

por para apresentarconhecimentos verdadeiros,e as exporia segundo

insistênciaem tornar aparente aquilo que as ciências ingênuas pressu-

asestruturas subjetivas que reconhecem a validade de tais formas como justificadas racionalmente

põem mas não tematizam, a saber, as operações subjetivas pelas quais

Por sua vez, a investigação transcendental do conhecimento é, con-

o fato de essasoperações se realizarem de modo bem-sucedido já é su

a objetividade é legitimamente posta como tal. Na orientação natural,

forme escrito no mesmo apêndice, "algo essencialmente diferente ante

ficiente; foca-se então nos resultados de tais operações, as quais, nelas

a clarificação lógica e suas metas" (ll.TC,

mesmas,não são questionadas. Por sua vez, a investigação filosófica al-

433). Afinal de contas, essa

investigação "não almeja a peúeição das ciências, mas a 'possibilidade

mejajustamenteclarificar como é possívela relação entre a subjetivi-

do conhecimento', e como a relação do conhecimento com as objeti-

dadee aquilo que por ela é visado como objetivo.

vidades transcendentes deve ser entendida" (ibid.). E de que maneira essa investigação da possibilidade do conhecimento

será conduzida?

Apresentar a investigação filosófico-epistemológica

como antinatu-

ral significa situa-la em um nível diferente daquele dos conhecimentos

Aparentementehá uma grande dificuldade. Vimos que o problema transcendental exige que nenhum conhecimento obtido sob o cum-

obtidosna orientação natural. Essesúltimos ignoram o problema da possibilidadeda relação entre consciência subjetiva e polo objetivo e,

primento ingênuo das condições de possibilidade deve servir de ponto

do ponto de vista filosófico, aparecem como proa/emátícos,no sentido

de partida. Segundo Husserl, as ciências em geral, e mesmo a lógica

de carecerem de uma fundamentação acerca do sentido da própria ati-

pura em sua dimensão formal-objetiva, são construídas sem questiona-

vidadeepistêmica que se concretiza na sua obtenção. Isso quer dizer

mento sobre suas condições gerais de possibilidade: o instrumental me-

que, para a investigação transcendental,

todológico é voltado para os temas objetivos a se pesquisar; certas teses

mentos obtidos na orientação natural deve ser susPerzsa.A investigação

sãoformuladas com baseem tal pesquisae com elasse montam teorias

transcendentalnão pode depender de nenhum conhecimento que assumaacriticamente como já cumpridas ascondições cl priori do acesso

em que o conhecimento

daqueles temas é exposto sistematicamente.

Nesse modo ingênuo de proceder, "pensa'se, conhece-se, trabalha-se 70

a validade de todos os conheci-

dasubjetividade à objetividade, condições que devem ser elucidadas. 71

A cientificidade

Da fenomenologianoética à fenomenologia transcendental

na fenomenologia de Husserl

/ #'

Fica clara agoraa dificuldade mencionada anteriormente: a suspensãode todo o conhecimento natural não torna impossível a própria exe-

Segundo Husserl, o que se mostra como a raiz da ingenuidade do

conhecimentonatural é a posição de algo üanscenderzte. O que o co-

cução da investigação transcendental? Afinal, como reconhece Husserl, a crítica filosó6lca pretende estabelecer certos conhecímelztos relativos

nhecimento natural supõe sem nunca esclarecer é a relação das capaci-

à possibilidadee ao sentido do conhecimento em geral. Contudo, se a

algoque é apresentado como em-símas que se doa ou se manifesta de

posição de todo conhecimento é tomada como problemática, então os

modo acessível para a consciência. Como é possível que a subjetividade

resultadosobtidos por tal crítica exigiriam outra crítica se aplicando scbre eles, e assim ad íTZ/ínitumós. Husserl rejeita esseresultado.Afinal,

produtorado conhecimento reconheça a partir dela mesmaalgo que

não se trata de rachar todo conhecimento

tífico natural, e, por conseguinte, o principal tema a ser clarificado pela teoriatranscendental do conhecimento. E então a transcendência, afir-

concebível

como necessaHa-

merzteproblemático, mas somente o conhecimento obtido sob a posição

dadessubjetivascom um polo objetivo transcendente,quer dizer, com

vai além de si? Esseé o ponto obscuro marcante do conhecimento cien-

ingênua da objetividade. É preciso estabelecer o conhecimento aliso/ufamerzte evídenfe das coizdíçõestranscendentais, conhecimento que não

mada de modo ingênuo, que deve ser suspensa para justamente ter suas

será ingênuo em relação à objetividade, mas que permitirá esclarecer de

nhecimento (. . .), no que concerne a toda transcendência, ela deve pra-

modo fundamentado como a validade objetivo de todo conhecimento

ticar uma epoc/zéabsoluta" (ll.TC,

ingênuo é obtida. O ponto de partida é então reconhecer como um dado evidente o caráter problemático do conhecimento científico in-

o que é posto como um dado objetivo pelo conhecimento científico

gênuo. Conforme expõe Husserl, "o teórico do conhecimento começa precisamente por esseenunciado: eu não compreendo o conhecimento,

condiçõesde possibilidadeelucídadas.Segue-seque "a teoria do coS 35a, 204). Isso quer dizer que tudo

devesersuspenso,já que se trata exatameilte de esclarecerascondições de possibilidade de tal posição da validade transcendente objetiva.

Não é pouco o que, dessamaneira, se exclui da crítica do conhe-

portanto eu não devo, sem exame, nada pressupor, nada fazer valer nem

cimento. Todos os objetos da natureza tais como estudados pelas disci-

reivindicar como previamente dado" (ll.TC, S 34a, 194). A crítica do conhecimento reconhece reflexivamenteo caráterproblemático do ccnhecimento dado (independentementede ele sercompleto ou incom-

plinas científicas devem ser rejeitados como dados da investigação crí-

pleto) para elucidar sua possibilidadee seu sentido e, assim, oferecer suafundação filosófica. Atesta-seaqui uma retrorreferênciado conheci-

ção das categorias formais e de suas conexões válidas pela lógica apo-

mento a si próprio em busca das condições por meio das quais ele se rea-

tica de modo puramente objetivo e sem clareza definitiva sobre aquilo

liza: o teórico do conhecimento reflete sobreo conhecimento ingênuo

que é de princípio" (ILTC, S 31c, 162). Nessesentido, enquanto su-

e busca explicitar de modo preciso aquilo que nele é problemáticos.

põeuma noção não clarificada de transcendência (ideal), nem mesmo a lógica pura deve ser pressuposto pela teoria do conhecimento". E

tica.E não só o mundo natural é retirado da investigação,mastambém asidealidades puramente formais. Como observa Husserl, a explicita-

hntica "pode ela também serconstruída enquanto disciplina matemá-

65. Eis como Husserlapresentao problema: "a situaçãoparece de .início um pouco desesperadora.Todo conhecimento deve ser problemático. Mas o conhecimento pertencente à teoria do conhecimento que nós buscamos é também um conhecimento. Parece então que há necessidade da teoria do conhecimento para adquirir a teoria do

mesmopara um Deus, a questãodo sentido do conhecimento tem um significado ra cionale que, mesmo para um Deus, a resolução do problema do conhecimento não

conhecimento. O que parecedemonstrar que a teoria do conhecimento é por principia impossível" (ILTC, S 34a, 193). 66. "A necessáriaretrorreferência da explicitação do conhecimento a si próprio é manifestamente algo que pertence à essênciado conhecimento.enquanto tal (....-). [ÉI evidentemente claro' que mesmo para um conhecimento absolutamente perfeito.

jlnTC, $ 34a, 193-194) 67. "Mesmo a lógica formal no sentido antigo ou a mathesís formal que se relacionaa conceitos e a proposições, ou a objetos e estados de coisas (. . .) carece de uma

72

consistiria senãoem uma crítica do conhecimentose retrorreferindoa si própria

fundaçãoe de uma avaliaçãopela crítica do conhecimento"(ILTC, 73

S 3 1c, 162)

A cientificidade

na fenomenologia

de Husserl

Da fenomenologia noética à fenomenologia transcendente .P'/

4.

possívelaqui se questionar se tanta radicalidade por parte de Husserl não anula os próprios meios pelos quais a teoria do conhecimento se

suspende-se a vigência ingênua do modo de pensar por meio do qual sesupõemcumpridas as condições do conhecimento e se toma como

exf)rime como teoria. Afinal, nem mesmo a lógica, enquanto disciplina

objetiva, deve ser assumidacomo dado. Isso significaria que as teses

dadaa transcendência em vista; assim, instaura-se uma orientação cognitiva que recusa todo dado não devidamente clarificado em seuspres-

da teoria do conhecimento estariam livres de se submeter às relações

supostos.Esseprocedimento é chamado por Husserl de redução$eno-

lógicas mais básicas?Husserl não tematiza de maneira clara essepro-

merzo/ógíca(Cf. ll'TC,

blema em ILTC, mas oferecerá uma resposta elaborada em Ideias l,

campode pura evidência,com baseno qual a fenomenologia pretende

publicado em 1913.Voltarei a essetema no próximo capítulo, ao ex-

resolvero enigma da transcendência70.Como veremos, será uma feno-

por algumas tesesdesselivro. Por ora, basta esclarecer que já em ILTC Husserl atribui um alcance universal à e/)oc/zéda transcendência que

menologiareformulada em relação àquela originalmente contida em Prolegõmenos, que ainda se encontrava ligada a uma disciplina cientí-

abrangetambém a própria lógica pura. Cabe aqui notar que, além dos

ficaobjetivo (a lógica pura) e, dessamaneira, não havia questionado de modoradical os pressupostosúltimos do conhecimento. Agora, a fenomenologiaque se anuncia estálonge de ser um complemento de uma doutrina científica objetiva; ela é uma disciplina que se desenvolve em

temasdas disciplinas materiais e formais, o próprio sujeito cognoscente também é afetado pela suspensãoda transcendência. A concepção na-

tural ou ingênua do sujeito toma-o como um ente real localizado na espacialidade e na temporalidade objetivas da natureza material. (Jra

para Husserl, essaconcepção não é de modo nenhum um dado evi. dente; põe-seaqui o sujeito como algo transcendente,como casode

S 35d), e será a partir dele que se abrirá um

uma orientação do pensar diferente daquela em que todo conhecimento objetivo é produzido; ela não dependerá de nenhum avanço do

conhecimento objetivo efetivo para o seu progresso,pois ela questiona

uma classe geral de entes objetivos cujo próprio modo de ser é obscuro

pressupostos de outra ordem, relativos ao sentido e àscondições de pos-

e deve ser esclarecido". A psicologia, enquanto ciência ingênua, supõe essatranscendência da subjetividade em seus estudos, mas a investigação transcendental do conhecimento não pode aceita-la. Trata-se, an-

sibilidade mais gerais dos conhecimentos efetivos

tes, de purificar os dados da psicologia (bem como de todas as outras

assimdizer, em que se suspende a vigência de toda transcendência do

ciências) de toda pressuposição sobre a transcendência, isto é, sobrea posição cle existência de algo como objetivo" Por meio dessasérie de suspensõesde diferentes tipos de transcen-

conhecimento. Realiza-se, assim, a epoc/zéde todos os Juízos científicos

dência pressupostospelo conhecimento produzido sob a orientação natural, Husserl delimita um procedimento

radical para circunscre-

ver o domínio autêntico da investigaçãotranscendental: inicialmente, 68. "Eu ponho então a questão: o tempo objetivo, a doação temporal objetiva, a personalidade, o eu idêntico como portador das aparições, é tudo isso dado no que se

chama de consciência interna? Isso tudo não é transcendentee não faz das próprias aparências psíquicas, que são investigadasenquanto estadosobjetivos do eu, da pes soa empírica, precisamente enquanto estados objetivos de algo real, transcendências?"

(ILTC, S 35a,204) 69. Dessamaneira, o psicologismo é rejeitado não somente como interpretação da lógica, mas também como concepção epistemológica em geral 74

Vamos analisar com mais detalhes a redução fenomenológica, tal

comonarradaem ll.TC. Ela se compõe de uma etapa "negativa", por

em relação aos seus temas. Isso quer dizer que os estados de coisas ob/e-

üvosveiculados por tais juízos, aquilo que ingenuamente o sujeito cognoscentepensa atingir e revelar em seu em-si, são excluídos da investigação,de maneira que nenhum dado transcendente (cuja condição 70. Husserl já utiliza a expressão "redução fenomenológica" em seu curso de 7êo na gera/ do corzAecimenfo Í]902-]903). Porém, ali, a redução é somente um procedi-

mentode exclusão daspropriedades factuais dos eventosde maneira a se poder analisa-losem suaspuras características eidéticas (Cf. Husserl, 2001, 199). Essa expressão

passa a ser usadacom o sentido de indicar o método de acessoà fenomenalidade puriRcadade pressupostosnão clarificados em 1905, nos famososmanuscritos de Seefeld publicadosno volume X da coleção Husserliana (Cf. Husserl, 1969,237-268). 1LTC é o primeiro curso em que Husserl desenvolve de forma sistemáticao método da reduçãofenomenológica 75

A cielltificidade na fenomenologiade Husserl

Da fenomenologia noética à fenomerlologia transcendental

} #:i'}l},;. transcendental está justamente em questão) vigore. Uma vez suspensa

completo e forte, e reflete aqui sobre o que caracteriza tais casos"73.No

a posição dos ten)asobjetivos, que resta do conhecimento científico que se trata de elucidar e fundar filosoficamente? Adentra-seaqui na etapa por assim dizer "positiva" da redução. Cabe agora reconhecer como resíduo da redução o ãenõmelzoda ciência, ou seja, o conjunta

entanto,Descartesnão teria de fato liberada a pura evidência do âm

de teorias enquanto pretensão de atingir a objetividade''.

oor meio da circunscrição da ímcznêncíaczutê7ztíca,vem desfazer, como

Realiza-se,

bits psicológico da alma e, assim, estaria preso a uma concepção in-

,ênua da subjetividade cognoscente,confundida com a interioridade psíquica": É justamente essaconfusão que a redução fenomenológica,

assim, uma redução de toda atividade do conhecimento àquilo que se manifesta de maneira puramente fenomenal, sem nenhum pres-

veremosa seguir Em que medida a explicitação da pura fenomenalidade do conhe

suposto acerca da transcendência dos temas estudados.A redução fe-

cer, uma vez suspensatoda transcendência posta ingenuamente no

nomenológica

conhecimento, permite resolver o problema transcendental das con-

se completa,

dessa

maneira,

pela

consideração

da áerzo-

mencz/idade que resiste à aplicação da epoché, fenomenalidade que se atesta de modo absolutamente evidente.

diçõesde relação entre subjetividade e objetividade? Por meio da re-

Husserl reconhece a inspiração cartesianada redução fenomenoló-

partir dos quais clarificam-se o sentido e a validade da pretensão à ob-

gica: "a meditação cartesianafundamental fornece o domínio indubitável, aquele dos fenómenos, mais precisamente dos fenómenos do co.

jetividadeem vigor no conhecimento natural. Essaesferaé aquela da iminência autêntica" (ll.TC, S 36, 219), a qual é definida pela exclu

nhecimento" (ll.TC, S 34b, 199). Essa inspiração nos procedimentos

sãode toda transcendência, quer dizer, de toda posição injustificada

cartesianos já vem pelo menos do curso Teoria gera/ do conbecímenfo,

da objetividade. Trata-se de uma "esfera limitada" (ll.TC,

de 1902-1903.Ali Husserl admira o pioneirismo de Descartesao ele-

justamentepor conta dessaexclusão; porém, nela, "o conhecimento

var os problemas epistemológicos a tema central da filosofia e discute a

absoluto é acessível e a crítica da razão é factível" (ibid.). Nesse caso,

distinção cartesiana entre ideias inatas e adequadas. Segundo Husserl, a demarcação das ideias inatas pelos critérios de clareza e distinção já

o conhecimento absoluto é aquele cujas fontes de evidência que legitimam o direito de sua apreensão estão esclarecidas's. Os dados obti-

indica uma tentativade circunscrever um âmbito de pura evidência de

dospor meio da redução fenomenológica estariam livres do fardo da transcendênciae permitiriam, se descritos adequadamente,adquirir

dados absolutamente certos, com base nos quais é possível compreen-

dução fenomenológica, estabelece-se uma esfera de dados evidentes a

S 40, 238)

der como a transcendência ganha sentido':. Dessamaneira, Descartes antecipa o método de análise fenomenológica do conhecimento: "ele

a compreensão acerca das bases gerais sobre as quais se pode afirmar

parte de exemplos em que o conhecimento é dado no sentido mais

73. Husserl, 2001, 70 74. "A palavra 'inato' já indica um caráter psicogenético. E de fato essecaráter tam-

bémé visadocomo tal. As ideiasinatas sãouma posseoriginária da alma, nela impreg 71. "Mas mesmo se nós co]ocamos ja natureza e os homens existentes] em dúvida,

nadapor Deus (. . .). O caráter originário psicológico e mesmo a impregnação divina não

uma coisa certa é que agora, enquanto eu duvido ou questiono, tais e tais percepções

podematribuir às ideiasnenhuma dignidade epistemológica" (Husser1,2001, 70-71)

são, (. . .) que nelas tais e tais objetos me aparecem, e, do mesmo modo, que a ideia da

75. "E àsfontes originárias da clareza e da essencialidade que nós devemos voltar, aí onde a proposição, a verdade, a falsidade, a contradição e, assim, todos os conceitos

ciência da natureza' é, que a ciência da natureza enquanto fenómeno é e, se eu presentiHlcotais e tais teorias,que os fenómenos de teoriassão.Ciências quaisquer,teorias quaisquer, conhecimentos quaisquer são, não enquanto validades, lhas enquanto pretensões de validade, enquanto fenómenos de validade" (ILTC,

$ 34b, 198-199)

72. "Ê óbvio para nós: Descartes reflete aqui sobre a essência do conhecimento;

e todas as relações conceituais se exibem em uma doação apropriada, intuitiva,

e nós

podemosde modo geral intuir que essasituação se funda sobre a essência como uma

situaçãodadae indissociáveldela. Se eu intuo isso, estou então em possede uma ver-

retorna ao sentido do conhecimento para se salvar da dúvida absoluta" (Husserl, 2001, 70)

dadeabsoluta, de uma verdade que se funda purametl te sobre si própria e que não pode seratingida por nenhuma relativização ao eu ou ao mundo nem a uma esfera qualquer contingente de individualidade" (lj:;l'C, S 39, 235-236).

76

77

A cientificidade

na fenomenologia

[)a fenomeno[ogia

de Husserl

noética à fenomenologia trg.n?çendenta]

algo como objetivamente conhecido. Na esfera dos puros dados feno. mentis, crê Husserl, "pode-se então observar o que corresponde aos conceitos de conhecimento (...) tais como ser, verdade, etc., o que é

conhecimentodeve encontrar um modo de tratar dessacaracterística,

aqui sua significação evidente e absolutamente clara; por conseguinte, o sentido dessesconceitos pode ser estabelecido, com a única reserva

direcionamento intencional dos fitos subjetivos sem readmitir a trans-

de que é talvez um sentido estreito que se apresentará

Husserloferece uma solução para essadificuldade

la que justamente pretende esclarecer em quais condições a posição lepítirna do ser objetivo ocorre. No entanto, é preciso levar em conta esse cendência na esfera dos fenómenos reduzidos. No exemplo a seguir,

195).A reduçãofenomenológica constitui, assim,uma dimensão feno. penal metodicamente modificada, na qual se apreende com clareza

Por exemplo, eu percebo essamesavermelha. Pela redução fenomenológica, o ser dessamesae aquele do carátervermelho que Ihe cabe são suspensos.Mas não podemos com um fundamento evidente, em relação ao fenómeno e ao momento vermelho que Ihe pertence de modo imanente, dizer: vermelho? Na aparição da mesa, nós encontramos uma aparição do vermelho. Nós distinguimos o vede//zo do objeto que aparece, e aparece tal como ele é visado sobre o objeto

o sentido do conhecimento. Nessa dimensão de iminência autêntica, seria possível clarificar todos os principais conceitos e operações pelos quais o conhecimento

ocorre.

Cabe aqui detalhar o que exatamente faz parte da iminência autênteca.Uma vez excluído o polo transcendente para o qual se dirigem as percepções, os Juízos e todos os fitos subjetivos com base nos quais a conhecimento é adquirido, restam justamente essesfitos como sõesde validade. Conforme esclarece Husserl, "o que pertence à esfera dos fenómenos no sentido da fenomenologia é cada percepção anual,

como Ihc pertencendo, do venci/zo que /zabífa d aPaüção,e nós o consideramos exatamente tal como ele aí é dado com evidência

jlLTC, S37a,222). Por meio desseexemplo, o autor defende ser possíveldistinguir o

cada juízo anual; são eles mesmos enquanto eles são, mas nada do que

objetoenquanto um ente posto como transcendente e o objeto como

neles é percebido, julgado, posto ou implicitamente coposto no sen tido transcendente" (ILTC, S 35e, 214). A esfera dos puros fenómenos

apariçãofenomênica. Não se trata de nenhuma distinção ontológica;

é, inicialmente, formada pelasoperaçõessubjetivas,cuja análise deve permitir que seelucide justamente como seusobjetos podem ser legitimamente alcançados. Entretanto, deve-senotar que não só me atossubjetivos a esfera fenomenológica é composta. Afinal, cabe à própria essência dos aros subjetivos se dirigir para ou visar a certos polos objetivos; os aros são, nesse sentido, ínte7zcíonaís. Na orientação natural, essa visada é tomada como algo óbvio e jamais problematizado

a fundo. A in-

vestigaçãotranscendental do conhecimento, por suavez, almela tornar explícitas exatamente as condições pelas quais essareferência a algo objetivo pode se realizar de modo justificado Dada essacorrelação entre os fitos subjetivos e seus polos objetivos, Husserl admite que "não é simplesmente a percepção ou um outro ato objetivante que pertence à esfera da iminência, mas também, de certo modo, cada objeto, malgrado sua transcendência" (ILTC, S 38, 231) Se é uma característica essencia]dos alas subjetivos dirigirem-se para objetos, então a teoria do 78

o objeto transcendente é o objeto da aparição, porém, posto ou julgadocomo existente em si de modo independente das visadassubjetivas.Ao objeto como aparição se acrescentam certas crenças ou teses iudicativasque o põem como transcendente. Ao se suspendertais cren çasou teses (por meio da epocbé), obtém-se o objeto no seu puro ma-

nifestar-sefenomenal, como aparição essencialmente correlata ao ato subjetivo, e, assim tomado, o objeto pode ser investigado pela teoria do conhecimento'6

Como se vê, a esferada pura evidência aberta pela redução feno menológica não se limita aos atou subjetivos, mas também envolve os objetos a que esses fitos se dirigem enquanto justamente se manifestam

como correlatos desses fitos. Quer dizer que ao intitular tal esfera como

aquelada imanêncíaautêntica, como vimos há pouco, Husserl não se 76. O objeto em seu puro aparecer fenomenal será tematizado como rzoemaem Ideiasl 79

A cientificidade na fenomenologiade Husser]

Da fenomenologia noética à fenomenologia transcendental. çy

# /

;'i' #,

A fenomenologiaentre investigação eidética e transcendental É pela descrição dos fenómenos manifestados na esfera da pura

evidênciaque se pretende resolver os problemas da possibilidade e do sentido de qualquer conhecimento

válido concebível. Trata-se de

partir dos dadosfenomenais absolutamente evidentese então acomtificado atribuem sentido à noção de transcendência. Dessa maneira, esclarecem-sequais são as condições mais gerais de acesso a algo ob-

jetivopelasubjetividade.A meta da investigaçãoé aqui levarà evidência fenomenológica todas as etapas de constituição de sentido (em termo de correlações dos fitos e seus polos objetivos) que terminam no

reconhecimentode algo como efetivamente transcendente.Não pretendo acompanhar em detalhe a efetuação desse prometoem ll.TC, mastematizar dois tópicos a ele ligados, o segundo deles exigindo um aperfeiçoamento do prometolançado nesse curso, que amadurecerá emIdeias l

Em primeiro lugar, vale acentuar o sentido da tarefa de clarificação das condições transcendentais do conhecimento. Tal como já formulado em Pro/egõmenos, o programa fenomenológico de explicitação de pressupostos operantes na produção do saber atribui certo tipo de

/ündamerztaçãopara as disciplinas científicas, perspectiva que perma' tece válida em ll.TC. Fundamentar não quer aqui dizer tornar as teoriascientíficas mais certas, resolvendo problemas internos à sua formulação. Não é esse tipo de problema com os fundamentos das ciências

quecumpre à fenomenologia transcendental resolver. Daí que Husserl censure a empreitada epistemológica cartesiana em Meditações mefczÉz'sacas. Ali, Descartes propunha um método cético de suspensãoda validade de todo conhecimento duvidoso. Mostrava-se, assim, que ne-

nhuma ciência disponível tinha um fundamento seguro, estável,e tratava-sejustamente de estabelecer as basesabsolutamente certas sobre asquais todo conhecimento deveria se erigir (Cf. ll.TC, S 33c). Para Husserl,essatentativa de fornecer, pela reflexão filosófica, asbaseste(tricas interiores às próprias ciências é uma confusão de domínios, confusão desculpável no caso de Descartes, já que, para a sua época, as tarefas filosófica e científico-matemática 80

81

não estavam separadas, mas

A cienti6jcidade na fenomenologia de Husserl

Da fenomenologia noética à fenomenologia transcendental, ,r:i'} l},;õ

}

inaceitável ao menos desde a filosofia kantiana. "A crítica do conheci.

mento não quer teorizar", afirma Husserl; e mais, "o que ela quer não se situa nos caminhos dos matemáticos ou das ciências da natureza nem tampouco da psicologia. Ela quer 'explicitar', ela não quer nada

subjetiva,de maneira a esclarecerseu sentido e atestara legitimidade de alcançar o polo objetivo por eles visados'

Quanto ao segundo ponto, trata-se de algo mais complexo, referente ao papel da investigação eidética no desenvolvimento da feno-

deduzir, nada reenviar a leis como fundamentos explicativos, mas sim.

menologia. Husserl nota que não se trata exatamente de descrever os

plesmente compreender o que se situa no sentido do conhecimento e

fenómenosparticulares tais como experimentados por um ou outro su-

da objetividade" (ll.TC, S 33c, 190). A reflexão epistemológica não engloba, dessamaneira, nenhum método para produzir os fundamentos internos ainda faltantes dasciências. As ciências não setornam mais se-

jeito em questão. A singularidade dos fenómenos se presta bem a uma

guraspor meio dos resultadosda crítica epistemológica,as teoriaspro-

apreensãointuitiva, mas não a uma elaboração conceptual, que deve então se voltar para os conteúdos comuns aos dados singulares, de maneira a visar não a essespróprios dados, mas suas características essen-

visórias não deixarão de ser provisórias; os métodos indutivos não deixarão de envolver diferentes graus de incerteza. Em suma, a validade dos conhecimentos científicos permanecerá tal como estabelecida pe-

ciais,seusgêneros e modos de ser;'. Para Husserl, é possível apreen-

los próprios parâmeb-os metodológicos vigentes nas disciplinas; a refle-

tica em que a descrição fenomenológica deve se desenvolver. As vivênciassingulares são fluidas, logo desaparecem, mas as essênciascorrespondentesnão; elas são entidades ideais passíveisde análise quanto àssuascaracterísticas idênticas. Os dados intuitivos singulares servem

xão crítica sobreo conhecimento em nada interfere nos fundamentos interiores de cada uma delas. Deve-se reconhecer, então, ao lado dessafundamentação interna às ciências, a fundamentação especificamente filosófica7ç. Essaúltima não almeja sanarfalhas no interior das teorias científicas ou tornar tais teorias de algum modo mais certas. Trata-se somente de esclarecer a

der as essênciasdos fitos subjetivos e de seus polos objetivos correlatos

de modo evidente e, assim, incluí-las na esfera da iminência autên-

somentede exemplospara que, por ideação,se atinja a essênciada experiência em questão, a qual então deve ser o tema das descrições

possibilidade e o sentido do conhecimento, temas que são, sem dú-

fenomenológicasaz Husserl esclarece que a descrição das essências apreendidas em

vida, pressupostospelas investigações científicas, mas que não perten-

evidência absoluta pode por si só se desenvolver em uma investigação

cem, assim como Husserl já reconhecia em relação aos atos noéticos,

rigorosa,independentemente do problema da possibilidade e do sen-

ao conteúdo explícito das teorias científicas. Cabe à investigação filosó-

tido do conhecimento83. Desse ponto de vista, "a $enomeno/ogíacon-

fica elucidar "reflexivamente asfontes subjetivase as questõesúltimas sobreo sentido e a possibilidade de uma objetividade que se constrói subjetivamente"

(ILTC,

S 3 lc, 163). Com essa elucidação, as ciências

80. "fada a investigação se move assim na esfera da subjetividade, na esfera da in-

tuiçãoque torna evidente, aquelada consciência intuitiva. Os conceitosmatemáticos e ontológicos, nós os clariHlcamospor um retorno à subjetividade, nós perguntamos o que

não vão se tornar mais ou menos certas; mas ao menos "elas se tornam

elesvisampropriamente"(ll.TC, S 32b, 173)

de um lado a outro compreensíveis" (ibid.), no que tange a seu sentido

81. "0 fenómeno é uma individualidade absoluta, e essaindividualidade é determinávelconceitualmente segundo$eu conteúdo, que a constitui, mas,enquanto indivi-

e sua legitimidade. O método de tal elucidação é clarificação fenomenológica dos conceitos básicos teóricos, isto é, sua recondução à fonte 79. Husserl costuma utilizar Begründunge?z para os métodos de fundação ou iusti6lcaçãointernos à ciência e Fundamentíe rzgpara o trabalho de fundamentação exclusivamente filosófico. 82

dualidade, ela só pode ser apreendida na intuição" (ll.TC, $ 37a, 222) 82. "Nós não deveríamos nos interessar pelos fenómenos anualmente dados enquanto isto-aqui jindividualidades], mas por aquilo que a abstração e a generalização puramente intuitivas e realizadas de modo imanente sobre eles trazem à luz como visõesgerais" (ILTC, S 37c, 228)

83. "Nós fomos até aqui guiados por um interesse pertencente à teoria do conhecimento, o qual exigia (. . .) a eliminação de todas as objetivações naturais, de todos os 83

r

A cienti]icidade ientificidade na na fenomenologia fenomenologiade de Husser] Husserl

l

'

l serva um sentido ;ndependentemente

da teoria do cora/zecímerzto" (ILTC

Da fenomenologia fenomenologianoética poética à fenomerlologia fenomenologiatranscendelltal transcendental . . ./ r;} ,./'j'} .ç'', .f $, '

titutiva da fenomenologia. Sobre esse ponto, comenta Husserl: "até

S 36, 217). Em um curso ministrado em 1905, Husserl já comentava

onde se estende o título de fenomenologia? Manifestamente tão longe

algo semelhante a esseponto: "a fenomenologia pode ser considerada sem qualquer referência a problemas epistemológicos. Ela é então teo-

quantoseestendea possibilidade de uma investigação puramente imanente,excluindo toda transcendência. Nós podemos dizer; ela é a ciên-

ria eidética pura, ciência dos gêneros e espécies (. ..) de conteúdos"84.

cia universal da consciência pura" (ll.TC,

Seta preocupaçõescrítico-transcendentais,a fenomenologia reduz-se a uma oncologia,no sentido de uma descriçãodos componentes eidéticos que compõem um determinado domínio, no caso,o dos fitos da consciência e seus polos objetivos correlatos.

No entanto,no apêndiceB IV de ILTC, Husserlrecusaa ideiade

S 36, 2 19)

De início, em Investigações /ógícas, Husserl apresentava a refle-

xãofenomenológica como um complemento filosófico à doutrina geral dasciências. Já em ll.TC,

Husserl concebe a fenomenologia como

urnainvestigaçãocíerzfz'#ca autónoma, que não se limita a clarificar a possibilidadedessadoutrina geral da ciência, mas que busca esclare-

que a fenomenologia, em seusentido P/ergo,seja meramente uma on-

cer ascaracterísticasessenciaisque condicionam a realização de qual-

tologia8s. E o que impede a identificação da fenomenologia a uma dou. trina ontológica do domínio dos puros fenómenos da consciência é exa-

querconhecimento ou, em termos gerais, de qualquer posição de uma

tamente a questão transcendental acerca da possibilidade e do sentida

objetividade,seja em âmbito cognitivo, afetivo ou prático. Mas qual o sentidodessacientificidade atribuída à fenomenologia?Vimos que as

do conhecimento. Issofica claro, por exemplo, em uma nota do apên-

ciênciastêm a sua validade suspensapela epocbé, uma vez que elas su

dice B 111de ILTC. Ali, Husserl questiona se a descrição fenomenoló.

põem dadas ingenuamente as condições de acesso a seus respectivos

Bica da natureza reduzida (sem a pressuposição da transcendência) não

domíniosobjetivos. De que maneira a investigaçãofenomenológica

seria um mero estudoontológico que põe seudomínio como válido objetivamente. Sua resposta:"não, pois em fenomenologia trata-seda relação entre 'natureza em geral' e conhecimento, e consciência; e vice

harmonizaa referência sistemática a um domínio de investigação(unia

versa" (ll.TC, 410). Aqui, a investigação crítica do conhecimento é um

fator determinante para que a fenomenologia exiba sua especificidade.

Por essaperspectiva,a fenomenologia não pode ser totalmente independente da questãocrítica pela possibilidade e pelo sentido do conhecimento; do contrário, ela assumiria ingenuamente a posição transcendente do domínio eidético a ser descrito. Assim, a circunscrição de um

marca da cientificidade),

no caso, um domínio

da posiçãoda transcendência em relação a essedomínio (uma marca da tarefa crítica)? Para tanto, será preciso coordenar de modo preciso

doisaspectosda fenomenologiajá distinguidos em ILTC, conforme expostologo acima: o caráter ontológico-eidético e o carátertranscendental. Será justamente uma reflexão aprofundada acerca da imbrica-

çãode ambos que permitirá a Husserl expor de forma madura, no livro Ideias1,a fenomenologia como um tipo muito especial de ciência.

âmbito de pura evidência pela exclusão da transcendência parece consluízos empíricos, portanto, a redução fenomenológica. Mas uma vez obtido o solo fenomenológico, vemos que sobre tudo o que pode ser explorado aqui um interesse teórico apropriado pode se orientar, um interesse que não quer adquirir e elaborar os conhe-

cimentos fenomenológicos simplesmente sob os serviçosda crítica do conhecimento

(ILTC, $ 36,217). 84. Husserl, 2002. 46

85. "Os axiomas da geometria não pertencem à fenomenologia porque ela não é uma teoria eidética dasformas, dos objetos espaciais.Em geral, ela não é antologia

(ILTC,422) 84

eidético, e a suspensão

85

./ ,i'. À,i

CAPITULOll

A fenomenologia como ciência eidética e transcendental

Apresentação

No capítulo anterior, expus a construçãodo prometoda fenomenologiatranscendental como uma ampla investigação sobre ascondições geraisde estabelecimento de correlações entre a subjetividade e aquilo

quepor e]a é visado como objetivo. Essainvestigaçãonão se limita a uma teoria do conhecimento, }á que sua meta passaa serproblematizarnosmais diversosâmbitos(teórico, prático, axiológico) as condições

geraisdasrelaçõesentre subjetividade e objetividade. Essaproblematizaçãoé tomada, ao menos desde ILTC, como uma investigação cíen-

ü'Hcada consciência pura', o que certamente não é óbvio. Afinal de contas,vimos que alguns anos antes, em Pro/egõmenos,Husserl distinguia a investigação fenomen ológica da científica. As dificuldades e par-

ticularidadesda atribuição do caráter científico à fenomenologia não sãoexplicitamente discutidas em ll.TC, mas paulatinamente se tor1. Cf. ll-TC, parte 11,cap.VI

Fenomenologia como ciência da consciência

pura 87

A cientificidade na fenomenologiade Husserl

A fenomenologia coma ciência eidética e transcendental

} ,/)'}lP;. naram temas centrais da reflexão husserliana, uma vez

qualificaçõesdecisivasparao prometo fenomenológico. Em

um artigo publicado

em 191 1, A /i/oso/ía

que implicam

e m,rcante da filosofia (tal como ainda era o caso em Pro/egõmeizos), como uma Éa//za,uma limitação histórica a ser superada. Ora, em 1906-1907),Husserl expunha a fenomenologia como científica,

como cíêzzcía

rosa, Husserl desenvolve de modo explícito o tema da cientificidadeda

filosofia. Ali, ele caracterizao ideal de conhecimento fundamentado em princípios absolutamente evidentescomo sendo um desiderato da filosofia nos melhores momentos de sua histórias. Husserl insiste eu afirmar que isso não foi satisfatoriamente obtido, de maneira que a file..

sugerindo assim,que ela atingiu a maturidade que, segundo o artigo

de IÇ11, a filosofia ainda não alcançara em nenhum momento da sua história E o que garante a cientificidade da reflexão filosófica? De que maneira ela realiza o ideal histórico de tornar-se ciências rigorosa' Não éde surpreender que a exposição da filosofia científica em 19 11 retome

sofranão teria ainda atingido a maturidade científica almejada desdeos seusprimórdios. Não é o casode reconhecer que a filosofia é uma ciên.

asprincipais características metodológicas da fenomenologia expostas

cia incompleta; a filosofia nem mesmo começou a ser ciência afirma de modo severoo autor;. Obviamente não se trata de negar, por sua

pretensão naturalista de esclarecer os fundamentos subjetivos do co-

vez, que as ciências já estabelecidascontêm imperfeições, como já era reconhecido ao menos desde Pro/egõmerzos.No entanto apesardo es. lado de impeúeição das ciências anuaisno que se refere à clareza en relação aos pressupostos teóricos que condicionam

o seu próprio de-

ein

1906-1907. Em A /i/oso/ia como ciência Hgorosa, Husserl critica a

.hecimento por meio da psicologia empírica. Essadisciplina é incapaz

de realizaruma análise crítica verdadeiramente radical, que exigiria clarificar quais são as condições gerais das relações entre subjetividade

e objetividade sem supor já preenchidas tais condições, isto é, sem supoi um domínio objetivo dado como ponto de partida da investigação

senvolvimento, há nas ciências um conteúdo teórico estabelecido e partilhado intersubjetivamente. Esse conteúdo tira o espaçodas ODl-

E

piões injustificadas e oferece um solo comum sobre o qual as discipli. nas avançam'. Por sua vez, no campo da filosofia, tudo parece sempre estar em discussão;não há conteúdos basilares partilhados por todos os

nãoé senãouma parte do mundo'. Por suavez, a fenomenologia pro

que exercema disciplina filosófica. Cada escolaou mesmo cada autor

ciênciaseriauma mera parte. O rigor fenomenológicoexclui da sua

apresenta tesespróprias, muitas vezes justificadas por critérios que não

análisetodo dado ingênuo no qual vigora acriticamente a objetividade transcendente,cuja possibilidade trata-se justamente de esclarecer:

são afeitos

pelos demaiss.

Dessa forma,

um dos pontos

centrais

expos-

a psicologia empírica supõe dado o mundo natural e assume inge-

nuamente a interpretação pré-científica segundo a qual a consciencia

põeuma crítica radical do conhecimento ao suspender a aceitação in-

gênuado mundo natural como um domínio existentedo qual a cons-

tos por Husserl no início de seu artigo é justamente a ausê7zcíade cíeit-

Deve-separtir, assim,dospuros fenómenos, livres de todo pressuposto

fí#cídade da /i/oso/ia. Porém isso não mais é tratado como um aspecto

nãoclarificado acerca da objetividade investigada. E essesfenómenos devemser descritos em suas características eidéticas, as quais devem ser

2. "A filosofia(. . .) representa a aspiração inalienável da humanidade ao conheci-

atestadasintuitivamente e não como meros conceitos vagos8

mentopuroe absoluto" (PSW.4)

3. "Eu não quero dizer que a filosoHla é uma ciência inacabada; eu digo pura e simplesmente que ela nã.oé ciência,.que. ela ainda não começou a ser ciência" (PSW, 4).

4. Nas ciênciasbem estabelecidas "existe um conteúdo a ser ensinado,que não p'J' de.crescer e de se rami6icar. ( . .) Aqui não há, de modo geral, espaço para 'opiniões', 'intuições'

e 'pontosdevista'privados"(PSW,4-5).

'

'

'

'

5. "Não é que a filosofia disporia de um corpo doutrinal inacabado e lagunar: ela simplesmente não dispõe de nenhum sistema.Tudo nela estásujeito à controvérsia

(PSW.5).

'

88

6. "Toda ciência da natureza é ingênua quanto ao seu ponto de partida. A natureza, que se almeja investigar, está simplesmente

aí" (PSW, 13)

7. Anuncia-se, assim, "uma crítica que põe em questãoao mesmo tempo a rota lidadeda experiência em geral e o pensamento em vigor nas ciências da experiência

lpsw, 14) 8. "Vê-se que a investigaçãodeve ser orientada para um conhecimento científico eidéticoda consciência,para aquilo que a consciência em todas as suasdiferentes for-

mações [Gesfa/hnge7z], conformea suaessência, 'é"' (PSW,15-16). 89

A cientificidade na fenomenologia de Husser]

A fenomenologia como ciência eidética e transcendental

Não vou explorar muito mais o texto A /í/osoPa como :iência h. morosa neste capítulos. Interessa, por ora, apenas acentuar artigo, de 191 1, Husser] apresenta as características

que

nesse

metodológicas da

fenomenologia tal como introduzida em ILTC como marcas cien. tificidade P/osó/íca:a reflexão crítica que suspendeos pressupostos vi. gentesna orientação natural e a análise dos dados evidentes em seus aspectos eidéticos. Essas duas características serão

expostas de modo

detalhado na obra Ideias para uwcz áenome7zo/ogla pura e uma filosofia $enomeno/ógíca l (ou simplesmente /delas l),

publicadaem 1913.Vou

reconstruir alguns momentos argumentativoscruciais dessetexto para a compreensãoda cientificidade atribuída por Husserl à fenomenolo. gia, expondo, dessamaneira, ao menos a figura geral que o projetofe. nomenológico assumenesseperíodo.

explicar o que são essênciase como se pode conhecê-las. Essassão lusas tarefas cumpridas pela primeira seção de Ideias 1, intitulada lamente "Essência e conhecimento

de essência".

E no primeiro

capítulo

dessa

seçãoque se esclarece como as ciências eidéticas são possíveis e de que modo elas exercem uma função fundante em relação àsdisciplinas empíricas Veremos que, quanto a esseponto, Husserl retomará preocupaçõesteóricas lançadas em Pro/egõmenos. Nessa obra, como vimos, tratava-sede formular o prometoda doutrina da ciência, isto é, da investi-

das estruturas teóricas mais gerais que atribuem cientificidade a

cação t.da empreitadaque merece o título de "científica". Esseprometode

investigaras estruturas portadoras da cientificidade é reelaborado de

maneirabastantesignificativano primeiro capítulo de Ideias1,principalmente nos parágrafos 7-10, os quais comentarei oportunamente.

A) A fenomenologia como ciência eidética Pólos e essências

Posição do problema

Passemosa acompanhar como Husserl introduz a distinção en-

Na introdução de ideias J, Husser]expõe as característicascientífi. cas gerais da fenomenologia ao compara-la com a psicologia. Essaúl.

uma é uma ciência de gaios,os quais sãotomados como eventosreais do mundo empírico. Por sua vez, a fenomenologia estudará os fenómenos em termos de essêrzcía e como inca/idades (Cf. Id 1,6). Assim.

tre fato e essênciapara então chegar à distinção entre ciências empíricase ciências eidéticas. Essasdistinções já estavam em operação em

ProZegõnzenos à /ógícapura, embora lá não tenham recebidouma exposiçãotão detalhada quanto aquela contida no início de Ideias 1. E vale

por um lado, os temas fenomenológicos deverão ser abordados em seus

notar que, mais do que simplesmente operar com essasdistinções, nesse livro Husserl as construirá paulatinamente, oferecendo, como veremos,

aspectos universais (eidéticos) e, por outro, deverão ser purificados de

argumentosconvincentes para sua aceitação. O seu ponto de partida é

todo caráter real, justamente para que possamser apreendidos como irrealidades. São então formuladas de maneira explícita as duas principais qualificações da investigação fenomenológica lá em operação ao menos desde 1906-1907: ciência eídétíca e transce7zdenfa/,as quais receberão uma elucidação detalhada no correr do livro

uma descrição sobre o modo como os conhecimentos empíricos são ha

bitualmente obtidos (Cf. Idl, S 1). Trata-se, assim, de partir de certos

procedimentosamplamente reconhecidos,de maneira a obter premissasbastante aceitáveis para a argumentação que se sucederá. Segundo

o autor, o conhecimento empírico ou natural tem como "horizonte to-

De in.ócio,pretendo analisar o caráter eidético da fenomenologia. Segundo Husser], essetema exige especificaçõesprévias à própria in-

tal de investigações possíveis" (Idl, p. 10) o mundo, entendido como totalidade do ser rea/. O modo intuitivo originário que legitima as teses de

trodução

basedo conhecimento natural é a experiênciasensível,a percepção''.

da disciplina

fenomenológica.

Trata-se da necessidade de

9. Voltarei a tratar desseartigo no último capítulo, ao abordar o problema da histó. ria para o prometofenomenológico 90

[O. Husser] já supõeaqui em vigor um princípio geralque seráformu]ado somente no parágrafo 24, a saber, que cada domínio temático prescreve por sua própria estrutura 91

A cientificidade na fenomenologiade Husser]

Assim, em relação ao mundo as teorias que explicam os seus ev. obtidos porexperiênciasensíve] objetos que podem ser domínio da natureza material

A fenomenologiacomo ciência eidética e transcendental ./

2 -- O reconhecimento dessacontingência não é contingente, massim admitido como uma característica geral de todos os fatos Í)

3 - A admissãodessanecessidadeestrutural dos fatos não se dá como um fato oá que não se trata aqui de algo contingente).

seres animados). O primeiro

4 -- A necessidade estrutural em questão aponta para caracte-

ficas, e o segundo, plinas específicas

rísticas que são essenciais aos fatos (por exemplo, a sua contingência)

(cf. Idl, l l). Em suma,asciências mundanose se baseiam. acercade tais fenómenos,na

5 -- Conclusão: deve-seentão reconhecer que o domínio dos fatos só se estabelececomo tal em correlação com o domínio da necessidadeeidética.

Husserltenta mostrar nesseargumento que o próprio entendi-

síve], por sua vez, oferece ridade sensível, ou seja, bafos. Dessa

mento do que são fatos extrapola o âmbito das características factuais

crição do conhecimento

paraum domínio de necessidadeeidética. Esseúltimo domínio é en-

rágrafode/delas1,ao

tãodesveladocomo aquele em que se reconhecem atributos gerais necessários, asessências,sem asquais nem mesmo seria possíveldiscrimi-

almejada: osÉafos,ou lizados no âmbito

nar os diferentes tipos de fatos. final,

partir da própria dará ao segundo termo da Aqui o caminho da

não só a contingência aparecerá

comocaracterísticaeidética dos fatos. Husserl defende que cada fato comporta vários atributos passíveis de apreensão geral, os quais justa-

mentepermitem reconhecê-lo como fato de tal espéciee não de outra

mento das teses do autor.

Considerem,por exemplo, um som qualquer. Por mais contingente

eidético como ponto de

queum som seja (quer dizer, por mais que ocorra em determinadas cir-

pretende defender

cunstâncias que poderiam ser outras), deve haver certas características

tégia é mostrar que na implicada a essência. proainteligibilidade factual. A

necessárias para que simplesmente seja reconhecido como som e não comocheiro, por exemplo. Um som particular porta, assim,os atribu-

nosegundo parágrafo deldeíasl

maisgenérica "dado sensível", e assim por diante (Cf. Idl, 13-14y:

tosda espécie "som em geral", a qual, por sua vez, se subsume à espécie

l -- Os fatos (tais como admitidos

são contingentes, ou seja, têm çoes espaçotemporais que poderiam ser

um modo de intull2.o privilegiado para legitimar o conhecimento que dele pode seral-

11. E importante acentuar, seguindo asformulações de D. Pradelle, que "as essênciasnão são representações comuns produzidas pela espontaneidade abstrativa do espírito, mas objetos que devem ser apreerzdídos pela intuição: seu conteúdo quiditivo e suaordem de especificação, longe de serem os produtos de um método de abstração, se

impõem de fora ao ato de intuição" (Pradelle, 2000, 101). As essênciassãotratadaspor Husserlcomo um tipo específico de objeto, ao qual corresponde um modo particular deintuição, como veremosa seguir

92 93

A cientificidade na fenomenologiade Husserl

A fenomenologia como ciência eidética e transcendental

l ,r')'} lp;. O que se propõe aqui é que as características eidéticas se em gêneros cada vez mais amplos, tema desenvolvido no de Ideias 1, intitulado "Gênero e espécie". Ali, essência (...) se insere numa escala eidética, numa escala lidade e de especialidade" (Idl, 31). Nessa escala, c,da vez

cende,chega-se a um gêneromaisabrangente,e o limite aquele do gêzzerosupremo, acima do qual não há mais E cada vez que se desce nessa escala se passa para as

mais determinadas e particularizadas; aqui, o limite das "singularidades eidéticas", abaixo das quais não há mais

eidéticas, mas somente indivíduos factuais::. Husserl afirma

,preendidocom evidência. E, após esseexercício, torna-se mais fácil investigartal intuição sem meramente impâ-la aosleitores: a intuição deessêncianão é senão a apreensão objetivante evidente dos atributos

eidéticosdosindivíduos''

sências mais gerais estão contidas nas mais particulares, no

Nesteponto é importante notar que Husserl supõe, por um lado, umanoçãoampla de objeto, que não se limita àquilo que é individual

estarem implicadas na própria compreensão daquele domínio de

masabrange tudo o que pode ser tema de predicações verdadeiras. Nesse

tos em questão (Cf. Idl, 3 1-32). Descarte, os fatos, ou as

individuais", implicam seupróprio modo de ser toda de essências por meio da qual eles são apreensíveis como caso

sentido amplo, as essências, isto é, os atributos gerais e necessários que

sesingularizam em indivíduos, são objetos. Por outro lado, Husserl estende a noção de írzMíção, a qual não deve ser identificada à experiên-

de um tipo e não de outro tipo qualquer. Assim, em fato, há não só uma essência isolada, mas todo um sistema

ciasensível.Intuição deve ser entendida como o modo de apreensão

ordenado hierarquicamente e imprescindível para a

doa "em carne e osso". A intuição oferece acesso evidente àquilo que é

quilo que talfato é.

privilegiadode um polo objetivo em questão,modo no qual essepolo se visado.Ora, essetipo de vivência se cumpre tanto em relaçãoa objetos

Após marcar a oposição entre fato e essênciai3,Husserl defende ha. ver, no parágrafo 3 de Ideias 1, um modo específico de apreensãoin.

sensíveis(o que exige a intuição sensível) quanto em relação às essências.Por conseguinte, desidentificam-se aqui doação originária, atesta-

tuitiva das essências, assim como há um modo específico de apreen-

são dos fatos (nesse último caso, modo que está na base do conheci-

çãoimediata de algum polo objetivo, e percepção sensível. O reconhecimento da essência como objeto nos deve levar a um conceito mais

mento natural, a saber, a experiência sensível). Trata-se da intuição de essênciasou ídeação. Longe de impor de forma dogmática a existência

vastode intuição, que atesta com evidência essetipo de ser. Conforme já

de uma tal intuição, o autor esperaque os leitores já a tenham exer-

sugeridono primeiro parágrafo de Ideias 1, cada domínio objetivo prescreve,dadasassuascaracterísticasesbuturais, um modo privilegiado de acesso.No casodas coisasmateriais, por exemplo, é a percepção sensível

12. Vale notar que a singularidade eidética é a "diferença última" (Idl, S 13, 33) dos atributos genéricos, tal como se manifesta em casosindividuais concretos. Deste modo, .as singularidades eidéticas marcam as propriedades do próprio indivíduo, tais como diretamente instanciadasnele, e não sãoainda explicitaçõesgeraisdessesatributos. Cabe justamente passaraos níveis superiores na escala eidética para que a attálise

eidética implique então um,caráter geral. De início, enquanto explicitação de slngula. ridades eidéticas, a orla/íse das essênciasrzão é ainda gerzera/ízanfe. 13. Para análises bem mais detalhadas acerca das relações entre fatos e essências. cf. p. ex., Snlith, 2007, cap. 4; Strõker, 1993, 70-83; Brainard, 2002, parte 2. 94

que as desvela com evidência, mas não é assim para os atributos gerais

necessários. Entretanto, sabemosque tais atributos são normalmente 14. Conforme

sugere Mohanty:

"as essências são dadas no pensamento, este sendo

oúnico modo pelo qual elas sãodadas. Husserl está então tratando o pensamento coma um modo de desvelamento, e não como um modo de construção ou análise (. . .). Nesse

sentido,o pensamentoé intuitivo, masnão em qualqueroutro sentido místico" (Mohanty, 1959, 222). 95

A cientificidade na Fenomenologia de Husser]

A fenomenologia como ciência eidética e transcendental

.} f;)'} l},;A

intuídos (Husserl conduziu os leitores a realizar a intuição eidética contingência dos fatos no parágrafo 2, característica sem a qual a

noção de fato perde seu sentido). Deve-sereconhecer, desde há um modo de intuição específico para asessências,modo nomeado "ideação" ou "intuição de essência".Assim, no

gumentativo de Ideiasl, lotagede assumirtal intuição como um posto, ela é primeiro exercida e só depois delimitada.

Ao propor a intuição de essências,Husserl antecipa já no parágrafo de Ideias l a crítica ao empirismo radical, elaborada no

gundo capítulo do livro (Cf. Idl, SS 19-20).Essetipo de empirismo l põe justamente a identificação entre intuição do conhecimento e experiênciasensível,com as todo conhecimento legítimo é derivado da que as ciências fundentes de todo saber são, por isso mesmo, as

das empíricas.Ao reconhecer que as essênciasse doam como e que a essesobjetos certos juízos verdadeiros correspondem,

recusa a identificação entre intuição doadora originária e sensível.Sem dúvida, o autor afirma que a intuição é a de legitimidade de todas as afirmações racionais" (Idl, S 19, 44), mas /zemsempred írzfuição é senshe/, uma vez que há objetos, tais como as essências,que prescrevem outros modos de atestaçãoevidente que não a doação perceptiva.

E exatamenteessaconclusãoque se transformano "princípio de todos os princípios", formulado no parágrafo24: "toda ntuição doadou originária é uma fonte de legitimação do wninnnniinl lnlB o que nosé oferecidooriginariamentena intuição (...) deveser simplesmente tomado tal como se dá, mas também nos limites dentro dos

quais se dá" (Idl, 52). Reconhece-seaqui que cada domínio de objetos: requer um modo específicode legitimação última para a produção do conhecimento. Essemodo é a intuição, a doação ev dente basilar do tema em questão. Importa notar que não há um único modo de intui-

ção legitimadora, mas tipos diferentes, conÃomzeas estruturas do domínio objetivo em vista. A intuição sensívelé apenasum modo entre outros, e não esgotao domínio de objetividades passíveisde ser estudadas racionalmente. Garante-se,dessemodo, a possibilidade de um 96

estudocientífico sobre as essências,de um estudo cuja intuição originária]egitimadora é a ideação, e não a percepção sensível.

'

Aqui vale a pena retornar ao parágrafo 3 de Ideias l para acentuar

um tÓPicode grande repercussão para a investigação das essências, a

h:=T ;s;;:,';==: ;:=ü=;=:==J==:::=: dosa ela. Husserladmite que o procedimento para a apreensãointuitiva eidética supõe partir de vários indivíduos

nos quais as essências

emquestãoestariam exemplificadas, para que, ao percorrer cognitivamentea série de indivíduos em questão, os aspectos invariantes estruturaissedeixem atestar de modo evidente (Cf. Idl, 15-16). Trata-se, nesse caso,de uma consequência da correlação entre fato e essência estabelecida no parágrafo 2. Todo fato, em relação aos seus atributos gerais,

implicauma hierarquia de essências.Assim, a intuição sensívelde individualidadescomporta a possibilidade de efetuar a intuição eidética

De modo correspondente,toda intuição eidétíca abre a possibilidade de uma consciência de exemplos singulares da essência em questão

Contudo,nessasrelaçõesentre consciênciade fato e consciênciade essência, não há nenhuma necessidadede pâr algo individual como existente. Afinal, por um lado, as essênciasnão são como fatos,não são entesreais submetidos a determinações contingentes's; por outro lado,

dasessências não cabederivar a posiçãode nenhum fato real a elas ligado. Obviamente é possível passar de fatos reais do mundo empírico às essências portadoras dos atributos necessários desses fatos; nesse

caso,há exemplos reais ligados às essências.No entanto essaligação não é necessáHa,pois é perfeitamente possível intuir essências mesmo

partindo de eventos ou entes que não existem como fatos reais empíricos,tal como Husserl comenta no parágrafo 4 de ideias l Essa será, na verdade, a base do método de ideação apresentada

nessaobra. Husserl sugere que se imaginem exemplos factuais para então buscar os aspectos eidéticos instanciados nessas imaginações.

15. Por isso Husserl nega veementemente ter se filiado ao realismo metafísico no que concerne às essências. Afinal, conforme exposto no parágrafo 22, as essências não

sãoentes reais; elas têm outro modo de ser, o das idealidades atemporais 97

A cientificidade na fenomenologiade Husser]

A fenomenologia como ciência eidética e transcendental

intuídos (Husserl conduziu os leitores a realizar a intuição eidéticada

contingência dos fatos no parágrafo 2, característica sem a

quala própria

noção de fato perde seu sentido). Deve-se reconhece. desdeentão que há um modo de intuição específico para as essências, modo que é então nomeado "ideação" ou "intuição de essência". Assim. no movimento ar.

gumentativo de Idem(zs l, longe de assumir tal ntuição posto, ela é primeiro exercida e só depois delimitada

como

um pressa.

Ao propor a intuição de essências,Husserl antecipa já no terceiro parágrafo de Ideias l a crítica ao empirismo radical, elaborada no se. fundo capítulo do ]ivro (Cf. ]d], SS ]9-20). Esse tipo de empirismo prch

põe justamente a identificação entre intuição originária legitimados; do conhecimento e experiência sensível, com as

consequênciasde que

todo conhecimento legítimo é derivado da experiência sensível, e de que as ciências fundantes de todo saber são, por isso mesmo. as ciên. clãs empíricas. Ao reconhecer que as essênciasse doam como objetos

e que a essesobjetos certos Juízosverdadeiroscorrespondem, Husserl recusaa identificação entre intuição doadora originária e experiência sensível. Sem dúvida, o autor afirma que a intuição é a "fonte última de legitimidade de todas as afirmações racionais" (Idl, S19.44) nem semprea ílzfuÍção é sensúe/, uma vez que há objetos, tais como as essências,que prescrevem outros modos de atestaçãoevidente que não a doação perceptiva E exatamente essaconclusão que se transforma no "princípio de

todos os princípios", formulado no parágrafo24: "toda intuição doadora originária é uma fonte de legitimação do conhecimento,tudo o que nos é oferecido originariamente na intuição (...) deve ser simplesmentetomado tal como se dá, mastambém nos limites dentro dos quais se dá" (Idl, 52). Reconhece-se aqui que cada domínio de objetos requer um modo específico de legitimação última para a produção do

conhecimento. Essemodo é a intuição, a doação evidente basilar do tema em questão.Importa notar que não há um único modo de intuição legitimadora, mas tipos diferentes, colzÉomze as estruturasdo domínio objetivo em vista. A intuição sensívelé apenasum modo entre outros, e não esgotao domínio de objetividades passíveisde ser estudadasracionalmente. Garante-se,dessemodo, a possibilidade de um 96

estudocientífico sobre as essências,de um estudo cuja intuição originárialegitimadora é a ideação, e não a percepção sensível. Aqui vale a pena retornar ao parágrafo 3 de Ideias l para acentuar um tÓPico de grande repercussão para a investigação das essências, a

Vber,que a posição da essênciacomo objeto ou tema ludicativo não implica a posição da existência de indivíduos contingentes subsumi-

dosa ela. Husserladmite que o procedimento para a apreensãointuitiva eidética supõe partir de vários indivíduos

nos quais as essências

em questãoestariam exemplificadas, para que, ao percorrer cognitivamente a série de indivíduos em questão, os aspectos invariantes estruturaisse deixem atestar de modo evidente (Cf. Idl, 15-16). Trata-se, nesse

caso,de uma consequência da correlação entre fato e essência estabelecida no parágrafo .2. Todo fato, em relação aos seus atributos gerais,

implica uma hierarquia de essências.Assim, a intuição sensívelde individualidadescomporta a possibilidade de efetuar a intuição eidética

De modo correspondente,toda intuição eidética abre a possibilidade de uma consciência de exemplos singulares da essência em questão Contudo, nessasrelações entre consciência de fato e consciência de

essência, não há neTlhumanecessidadede pâr algo individual como exÍsterzte. final, por um lado, as essênciasnão são como fatos, não são entesreais submetidos a determinações contingentes:s; por outro lado,

dasessênciasnão cabe derivar a posição de nenhum fato real a elas ligado. Obviamente é possível passar de fatos reais do mundo empírico às essências portadoras dos atributos necessários desses fatos; nesse

caso,há exemplos reais ligados às essências. No entanto essaligação rzãoé necessária, pois é perfeitamente possível intuir essências mesmo partindo de eventos ou entes que não existem como fatos reais empíri-

cos,tal como Husserl comenta no parágrafo 4 de Ideias l Essaserá, na verdade, a base do método de ideação apresentada

nessaobra. Husserl sugere que se ímagírzemexemplos factuais para entãobuscar os aspectoseidéticos instanciados nessasimaginações 15. Por isso Husserl nega veementemente ter se filiado ao realismo metafísico no que concerne às essências. Afinal, conforme exposto no parágrafo 22, as essências não

sãoentes reais; elas têm outro modo de ser, o das idealidades atemporais 97

A cientificidade

na fenomenologia de Husserl

A fenomenologia como ciência eidética e transcendental

.} #>} 1;,'õ.

Trata-sede um procedimentode explicitaçãode essênciasque nada

eidéticas.Começará .a surgir aqui ao menos parte da especificidade

deve aos fatos existentes no mundo empírico, uma vez que se em intuições não empíricas, isto é, na exibição de objetos ou Situações

daciênciafenomenológica, apresentadapor Husserl como eidética e transcendental.E no parágrafo7 de Ideias l que a distinção paralela

que não sãoexistentesno mundo real. Seria possível,assim,apreender as essências com base em dados individuais ímczgírzados,o que deixa

eo pauta é introduzida. Ali, nota-se que fatos e essênciassão investigadospor respectivasciências específicas, ou seja, por ciências de fa-

claro que a intuição de essênciasnão estáinvariavelmente ligada à

tos(asquais já foram mencionadas no S 1) e por ciências eidéticas.

sição de fatos reaisn. Muito mais à frente em Ideias J, no parágrafo

Em relaçãoa esseúltimo tipo, Husserl oferece alguns exemplos historicamenteconsagrados:lógica pura, geometria pura, matemática pura.

Husserl considera que a fenomenologia e outras ciências eidéticas

como a geometria, devem favorecer a imaginação na obtenção de da. dos individuais de base sobre os quais se buscam as essências. Por meio

Aindanesseparágrafo,o autor propõe que as relaçõesentre fato e essênciafundam relaçõescorrespondentesentre ciências de fato e ciên-

da imaginação, o investigadortem a "liberdade inigualável de reconfi.

ciasde essência. Por um lado, um pesquisador deve considerar diversos

gurar como quiser"(Idl,

162) tais dados, impoíldo-lhes sucessivasmoda.

exemplares factuais como ponto de partida para atingir uma essência

ficações imaginárias e, assim, facilitando a apreensão daquilo que é ín.

Parademonstrar um teorema, por exemplo, um geâmetra pode dese-

vczHante nos fenómenos em questãoe que compõe o domínio dos atri-

nharfiguras em uma lousa ou meramente imaginar que faz isso. Em

butos eidéticos. Husserl chega mesmo a dizer que "a 'ficção' constitui o

todo caso, não é a apreensão desses indivíduos reais ou imaginários o cerne do conhecimento das puras relações espaciais em questão; os fa-

elemento vital da fenomenologia" (Idl, 163), atribuindo um alto valor epistêmico à imaginação na construção do conhecimento eidéticoi7.

tosestãoali como suPo#e para que se atinja a cztestaçãointuitiva da essêncícz, e somente por meio dessaúltima estabelece-se o conhecimento eidético, de va/idade necessáHae uníverscz/.Por outro lado, assim como

Ciências factuais e ciências eidéticas

aessêncianão implica a existência efetiva de indivíduos factuais,o co-

Cumpre agora explorar de que maneira a distinção entre fato e es-

nhecimentoproduzido por uma ciência eidética se limita ao campo

sência dá ocasião à distinção paralela entre ciências factuais e ciências

dasobjetividades eidéticas, e dele não cabe inferir a existência de fatos queexemplifiquem as essênciasem questão. Husserl explora com mais detalhes as relações entre ciências factuais e ciências eidéticas no parágrafo 8 de Ideias 1. Ali, acentua-se a

16. Essa concepção

metodológica

já vigora

em Invesfígações

/ógicczs. Em ProZegó-

menos, ao recusar a redução psicologista das leis lógicas a fatos mentais, Husserl afirma o seguinte: "a apreensão intuitiva da lei pode, psicologicamente, requerer dois passos:a visada de particularidades da intuição e a intelecção legal a ela referida. Logicamente. porém, há um só. O conteúdo da intelecção não é consequência do particular" (P, S 24. 86). Desse modo, a apreensão do princípio geral deve partir de casosparticulares; no en-

tanto, issonão quer dizer que tal princípio se)aproduzido por esseseventosparticulares osquais, de Fato,nada sãosenão instâi] das que justamente permitem reconhecer a idea-

lidade de que sãoexemplos. Quanto a tomar casosimaginados de partida, isso não era enfatizado de modo tão veemente quanto em Ideias r, embora Husserl já reconhecesse que "a consciência da generalidade se constrói tanto sobre o fundamento da percepção

quanto da imaginação conforme" (LU2, VI, $ 52, 691). Parauma análise detalhadada intuição eidética em Investigações/ógfcas, cf. Lohmar, 2001

17. Acerca da centralidade da imaginação para a reflexão eidética fenomenológica, cf. Mohanty, 1991; Elliott, 2005, parte l 98

princípio a independência das últimas em relação às primeiras. As ciênciaseidéticas não contêm resultados teóricos obtidos pelas ciências em-

píricasfactuais, já que essas,como já vimos, têm como modo de intuiçãolegitimador último a constatação da realidade sensível, enquanto o conhecimento eidético é um conhecimento purificado do lastro empírico (de maneira que, como também já se mencionou, dele não cabe extrair a existência de indivíduos factuais). Em seguida, Husserl acentuaa depe7zdêrzcía das ciências factuais em relação àsciências eidéticas

Trata-sesimplesmente de reconhecer que nenhuma investigaçãofactual pode prescindir dos conhecimentos 99

eidéticos formais e materiais,

A cientificidade

na fenomenologia de Husser]

e isso porque, ao efetuar juízos sobre o seu domínio objetivo, toda ciên.

cia empírica deve se submeter, em primeiro lugar, aos pnncípjos far. mais que regem as possibilidades de estabelecer juízos verdadeirose encadeamentos argumentativos válidos acerca de qualquer domíni. objetivo em geral. Em segundolugar, os conhecimentos empíricos de. vem se submeter às determinações materiais que delimitam as possa.

bilidades factuais do domínio objetivo específico que está sendo estu. dado. Os conhecimentos empíricos supõem, dessamaneira, ao menos dois t;Pos de conhecimentos eidéticos: os purczmenfeÓomaís, referentes

às possibilidades de enunciação significativa de juízos, e os referentes

à estmfura mczfería/do domínio a ser investigado.Começa a reaparecer aqui o problema das condições objetivas que operam como pres. supostospara o conhecimento, problema cujo desenvolvimento em Pro/egõmenose em ILTC foi retraçado no capítulo anterior Íamos

comoo temafoi articuladoem 1913.

A fenomenologia como ciência eidética e transcendental

características desideais .ealízadas

essenciais desse domínio

e a explicitação

das possibilida-

de concatenação de fenómenos no seu interior deveriam ser

por uma disciplina eidética específica,a antologia da natu-

Essa disciplina investigada os "estados-de-essência" crevem mente

que circuns-

as possibilidadesmais gerais no interior das quais o conheciempírico da natureza real pode ser produzidoi8.

Em seguida, no parágrafo 10, é apresentado o conhecimento eidéligo formal, que também é um pressupostoteórico para o saberemPÍíico

Trata-se aqui do conhecimento

acerca das significações e dos

anca deamentos argumentativos

mais básicos, os quais tornam possível uma investigação coerente e válida se instaure sobre qualquer doque mínio Husserlnomeia oito/ogía coma/ o estudo das categoriasgerais que nâlD

delimitam até mesmo a própria ideia de região ontológica e torpossívelo reconhecimento de seuscomponentes.A ontologia for-

mal investiga as formas gerais de significação por meio das quais é pos-

Nos parágrafos 9 e 10 de Ideias J, essadistinção entre Áomza/e ma.

sívelteorizar acerca de qualquer domínio material. Nesse sentido, a

leda/ em vigor no seio do domínio eidético é elucidada. De início, no parágrafo9, o tema desenvolvidoé o do conhecimento eidético meteria/. Já vimos que os indivíduos factuais portam atributos partilháveis.

antologiaformal não estáno mesmo nível que as antologias materiais,

apreensíveis como características eidéticas daquele tipo factual. Os in.

ascategoriasgerais que permitem tomar qualquer tema concebível

divíduos implicam essências, e essasestão organizadas em níveis de ge-

ou simplesmente uma região ozzfo/ógíca.Há, assim,tipos de ser dife-

comoobjeto de análise'9 Com a consideração de que as ciências empíricas pressupõem conhecimentos eidéticos materiais e formais e de que mesmo as onto-

rentes conforme a extensão dos gêneros eidéticos supremos. Segunda

logiasmateriais supõem a oncologia formal, Husserl reformula o seu

Husserl, há ou deveria haver disciplinas ontológicas regionais, isto é, ciências eidéticas que tratariam justamente dos atributos essenciaise

ideal de douüílza da cíêízcía, quer dizer, de explicitação sistemática

neralidade

cujo último

termo da escala é um género supremo mczfedal.

das suasrelaçõesque compõem uma determinada região. Tais disciplinas ontológicas regionais são disciplinas puras, ou sela, não dependem de nenhum conhecimento empírico e nem implicam a posição de existência de indivíduos factuais. Elas são HinllHnienl:neruiíl fo/ogías maferíaís, pois tematizam as relações entre as essências de um

determinado domínio. Como exemplo, Husserlparte dasciênciasempíricas da natureza (química, física etc.): todas elas investigam a natureza física, ou seja, todas pretendem estabelecer conhecimento no interior de um certo domínio objetivo; mas justamente a delimitação das 100

massubordina todas essas,já que elas pressupõem tanto asformas lógicasde significação por meio das quais seu discurso faz sentido quanto

dasestruturas teóricas que permitem a obtenção de conhecimento 18. "Dessa maneira, por exemplo, a todas as disciplinas da ciência natural corres-

pondea ciência eidética da natureza física em geral (a anta/agia da lza reza), se à natureza factual corresponde um eídos apreensível de maneira pura, a 'essência' 7zdtureza

emger.z/"(Idl, 24). Há vários comentários que detalham a noção de antologia material naobra de Husserl. Cf. p. ex., Schuhmann, 1990; Kockelmans, 1994, em particular, cap.2 19. Cabe à antologia formal deülnir "os conceitos fundamentais inerentes à essência da proposição", ou seja, as signiHlcaçõese os encadeamentos lógicos mais básicos, e

também"a essêncialógica do objeto em geral", quer dizer, as determinaçõesideaisque delimitam o "ser algo em geral" (Idl, 28) 101

A cientificidade lla fenomenologia de Husserl

A fenomenologiacomo ciência eidética e transcendental

,r';}&,i

legítimo nas mais diversasdisciplinas científicas. Vimos, no capítulo, que cabia inicialmente à /ógícczpura essatarefa de as categoriasde significação e suas correlativas categorias de objeto tal nível de generalidade formal que então se comporia uma teoria conexões teóricas válidas possíveis, as quais seriam passíveis de ser ]izadas em quaisquer disciplinas. Dessa maneira, a lógica pura

zaria os fundamentos teóricos que são condições objetivas por todas as ciências,

embora

não sejam

clarificadas

tos

eidéticos dos domínios a se investigar. E justamente essetema

de um conhecimento d priori dos domínios materiais que o tema das ontológicas materiais e, correspondentemente, das ontologias regiões materiais leva à maturação em Ideias l. Husserl reconhece nesse livro que as ciências factuais não dependem somente dos pressupostos teórico-formais

para se estabelecer, mas

F,mbém devem respeitar as características ãetimdoras da região ma-

por essas

(o que alimentava o estado de impeúeição teórica em que todas elas:

encontravam). E justamente essaideia de uma fundamentação do sa. ber científico pela elucidação dos pressupostosteóricos nelas operantes que Husserl retoma nos parágrafos iniciais de Ideias 1.No parágrafo lO

terial a que se referem. Os alicerces teóricos das ciências particulares nãose esgotam, assim, nas categorias lógico-formais, pois a delimitaÇão

daspossibilidadeseidéticas válidas para a região a ser investigada

.íentificamente também figura como condição objetivo paratais ciências.E essadelimitação passa a ser a tarefa das orzto/ogías materiais ou

ele explicitamente identifica a oncologiaformal e a lógica pura no

regionais disciplinas científicas puras que devem discernir as possibi-

tido de doutrina

cidades

geral da ciência:'.

Fica então claro que para as ciências

empíricas estabelecerem-secomo plenamente racionais, de modo que cada novo passocognitivo remexa com clareza aos seus fundamentos

ideais que circunscrevem a priori as características definidoras dosdiferentes tipos de fatos estudados pelas ciências empíricas. Desse

bem estabelecidos, deve haver o desenvolvimento da ontologia formal

modo, o problema da fundamentação dos pressupostos teóricos obje uivosdas ciências não se reduz a uma explicitação de categorias for-

já que justamente será ela a doutrina dos componentes teóricos maisl

mais, mas também exige uma análise de categorias materiais e possibi-

básicos em ação em qualquer empreitada científicazi.

lidadesideais que ali se esboçam em virtude das articulações eidéticas

Mas a ideia de fundamentação das disciplinas científicas por uma doutrina da ciência ganha complexidade em Ideias l em comparação com Pro/egõmerzos, e isso por meio

do desenvolvimento

da algumas

daregiãoem questão,possibilidadesque não sãomerasparticularizaiões de verdades formais válidas para quaisquer regioes, mas que estão justamente ligadas às especificidades eidéticas de cada tipo de ser

noçõesjá presentesem ll.TC. Vimos que nessetexto Husserljá avalia que a fundamentação formal não esgotaa explicitação das condiçõesobjetivas do conhecimento, em particular no que tange às ciên-

em questão. Por exemplo, um estudo científico empírico de certos fa-

cias empíricas. Essasciências devem respeitar, além das leis formais de encadeamentos teóricos, as características específicas do domínio ob-

essenciais que permitem reconhecer os fatos em questãocomo sendo

jetivo estudado. Husserl esboçava então ao lado da lógica pura uma /ó-

um fato da natureza física). Assim, para estudar corretamente fatos psi-

gícczrea/, que deveria explicitar as restrições d /)ríorí materiais a que as

cológicos, supõe-se que se saiba distinguir quais são os aspectos gerais que demarcam essesfatos de outros (de fatos biológicos ou físicos), de

ciências empíricas estariam submetidas, isto é, restrições referentes aos

tospsicológicos deve ser capaz, além de formular corretamente encadeamentosproposicionais em teorias válidas, de respeitar os aspectos

do tipo estudado,e não de outro tipo qualquer (como, por exemplo,

forma a evitar confusõesde domínio. Deve haver então uma ciência 20. "Se partimos da antologia formal (sempre como lógica pura em toda a suaextensão até a mathesis uníversa/ís), ela é, como sabemos, ciência eidética do objeto em geral" (Idl, 27)

2 1. Há também muitos comentários que discutem a noção de antologia formal na obra de Husser]. Cf., por exemplo, Crosson, 1962; Poli, 1993. 102

'

purada consciência, uma ontologia material que explicite as possibilidadesideais dellmitadoras daquilo que pode serreconhecido em geral como um fato psicológico. Essa ontologia da consciência esclarece um tipo especial de fundamento (a saber, as restrições d priori materiais) 103

A cientiflcidade na fenomenologiade Husser]

A fenorneno[ogia como ciência eidética e transcelidenta]

pressuposto por qualquer investigação

o caso em Ideias 1; não se trata, após descrever a versão am-

Muitas vezes, ocorre que, sem a devida mentor a príon materiais, as fundir fatos que pertencem

doutrina da ciência, de recorrer à fenomenologia como seu subjetivo. Afinal de contas, a fenomenologia já foi defi-

a

uma ciência eidética, de modo que e/a tomará Pcz#enessa

indireto, em tratar característicaseideticamente um denominador comum

de conhecimentos eidéticos af)rebentada pelo primeiro caPí-

/furo.Embora Husserl não a localize explicitamente ali, a feno não seráexterior a tal armadura eidética. Cabe então per-

turalismo comete ao pretender da natureza: ignora-se, desse modo, limitam os fatos de consciência

que tipo de ciêílcia eidética é a fenomenologia [ugar, qual a relaçãoentre ela e essaestrutura d /)HoHdas

próprio, com características

eidéticas,estrutura que, como Husserl acentua, foi explicitada

eidético natureza2z

com base na lógica pura, sem nada dever a análises fenomeno-

Cabe notar que todas essas

considerações sobre as ciências eidé. ricas, Husserl alega fazê-las do ponto de vista da oncologia formal. E

o que fica claro no parágrafo 17, que encerra o primeiro capítujo de Ideias 1. Ali Husserl assevera que as principais distin ções veiculadas nesse capítulo foram obtidas "no solo da lógicapura"

Idl, 39), querdi-

zer, sem se limitar a nenhuma região ontológica particular mas expji. citando ao menos o esquema geraldascondi

iões

objetivas

mais

básicas

que fundamentam todo conhecimento possível. Desse esquema, deve então fazer parte uma distinção de regioes o ntológicas conforme os gêneros eidéticos supremos, já que a perfeita fundamen ração das ciênciasfactuaissupõe o desenvolvimento das ontologias materiais por elas pressupostas.

Essamençãoao solo da lógica pura é importante, pois esclarece que até o parágrafo 17 nada ainda de específico foi estabelecido em re. lação à fenomenologia23 Aparentemente, o movimento argumentativo é similar àquele de Pro/egómenos,segundo o qu a] se expôs promeiro

as condições objetivas do conhecimento

(tema qu e deveria ser tratado

pela lógica pura sem nada pressuporda fenomenologia) para, em secuida, anunciar a fenomenologia conlo o complemento filosófico da estrutura teórico-formal investigada pela lógica pura. No entanto, não 22. Essa crítica já aparece em A Ó/oso/ia como ciência rigorosa (Cf PSW 2 ]-24\ L)arei destaque a esse tema no próximo capítulo.

- ' ' ' ' ' ' -'

os" (Idl, 39).ção à fenomenologia, diz 'Husserl no parágrafo 17 que "ainda nada sa 104

e uma ciência com a]gum papel no interior dessaestrutura a priori dos sabeeidéticos,então ela parece ser fundada pela antologia formal, que o material lógico-conceptual para todas as antologias particulares.Ora, para avaliar exatamente o papel da oncologia formal em relaÇão à fenomenologia, será preciso desenvolver a segunda característica atribuída por Husserl à ciência fenomenológica,

a saber, o caráter tra?zsceizderztaJ. Ficará então claro que a fenomenologia não é somente mais

uma ciência eidética ordenada segundo os parâmetros universalmente

válidosda antologia formal, mas que ela realiza uma tarefa fundente emrelaçãoa todas as ontologias, inclusive em relação àquela formal. Entretanto, antes de tratar desse caráter transcendental da fenomenologia,ainda há muito a elucidar a respeito do seu aspecto eidético.

O problema de uma eidética material desci'itiva

Jána introdução de Ideíczs1,o âmbito da fenomenologia é circunscrito como aquele da consciência, ou seja, das vivências subjetivas Essaé a região a ser cientificamente investigada pela fenomenologia em seusaspectos eídétícos. Husserl esboça as suas primeiras análises das

características essenciais da região ontológica consciência nos parágrafos 34-39 de seu livro. Essa análise inicial visa delimitar minimamente

o campo de estudosfenomeno1(5gicos,mas ainda sem assumir a orientação específica na qual a fenomenologia deve ser exercida, a saber, a 105

A cientificidade na fenomenologiade Husserl

A fenomena[ogia como ciência eidética e transcendental

orientação transcendental:'. Retomo, de maneira muito sucinta, asCa. racterísticas essenciaisda consciência enumeradas nessaspáginas.Ela

é um fluxo de vivências,cada uma sendo um ato subjetivo com suas característicaspróprias, porém entrelaçadasna unidade da experiên. cia consciente (Cf. S 34). Cada vivência atua] está como que circuD.

dada por vivências inatuais, implícitas, e potencialmente passíveisde se

tornar consciência explícita (Cf. S 35). No entanto, atuais ou

natuais,

Eazparte da essênciadas vivências conscientes, nas suasmais diferentes modalidades, serem vivências í7zferzcíonaís, ou seja, que estão sempre voltadas para algo, que visam algo (Cf. S 36):s.Além disso,embora a vi-

vência intencional normalmente não estejavoltada para si mesma pa'a seu objeto, toda vivência consciente pode se tornar objeto de uma reflexão, isto é, de uma vivência que se volta para outras vivências e as toma por objeto (Cf. S 38). Essessão ao menos alguns dos resultados da delimitação do âmbito

eidético da consciência. E importante notar que essesresultadossão descritivos, ou seja, pretensamente baseados em intuições evidentes, e

não, por exemplo, extraídos dedutivamente de certos axiomas. No parágrafo 65 de Ideias 1, Husserl expõe rapidamente o funcionamento da descrição fenomenológica. A fenomenologia tem de pâr diante dos olhos, exemplarmente, puros eventos de bons.

por aquilo que loi intuído ou visto com evidência em sua generalidade (Idl, 153) Trata-se, assim, de levar à clareza intuitiva

os aspectos essenciais da

consciência e de descrevê-los de um modo conceitualmente fiel ao que

foi apreendido com evidência. A fenomenologia se apresenta, dessa ..anRClla

como uma ciência eidética material descritiva,uma caracte-

rísticaque não é óbvia, como veremos a seguir. Husserl propõe uma problematização acerca do caráter descritivo

dafenomenologia nos parágrafos71-75 de Ideias 1. A tarefa central desse trecho é garantir a possibilidade de uma ciência eidética material puramente descritiva. Ocorre que, historicamente, as únicas discipIlHaseidéticas desenvolvidas são disciplinas matemáticas quenaosao construíd as por descrição, o que sugere que as ciências eidétícas mate. dais possíveis são sempre disciplinas exatas. Se assim fosse, a investiga

çãoeidética da consciência deveria então resultar em uma matemática dosfenómenos, o que não será o caso.

A fim de garantir a possibilidade de uma eidética material puramentedescritiva, Husserl inicialmente expõe uma distinção no interior dasdisciplinas eidéticas exatas (Cf. ]d], S 72-73). AÍ também é possível

encontrardisciplinas formais e materiais. As disciplinas puramente for-

maiscompõem a oncologiaformal, e tratam, como já vimos, dascon-

clareza, analisa-los e apreender intuitivamente a sua essência,tem de

diçõeslógicas e ontológicas que fornecem a base teórica para o conhecimento em qualquer área. Obviamente não há possibilidade de con-

perseguir os nexoseidéticos evidentes,formular o intuído em expressõesconceituais fiéis, cujo sentido só pode ser prescrito puramente

fundira fenomenologiacom essetipo de disciplina excita,já que ela pretendeser ciência eidética de uma região específica,a da consciên-

ciência,

tem

de trazê-los

à clareza

mais

completa,

para,

dentro

dessa

ciapura. No entanto, Husserl nota que há disciplinas exatasmcztedaís, 24. P. Ricoeur já notavana introdução à sua tradução de Ideias / que há uma torção na exposição husserliana: a redução fenomenológica é apresentada nos parágrafos

3 1 e. 32; porém na descrição eidética da consciência elaborada a partir do parágrafo 34 ela não é pressuposta,o que indica que se trata ali de um exercício ontológico realizado na orientação natural (cf. Ricoeur, 1950, xv-xvi). Veremos no correr do capítulo como as vertentes eidética e transcendental da fenomenologia serão unidas por usser

25. Vale notar que há componentes dasvivências intencionais que sãonão intencionais, tais como as sensações.Esseconteúdo não intencional é justamente animado pelo ato subjetivo, que Ihe atribui então direcionalidade intencional, tornando-o conteúdo acerca de algo. Cf. Idl, $ 85. 106

ou seja, cujas teses são limitadas

a uma região específica e valem con-

forme restrições a f)dorí regionais, não tendo, assim, o caráter puramenteformal que implica a validade para qualquer esfera eidética possível. Esseserá o caso da geomeüía, ciência cujos enunciados tratam

dasrelaçõesespaciaispuras. Ora, o que vale para tais relaçõesnão se aplica necessariamente a todos os domínios objetivos concebíveis, de

maneiraque o conhecimento geométrico não é puramente formal, e simrestrito a um domínio ontológico específico. E então em relação à geometria que se põe de modo específico o problema da possibilidade 10

A

icidade na fenomenolog a de Husser]

A fenomenologiacomo ciência eidética e transcendental 4

da fenomenologia como ciência

dizer da geometria' Ela é ciência eidética das puras formas es\lasque e de suasrelações. Ora, as formas espaciais são essências czbsüadais Pa ndentes de outras essênciasna composição de um todo con

eidética material já mesmo ser tomada como o modelo seu alto grau de desenvolvimento

üs, depe

de diversostipos de saber se a

creto.As

formas espaciaisgeométricas são momentos ou propriedades de todos concretos consideradas isoladamente. Daí que a geometria

da consciência, deve Husserl inicia, no

seja

urnaciênciaabstrata,em contraposiçãocom a ciência fenomeno-

lógica culo tema é um concreto, a consciência

Jade dessa última. Para tanto. o mentados inicialmente no noções de concreto e

Cabeobservarque essadistinção não é decisiva, uma vez que, para avançam sistematicamente, a fenomenologia cinde metodologicamente consciênciaem subdomínios abstratos, que são então investigados de maneirarelativamente autónoma. A consciência como uma fofa/idade

cia e dependência.Se um objeto ou

deexperiências desenroladasem um fluxo contínuo não é passívelde

impensável sem referência a outro relação de dependência entre

vivências "/amais é algo dado ou a ser dado por um único olhar puro

ção entre geometria e

descriçãoexaustiva, já que, como admite Husserl, o nexo entre todas as

siderado por si só como um

jldl, S 83, 201). Enquanto totalidade de experiênciasvividasem um

todo maior do qual faz de algum todo mais um concreto. Husserl abstrato não somente Assim, as essências tem a outras essências abstratas;e as as ciências são classificadas

fluxo, a consciência não é apreensível como um objeto singular. A fenomenologia íso/a algumas vivências e busca seus componentes eidé-

ticosestáticos,seus diferentes estratos de ordenação etc. Contudo, é metodologicamente inviável oferecer uma descrição que esgote a topara as essências.

de 72.

neros supremos a que elas se dedicam creias ou gêneros de essências,bstratas essênciasdependentes Aqui já vai aparecer nologia. A plina eidética

talidade concreta da consciência. Na verdade, essa totalidade opera

comouma ideia rega/adora para o progressoda fenomenologia, que deveentão almejar uma descrição abrangente da consciência, ainda que isso exigisse esforços intermináveis.

Seja como for, as descrições

os gê-

eáetívas fornecidas pela fenomenologia são de alguns nexos de vivên

essênciascon-

clãs,os quais formam unidades destacáveis do fluxo total da consciên

de

cia.Tomadas por si sós, as vivências são todos dos quais se pode expli citar aspectos abstratos, mas, em sentido amplo, as vivências são elas

mesmasmomentos abstratosde um todo concreto mais amplo, a saber,a consciência como totalidade de uma vida desenrolado temporalmentez7.Dessa maneira, a distinção entre fenomenologia e geometria

consciência pura,a qual é por si mesmo, independentemente de

enquantodistinção entre uma ciência concreta e uma ciência abstrata regiões ontológicas26.

com detalhe ai Coalciencia se)aindependente do mundo é um tema ao qual eu voltarei

é aqui somente relativa. 27. Daí Husserl afirmar que "nenhuma vivência concreta pode ser considerada como algo independente em sentido pleno" (Idl, 202)

108 109

A cientificidad

e na fenomenologia de Husser]

A fenomenologia como ciência eidética e transcendental

Entretanto, há uma é justamente a exatidãodas essênciasdo domínio Há essênciasque, dada a sua própria configuração estru-

nologia, referente ao modo de questão. Eu já me referi a ela ao modo exczfoenquanto a

um tratamento conceptual exala, passível de inclusão

tender de modo mais lógica entre ambas. Na

num sistema axiomática-dedutivo. Esseé o caso dasforabstratastratadaspela geometria. Mas há essênciasque

grato 72, não se trata de

própria estrutura, se apresentam de maneira /puída, de modo

a sua expressãoconceptual envolve um inescapávelcoeficiente

possíveis levando-as a

São as essêrzcíasírzexatas, que não se prestam a um trata-

de classificação morfológica. A ções espaciais básicas

dedutivo, uma vez que o seu domínio de extensãonão é total-

base nos quais deriva

predeterminável

por derivação dedutiva com base em poucos julga Husserl no parágrafo /l), das essencias

síveis, além de esclarecer suas propriedades quais, muitas vezes, nem são

referentes à consciência.Cada vivência se insere num buxo, no qual

compreendidas

trãBSCorre com graus maiores ou menores de indeterminação no que

corretamente o sistema axiomático de

tangeà clareza,à intensidade,à duração. Seria ignorar a própria estru-

completamente o domínio das claramente não é esse o

Hra fluida das vivências se se forçasse aqui uma abordagem exala:ç. E

entãopor 7zecessidade de essêlzcíaque a fenomenologia deve ser uma ciênciaeidética descritiva e não uma eidética material excitatal como ageometria.A inexatidão e a vagueza inerentes à apreensãoeidética

de tomar alguns p'os axiomáticos dos quais se derivariam

intuitiva da consciência exigem um tratamento não axiomático-dedu-

vivências possíveis e suas busca,

na verdade, uma

evz-

derzfes a serem fixadas

feri.

var consequências das quais, muitas apreensãointuitiva, mas de oferecer

se tem uma regu-

fada pela intuição eidética.

tivo3'.Segue-sedaí que deve ser possíveluma eidética material descritiva,mesmo sehistoricamente essetipo de investigação ainda não tiver sido desenvolvido.

Vale observarque dessaforma Husserl amplia de maneira considerávelo critério de cientificidade das ciências. Lembremo-nos de que em

Pro/egõmenos os pressupostosteóricos que condicionavam a produção

Cabe notar que Husserl não se

dosaber apontavam para a forma axiomático-dedutiva como aquela que

ças dos procedimentos por esclarecer a razão

se esforça

exprimiade modo adequado a construção sistematicamentefundada

racterísticas inerentes às essências

estabelecer uma disciplina eidética

29. "A consciência tem em geral a peculiaridade de ser um flutuar que transcorre

emdiferentesdimensões,de modo que não se pode falar de uma fixaçãoconceitual exalade quaisquer concretos eidéticos e de todos os momentos que os constituem ime diatamente" (Idl, 171-172)

30. Sobre esseponto, comenta R. Sokolowski; "nem todas as necessidadesou essênciasexcluem indeterminação; se determinamos uma essênciamorfológica, nossa intuição eidética desvela necessidades, mas não exclui a imprecisão e a vagueza; antes. issomostra que certos tipos de imprecisão são essenciaispara certos tipos particulares de coisas"(Sokolowski, 1979, 101) 110

ll l

A cientificidade na fenomenologiade Husser]

A fenomenologia como ciência eidétíca e transcendental 4

tão marcantedo conhecimentocientífico.A

Essesúltimos são frutos de tematizações de essências

nem mesmo era tomada como (Cf. P, S 63). Agora em Jdeíasl axiomático-dedutiva para todo rar a especificidade de certos não se deixam apreender de modo gorja de metodologia científica exigem;:. E mais: em forma teórica

doamdiretamente à intuição e que se exemplificam em casos A obtenção das essências tenomenolC)Bicas nao

nenhuma operação de levar os dados ao limite da exatidão contas somente a apreensão intuitiva dos aspectos típicos e invadaquilo que se mostra como tal nos exemplares factuais ou imade partida. Já a obtenção das essências geométricas não se dá

intuição eidética diretamente erigida sobre os exemplares empírirnassupõe uma construção conceitual sobre os dados sensíveis de

ao modo como a exatidão é obtida temáticos. Desenvolvamos com Husser] se aprofunda na cas e fenomenológicas e, no primeiras não são intuídas

E importante, assim,salientar que a fenomenologia não of)era idealização dos dados sensíveis (construindo

seatualizam perfeitamente em exemplares sensíveis).Trata-se,

de capturar intuitivamente aquilo que é estável,típico (embora inexato)nos exemplaressensíveis,os quais justamente são instâncias

ção conceptual particular, a ração, certos dados atestadosem mire, para que, assim, superem todas ginana, sempre relativa a circunstâncias características exatas. Por sensivelmente contêm figurados. Com base

dasessências então intu ídas3z

Notemosaqui que o caráter inexato das essênciasdo campo da consciênciapura não condena a fenomenologia a se afundar em ambiguidades e equivocidades que dificilmente

seriam associadas a um esbdo científico. Embora no nível dos dadosiniciais se devamlidar com

em que são bons-

trai a noção de regaou círculo ;e exemptiHcam adequadamente em Pa ícu/ar. Os conceitos geométricos seja, os aspectoseidéticos ella são levados à exatidão excedam o âmbito das Husserl, sempre envolvem diferença marcante crn

essências exatas que

singularidades inexatas, ao fixar os resultados em espécies e gêneros eidéticos amplos, é possível "uma diferenciação estável, uma conser-

quais /cí 7zão

vaçãoidentificadora e uma apreensãoconceitual rigorosa" (Idl, S 75,

zmagírz(iria

172).Husserl acredita que, mesmo sem ser ciência exala, a fenomeno lograpode, dessamaneira, oferecer resultados rigorosos e constituir-se

ou

32. Husserl assevera que, "embora elas tenham ligação, as ciências exatas e as cfên

cfczs puramentedescrífívasjamais podem substituir umas às outras, e que, por maior queseja o desenvolvimejlto da ciência exala, isto é, da ciência que opera com substruçõesideais,ele não pode solucionar os problemas originais e legítimos da pura descrição" (Idl, S74, 171). Firma-se aqui claramente a autonomia das disciplinas descritivas,

e sugere-seque desrespeitartal autonomia, ao insistir na forma exata corno expressão

unívocada cientificidade, significa ignorar o procedimento de idealização,que deixa delado a especificidade dos domínios sensíveispara tomar apenasos conceitos exatos construídos sobre eles. Por conseguinte, a forma axiomático-dedutiva não pode exprimir corretamente o conhecimento dos domínios objetivos inerentemente inexatos, mas

apenasde uma versãosubstruída de tais domínios. Voltarei no último capítulo a tratar devidamentedessetema, ao acompanhar os textos de Husserl sobre o papel fundente do mundo da vida em relação ao conhecimento científico 112

1} 3

A cienti6lcidadena fenomenologiade Husserl

A fenomenologia como ciência eidética e transcendental 4

como disciplina científica. Cabe aqui analisarcom mais detalhes são os componentes desserigor que justamente garante a cientifi da descrição eidética fenomenológica.

dedutiva, que garantea fundamentação das tesesmediadas

de ter relação intuitiva com a essência em questão, e o

princí.

pios bem estabelecidos. Isso já era afirmado em Pro/egómenos quanto às ciências eidéticas materiais descritivas?O que garante acien. tipicidade, isto é, o caráter fundamentado de suas teses?Esse é o terna desenvolvido nos parágrafos 66-70 de Ide;as l.

No parágrafo66, é apresentadacomo uma condição da cientifjcia expressão dos resultados apreendidos em te..

severa Husserl, "também

mais baixo é o da obscuridade total, quando simples-

mentedeixa-se Dais alto é o da clareza plenamente adequada,no qual ela se dá grau ente como é, sem a interferência de representações conceiintegram

As ciências exatas são construídas por meio da forma axiornático.

mos e proposições cuidadosamente

defende que as essências se doam conforme uma escala de

clareza. O grau

Critérios gerais do rigor desci'itivo

dade fenomenológica

67, Husserl

formulados.

Do

rigor científico,as

faz parte que as mesmas palavras e proposi-

ções sejam univocamente ordenadas a certas essências ntuitivamente apreensíveis, as quais constituem o 'preenchimento

de sentido:

d.

jldl, 1 54-1 55). A corneta fixação conceptual dos dados eidéticos, de ma.

negra a evitar ambiguidades na compreensão dos nexos eidéticos revelados, é, assim, um pressuposto da boa prática científica

fenomeno. ]ógica33. Para ser bem realizada, essa fixação não deve ser arbitrária,

conforme indica a citação acima; os recursos inguísticos têm de ser lastreadospela doação intuitiva do tema descrito Isso aponta para pres

supostosainda mais básicosacerca da cientificidade fenomenológica, referentes aos próprios métodos de apreensão das essênciasa ser então descritas univocamente Deve-se destacar aqui a c/czrí/ícczçãoizzfuífíva, conjunto de procedi-

mentos por meio dos quais as essênciassão tematizadas.No parágrafo 33. M. Brainard acentua o caráter ativo dessa elaboração conceitual: "não há ne-

nhuma prioridade 'natural' da essênciasobre sua expressão,de modo que ela exigisse uma expressãoespecífica.Antes, é a consciência que primeiramente decide sobreum termo ou expressão e a impõe à essência; a expressão /íxa a essência" (Brainard, 2002,

110). O uso dos conceitos fenomenológicos não é algo que se imponha mecanicamente, mas uma habilidade que exige decisõesteóricas não óbvias a fim de capturar corretamente as características dos fenómenos descritos. 114

'

não preenchidas intuitivamente.

Husserl apresenta, no parágrafo

68 a clarificação como o método pelo qual se busca aproximar-se desse nível máximo de doação intuitiva. "0 tornar claro consiste, pois, aqui em dois processos que se vinculam

um ao outro: nos processos de tor-

nai intuitivo e nos processosde intensificação da clareza do já intuído 159), expõe ali o autor. Quanto ao primeiro processo definidor 'ln clarificação (tornar intuitivo), Husserl se refere ao fato de que muitasvezes os dados exemplares pelos quais se tenta chegar à essência je, consequentemente, as próprias essências) estão entremeados de representações vazias, meramente conceituais. Tornar intuitivo significa aqui levar essasrepresentações vazias à verdadeira atestação intuitiva.

Além disso, o segundo processo definidor da clarificação é intensificar

a clarezado que já loi intuído. Importa nessecasolevar em consideraçãoaquela escala de níveis de clareza dos dados e buscar modos de

doaçãocom maior grau de evidência. No parágrafo69, Husserl expõe algumasestratégiasmais específicaspara obter os graus mais altos de clarezaintuitiva. Muitas vezes,quando a clareza eidética não é suficiente, faz-se necessário reaproximar-se dos exemplos de base a fim de

seatentar para outros aspectos, ou mesmo trocar os exemplos de base, de maneira a buscar pontos de partida por si sós já mais claros. Além disso,o autor nos lembra que todos os dados referentes às vivências da

consciênciaenvolvem um halo de aspectosinatuais não claramente determinado (Cf. Idl, SS 35, 37). Esse halo pode ser paulatinamente explorado, dando oportunidade para esclarecer aspectos já apreendidos e para abrir novas séries de investigações fenomenológicas.

No parágrafo70, uma etapa metodológica ainda mais básicaque essasmencionadas acima é explorada, a saber, aquela por meio da qual

asessênciassão inicialmente apreendidas.como tais. Retoma-se aqui o método da intuição de essênciascom base na análise de séries de indi-

víduos,tópico explorado,como vimos, logo nos parágrafosiniciais de 1 15

A cientificidade na fenomenologiade Husserl

A fenomenologia como ciência eidética e transcendental

Ideias J. Husserl assinala o privilégio dos dados

como tema daquilo que ele chama de "ciências de

como ponto de partida para a busca fenomenológica de essências una vez que pela imaginação obtém-se uma diversidade tal de dados quem reconhecimento dos aspectosinvariantes é Facilitado além de se garan. tir a independência dasessênciasentrevistas em relaçã o a Situações fac. duaisno murado empírico. Eis então como Husserl

filosófica", em oposição às "ciências de orientação dogmáúltimas, os pesquisadoresnormalmente não se dedicam problemas cénicos,os quais exigiriam o desenvolvimento de

teoriado conhecimento. Eles procedem de modo "dogmático' sentido de simplesmente aplicar os seus métodos para investigar os

de sua área de estudo, sem preocupar-se em submeter tais méa uma crítica filosófica. Husserl julga que essaatitude dogmática

facial até o pressuposto

buem rigor científico à

correrano que tange à ampliação do conhecimento objetivo, em-

termaldescritiva. É preciso sências que discriminem sem

tal atitude deixe intactos os problemas gerais com relação à possibilidadedo conhecimento. Cumpre então às ciências de orientação

relevantes. Para tanto, deve-se tuitiva das essênciasem doaçãointuitiva dos

filosófica,em uma dimensão que lhes é própria, investigaro sentido e ibilidade do conhecimento em geral, temas que deverão escla-

a

recc[ qual o valor cognitivo dos conhecimentos obtidos na orientação

ção de séries de eventos

dogmáticas'. No parágrafo 33, Husserl sugere que é a passagem para o

modo que se possa atestar tes que justamente delimitam

domínioda consciência pura, região temática da fenomenologia, que permitirá a resolução do "problema epistemológico" que tanto carac-

como ta], e não como evento

terizaasciências de orientação filosófica. Daí Husserl designar a cons-

lecido, dessamaneira. nologia como doação evidente dos

ciênciapura de consciência trczrzscendenta/,já que é por meio de seu es-

hdo que se explicitam as condições de possibilidade das relações entre osubjetivo e o objetivo;s

investigados, os quais deverão então ser clarificados e

centosempregadosde modo coerente e unívoco.

orientação /i/osó/ica,a saber,esclarecera possibilidadee o sentido do conhecimento objetivo. Husserl parece recuperar aqui, em linhas

Ciências $1osó$case ciências dogmáticas atribuída à fenomeno.

logia na introduçãode Ideias1: ciência transcendental.'Veremos que um longo caminho introdutório até a circunscrição da tarefa espe' cinicamente transcendental é proposto. Nesselivro, a primeira menção mais elaborada à problemática transcendental ocorre, ainda sem usar essetermo, no parágrafo 26. Husserl apresenta ali as questões re-

ferentesà possibilidade do conhecimento como lema cienfz'Hco,mais 116

bre a região "consciência", ela não é uma ontologia material entre outrasquaisquer, mas sim um tipo de investigação que, por meio da

Lematizaçãoda consciência pura, cumprirá a meta das ciências de

B) Passagemà problemática transcendental

Passemos a explorar a segunda qualificação

A fenomenologia não é, assim, somente um estudo científico so-

34. "As investigações científicas da orientação epistemológica especificamente fi-

losófica(. ..) se ocupam dos problemas céticos da possibilidade do conhecimento, os solucionamprimeiro em generalidade de princípio, para então, pela aplicação dassoluções obtidas, tirar consequências para o julgamento do sentido e valor cognitivo definitivos dos resultados alcançados nas ciências dogmáticas" (Idl, 56)

35. "Motivos importantes, fundados na problemática epistemológica, justificarão quedesignemosa consciência'pura', da qual tanto se falará, também como conscíên cíahanscendenfa/, da mesma maneira que designaremos como epoché transcendental

aoperaçãopor meio da qual é alcançada" (Idl, 73) 117

A cientificidade iaâ

na renomeno] ogia de Husser]

A fenomenologia como ciência eidética e transcendental

gerais, a distinção entre filosofia e

consciênciana orientaçãonatural é o mundo, entendidocomo indefinido llo qual se organizam os objetos com os quais se

Pro/egõmenos; porém,

conhecida como um mentor já estabelecidos

constantemente

metodológico próprio, acesso ao domínio

(Cf. S 27). O mundo

simplesmente

aparece

dado, isto é, como já aí mesmo antes de ser percebido, assim

ricadescritiva(buscade por evidência intuitiva),

as mais diferentes coisas mundanas também são dadas como dis-

mesmo que não se preste atenção nelas, e mesmo que elas exo campo atual de percepção da consciência. O próprio sujeito

a

a si mesmo como inserido no mundo, como sendo um eu empírico dependente da totalidade mundana para ser o que Orientação natural e redução fenomenológica A redução ILTC, de 1906-1907.

O mundo é assim o horizonte geral da subjetividade, mundo que seestendeindefinidamente no espaçoe no tempo, e que permanece

Ideias 1,alterações importantes em

dido.Ele impõe seu ser à subjetividade, que se reconhece na orienta-

único apesardas incessantes variações do seu conteúdo parcial apreen-

natura[ como uma pequena parte dessatota]idade inescapáve].

concerne às relações entre

No parágrafo28, as diferentesformas do pensamentoteórico e de

lógicadopensar. O trecho de Ideias l. C) parágrafo 27 se intitula "0 mundo da e meu mundo circundante". Trata-se de

estadosafetivossão remetidas ao mundo circundante. O conjunto de fitossubjetivos conscientes, subsumido ali à expressãocartesiana cogjto,estáconstantemente voltado para o mundo e suasfronteiras inde-

como o mundo se apresenta Conforme certo

finidas, as quais permanecem operantes mesmo que sejam assumidas

secamente f)essoalizada

certaspreocupações teóricas bastante específicas, tais como aquelas li

e 29). Esseaspecto não mundo da orientação 57), que aparentemente marcar bem esse caráte.

dadasao teorizar matemático. l)esse modo, ao empregarem o pensamentomatemático, os sujeitos não rompem sua inserção no mundo

Husserl diz que as curso em primeira pessoa"(ibid.)3õ.O

natural,o qual atumcomo fundo permanente para as reflexões matemáticas37. Além disso,normalmente os matemáticos reproduzem no nível dos"objetos matemáticos" a mesma ingenuidade da consciência natu ral diante dos objetos mundanos: reconhecimento de uma objetividade semquestionar suascondições de possibilidade.

No parágrafo29, há a explicitação do caráter intrinsecamente intersubjetivo da orientação natural. firma-se

ali: "tudo aquilo que vale

paramim mesmo vale também, como sei, para todos os outros seres caráterem-si terá um lugar central. Essa concepção será contrastada com as característicaseidéticas da consciência

37. "0 mundo aritmético só está para mim aí se e enquanto minha orientação é anfméfica.O mulldo natura], no entanto, como mundo no sentido habitual da palawa, contírzuaa est'zrpara mfm aí enquanto estou naturalmente nele imerso" (Idl, 6 1) 118 119

A cientificidade na fenomeno]ogiade Husser]

A fenomenologia como ciência eidética e transcendental

.;#,r;} humanos que encontro no mundo que me circunda"(Idl,

61). A

4

e hajao questionamento crítico das condições de possibilidade dessa

raçãonatural se refere a cada sujeito que a vivenda e a narra mente, mas envolve o reconhecimento mtítuo das situações

Codrn,zçaocaracterizada a "tese de ser" como componente carac-

Cada sujeito apreende a si e aos demais sujeitos como entes

voltados para o mesmo mundo, no interior do qual os feitossão delimitados.

Os parágrafos27 a 29 de Ideias l compõem a narrativa

LI.

zada da orientação natural. Os temas ali apresentadosem em primeira pessoabuscam capturar a experiência ingênua do mundo tal

como poderia ser descrita por qualquer sujeito que habitualmente ,

sepodemaistomar essealgo como certo. Ora, consideremosa dúvida

vivenda. Por sua vez, no parágrafo 30 é formulada a fasegera/ que ca.

acercado ser de algo, acerca da sua exístê7zcíaeÓetíva,dúvida que nos

racterizaa orientaçãonatural38.vale observarque a explicitação

dariasuspender a certeza sobre isso. Ao ser suspensa, a tese de ser a res-

deus,

tese é já claramente uma operação filosófica sobre a experiência ingê. nua do mundo. Enquanto as pessoasseguem imersas na orientação na. rural (conforme narrado nos parágrafos 27-29), não há subsunçãodos aspectos gerais dessaexperiência a uma teoria ou tese l idicativamente

formulada. Cabe então ao filósofo tentar apreender e formular o sen. tido geral dessaorientação na seguinte tese (que aqui exprima com

peitodesse.algoserevela não como um atributo necessariamenteconstituinte dele (cuja suspensãolevaria à sua destruição ou inconcebibi-

lidade),mascomo uma espéciede crença que é posta em relação ao algoem questão,e que justamente pode ser tirada de ação. O algo em questãoainda seapresenta como algo, porém é apreendido de maneira moda/içada,pois não faz mais parte dessa apreensão a certeza relativa

minhas palavras): o murado e ttzdo czquÍ/o que o compõe se doa para a consciência como efetividade, como efetivamente existindo. e essadoação

aoseu ser, ou seja, a posição da sud existência eáetíva,a qual justamente

significa que sua existência efetiva af)prece como constatada, !móosta à corzscíêrzcía,que somente a recon/tece (Cf. Idl, 62-63). Desse modo.

Vê-se, assim, que, aplicada metodicamente, a dúvida é um procedimentopara pâr fora de ação um componente da apreensãosubjetiva

a orientação natural pode ser caracterizadacomo um tipo de postura

dealgo, a saber,o componente de crença ou tese de existência. Não

realista ingênua segundo a qual a existência do mundo é simplesmente

setrata, assim, de destruir o ser do qual se duvida, de passar da tese à

afirmada sem maiores problematizações.Em sentido mais amplo, a

antítese(da afirmação do ser à sua negação), mas justamente de sus-

tese da orientação

penderum componenteque então (pela dúvida) se torna visível na

natural significa

cia é espontaneamente

submetido

que todo conteúdo a uma interpretação

de experiênontologizante,

estáem dúvida

composiçãoda experiência: a tese que põe o ser de algo como efetivo,

isto é, em termos de ser ou não ser. Aquilo que aparece sob a orienta-

como existente;9. E esse momento de suspensão da tese de existência

ção natural do pensar é decodificado por parâmetrosoncológicossem

jteseque afirma o ser ou mesmo o não-ser de algo) que Husserl man-

tém do uso metódico da dúvida por Descarnes.Esseexercício de sus.38. J.-F. Lavigne nos lembra que o sentido de "tese" utilizado por Husserl não é

de aHlrmaçãodoutrinária, e sim o sentido aristotélico de afirmação'de "uma proposição não demonstrada,destinada a servir de fundamento lógico para uma demonstra-

dência objetiva exprimida pelo conhecimento.

39. Como vimos no capítulo anterior, em ll.TC a epoc/zése aplicava à transcen-

ção- (. =.) Traduz-sl?, assim, ao mesmo tempo o caráter dín mica élo ato de pâr e a falta

problemática mais geral da posição de ser constituinte da experiência na orientação na-

de evidência e de fundamento racional que afeta uma ta] posição" (Lavigile, 2009,7(» nota

tural.Pâr o conhecimento como transcendente é um casoda decodificação ontológica operantede modo universal na experiência ingênua

120

121

Esse tema passa agora a ser incluído na

A cientificidade na fenomenologia

de Husserl

A fenomenologia como ciência eidética e transcendental

./ ,r';}

4

pensão,da tese da efetividade do ser é chamado em fenomenologia de ef)oc/zé'n.

' '''

Após circunscrever, com base no método cartesiano,o

sentidoda e/)oc/zé,Husser] pretende aplica-la a toda a orientação natural quevi. gora no âmbito prático da vida comum e mesmo na produção das ciên.

das ditas dogmáticas. Paratanto, não é preciso se dirigir a Cadains tância singular da orientação natural; basta suspender

EI. KNRHHr=g=

ge.

ral, referente à existência efetiva do mundo. Deve ocorrer então algo notável: ao tirar de ação a validade da tese de existência do mundo tal como experimentada

na orientação

natural,

essa existência

que

se apresentava como algo ;mPosfo aos sujeitos, que era somente Latada e isso de modo irresistível, passa a se mostrar como algo que

é posto na experiência Pe/ossujeitos. A existência efetiva do mundo, das coisase mesmodos "eus" psicofísicosempíricos é modificável en-

poderão.finalmenteser discutidas. r Aqui é preciso perguntar mais claramente de que domínio se trata

rá entãoficar claro que a passagempara o âmbito transcendental não é passagempara uma região particular, delimitada por outras

regiões, massim uma pa1lsagem para uma novaorientaçãodo pensar, parauma nova modalidade de experiência, a qual recobrirá todas as regIÕes ob/eth'as, uma vez que eles sofram a modificação neutralizadora

daepoc/zé4'. Ao suspender a tese de existência, abre-seuma orientação

quanto crença. Ela não é uma imposição inescapável, mas uma opera.

dopensarem que não se faz afirmações acerca do ser ou do não ser

ção passívelde neutralização. Aquilo que é suspenso,tirado de ação, é então reveladocomo aquilo que compunha ativamente a experiência do mundo natural, masera ingenuamente vivido como imposição do mundo em relação ao sujeito. O mundo existente (e tudo do que se compõe, inclusive os eus empíricos), que se impunha à consciên

do mundo natural, dos seus objetos, dos eus psicofísicos e das ciências

cia na orientação natural, se mostra, uma vez aplicada a ePoc/zé,como

ingênuada existência efetiva dos domínios investigadosnão comporão a fenomenologia, já que essase inicia pela suspensãode todos os domíniospostoscomo objetivamente válidos':.

muradoposto pela tesede ser, e desdeentão, uma vez que essateseé justamente tirada de ação, o mundo e a totalidade de seus eventose coisas enquczrzfo exísferzfes são "colocados

entre parênteses",

quer dizer,

têm a sua efetividade suspensa.

poreles produzidas. Nenhuma proposição que supõe esselastro posicional em relação à existência efetiva daquilo que é discutido deve en-

tãoentrar na orientação fenomenológica. Desse modo, toda opinião e mesmotodo conhecimento objetivo construídos sobre a pressuposição

A suspensãoda efetividade mundana não significa que vá brotar magicamenteum novo domínio sobre o qual a fenomenologia se apli

de recusacénicado mundo,não é nem mesmoum métodoque se

cada.A fenomenologia tratará ainda do mundo natural e das suasciências,mas erzquanfo moda/ícados,enquanto reduzidos transcendental-

aplica a um ente ou a um conjunto de entes em particular.

mente. E por isso que a redução fenomenológica não consiste somente

Note-se, assim, que o método fenomenológico não é um método

um procedimento

que explicita

a posição de ser, que constitui

sub-rep-

ticiamente a experiência natural, para então suspendê-la, coloca-la fora

de ação. E dessamaneira que um domínio completamente novo vai surgir como tema de investigação,o doma'níoüanscerzdenfa/,no qual

41. Conforme nota J. Benoist, "na redução, não seencontra nada de diferente da-

quilo que precisamente se excluiu, mas com um estatuto diferente, por assimdizer, 'forade uso'; a redução não abre nenhum 'ante mundo' e nenhuma profundidade mís liga em alguma antessalada consciência aquém do real, mas abre o próprio sentido do

quenelaestáretido"(Benoist,1994,176) 42. Mais adiante ficará claro que não só o domínio das objetividades mundanas é 40. Parauma avaliação mais elaborada da apropriação husserliana de Descartes, cf.: Moura, 1998; Crowel1, 2002; MacDonald, 2000 122

suspenso,mas também o das objetividades

eidéticas, as quais são postas de modo ingê-

nuo pelas antologias formais e regionais. 123

A cientificidade

na fenomenologia de Husser]

A fenomenologia como ciência eidética e transcendental

na ePoc/zé, que justamente marca uma

mundana como sua condição fundente'3. Por conseguinte: investigaçãoautónoma da consciência como fundamento da ex-

também a necessidadede circunscrever

material

resíduo da sua aplicação, a Nesseponto, Husserl recupera

uma pe

ciência e do conhecimento é desacreditada, já que o funcionamento

consciênciadeve ser reenviado, segundo essaconcepção, às condimateriais mundanas, sobre as quais as possibilidades inerentes à ções da

Romena/idade, enquanto

embora não mais se

---!

mostra fundada por uma

@

consciente seriam erigidas. Daí Husser] afirmar no parágrafo 33 de

IdeÍczs J que "na orientação natural não se podia ver mesmooutra coisa

E o que se afirma com assevera que, após praticar a redução

o mundo natural. Enquanto não fora reconhecida a possibilidade

R

":«nmnn:HH

propriamente nada, mas ganhamos todo o ser nh'. uto, o qual, carreta. mente entendido, abriga todas as transcendências mundanas, as 'bons. titui' em si" (Idl, 1 19). Garante-se aqui que a passagempara a ex periên. cia reduzida não implica nenhuma perda em relação à experiênciad, orientação natural. Na verdade, todo o conteúdo vivido nessaorienta. ção será recuperado, mas de maneira modificada porquereferido aos,, aliso/uto da consciência, ser por meio do qual se tornará compreensível como todos os entes transcendentes que compõem o mundo (e ele prâ prio) têm o seu sentido e a sua possibilidade constituídos. Aqu cabees clarecer em detalhe o que se entende porserabsoluto.

orientação fenomenológica(

. . .) a esfera de ser transcendental tillha

de permanecer desconhecida e até quase não pressentida" (Idl, 73)

Há,assim,uma interpretação espontâneadas relaçõesentre mundo e consciênciana orientação natural que praticamente impede que se assumaa orientação fenomenológica, na qual se investigam os puros fenómenos,livres de todo lastro posicional ingênuo. Dessamaneira, re-

visora interpretaçãonatural das relaçõesentre consciência e mundo ofereceráuma espécie de garantia da independência da investigação fenomenal ógico-transcenden tal

Aqui é preciso atenção para acompanhar o movimento argumentativo proposto por Husserl. No parágrafo 32 de Ideias 1, é anunciada a redução fenomenológica, método pelo qual se suspende a validade

As relaçõescafre consciência e mundo

da tese de ser que atum sobre todo conteúdo da experiência natural Além disso, questiona-se ali pelo que resiste à epoc/zé, a saber, as vi-

vênciasda consciênciaem sua pura fenomenalidade.Os resultados dessequestionamento são detalhados principalmente nos capítulos IT e 111da segunda seção de /delas l (SS 33-55). No entanto, em grande parte dessescapítulos, trata-se de investigar quais são as caracferõtícas

43. 'Eal como apresentada,essaconcepção ingênua envolve ]á uma antecipação daorientação natura/isca(a orientação teórica assumidaquando se produzem as ciênciasnaturais) na orientação natural. Esse tema é desenvolvido em Ideias 11, e teremos ce de acompanháJo no próximo capítulo. Por ora, noto apenas que a orientação

naturalistapõe o mundo físico como fundente das demaisordensde'ser (vital e psíquica).Ora, essaposição do mundo como uma totalidade objetiva da qual a vida humana não é senão um segmento nela fundado já vigora, ainda que de maneira inexata na concepção ingênua de mundo exposta em Idefczs1. Fica sugerido, assim, que a orientação.naturalista é uma especialização teorizante da orientação natural do pensar, uma

especializaçãoque mantém intacta a ingenuidade marcante dessaúltima 124 125

A cientificidade na fenomenologiade Husser] A fenomenologia como ciência eidética e transcendertt41

126 127

A cientificidade na fenomenologiade Husser] A fenomeno[ogia como ciência eidética e transcendental

cer quais são as relações eidéticas

./ r

acompanhar com detalhe cada um

0

caminho percorrido no movimento inicial do argumento,

o qual,por Da atestação do ser aos modos de ser atestados Lembremos. de elucidar seem su,s

medesenrola nos parágrafos 38-41, consiste justamente em uma distinção entre dois modos de afesfação ou doação, de tornar patente que a manifestação do mundo na expenên-

oferecer

maneira a

decorre de um tipo de percepção, a saber, aquela nomeada

àe percepção hanscendente. A percepção transcendente das coisas e

no parágrafo 39.Ali perseguido:

suavez, pode ser dividido em três submovimentos. O pri-

melro, que

cia se]

çada ao mundo e é dele

; À'''.

doseventos

é preciso

mundanos, Husserl opõe a percepção imanente, aquela que

sevoltaparaas próprias vivências da consciência. Vale a pena discor-

geral do mundo

rer com

sibilina que eu

mais detalhessobre cada um dessesdois tipos de modos de

doação

No parágraio 38, Husserl expõe a percepção imanente ou o olhar

existente diante de mim, que eu me que eu mesmo nele me insira. Essa

reflexivo que a consciência pode exercer sobre si mesma. Pela reflexão,

exPeriêrzc;a senso'e/"(Idl,

é possível

$

é reconhecido como

tornar uma vivência como objeto e acompanhar o seu desen-

Husserl discrimina ao menos duas características dessapercep-

ciência para ser o que é.

çãoimanente (Cf. Idl, 85-86):

nentes eidéticos desse caráter

a) Os objetosvisadospor ela compõem o mesmo fluxo do qual a própria percepção toma parte. Assim, ato perceptivo e ob-

tipo de experiência que outras palavras,

jeto percebido fazem parte da consciência enquanto fluxo de vivendas

eindependente. do mundo à

bl Percepção e percebido não só partilham do mesmo fluxo de

ou não do ser mundano

vivências; entre eles se forma uma unidade, de maneira que o objeto (a vivência refletida) só pode ser separado do ato reflexivo por abstração46.

Husserl afirma que essasduas características marcantes da percepçãoimanente estão ausentes na percepção hazzscendezzfe, o que permite sustentade modo legítimo. Independentemente da resposta a esseproblema específico, La\igne deveria ter deixado mais claro lá de início que mesmo a "independência sobe una" do ser deve ser atestada subjetivamente, o que garante a legitimidade ao menos da aplicação inicial da estratégia husserliana. Pode-se duvidar de que Husserl efetiva menteconsiga mostrar a dependência do ser em relação à consciência, mas seria sim-

plesmenteingênuo defender um sentido absoluto de transcendência, ignorando qual seriaseu modo privilegiado de atestação subjetiva, exatamente o que Husserl busca'circunscrever nesseponto da sua argumentação 46. Para uma análise detalhada das características da reflexão em Ideias 1. cf. Re naudie, 2012 128 129

A cientificidade

lomenologia de Husser]

A fenomenologia como ciência eidéticae transcendenta

B.m

con trastar ambas as

mente diferentes. não estáincluído no feto é algo transcendem

.ez fixada essadistinção entre dois modos de doação, Husserl aosegunda submovimento da primeira parte de seu longo argu-

das duas diferentes experiências de doação ou atesta-

Além disso,oobjeto-coisa

à distinção de dois modos de ser, tema explorado princino parágrafo 42. Trata-se ali de distinguir em termos de ca:cds eÍdéticasaquilo que se apresenta em percepção imanente

chega-se

perceptivo, e pode dele ser

:e

sas persistem ou sofrem fitos perceptivos que a elas se Husser] continua a

e aquilo

eidética fundamental entre sé?rcomo vivência e ser como

a distinção

cendente no

jldi, 95),anunciao autor.Em que consisteessadistinção?Faz

seu objeto não objeto transcendente

que se apresenta em percepção transcendente. "Surge, pois,

parte

é

inúmeros alas

daessênciado ser coisa e, no sentido amplo, daquilo que coma percep-

Çãoque .,ã.e doa

alguns dos

inteiro. Deve-se

a visa. O ser-coisanão faz parte dos nexos de consciência, mas a essesde modo perfilado. E, por sua vez, há o ser-vivenda ou

ser-consciência, uma unidade concreta de experiênciasfluentes. Tal

pendentes envolve "um

comoasseveradono parágrato 'f), o modo de ser da consciência supoe

de aparências e des

"queum olhar de percepção intuitivamente possaser dirigido de ma negra inteiramente imediata a toda vivência efetiva, viva como presente originário.Isso ocorre na forma de 'reflexão"' (Idl, 104). Faz parte, as-

com o caráteT

A percepção

sim, das características essenciais da vivência que ela possa ser apreen

fis, ou seja,por de apreensãoquere apreendidospela percepção

dada por uma percepçãoque partilha com ela o mesmofluxo de cons ciência,de maneira que ambas formem uma unidade que dispensa per

Stcionamento espacial do observador evento que se perfila

dilaçãonos moldes da percepção transcendente Dessamaneira, com base em dois diferentes modos de atestação

intuitivosde objetos, chega-sea dois diferentes tipos de ser passíveis de atestaçãonessesdois modos de intuição dos quais se partiu. Em

estabelecidas. E obviamente

menos apreendidos em relação espacial um lado da vivência e de nessesentido,relação de

Umavivência presente se torna vivência passada retida em relação a uma nova vivên-

cia presente,que também se tornará passadaem relação a outra vivência presente, e assimpor diante. Nessesentido, "uma vivência também jamais é completamente per-

cebida;ela nãoé adequadamente apreensívelem suaunidade plena" (Idl, S 44, 103) dadoque sofre modificações constantes conforme a sua situação temporal. Contudo, Husser] insiste em afirmar que "essa 'incompletude'

ou 'imperfeição'

inerente à essên-

cia da percepção da vivência é diferente, por princípio, daquela contida na essência da

percepçãotranscendente" (ibid.), na qual um objeto externo ao fluxo se doa parcialmente.A perfllação temporal da vivência não apaga a unidade entre reflexão e refletido

e, por isso,não interfere na distinção entre o ser imanente e o ser transcendente,que comentarema seguir. 130 131

A cientificidade

na fenomenologia de Husserl

A fenomenologia como ciência eidétíca e transcendental

F ,r')}

seguida, no terceiro submovimento, Husserl propõe uma ção dessesdois diferentes tipos de ser, principalmente nos

certa

4

Dunavez que a doação perfilado jamais exclui a possibilidade de

uo desmentido Ouanto à percepção imanente, no parágrafo 44, Husserl defende a vivência não se perfila, não revela suasqualidades parcialmente que a orientação espacial), mas de uma só vez. Isso quer dizer lconforn'' ser-vivênciaimplica como característica eidética a doação de si

44 e 46. No parágrafo44, o autor retoma inicialmente a ção do ser transcendente como aquele que sempre se doa de parcial, cada perfil anunciando várias outras percepções quais diferentes aspectosserão manifestados em uma rica, de forma que a unidade de aparição da coisa em um só ato perceptivo, mas exige a coesão de inúmeras

que o como

um aliso/zzfo,no sentido daquilo "cuja existêncianão pode por ser negada" (Idl, S 46, 106). E só na percepção imanente

princípio absoluto, nesse sentido de algo cujo ser é atestado indubitaqueum fielmente pode ser dado. Para Husserl, "toda percepção imanente ga-

vas. No parágrafo 46, Husserl conclui, com base na análise

de doação constituinte do ser transcendente, que lzen/lema transcendentegarante a existência do objeto que neta se se trata de dizer que a percepção transcendente só nos dá sensações mentais de objetos em si mesmos inacessíveis; nada

Cadaperfil de um objeto transcendenteé dado com evidência

unte necessariamentea existêítcia do seu objeto" (ibid.). Nessetipo forma-seuma unidade com a vivência refletida, e, ende percepção essaunidade vigora, a existência do objeto imanente estágaranquantc tida

poisele se dá tal como é, e não somente em perfis que pi)deviam

consciência visa por meio desseperfil o objeto como um todo Com«do, "a existência da coisa (. ..) /amais é u«.a existência como 7zecessána Pe/o dado, mas de certo modo é

çel

(Idl, 108).Cada perfil de uma coisa é evidente, mas

sase do mundo) jamais se atesta de forma absoluta, como algo cuja

assegurar que a coisa em sua totalidade seja aquilo mesmo que

existênciaestá garantida em sua maitifestação. O ser do mundo, posto

e não outra, ou mesmo que ela, em casosextremos, não seja. Nada im. pede que no transcurso da experiência perfis vindouros obriguem a re-

pelapercepção transcendente, se mostra, após essainvestigação de suas

ver o que se tinha

sintetizado

com

base em perfis

anteriores.

Avaliemoscom cuidado os resultados obtidos por Husserl nesseterceiro submovimento. O modo de ser transcendente (aquele das coi-

Husserl

não sugere que essadecomposição da experiência vá de bafo acontecer. que nossaspercepções sintetizadas até agora serão desfeitas por percep

çõesfuturas". O autor somente acentua aqui uma possibilidade eideti. comente fundada no modo como o ser transcendente se relaciona com a percepção que o apreende: o peúil é dado com evidência, mas a unidade da coisa nele anunciada é sempre presuntíva e não absolutamente

48. Isso seria abrir a portapara um ?eticismo radical, cunha o qual Husserl sempre se posicionou.

No

parágrafo

49, o filósofo

acentua

que

não

há boas razões

para

apostam

na hipótese cénica: "admitamos que a consciência esteja realmente em sua regulagem

adequada,que do lado doscursos de consciência não falte nada que possaser exigido para a aparição de um mundo em sua unidade e para o conhecimento teórico racional

dele. Tendo pressupostotudo isso, perguntamos então: é ainda pensável,e não antes um contrassenso,que o mundo transcendentecorrespondente não exista?"(Idl, 116) 132

corrigidos por dados futuros.

característicaseidéticas, como ser contíngerzte.Já asvivências da cons-

ciênciatêm, como marca eidética do seu ser, o caráter aliso/ufo: o seu seré reconhecido necessczHczmente pela percepção imanente Devemos admitir que não é pouco o que já se obteve. No parágrafo 39,Husserl partira de certas considerações tomadas como óbvias na orientação natural, a saber, que o mundo é um todo formado por reali-

dadesque existem em si e por si, um todo em relação ao qual as cons-

ciênciasseriam uma parte dependente, entrelaçadascom a base material do mundo de diversas formas. Ora, vemos agora que o mundo estálonge de ser um em-si absoluto que existe necessariamente. Não;

o mundo tem um modo de ser contingente, e somente a consciência merece o título de absoluto, no sentido de existência que se atesta necessaHc!merzte. São sem dúvida resultados que abalam as certezas da

orientaçãonatural. Mas Husserl não para por aí, e pretende explorar, na segunda parte de seu argumento, as relações entre o ser como 133

A cientificidade

na fenomenologia

de Husser]

A fenomenologia como ciência eidética e transcendental

O ser absoluto da consciência

fenómenos concordantes em uma coisa ou um evento perce' bodo.Husserl a apresenta com detalhes nos parágrafos41-42.

b) As coisassensíveis(que se unificam pelo primeiro tipo de síntese)jamais se manifestam de modo isolado. Em torno de

cadacoisaou evento percebidoshá um fundo ou horizonte próximo no qual eles estão inseridos. Esse tópico é exposto

claramente no parágrafo 35: "toda percepção de coisa tem, assim, um halo de intuições de fundo (. ..) e este também é

um 'vivido de consciência' ou, mais brevemente, 'consciên-

cia', e mesmo consciência 'de' tudo aquilo que estáde fato contido no 'fundo' objetivo cointuído" (Idl, S 35, 77). Dessa forma, toda percepção de coisa implica uma síntese dos perfis com seu horizonte próximo.

c) O horizonte próximo das coisasdiretamente percebidasnão está,por suavez, Isolado, como se para além dele houvesse um vazio, e o mundo se reduzisseàquilo que é diretamente

atestável.Justamenteo que constitui o mundo como um conjunto de eventosbem mais vastoque aquilo que se pode acessardiretamente são os horizontes dísfantesde fenómenos 49. Sigo aqui a excelente análise proposta por C. Majolino, 2010, 621-630 134

135

A científicidade na fenomenologiade Husser]

fenomenologia como ciência eidética e transcendental

que hão se doam anualmente

relativas aos horizontes próximos e distantes. Então

rizontes distantes são

complexa, formada pela unidade de três sínteses,será

um tipo específico de síntese da fzvaçâo. Por meio

a uma destmíção em pensamento. No parágrafo 47, Husserl

distantes no espaço e serão experimentados

de início que a estrutura "mundo transcendente de coisas:

põem o pano de fundo mais

de conhecimentos científicos que excedem o dado intuitivo e se referem ao horizonte de eventos distantes. Operam aqui

com a consciência empírica que a apreendepermite a

interior da própria tes próximos, certos motivos diretamente atestado, até

do mundo aquelassíntesesmotivacionais que legitimam de horizontes distantes. Em seguida, o filósofo observa que ser diferente, já que 7zãoé /ogícczmenfe necessário que o

âmbito espaçotempora]. Assim, os nência imediata doação imediata mos em sucessão do seu desenrolar

tal como atestado na experiência transcendente, seja como é mundo empírico pode ser tomado como uma instância de certas eidéticas puras (por exemplo, as estruturas que se manifes-

tamnaquelestrês tipos de sínteses).Entretanto é concebível explicitar,

empensamento,muitas outras variantes de mundos possíveis.Desse

ções num passadolongínquo). A xlmas, põem-se domínios imediato. A aHrmação de tente depende, assim, de sínteses tes aos eventos do claro esseponto no anuais,com o fundo que percepções possíveis,mofívadas de com sempre novos nexos de percepções e â apreensão" (Idl, 105 fiações metódicas as transcendências mais distantes sensível e formam com os realidade mundana. Eis como o mundo é retratado em ideias r. um ser transcendente, mas tipo de percepção

modo,que o mundo experimentado efetivamente seja este, é, ao menos em parte, contingente. Para mostrar algo de eideticamente neces-

sáriona experiência do mundo, seria preciso distinguir componentes quevigorariam em todas,asvariantes de mundos possíveis,e não só em

nossomundo efetivos'. E desseponto de vista que serátestadaaquela

até aqueles me-

concepçãovigente na orientação natural, segundo a qual há determinaçãoda consciência pelo mundo. E preciso desvelar os componentes eidéticosem ação para avaliar o que vigora nas correlações concebíveis entreconsciência e mundo. l)aí a importância da variação imaginária: pormeio dela se percorrem diversos mundos possíveise sebusca aquilo queé invariante na relação entre a consciência e seus correlatos.

mesmo

Cumpre notar que essavariação não será completamente aleató

experiência

ria, mas seguirá uma direção clara, a saber, aquela da dest íção da ob-

uma só

jetividade das coisas.Trata-se de propor situações imaginárias em que

paulatinamente a estruturaeidética"coisa percebida"e, em termos dúvida, o mundo é

maisgerais, "mundo de coisas" seja desfeita, e isso até o extremo, até 50. Husserl privilegia a análise de possibilidades ideais para estabelecer relações

sedasnos parágrafos 41 e 42 do

ê preciso ter em conta que sua experiência de

necessárias:"a antiga doutrina ontológica segundo a qua/ o conhecímerzlo da$ 'possfbí/í dados'fenode preceder o cora/zecímerzlo das eÓefívídadesé uma grande verdade, desde que bem entendida e aproveitada da maneira carreta" (Idl, S 79, 194)

136 137

A cientificidade

na fenomenologia de Husserl

A feriornenologia como ciência eidética e transcendental

.

imaginar "não-mulzdos

de eventos caóticos.

havia a doação para uma consciência possível. Em "tDU lo" propostas mesmo nos mundos desordenados ou nos nao-munnenhumcaso a possibilidade de experiência era totalmente excluída. É dos caóticos ue asvariaçõesna estrutura mundo ímf)/ícam variaçõesna exPecerto q corresporzdenfe (por exemplo um mundo desordenado nao perdêrzcza

desmantelada. Somente duais tornar-se-á visível. relações necessárias. sência "mundo".

}} It'4.

Como se vê

imagina então Situaçõesem

a fixação de nexos racionais entre os dados). Não é verdade en-

0i

estrutura "mundo ordenado

qualquermundo poderia ser experimentado de qualquer macorno sea consciênciativesseo poder de constituir o sentido da neiraF tão que

47, é oferecido o exemplo de um vação que nos levam não funcionariam.

experiência como bem quisesse. Contudo, em todos essesmúltiplos ca

tassi. Por sua vez, no

A partir daqui, chega-sea uma segunda conclusão,formulada no parágrafo 49. Como vimos anteriormente, a variação imaginária da es-

Husser]insiste: há possibilidade de experiência consciente.

Ali, o autorimagina coisassobreum horizonte pazesde constituir Jadede referência

tritura "mundo" (até a sua aniquilação) implica modificações no fluxo de

consciência,mas não a destruição dessaúltima. Dessa maneira, a

estrutura eidética mínima que caracteriza a consciência permanece in

radouras.Chega-seaquia conceber

tocadapor um aniquilamento do mundo, quer dizer, permanece in-

cia disforme, desorganizadas2

tocadamesmo se se a considera em correlação com transcendências

Quais as conclusõesdesse

desordenadas. Aqui é preciso cuidado para não distorcer o ponto em

lugar, Husserl afirma no

questão.Não se trata de propor que diante do aniquilamento dos com.

envolve mundos e

ponentes eidéticos

ricas eidéticas a possibilidade

sÍ nzesma. Em nenhum

cia possível. Essa característica é

rza/da consciência,a direção das vivências para algo transcendente Ao aniquilar a estrutura eidética "mundo", Husserl somente propõe

(EÜa/zrZ)ar&eíf). Minamde contas,

mundanos

a consciência

momento

Husser]

permaneceria rejeita

a est

íso/aduz em fura í7zfencío

queum dos correlatos possíveis da consciência seja desmantelados; Issosignifica exatamente considerar a consciência em correlação com outrostipos de transcendência (por exemplo, aquelas que constituem não-mundos)s'. Desse modo, em nenhum momento Husserl deixa de

considerara consciência em correlação intencional com alguma trans53. Sigo aqui a interpretação de Carlos Alberto R. de Moura; "a experiência da destruiçãodo mundo' não sedestina a mostrar a possibilidade de uma consciência sem objeto. Ela se destina apenas a mostrar a possibilidade da consciência sem esseobÍeto não sem todo e qualquer po]o objetivo"(Moura, 1987, 9])

ÚÜPBHH:HHH$111g

54. E o que Husserlesclarecenessacurta mas decisivapassagem: a aiüquilação

.o mundo "não implica que estariam excluídos outros vividos e nexosde vividos" (]d],

138 139

A cientiflcidade na fenomenologiade Ht.isser]

A fenomenologiacomo ciência eidética e transcendental 4

cendência nesseseu experimento de imaginação. Toda a riqueza desse exercício estájustamente em mostrar que a consciência permanece es triturada minimamente mesmo se se considerar que ela se relacioh com escombros de mundo.

Qual é a estrutura eidética da consciência em correlação com todas as variantes de

das?Além do caráterintencional, Husser]acentua é um "fluxo de vivência em geral" (Idl, S 49, 11 cia têmpora/ de experiências, e issodevido ao seu cia. A estrutura eidética "consciência" em seus

um conjunto de vivênciasorde7zadas segundouma femczque nada deve à estrutura eidética "mundo

cebível uma cozzscíê?leia em correlação com mundos). Dessa maneira. a definição de

O mundo, por sua vez, se revela como essencialmente referido a uma consciência possível, ]á que em todas as suas varianvigora a experienciabilidade

como seu componentess

notar agora que, por meio dessa longa argumentação,

acabapor inverter o discurso ingênuo sobreo ser, em vigor na natural (exposto no parágrafo 39). Segundo essediscurso, o

o ser em-si absoluto ao qual a consciência, enquanto um tipo seentrelaça. Ora, essaabordagem ingênua só consifactuais como parâmetro para suastesese descouma investigação sistemática das estruturas eideticamente invada consciência. Contudo, uma vez levada a cabo a análise eidédeve tornar-se patente que a consciência

não está subordinada ao

masque, em sua pureza eidética, "tem de valer como uma conde ser fechada por si" (Idl, S 49, 117), quer dizer, a consciên-

é desveladacomo uma esfera de ser absoluta, que subsisteindepen-

mundo". Segue-sea seguinte ser que se exiba e se ateste por aparição à consciência é o ser da própria consciência (no sentido mais (Idl, 1 1 5). A consciência se mostra. dessa

sentido de um todo independente com uma suficiente, que não precisa fazer parte de nenhum

mundo, por exemplo) para existir ordenadamente.

da estrutura "mundo" e não é por essa determinadasó

Umalegitimação eÍdétíca para o transcendental Com base nessesresultados, Husserl revê, no parágrafo 50 de Ideias1, o caráter transcendental da investigação fenomenológica,

Husserl reformula essaconclusão de maneira a

introduzidopor meio da reduçãofenomenológicas7. Vimos que, en-

a esseaspecto:"o ser imanente é,

quantoinvestigação transcendental, a fenomenologia assume as tarefasdasciências filosóficas, a saber, questionar as condições de possibilidadedo acessoda subjetividade à objetividade. A investigação trans-

soluto no sentido de que ele, por gume para existir"(Idl, ll 5). Como vimos, é ros mundos e não-mundos por veia de manifestação para a a ser consciência diante de nenhuma delas em particular da consciência.

cendentalnão vai, assim,se limitar a descrevero domínio ontológico daconsciência pura, mas vai tentar esclarecer como, a partir dessedomínio, todas as demais regiões ontológicas podem ser conhecidas. Vai

55. Na verdade, quanto ao mundo, Husserl afirma, além disso, a sua dependência no que se refere à consciência, tema que tratarei mais adiante

E desse modo que Husserl completa o movimento pelo qual a Consciência merece duplamente a qualificação de absoluto, no sentido

de um tipo de ser cuja existência não pode ser negada (S 46) e no sentido de um todo independente de qualquer outra coisa para ser o que é 140

' 56.E precisoinsistir aqui em que a ideia de esferade serfechadanão exclui os correlatosaos quais a consciência se volta. Tratarei desse tópico mais adiante

57. Comenta Husserl na segunda alínea do parágrafo 50: "voltemos agora nossos pensamentosnovamente ao primeiro capítulo, a nossas considerações sobre a redução fenomenológica" (Idl, 118) 141

A cientificidade na fenomenologiade Husser]

se atribuir,

A fenomenologia como ciência eidética e transcendenta

desse

uma dimensão

118). Essa efetuação dependeu da comprovação eiabsoluto da consciência. caráter do

do sentido de

cla pura é aquela

.erdade que a vertente transcendental da fenomenologia é, introduzida de modo secundário em relação à vertente eicomo Nn entanto, uma vez assumida, a perspectiva transcendental dética à consciênciapura o papel central na elucidação das condições atribui hilidade do conhecimento e da experiência.E é justamente

aplica a epoc/zé

se vê

gado a todo o mundo 32 de Ideias 1, mas lido como é

de pois

da validade

a partir

explicitar os resultados

dessa perspectiva

que Husserl

torna

visível

o caráter

depe7z-

do mundo em relação à consciência. De certa forma, issotambémé possibilitado pela análise eidética. Vimos que por meio dessa ,náliserevelou-se a expeHencíabi/idadecomo um componente eidéLigo de toda transcendência; assim, toda configuração mundana su-

ciência e mundo, que se nomenológica da orientação

fluxo em correlaçãocom

uma referência à consciência

põe mesmo

cia do mundo empírico, o cimento se mostra

pre

remeteà consciênciaabsoluta para ter o seu serztídode ser estabe-

pureza eidética, nâo

tecido

tou mostrarnos

fenomenológica:

eídeticamente, a

possívelsç. Insinua-se, nesse ponto,

antesde efetuar a redução fenomenológica, que o mundo semlssoé sugerido em passagensanteriores à efetuação da redução . no S 47: "o que as coisas são (.. .) e/as o são como coisas da

tão o resduo da

exPeHêrzcia. E unicamente ela que lhes prescreveo seu sen-

essencialmente

tido" (Idl, lll).

dética da

' no S 49: "todo o mundo esPaçotempora/

cu/ar para ser o

cial do mundo ser autónomo

meramente secundário, relativo de um ser para a consciencia. Ele é um ser de que a consciência põe a existênciaem

absoluto. É.

que a redução

suasexperiências" (Idl, 117

está'uturalmen te

E a mesma teseé então claramente exposta após a efetuação da

dade do ser do

redução

consciência. Deve-se notar

' no S 50: "a realidade do mundo inteiro(...)

parágrafos 3] e 32, a parágrafo 50 de Ide/as /.

não é em si algo

absoluto, (...) tem a essencialidadede algo que é por princípio apertas um intencional, um conscientizado, um representado, um aparecimento na forma de consciência" (Idl 118)

de viver ingenuamente

::;.:H;'===ã:

(. . .) é, segundo o seu

serztído, mero ser írzfencíoncz/, portanto, tal que tem o sentido

: ::i:'=;::=::=:='fiel?.==S:lLTq'-" «".-,

59. Ou referência à consciência anual, tal como é o caso do nosso mundo empí

ricoCf. Idl, $ 48.

'

142 143

A cientiticidade na fenomenologiade Husser] A fenomenologia como ciência eidética e transcendental

idadee, assim, remetem aos nexos de experiência da consciência) exatamenteo que Husser] expõe no parágrafo 76 de /delas J. .4]i é armadoque, após a redução fenomenológica, a consciência absoluta rececomo a "protocategoria do ser em geral, na qual radicam todas a$outras regiões do ser, à qual estas estão referidas por sua essência, e da

qual,portanto, todas são por essência dependentes" (Idl, 174). Desse

modo,do ponto de vista transcendental, a consciência será a fonte a pararda qual a validade de ser é estabelecida. Lembremo-nos aqui do movimento da redução fenomenológica: suspende-se a posição de ser ingenuamente tomada como uma imposição à consciência justamente

paraacompanharcomo o sentido posicional de ser é paulatinamente elaborado com base nas estruturas eidéticas da consciência. E isso vale

paraqualquer ser concebível: todo tipo de ser deve ter seu sentido ates-

C) A fenomenologia como ciência transcendental A investigação de {nealidades

tadonos nexos de experiência da consciência. A investigação transcendentalcabe então explorar quais são os componentes essenciaisdesses

nexos e desvelarcomo a consciência refere-seàquilo que não é ela, ao servisadonessesnexos. Torna-semais claro agora porque Husserl apresentavaa fenomenologia, na introdução

de Ideias 1, não só como ciência de essências, mas

tambémcomo ciência de írrea/;dados.Aquilo que se considera como realidadesupõe já realizado o trabalho de constituição da consciência e aparece ingenuamente

como um dado imposto aos sujeitos. A inves-

tigaçãotranscendental suspende esse caráter pronto dos eventos mun-

danosreduzindo-osa puros fenómenos, para então esclarecerde que modoesseseventosganham o sentido (em nexos de experiência) de eventosreais. E a partir da consciência que o sentido de ser "mundo real", po! exemplo, será constituído, e, no geral, todos os problemas transcendentais serão resolvidos. Isso é anunciado no parágrafo 86. Ali,

Husserlassevera:

é preciso, pois, investigar, na generalidade mais abrangente, como unidades objetivas de cada região e categoria "se constituem para a 144 145

A cientificidade

na fenomenologia

de Husserl

consciência" (...). É preciso estudar sistematicamente e tornar dente, em generalidade eidética, todas as espéciesfundamentais consciência possível (. . .); é preciso estudar como prescrevem, diante sua essência própria, todas as possibilidades (e mpossibilida. des) de ser (Idl, 214).

Fica aqui estabelecido que, em sua vertente transcendental, a

menologia é uma aná/íseconsfiftztíva,ou seja, uma análise que inves tida por meio de quais nexos de consciência tais e tais objetividades re. bebem seu sentido e a validade de ser.Todas essasobjetividades sãoJulgadasdependentes da consciência no sentido de que as condiçõesde possibilidade da sua atesfação como objetividades são encontradas nas estruturas eidéticas da consciência.

A fenomenologia como ciência eidética e transcendental

Importa salientar que, por meio da intencionalidade, enquanto caracterísHca eidética, fica claro que a consciência absoluta não é um ente isolado,pois está sempre em correlação com aquilo que é visado como

objetividade Vimos que Husserl concebe a consciência absoluta como .sferafechada de ser, independente do mundo, afirmação que deve ser

interpretadacom cuidado. Acompanhamos o argumento segundo o qual nenhumconjunto particular de eventos (ordenado ou desordenado) é necessário para que a consciência seja um fluxo temporal de vivências Nessesentido, a consciência não carece de nenhuma coisa específica

parasero que é. No entanto, dada a intencionalidade,outra característicaeidética da consciência, deve-se entender que essaúltima está sem.re direcionada para a/gum conjunto de eventos. Daí o famoso mote de quea consciência é sempre consciência de algo (Cf. Idl, S 84 204)

O caráter intencional da consciência Para entender melhor essatarefa central da fenomenologia, a aná-

lise constitutiva, vale a pena explorar uma característica eidética da consciência até aqui pouco mencionada, a saber,a intencionalidade. No parágrafo 84 de Ideias 1, Husserl qualifica a intencionalidade de

Dessemodo, a consciência absoluta não carece de nenhum mundo emparticular para ser consciência (enquanto estrutura temporal), mas, enquanto é intencional, ela deve estar voltada para Pe/o merzosum con-

tema fenomenológico capital", já que, ao estuda-la, evidencia-se a es-

junto qualquer de transcendências. E será investigando as modalidadesintencionais da consciência que se esclarecem os problemas ligados à constituição de sentido dos diferentes tipos de transcendência possíveis.Em relação a esseponto, reconhece Husserl: "assinalamos ante-

trutura eidética da consciência pela qual há referência à objetividade

riormenteque a consciência em geral tem de valer como uma região

em geral. Ora, o problema da análise constitutiva (que não é senãoo problema das condições transcendentais de acessoà objetividade) é investigar como cada região ontológica recebe o seu sentido de ser em nexos de experiência subjetiva. Esclarecer o problema da constituição

ontológicaprópria. Mas então reconhecemos que a descrição eidética

do sentido de certo tipo de objetividade é, dessamaneira, explicitar

Enfatiza-seaqui que a consciência está essencialmente ligada ao seu

quais são as correlações íntencí07zaís necessárias para que o tipo de ser

correlatoe que, dessemodo, o domínio de investigaçãoda consciên-

em questão possa ser atestado de maneira correra. Por exemplo, se se

ciaenvolvetudo aquilo a que essapossase referir intencionalmente.

pergunta "quais as condições transcendentais da atestação de coisasfísicas?",trata-se então de investigar quais são as estruturas intencionais

Porisso já era garantido no parágrafo 50 que a investigação fenome-

da consciência que permitem a manifestaçãode uma objetividade tal

mundonatural, dele não perde propriamente nada, e ainda ganha o ser

como aquela das coisas físicas. Nesse caso, a estrutura principal é a per-

absoluto,"o qual, corretamente entendido, abriga todas astranscendênciasmundanas, as 'constitui' em si" (Idl, 119). Lembremo-nos de que

cepção sensível. Seria preciso, então, investigar mais especificamente como a percepção oferece a doação das coisasfísicas, para então avançar na análise constitutiva de um tipo específico de objetividade. 146

daconsciência remete à descrição daquilo que nela se é consciente, re-

conhecemosque o correlato da consciência é inseparável da consciên-

ciae no entanto não está realmente nela contido" (Idl, S 128, 314)

nológico-transcendental, embora suspenda a validade de ser de todo o

a reduçãofenomenológica foi apresentada como método para suspender a validade ingênua das posições de ser acerca do mundo natural e 147

A cienti6lcidade rla fenomenologia de Husserl

A fenomenologia como ciência eidética e transcendental

.+#à}1., #, liberar a pura fenomenalidade com base na qual se vai tratar do pro.

somenteenquanto correlatos de fitos subjetivos, e nesse sentido eles

blema transcendental. Em seguida, houve aquela longa análise sobre o caráter absoluto da consciência, que, entre outros resultados, tornou compreensível como se desliga a validade de serdo mundo sem afetaro ser da consciência. Agora, retornando à questãotranscendental, Husserl

los mesmosobjetos da orientação natural) são chamados de noeDas.Dessa forma, na orientação fenomenológica, Husserl recupera o mundo inteiro como correlato noemático dos atos intencionais da consciência.Daí que a consciência absoluta não tenha exterior, mas abarquetoda transcendênciaenquanto conteúdo noemático possível.

destaca que, além de absoluta, a consciência é intencional e, nessesentido,

envolve

o mundo

todo (do qual

é independente

em sua essência

mais geral), abarcando todas as transcendências em si mesma. Dessa forma, o mundo natural inteiro faz parte do campo da consciência pura mas não como

mundo

real existente

em si e por si(o

que foi suspenso

pela epoc/zé), e sim como correlato intencional, como rzoei7zcz6i.

O noema não é uma parte real, interna às vivências, tal como a$ sensaçõese os alas, masé o que Husserl chama de componente intencional das vivências (Cf. Idl, S 88). Trata-se do ser enquanto visado, en-

quanto correlato de um ato de consciência que a ele se refere. Husserl sistematiza por meio dessanoção a ideia vigente ao menos desde 1906 jconforme visto no capítulo anterior) de que o correlato intencional da consciência deve fazer parte da investigação transcendentalõz. Ê importante esclarecer que o noema não é uma espécie de representação

interna à consciência e que operaria como uma "imagem do mundo" após esseter sido reduzido fenomenologicamente. O noema não é um tipo novo de objeto nessesentido; parece mais correio compreendê-lo como resultado de um novo modo de fematízar os objetos da orientação natural. Não há, nessa interpretação, um mundo de noemas criado

pela redução;o que há é uma orientação não natural do pensarem relação aos mesmos objetos dados na orientação natural. Segundo essa

E é justamente com base nesse conteúdo visado, o qual se manifesta de modo evidente, que se pretende resolver o problema das condições de possibilidade do acesso a qualquer objetividade possível. Trata-se de investigar as sínteses intencionais por meio das quais ao conteúdo

noemáticoevidente é atribuído validade de ser transcendente ou, em outraspalavras, de que maneira a noção de transcendência objetiva é paulatinamente constituída com base no conteúdo noemático imediatamente dado. Esse é o núcleo das análises constitutivas de Ideias l

Husserl dedica as duas últimas seções desse livro à análise cons-

titutiva, para dali extrair consequênciaspara a fenomenologia como uma teoria geral da razão enquanto afirmação justificada do ser efetivo. Desse modo, a análise constitutiva

deve tornar visíveis as diversas

operaçõessubjetivas que a partir da pura fenomenalidade evidente (o resultadodireto da epoché)abibuem diferentes sentidos de ser ao dado

fenomenal,até a noção de ser eáetívczmente existente.Não pretendo acompanhar essasquestões, mas sim extrair algumas consequências do

caráterconstituinte ou transcendental da consciência pura, enquanto tema da fenomenologia, em relação às demais ciências. Mantenho-me, assim,voltado para as preocupações gerais que me guiam neste traba-

orientação não natural, os objetos são tomados somente em sua mani-

lho, a saber,o problema da demarcaçãoentre filosofia e ciências e o problemada fundamentação das ciências pela filosofia. Para isso, re-

festação fenomenal evidente e não como entes em si; são considerados

construirei algumas teses dos parágrafos 56, 59-62 de ideias 1, textos

61. Tal como observa L. Tengelyi, na segunda parte de Ideias 1, Husserl tem de reunir as esferas de ser (consciência e mundo) que ele havia separado para delimitar o resíduo "absoluto" da redução fenomenológica. A ênfase na intencionalidade pretende

emque Husserlreflete sobreo impacto da orientação fenomenológica paraasdemais atividades científicas

justamentecumprir essatarefa.Cf. Tengelyi, 2010 62. Há interpretações divergentesacerca da noção de noema, e aqui, para

Aplicação da epoché àscíêncÍas

longas digressões, assumirei uma delas comia corneta, embora admita que haja ampla margem de divergência acerca do que exporei sucintamente a seguir. I'ara uma exposi' ção detida das principais posições conflitantes sobre o noema, cf. Zahavi, 2004

tencialdo mundo natural pela epoc/zéfenomenológica atinge também

148

149

No parágrafo 56, Husserl acentua que a suspensão da validade exis-

A fenomenologia como ciência eidética e transcenden@l

A cientificidade na fenomenologia de Husserl

Notemos que somente o domínio eidético material da consciên-

cianão é suspensoEmbora "consciência" também seja um domínio ontológicomaterial, tal como a região eidética "natureza", as essênciasreferentes ao primeiro domínio são essências de eventos imanen-

tes,passíveisde ser atestadosem intuição evidente. E a redução feno-

menológicasuspendea validade do que é transcendentepara acom-

panhara c:nstituição do seu sentido de ser por.meio daquilo que é imanente.Desse modo, somente o domínio eidético material da consciênciapura resiste à epoc/zé, e a fenomenologia,

assim como já ocor-

riaem relação às ciências naturais, não se servirá de nenhum conhecimentooriundo de outras ciências eidéticas materiais para construir as astesesó3. Todas as disciplinas eidéticas materiais transcendentes sujem dadaa possibilidade de estudar objetivamente seu domínio eidé-

lco, exatamenteo que a fenomenologia pretende esclarecer.Daí por e avalidade dessasdisciplinas também seja suspensa e elas nada con-

ibuampara a resolução do problema transcendental.

Haveráuma dificuldade particular no que tange às disciplinas ei:loasque constituem o domínio da /ógícczpura ou oizto/agia forma/.

lbe a essaúltima oferecer uma teoria geral sobreas categoriasformais

pilaresque permitem construir conhecimentos significativos e váliacerca de quaisquer áreas específicas do saber. Há um conjunto

categoriasbásicas (tais como verdade, relação, proposição, objeto

.l que implicam restriçõeslógicas a ser seguidasem qualquer tipo )esquina, e há também certos métodos de legitimação do conheci-

lto aprovas do cálculo proposicional, silogística etc.) que garantem :idade das cadeias de inferência a respeito de qualquer assunto. O

lecimento que merece o nome de científico é aquele fundamenrigorosamentepor princípios que compõem esseconjunto de res:s formais. Ora, se é assim, se o conteúdo teórico da oncologia for-

l valeparaqualquer investigação científica, parece então que a feno)logiaé por ele condicionada. Não caberia, desdeentão, aplicar a 53.E o que Husserl deixa claro no seguinte trecho do parágrafo 60: "regiões e dis-

eidéticastranscendentesnão podem por princípio contribuir com nenhuma de missas parauma fenomenologia que pretenda efetivamentese ater à região das puras" (Idl, 143).

enquanto uma dimensão eidética abstrata) 150

151

A cientificidade na fenomenologiade Husserl

A fenomenologiacomo ciência eidética e transcendental 4.

epoc/zéà ontologia formal, e, por conseguinte, a fenomenologia

.ue ja fenomenologial poderia oportunamente lançar mão, seriam por-

dependente de ao menos um tipo de doutrina científica objetiva é o problema central do parágrafo 59 de Ideias I'4. Diante dele, o

tantosomente axionzas lógicos, como o princípio de contradição, cuja

nomenólogo propõe uma solução engenhosapara fazer valer a Zf)oché

evidenteem seus dados próprios" (Idl, 142). Desde então, mesmo a an-

ao menos em relação a grande parte da oncologia formal. Trata-se

tologiaformal, ciência dos fundamentos lógicos mais geraisdo conhe-

acentuar o caráfer descrífívo da fenomenologia, tendo em vista garantir

cimento,deve ser suspensa pela epoc/zée, assim, não poderá servir de

a autonomia dessaúltima em relaçãoà ontologia formal. As tesesdak.

premissapala o avanço. das investigações fenomenológicas.

nomenologia devem ser formuladas em estrita evidência; nada do que ela defende no que se refere à consciência deve ultrapassar os limites

palidezgeral e absoluta ela poderia, no entanto, tornar exemplarmente

'

Vê-se,dessamaneira, que Husserl constrói uma ampla demarca-

cadeias dedutivas, que se sustentam muito mais pelo caráter tÍI)ico d.

çãoda fenomenologia em relação a todas as outras ciências, sejam essas empíricasou eidéticas. No parágrafo 62 de Ideias 1, ele tematiza essa demarcaçãocom base na oposição terminológica, fixada no parágrafo

certas passagenslógicas do que por uma apreensãoevidente do sentido

26,ente ciênciasde orientação dogmática e ciências de orientação fi-

daquilo que é veiculado em cada inferência. A fenomenologia secon-

losófica.Fica agora patente que todas asciências afetadaspela redução fenomenológicasãodogmáticas, no sentido em que elas sãoproduzidas

do que se doa de modo intuitivo. Não se trata então de propor longas

tenta com inferências simples, que se exibem com evidência, sãoassim

nenhum momento, extração de conclusões meramente por força de

semque se busque esclarecer quais são suas condições transcendentais desentido. Por sua vez, também torna-se patente que a ciência filosó-

restriçõeslógicas independentes da apreensãodireta daquilo que é con-

ficapor excelência, que justamente vai exercer uma crítica fundamen-

cluído's. Dessamaneira, a ontologia formal não é um pressupostoteórico da fenomenologia, já que grande parte do conteúdo temático dessa

tadoraem relaçãoa todos os conhecimentos dogmáticos,é a fenomenologia.Caberá a ela, a partir da investigaçãointuitiva das estruturas

antologia se refere à "teoria das formas dos sistemas dedutivos em ge-

daconsciência pura, revelar quais são "os pontos de partida imediatos

ral" (Idl, 141), sistemas que não são empregados pela fenomenologia.

possíveis" (Idl, 148) para que qualquer empreendimento científico se desenvolva de modo legítimo. Dessamaneira, com baseno estudodas

sedimentadas e fomentam novas inferências simples, sem que haja, em

Em todo caso, deve-sereconhecer que a fenomenologia seguia por

alguns princípios lógicos gerais,ainda que muito genéricos. É importante observar que mesmo aí não é preciso remeter à antologia formal para garantir a validade dessesprincípios. A estratégia aqui é enfatizar

a evidência intuitiva inerente a eles.A formulação teórica da fenomenologia supõe apenas noções lógicas que se confirmam com clareza na própria análise dos dados fenomenológicos: "as proposições lógicas, de 64. "Toda vivência pura também está subordinada ao sentido lógico mais ampla de objeto. Não podemos, pois fará de circuito" (Idl, 141)

assim parece

, colocar a lógica e a oncologia formal

65. "jAI investigaçãoda consciência pura não se coloca (. . .) outra tarefa senãoa da análise descritiva, que ela tem de solucionar em intuição pura: neste caso, asformas de teorias das disciplinas matemáticas e todos os seusteoremas mediados não podem ter nenhuma serventia para ela" (Idl, 141) 152

estruturasmais gerais da consciência, tornar-se-á compreensível como osconhecimentos são produzidos e sistematizados em estruturas teóricasválidas.Husserl asseveraque estãocontidos na fenomenologia todos os conhecimentos eidéticos 1...) com os quais se dá resposta aos problemas radicais acerca da 'possibilidade" de quaisquer presumíveis conhecimentos e ciências Como fenomenologia aplicada, ela Eaz,portanto, a crítica que adere o valor último de toda ciência em sua especificidade de princípio e, com isso,realiza em particular a determinação última do sentido do 'ser" dos objetos e a clarificação de princípio do método dessaciência (Idl, 148)

Aqui, atribui-se à fenomenologia a tarefa de aferir o valor último de todaciência, e isso por meio da clarificação do sentido de ser dos seus 153

A cientificidade na fenomenologiade Husserl

A fenomenologia como ciência eidética e transcendental

condiçõessubjetivas, para que todas as ciências estejam fenocomente fundamentadas. Era assim que Husserl pensavaem menologi merzos Porém, ao menos desde 1906-1907, como vimos no caas

rica e transcendental, a fenomenologia pura almeja c arificar as está. luras a príon de fitos subjetivos que tornam possível a constituição nificativa de qualquer experiência concebível. Ora um tema particular

no interior desseplano global é aquele da legitimidade ou clentifjci. nhecimento

--'-H é possível significa oferecer a ele uma fundamen

tação es

pecífica, tornando visíveisas condições transcendentais cu lo não cuU. primento inviabilizaria toda empreitada científica No entanto, no final do parágrafo 62, Husserl admite que não avançará na exploração desse tema em Ideias 1, e que ali ele somente adianta reflexões que )ustamente

perfazem o tema do ferceírolivro de Ideias, o qual nunca foi publicado em vida66.Proponho então acompanhar como essetema da fundamen. t8rãn fpnomenológica das ciências foi esboçado em ideias lll.

PÍHlo que

anterior, ele reconhece que há pressupostos materiais a pHorí

condicionamo desenvolvimento das ciências não formais. Estão

nessesconceitos ontológicos certas restrições d priori que não sãopuramente lógicas mas que remetem às relações dos conteúdos escontidas

pacíficos das regiões em questão, conforme

desenvolvido no início de

IdeÍcls

r. Essasrestrições a priori circunscrevem, em termos de possibili-

dades

ideais, os tipos de fenómenos daquela região ontológica em vista.

Daí que parafundamentar as ciências materiais não bastater claras as suas

çõe:

lógicas, pois também é preciso levar em conta essasrestria príoH impostas pela estrutura interna de cada domínio temático.

Por exemplo, uma análise bastante simples das coisas materiais reco-

nheceque elas têm cores e que, por sua vez, as cores supõem a extensãopara se manifestar. Essaconstatação exemplifica uma regra a príod que delimita todos os casos possíveis de coisas materiais em relação a

As tarefas clarificadoras

esse

No parágrafo 19 de Ideias /ll, Husserl retoma a ideia lançada em Pro/egõmenosde que há uma imperfeição teórica nas ciências, uma vez

que seuspressupostosmais básicosnão estãodevidamente expostos e

aspecto. Essa regra eidética pode ser assim formulada: "toda exten-

sãoé colorida". Nega-la em uma investigaçãoempírica, afirmar, por exemplo,que "a extensãoque se busca aqui não é colorida" significa

compreendidos. Acentuam-se agora os conceitos ltliiilniiitaitetnlnniH

desrespeitar um princípio eidético material puro. Note-seque não se tratade apontar nenhuma falha lógica nessejuízo particular, nenhum

ciplinas, aqueles que circunscrevem a sua região ontológica de atuação e que permitem que essaregião seja legitimamente investigada. Esses

descumprimentodas regrasda ontologia formal. No entanto essejuízo deveser descartado não somente por razões empíricas, e sim porque

conceitos devem ser clarificados para que se torne explícito o caráter fundamentado e sistemáticodo conhecimento científico.

violauma restrição eidética a /)ríorí, uma restrição material ou sinté-

Em primeiro lugar, há os conceitosformais,ou seja,as categorias

tica, que trata da articulação de conteúdos possíveisde um domínio e nãosomente de formas lógicas vazias.

mais amplas de significação e de objeto, sobre as quais a investigação de qualquer domínio deve se desenvolver. Em seguida, é preciso le\ar

Ainda em relaçãoao método de clarificação, no parágrafo20 de Ideias111é expostoum duplo aspectoda sua aplicação.Primeiro,

em conta os conceitos ontológico-regionais, que delimitam domínios de ser, isto é, áreas materiais específicas a se explorar. Não basta, assim,

Husserlpropõe uma separaçãoentre "tornar claro" (clarificar) e "tornardistinto". Essaúltima operaçãoé um procedimento que ocorre so-

remeter os conceitos formais à sua origem fenomenológica, desvelando

mentena esfera do pensar lógico. Trata-se de elucidar o significado de

66. ."Com isso, entretanto, estamos adiantando fiJturas exposições (do terceiro livra

destetrabalho"(Idl,148).

' 154

'

'

um conceito, de formular expressõesque veiculem o sentido ali contido analiticamente. Bem diferente disso é a clarificação, um procedimento que não se limita a desenvolver linguisticamente o conteúdo 155

A fenomenologia como ciência eidética e transcendental

A cientificidade na fenomenologia de Husserl

conceitual analítico, mas que pretende reconduzi-lo aos atossubjetivos

intuitiva da essênciaem pauta, a qual deve ser fixada justamente como aquiloque era visado pelo sentido conceitual analisado. Um conceito basilarestá bem fundamentado; desseponto de vista, se exprime cor-

por meio dos quais recebeu seu sentido. Trata-se aqui de averiguar se

a esseconteúdo conceptualcorresponde momentos intuitivos, delimi. bando, dessemodo, o sentido do conceito ao oferecer um lastro de evi. dência para avaliar os seusdiferentes usoslinguísticosó

retamente características eidéticas em questão que devem valer, ceteds

Husserl sugere que a clarificação, ao tornar visível a correspondên-

com precisão o sentido dos termos científicos, evitando equívocos ao

exemplode clarificação do conceito "coisa Hsica" (Cf. Idlll, S 19, 100) Esseconceito deve veicular os aspectosessenciaisda região ontológica "coisa",tais quais materialidade, determinações espaçotemporais, in-

salientarqual é o uso conceitual relevantepor meio da referênciaà sua

serção em nexoscausaisetc. A clarificação atribui evidência intuitiva a

origem intuitiva. Rejeita-seaqui uma fixação meramente estipulativa de

essas característicasconceituais delimitadoras da região "coisa". Desse

sen\tdo, ao menos para os conceitos mais básicos das disciplinas cientí$cas. Os conceitos científicos fundamentais devem exprimir as principais

modo, fixa-se o sentido do conceito pela explicitação evidente das ca-

relações e restrições do domínio ontológico a ser investigado. Tais conceitos devem então ser remetidos à apreensão intuitiva dos aspectoseidé-

Husserl acentua que, além desseaspecto da clarificação, ligado às

paHbus,para todos os seus casos empíricos possíveis. Husserl oferece o

cia ente momentos conceituais e momentos intuitivos, permite fixar

racterísticaseidéticas que deveriam ser por ele veiculadas.

relações entre conceito e intuição correspondente,há uma tarefaespecíficano que tangeà própria doaçãointuitiva do tema em questão

ticos que justamente delimitam tipos de ser (no casodos conceitos ma-

ceitos aos noemas intuitivos por meio dos quais aquilo que é significado

ICf.Idlll, S 20). Nesseponto, não se trata de remeter o conceito aosaspectosnoemáticos da essência correspondente, mas de problematizar aprópria doação intuitiva da essência conceitual em questão. Aqui, a

se apresenta de modo evidente. Ora, aquilo que os conceitos básicos de-

clarificação significa justamente tornar acessível a doação intuitiva da

vem veicular são os caracteres essenciais da região ontológica ou do prin-

essênciaregional em vista, o que, por sua vez, implica avaliar a clareza

teriais) ou tipos de relações formais (no caso dos conceitos formais). Por

meio da clarificação, Husserlpretende remeter o conteúdo dessescon-

dosaspectos invariantes obtidos por meio da variação dos casos indivi-

cípio lógico em questão. Clarificar essesconceitos, remetê-los à origem

intuitiva, significa, assim, reenviar o conteúdo conceitual à apreensão

duaisde partida. Se necessário, como já apontado nos parágrafos 67-

69de Ideias 1, deve-seintensificar a evidência intuitiva eidética, o que podemesmo exigir que se alterem os exemplos de partida.

67. J. Mohanty observaque nessaanáliseclarificatória se torna patenteo caráter aplicado ou especializadoda fenomenologia em relação as.tarefas.gerais da análise constihtiva: "a fenomenologia não é mais uma ciência morfológica de essências,mas uma tentativa radical de clarificar sentidos,de levar formações signi6tcativasde ordem

A clarificação fenomenológica é, assim, apresentadacomo uma dupla tarefa: por um lado, buscar o máximo de clareza ou vivacidade

a atividade clarificação de sentidosé guiada pela meta de retornar à experiência 'origi-

possível em relaçãoà doaçãoda essênciaem questãoe, por outro lado, buscaro maior grau possívelde preenchimento do conteúdo conceptualem vista pelos dadosintuitivos eidéticos. E pela conjunção dessas

nária"'

duastarefasque Husserl pretende fundamentar fenomenologicamente

superior a camadas mais básicas de sentidos e aos alas apropriados const.ituintes de tais formações. Enquanto a busca por essências é guiada pelo ideal de verdade apodítica, (Mohanty,

1987,

202).

Não creio,

enbetanto,

que se deva exagerar

as supostas

particularidades'da clarificação enquanto fenomenologia apli.cadaem contrastecom.a fenomenologia pura. Afinal, como veremos logo na sequência.do texto, a expe':ência originária

que se tem em vista na clarificação

é justamente

a doação

intuitiva

das.ca-

racterísticas eidéticas que devem preencher o sentido dos conceitos. A busca apodítica pelas essências ainda é, assim, central para a fundamentação das ciências. Em suma,

na clari6cação trata-se'ainda de análisesconstitutivas, porém circunscritas ao âmbito da cientificidade. 156

asciências. Trata-se de um prometojá presente em Pro/egõmelzos,como

remissãodas estruturas objetivas da lógica pura à sua origem atestató-

ria.Clarificar os conceitos, desdeaquela obra, é explicitar os fitos em queo conteúdo conceitual é apreendido e reconhecido com evidência.E essaideia de origem fenomenológica que ainda guia Husserl em 57

l

A cientificidade na fenomenologia de Husser]

A fenomenologia como ciência eidética e transcendental

Ideias JI/, embora submetida a duas Essas

formal em um conjunto de ontologias materiais) e da noética em fenomenologia transcendente

distinçõesde regiõesontológicas fundamentam a separação

das áreascientíficas

limita a

Assim, por exemplo, a ciência física da natureza se

nvestlgar os caracteres materiais dos eventos mundanos sem

conta as particularidades dos organismos. Por sua vez, a ciênvivos centraliza-se nos fatos que instanciam as especificicia dos seres dos organismos, sem trata-los como meros eventos da levarem

A fundamentação das ciências pela :ratificação, e o

casoespecialda psicologia

jades eidéticas

Clarificar osconceitosde basedasciências(sejam eles formaisou materiais) é então reconduzi-los à apreensãointuitiva das característi.

cas essenciais por eles expressas. Quanto às ciências

apresenta três diferentes regiões on

materiais,

Husserl

[ológicas cujas características

dais de certo modo coordenama apreensão do nosso mundo rico factual. Lembremo-nos fatos não são meras

esses

de que fora estabelecido em Ideias r empÍ que os

singularidades incomparáveis, mas portadores de características gerais, e que seria possível analisar essascaracterísticas

gerais em sua pureza, isto é, independentemente de sua mstanciação em situações concretas. Assim se formulariam ontol ogiasregionaisou

.rdern física. Dessa maneira, as característicaseidéticas funcionam cornor egrasa príoH que delimitam os tipos de características e relações

de que os fatos

de um determinado domínio se compõem,além de

um modo privilegiado de abordagem para que tais fatos

prescreverem sejam conhecidosconforme as característicasprincipais do domínio a que se subsumem6ç. Assim, por meio das ontologias materiais, deve ser

circunscrever tanto as principais

características dos objetos

de um domínio possível quanto asformas de experiência privilegiadas para obtençãode conhecimento naquele domínio (Cf. IdITI, S 3) As essênciasreglonats operam, desse modo, como pressupostosteóricos, como formas sintéticas a priori que delimitam o âmbito e o sentido dos

materiais, quer dizer, explorações sistemáticas das característicaseidé. ricas que circunscrevem domínios possíveis de objetos. É a esse tema que Husserl retorna em Jdeías //J. de mnnr.irn h. m mais específica,iá que ali é dito que nossomundo natural permite a explicitação de pelo menos três regiões eídéficas: "coisa material". organismo" e "psique" (Idlll, 1). Há uma estratificação constitutiva entre essasregiões: o organismo se erige sobrea materialidade física e,porsua vez,a psiquese erige sobre o organismo; e cada nível eidético

métodosdas ciências empíricas

ras novas em comparação com os níveis anterioresõ8.

mesmaforma, em relação aos aspectos eidéticos da coisa material, do

Aqui é preciso retomar aquela distinção, lançada em Prolegõmenos,

entrecondiçõesobjetivas e subjetivas do conhecimento para entendercorretamenteo que Husserl tem em vista em Ideias 111.Conforme jásugerido no capítulo inicial de Ideias 1, as características essenciais quedelimitam as regiões materiais devem ser a princípio tema de ciêndas eidéticas.E assim, por exemplo, que ao estudo empírico do espaço corresoondeuma doutrina pura do espaço,a saber,a geometria.Da organismoe da psique caberia o desenvolvimento de ciências eidéticas próprias, as quais por sua vez fundamentariam

as ciências empíricas

69. Por exemplo, os métodos para investigar os organismos, se pretendem apreen' der o que há de específico na vida, não devem ser os mesmos da apreensão das coisas

materiais,embora 'suponham a vigência dos conceitos referentes ao nível físico. Cf Idlll, S 2. Tal como afirma T. Klein, "os conceitos sobre o corpo vivo só podem ser introduzidos,ou emergem do interior de, em uma rede conceitual que já inclui os conceitossobrea coisa material, enquanto essesúltimos podem ser inboduzidos em !edes conceihais em que faltam os primeiros. No caso dos conceitos sobrea psique, eles já pressupõem os dois tipos em uma rede conceptual". (Klein, 1996, 7 1) 158

159

A cientificidade na fenomenologiade Husser]

A fenomenologia como ciência eidética e transcendental

B:M

correspondentes ao distinguir os condicionam.

de uma investigação da consciência somente com base

Nesse sentido, as

a pHorí que delimitam as possibilidades ideais ligadas à consciência possível. E, como ciência eidética, a fenomenoinvestiga as estruturas a príoH do domínio da consDaí Husserl afirmar, no parágrafo 8 de Ideias 111,que "nós posna forma de fenomenologia -- uma porção considerável da racional" (Idl11, 37), quer dizer, uma porção considerável da

da oncologia formal, doutrinas ciências empíricas. Por sua vez, a meter os conceitos científicos

às suas

condições sub/efívas da produção do na, assim, realizada em loção às ciências

que funda o conhecimento empírico sobre os fatos psí-

dut)ta

Em outro trecho do mesmo parágrafo, o filósofo confirma esse

logicamente as disciplinas objetos passíveis de

fundacional da fenomenologia em relação à psicologia: "deve ser

não há ontologias

a fenomenologia, ou melhor, a doutrina eidética das vivências

cas existentes, mas o seu

incorporadana ideia de psicologia racional, abre um campo de verdades, as quais, enquanto se relacionam d priori aos esta-

desenvolvera Ontologia var a experiência e o conhecimento

enriquecem infinitamente o conhecimento psicológico Dessemodo, enquanto doutrina eidética de uma região de

nível de compreensão70. Por outro

.z priori (a consciência), a fenomenologia fundamenta o conhecimento empírico dos fatos que exemplificam as estruturas a pHorí

gem intuitiva aquilo que foi estabelecidode crinas eidéticas, tornando objetividade eidética em

detal região, ou seja, fundamenta a psicologia empírica

As relaçõesentre fenomenologia e psicologia são mesmo tortuosas.Vimos que, na primeira edição de l7zvestígações /ógícas,Husserl

Importa agora destacar particular,

essa dupla

nomeou a fenomenologia de psicologia descritiva, apropriando-se da

ber, no caso da psicologia. A tanto os fundamentos

herançabrentaniana. Alguns anos depois, para marcar a especificidade

eidéticos (já

ciência pura, isto é, das fenómenos concebíveis

os

dainvestigaçãopor ele almejada, recusou de modo veemente a identificação entre fenomenologia e psicologia descritiva. Agora o autor voltaa aproximar ao menos em parte fenomenologia e psicologia, uma vezque se compreenda bem a distinção entre antologias eidéticas materiais e ciências empíricas correspondentes, distinção ausente em l7zvestígações /ógícas.Em Ideias 111,a psicologia, enquanto ciência em-

tais (ligados à

lógicos formam uma como todos os fatos, os eventos

des, mas portam características

sua

forma pura, quer dizer, em suas volver uma psíco/ogía rczcíona/ não no

pírica, é apresentada com a base de suas investigações em ocorrências

reais,em fatos concretos que se explicam por meio da formulação de hipótesese teorias. Ora, a própria compreensão do que é um fato psico-

;$$bhHWlw )ui: 160

lógicoem oposição,por exemplo, a um fato da naturezafísica pressu' põea delimitação eidética da região "consciência". Essadelimitação, baseadaem puras possibilidadesideais, cabe à fenomenologia, doutrina da consciência pura. Nesse sentido, psicologia e fenomenologia 161

A cientificidade

na fenomenologia de Husserl

A fenomenologia como ciência eidética e transcendental

não se confundem. A casos reais

Nessesentido, todo objeto possível faz parte do âm-

H

(aquilo que

oito

referem as teorias

menológ co enquanto ser experienciável. Por isso ela envolve

outrasregiões eidéticas, já que importa considerar asessências delimitam asregiões eidéticas como correlatas dos nexos de expe-

todas as

fica que procuraleise para isso se serve de casos

em que elas são atestadas com evidência.

ciência

análise eidética

Aqu estánovamente em jogo a conversão de orientação tão marcante da fenomenologia. Husserl sugere que as ontologias são montadas na orientação natural do pensar. No parágrafo 15 de Ideias 111,o

nologia oferecem clareza

filósofo

vestigação das essências.

dadospela

empírica (Cf. Idlll, S em dimensõesteóricas Nessesúltimos cia eidéticade papel fundacional Poréma

do espaço

sem uma investigação correspondente das condições trans-

cendentais

ali em jogo. Em seguida, Husserl acentua que para inves-

tais condições é preciso uma mudança de orientação do pensar,

tjgar de modo a

explicitar as vivências da consciência nas quais os temas

antologias aparecem, esclarecendo, assim, quais estruturas da consciência tornam possível o acesso às essências. Na orientação natural

também é ciêncí, um modo particular

dá o exemplo da geometria, a qual admitira o caráter eidético

em que asantologias são montadas, os conceitos regionais básicos são

não só a

postos

como axiomas com validade objetiva. Revelam-se aqui, sem dú-

pressupostos do conhecimento empírico. Contudo, para realizar

Ontologias e,

uma fundamentação

tes. Husserl aponta menológica nos

completa

das ciências, Éaz-senecessário esc/atacar

ascondiçõessubjetivas que tomam possíveisa posição e o conhecimento c/esses conceitos básicos. [)esse ponto de vista, a fenomeno]ogia transcendental é "a ciência das 'origens', das 'mães' de toda cognição" (Idlll,

enquanto análise das

menologia é uma doutrina

S15,80), e a clarificação é justamente o método por meio do qual os conceitosbásicos das ciências são reconduzidos aos fitos subjetivos que

a estudar um único domínio ontologias puras. Conforme

tornampossívela sua posição como válidos objetivamente.

Veremos,no próximo capítulo, que a explicitação dessascorrela-

todo, e a

coloria racional A sequênciadessetexto

çõesestruturais estáticas entre as essências e os atos subjetivos de atestação de seu sentido não esgota a tarefa clarificadora fenomenológica, que será desdobrada na investigação da gênese das características eidé-

gia abarcatodasasontologias

ticasdasregiões científicas na experiência pré-teórica.

axiomas, na medida em tos de consciência

cendental,a nas d um domínio cimento de relações 162 163

CAPITULOlll

Método estático e método genético na fundamentação das ciências

Apresentação

Acompanhamos no capítulo anterior a montagem do prometode

fundamentação transcendentaldasciênciaspor meio da clarificação de seus conceitos basilares, prometo esboçado em Ideias l e Ideias lll.

Nessestextos, Husserl propõe uma estratificação do conhecimento científico: as ciências empíricas tratam dos fatos mundanos, os quais

não são totalmente contingentes mas partilham de atributos eidéti cos que podem ser explicitados de modo puro (sem a pressuposição

daexistênciade indivíduos concretos que os exemplifiquem) e, desse modo, dão ocasião a investigações eidéticas. Os aspectos eidéticos materiais são aqueles que circunscrevem regiões ontológicas, ou seja, ti-

pos de ser específicos. Além disso, há os temas eidéticos puramente

formais, relativos à forma das significações e dos Juízospor meio dos quaiso conhecimento em relação a qualquer área material é exprimido. Husser] defende que o conhecimento eidético é fundente em relação ao conhecimento empírico porque delimita as características

principais dos fenómenos a se investigar concretamente e prescreve 165

A cientificidade na âenomenoJogia de

métodos

estático e método genético na fundamentação das ciências.

.} r;} l;,'»,

tos eidétjcos será aplicada.

Husser

particular, a inv tos centrais do diretamente ,s Neste terceiro tido como

tematiza o sentido dessa estratégia em alguns momentos

1.No final do parágrafo17 é anunciadaa tarefade recende/delas eidéticossupremostendo em vista a subordinaçãodos concretosà sua região eidética correspondentee, por conindivíduos a produçãode conhecimento empírico fundado eideticaseguinte Assim, grande parte do problema da clarificação dos diversos mente. científicos se resolveria com esserecenseamento,inconhecimentos lastreado das diversas regiões do ser caque saoos con Hitivamente

esse

Husserl refletiu Veremos bre esses

Feitos

eidéticos amplos (que exprimem gêneros supremos) aqueles que

ampliação

justificariamas próprias divisões das disciplinas científicas. Essa ênfase

giba, de modo , constitutivos. a Conhecid,

nos

conceitoseidéticos formais e regionais é retomada nos parágrafos 52 de Ideias J. Ali, é afirmado que tanto os conceitos eidéticos

formaisquanto os materiais, postos de modo ingênuo pelas ontologias

correspondentes como válidos objetivamente, designam hdíces para a análiseconstitutiva. Essetema é, como veremos a seguir, desenvol-

tema geral da posto em um novo de da

vidomuito mais em relação às ontologias materiais, tópico que passoa acompanhara partir de agora. Segundo o parágrafo 149 de Ideias l, "cada região oferece aqui o

Êocondutor para seu próprio grupo fechado de investigação" (\d\, i64). As Correõesoeseicaticas entre regiões eidétÍcas e

Assim,em relaçãoa cadaesferaontológica ampla, que delimita um tipo geral de ser (por exemplo, região "coisa" ou "consciência"), deve$emostrar como as principais determinações eidéticas ali em vigor supõem operações específicas da consciência. Cada objeto individual é

determinado por suas características eidéticas, o que envolve exigênciasa pHorí em relação ao tipo de intuição e aos graus de clareza de re-

presentaçãocom que esseobjeto é cognitivamente apreensível. Assim,

no nível das essências,já ocorre uma delimitação das possibilidades de doação ou atestação dos objetos subsumidos a seus respectivos gêneros regionais. Husserl afirma no parágrafo 150 (tomando por base o

exemploda região ontológica "coisa") que a "ideia de região prescreve sériesde aparições inteiramente determinadas, precisamente ordenadas, progredindo írz ín/irzíhm, rigorosamente fechadas enquanto tota-

lidade ideal" (Idl, 370). Cabe aqui à fenomenologia elucidar essasnecessidadeseidéticas, tornar visíveis as sínteses da consciência por meio ]66

das quais tais necessidades são atestadas, enfim, revelar os complexos 167

A científicidade na fenomenologiade Husser] estático e método genético na fundamentação das ciênoiBS .} i/ } r 'r .

o ponto de vista que serve como fio condutor para a vista é aquele das cíêncíczs7zaturais' Trata-se,assim, em Ideias 111,de recuar das regiões objetivas estu. dadas pelasciências naturais até as síntesessubjetivas que tornam poscível

no

o reconhecimento de tais regiões. Entretanto, Husserl admite ali

mesmoparágrafo que considerações bem diversas provavelmente

seriam formuladas se se tomasse a f)osso.z/idade esPírífua/ como domí.

nio ontológico autónomo E é exatamente essaregião ontológica que na proposta de Ideias llJ: a região do espírito (no sentido da pessoa-

lidadeconcreta e suasproduções culturais intersubjetivas), cujas particularidadesconstitutivas não são exploradas nesselivro Deve-senotar aqui que já se havia apontado para o espírito na formulaçãodo tema das regiões ontológicas como fios condutores para a análiseconstitutiva, em JdezasJ. E verdade que ali Husserl nao seguia nenhumaorientação particular em que asciências dogmáticas saoproduzidas,interessando-lhe muito mais unir todas as produções científi-

cassobas tesesda orientação natural do pensar, à qual contrapunha a orientaçãofenomenológica. Ainda assim, isto é, mesmo sem acentuar uma orientação persona/isca do pensar, reconhece-se que as pessoam e suas

comunidades formam, sim, objetos de uma ordem superior, a da cíví/íz.zção entendida como um amplo contexto de instituições e práticas culturais regidas por diversos tipos de valores (éticos, estéti-

cosetc.):. E, quanto a essanova ordem, são apresentadascaracterísti1. "Se objetos psíquicos se conectam com outros, estão combinados em associa-

ções,sociedadesde diferentesníveis, issonão produz novas obÍetidades ]Ob;elüfdfen]

emrelaçã.oà fulldação pela naturezaoriginal. (...) O que se tem aqui, do ponto de vistada ciência natural, é um certo número de indivíd'uos humanos, cada un] com umaconsciênciaparticular, uma psique particular com um ego particular pertencente a.cada uma. .(.....) O. que aparece aqui é sempre somente novos estados das psiques in-

dividuais" (Idl11,20).

'

'

'

2. Essaposição é mantida no curso Lógica e fecha gerei/da cíêrzcia,ministrado por sserlem 1917-1918 e publ.içado postumamente como volume XXX da coleção Husser/lona. Nesse curso, Husserl retoma a ideia lançada em Pro/egõmenosda doutrina da

ciênciaclarificadora da cientificidade de todo conhecimento. Essadouh-ina deve enver?além dasdisciplinas que revelam os pressupostosformais do saber,as antologias materiais,responsáveispela delimitação dasrestriçõesa príod que demarcamdom ínios materiaispossíveis.Um dosdomínios materiais que exige uma investigaçãoontológica 168

169

A cientificidade na fenomenologia de Husserl

Método estático e método genética na fundamentação das ciências

,r';}

casnão tão fáceis de conciliar. Admite-se que essenovo é fundado nos eventos tematizados pelas ciências naturais. vel não seria assim completamente independente das

casexploradaspor essetipo de ciência. Contudo, riste em afirmar que os objetos dessenovo nível "são arredias interpretações psicologizantes e naturalistas" (Idl, S 152, justamente não se deixam abarcar por uma cada pelas ciências naturais. Há aqui uma

nio da cultura ou do espírito se funda nos objetos naturais mas não se deixa abordar corretamente por uma orientação mente nos aspectos naturais dos objetos. O domínio do

4

rÍmento argumentativo global desse texto paul em seguida, dediWe a alguns problemas específicos referentes à fundamentação das

iciâs,obviamente sem pretensão de esgotara complexidade dessa

ã

' O plano do texto parece indicar um movimento de ascensãona iseconstitutiva: tratar-se-ia de tematizar as diferentes regiões on-

gicasque circunscrevem as possibilidadesde eventosreais como =lllgoÜ/Ícadas, ou seja,cujo nível superior seria fundado nos níveis infervores, embora a cada novo nível propriedades particulares emerjam, demodo a legitimar disciplinas científicas próprias. Dessa maneira, o

fio condutor da obra é dado pelos objetos tais como estudadospelas ciências, e a tarefa fenomenológica é elucidar em cada nível temático

assim, exceder as regiões antológicas abordadas

das ciências naturais (a orientação naturalista domínio de Ideias llJ, obra que seguecomo

quaisoperações.subjetivas permitem apreender legitimamente, em seusaspectoseidéticos, tais objetos. Trata-se, assim, de demarcar, no

ostemasobjetivosdessaorientação. O domínio análise constitutiva particular para ter tológica, tema que foi densamente

plano das necessidades eidéticas, as operações subjetivas que tornam possívelo conhecimento acerca de cada nível objetivo' Os níveis objetivos apresentados no correr do livro são a 7zaturez

Husserl mostrará os limites das ciências naturais para lidar com rito e começará a estabelecer a especificidade dessa

@ícae, sobre ela, a rzatureza animada (primeiro, no que tange ao corpo vivoe, em seguida, à vida ps@uíca) e finalmente o mundo do espírito

que, por sua vez, será fundente das ciências do

Ocorreque, como veremos,esseúltimo nível não será simplesmente

ciências humanas, conforme nossaterminologia

maisum estrato organizado sobre os níveis estruturais inferiores, e sim

A orientação naturaZísfa

umdomínio ontológico autónomo em correlação com operaçõessubjetivasdiferentes daquelas pelas quais os níveis anteriores de objetos

de Ideias l (por volta de 1912) e sofreu diversasmodificações no cor-

eran]constituídos, ou seja, recebiam seu sentido de ser. Em outras palavras,a natureza física e a natureza animada são objetos (em sentido amplo) que se doam em correlação com uma certa orientação do pen-

rer dos anos sem que Husserl se satisfizesse com os resultados obtidos.

sar,a saber,aquela dasciências naturais (orientação naturalista). Mas

preferindo, assim,não publica-lo em vida;. A princípio, vou destacaro

não será assim com o domínio do espírito, que estará em correlação

Ideias ll é um texto que foi inicialmente

produzido

na sequência

com outro tipo de orientação do pensar (orientação personalista). Essa própria.é o.do 'espírito comum" (Husserl, 1995, S 64, 283), isto é, da vida cultural em comunidade. Segundo o autor, "também abre-seaqui um''campo de consideraçõesa priori, uma antologia do espírito comum, uma doutrina eidética a pnorí que antecede asas ciências do espírito empírico do mesmo modo como o a priori da natureza antecede as ciências naturais" (ibid. )

]aç)

Parauma história do manuscrito do texto até a versãopublicada, cf. Biemell

4. Conforme observaE. Behnke, na exposiçãode Ideíczsll, "a fenomenologia operacomo uma metaorientação, investigando correlações essenciaisrecíprocasentre, por um lado, orientações constituintes e, por outro, objetívidades constituídas, compreendendo qualquer orientação dada 'do interior' (embora sem realmente 'adotá-la')

e mantendo uma noção rigorosa acerca de qual orientação está em ação a cada mo-

mento"(Behnke,1996,138) 170

171

A cientifícidade

na fenomenologia de Husser]

estáticoe método genético na fundamentação das ciê»das

mudança de loções vigentes entre ;

feÓdcado pensar.Segundo tal orientação, o sujeito apreendea

Eis, de modo mento argumentativo

.atureza

mais detalhes os

das ciências por

3, tenta-se

cas correspondentes.

Dais

da orientação do

do objeto a que

grato ]

piseconstitutiva quantoobjeto dasciências não escolhem arbitrariamente pnod decorrentes da essênci, da possível o reconhecimento reis. E a delimitação

orientações possíveis do pensar. Ali esclarece-se que a orientação

na qua

desse

de

postc

bém

como realidade espaçotemporal, salientando certos aspectos Ides dos objetos em detrimento de outros que poderiam ser em correlação com outras formas de pensará.No parágrafo detalhar a especificidade da orientação teórica diante dasde-

é maisespecíficaque a orientação dóxica ou objetivante geral, simplesmenteo correlato para o qual o ato subjetivo se dirige é

como sendoa/go. Essaposição genérica de algo como objeto tamocorre, por exemplo, nas orientações estética ou prática. Por sua

na orientaçãoteórica há algo mais específico,a saber,uma intenÇão

atenta que apreende explicitamente o dado em questãotendo em a obtenção de e7ztendíme77to. Nesse caso, não somente se vivenda

urnasituação conforme seus predicados típicos comumente ínanifesLados na doação perceptiva. Sobre essadoação, erige-se uma operação

m,is

natureza é o campo das

atava,guiada por um interesse especificamente cognitivo voltado para

espaçotemporais" (Id]], S ], ]

ajaunsaspectosdo objeto em vista, o que implica uma suspensão ao me-

como natural o domínio

nosparcial das características práticas ou estéticas presentes na situação

ralmente ordenado de nio dasrealidades. Husserl admite rece de

vividas.E importante observar, dessaforma, que a orientação teórica nãoé a conte dos próprios dados que investiga, mas supõe a sua doação em fitos objetivantes mais básicos, que, em última instância, remetem à doaçãosensível'. Explorar a remissão dos dados teóricos à sua base sensí-

normalmente se

vel pré-teórica seria traçar a gênese das operações cognitivas em sínteses

zem parte da essência da

passivas da consciência.Embora anunciado, essecaminho não é deta-

Husser] se refere aqui a comumente excluídos da realidade dos,o autor

o que exclui os próprios modos de doação fenomênicos, já que são essencialmente ine-

xatos,do domínio natural fundante

6. Por exemplo, numa orientação estética, destacam-seos predicados de beleza dosobjetos; numa orientação prática, destacam se os predicados ligados à utilidade etc

mais detalhada da

7. "Uma coisaé estarconscienteem geral de que o céu é azul, e outra coisaé

viverna realizaçãodo juízo (que o céu é agoraazul) de um modo atento,explici-

No parágrafo 2, fica

tamente apreensivo, especificamente intencional. As vivências dóxicas nessa atitude. nessemodo de realização explícita (eu penso, eu realizo um ato em um sentido específico, eu ponho o sujeito e em seguida o predicado etc.), nós as chamamos de atou teó

jetivadas aparece somente em

ricos"(Idll, S3, 3-4) 8. "Os objetos fenomenologicamente assim caracterizados

-;...:,=:E=.=======:==:=:=Tã;::.H=:=1====S:::=: sua constituição

os objetos primá-

rios,por assim dizer, aqueles aos quais todos os objetos possíveis, em conformidade com fenomenológica,

referem-se

172 173

são os objefos sezzsheís" (Idll,

S 8, 17)

A cíentificidade na fenomenologia de Husser] Métodc estático e método genético na fundamentação

Ihado em /delas 1/, e só será efetivamente

a ênfase em outros aspectosdos dados investigados''

décadade 1910,quando Husserl

menologia. Eu comentarei com fundo essemétodo. Por ora, basta ção teórica, porserfundada original, como se exigisse dais pré-teóricos para se instaurar certos aspectos em detrimento de cos a fim de maximizar o interesse

das ciênc.jasl

somente acentuar que a natureza como totalidade es-

é correlatade uma orientação teórica em particular, que os dadoscognitivos.

uma correlação estrita entre determinado modo de coe um modo de caracterizar a natureza. E não se correlação arbitrária, que corça ilegitimamente certas essobreum objeto alheio a tais determinações. Esseé um 11 de Ideias 11.Ali, Husserl esclarece: "deve ser

Husserl retoma essetema parágrafo 49e, ele afirma

do interior, com base em fontes fenomenológicas, que de predicados pertencentes à esfera do valor e da prática

reis ê uma orieíltação

abstraçãoarbitrária" (Idl1, 25). O filósofo crê que em seus

sedução de procedimentos habituados com tais

eidéticos a ideia de natureza comporta a sua apreensão como

aquisições pessoaissedimentadas dores podem até mesmo

de objetos sem valores ou qualidades estéticas.Ocorre aqui um de suspensãoda validade de predicados subjetivos que à própria redução fenomenológicaiz. Assim, a apreensão

poníve] ao pensar. No

não cria uma ideia arbitrária de natureza, mas suspende a vi-

orientação teórica supõe um ção do sujeito

subjetivos, para que os dados apareçam somente em

espaçotemporais apreendidas objetivamente. Não se imposição dogmática de propriedades estranhas aosdados

dos dados em detrimento das ciências naturais não é ela nea ou original. E, para não confundir ta] natural do pensar (contrastada com a Jdeías[), Husser] a nomeia E então na cidade

mas de scz/sentaraspectos que a eles já pertencem e, nesse estãoprevistos pela própria essência da natureza.

Anaturezasegundoas ciênciasnaturais Como se estrutura a natureza para a orientação naturalista? Tal

ficas ou éticas). Isso ocorre

comojá vimos na análise de Ideias 111,há uma ordenação esüatí/ícada

ção teórica, quer dizer, na (ainda a se precisar) do dade prático-estética-valorativa.

manasse realizam

11. Esse será justamente o caso da oríerzÊação persorza/isca, na qual as ciências hu

12. "Nós ganhamos uma tal ideia a priori fechada de natureza -- como a ideia de um mundo de meras coisas , dado que nós nos tornemos sujeitos puramente teóricos, sujeitosde um interesse puramente teórico, e então procedamos apenas para satisfazer

cidade de haveroutrostipos de

: !Ü

:l: ::l l E:x,':,;:::j:x : :si:,':

10. Expressão que aparece pela primeira vez em Ideias ll no parágrafo 12 174

aesseinteresse.Então estamosrealizando um tipo de 'redução'. Nós colocamos entre parênteses, por assim dizer, todas as intenções de sentimento (. . .) em virtude das quais

constantemente aparecem a nós, antes de todo pensamento, objetidades espaçotEmpo' reis,intuitivamente imediatas, carregadas de certas características práticas e de valor --

característicasque transcendem o estrato da mera coisa" (Idll, S 1 1, 25) 175

A cientificidade na fenomenologiade Husserl

Método estático e método genético na fundamentação das ciências

A natureza é inicialmente tematizada como natureza material ou fí. fica, sobre.a qual se desenvolvea vida orgânica e psíquica a natureza animada. E assimque as ciências naturais pretendem

explicar o dono

em função de tais relações são justamente atestadasas suas modoque .,jades materiaisn proPli F assimque se constitui a noção de coisa real dotada de proprieda-

nio da rea/idade, cubascamadas constitutivas cabe agora clarificar.

constantes,sujeitas a modificações quando submetidas a determicircunstâncias ambientais. As propriedades reczissão justamente

Quanto ao primeiro nível, o da naturezamaterial 0

filósofo dá Pode-sealemar aqui. com razão, que por meio dessa noção o domínio da natureza mate. real ou física não se esgota,já que muitos fenómenos físicos não ne. cessariamente envolvem coisas. Contudo, antes de optar por uma aná. lise exaustiva,Husserl privilegia como fio condutor uma noção básic; que terá papel fundente na constituição de ao menos um coílceito cen. trai das ciências naturais, aquele de ob/eto /bico. Assim, ainda quenão exaustiva, a análise da natureza material tomando por fio Condutora noção de coisa pretende servir de modelo para a compreensão dasprin. cipais etapas de constituição das noções científicas naturalistas, estabe. lecendo, desde então, as basesde uma reflexão que poderia seresten. dadapara outros conceitos centrais das ciências naturaísl ênfase à constituição da noção de coisa material

A primeira característicaconstituinte da coisa,discernidano parágrafo 13 de Ideias 11,é a extensão, ou seja, a ocupação de um determinado espaço. Coisas se apresentam sempre como sendo espaciais,e isso é determinante para suas demais propriedades sensíveis cor, texLura etc.). Porém nem tudo o que se apresenta de forma extensaà percepção é apreendido como coisa (por exemplo, um arco-íris ou o próprio céu azul). Há, dessamaneira,ao menosmais uma característica fundente das coisas (exposta no parágrafo 15), a saber, a materialidade, a qual envolve propriedades particulares, tais como peso, elasticidade,

condutividade, entre outras. E importante

observar

cn.fn,m.

nhecidas em relação ao corzfexfocausa/ em que a coisa está inserida. Aparece perceptivamente como material a coisa que estáinserida num

tecido de relações causais com outras coisas ou eventos naturais, de

13. Essa exposição é retomada com detalhes por diversos comentadores Cf n ex

176

ambientais em que estão inseridas (Cf. Idll, S 15e). Husserl

que nesseprimeiro nível de constituição da objetividade natuascorrelações causais são apreendidas de modo f)ercePtivo. E, dado

perfilado inerente ao que é percebido, então, nessenível, a jamais se doa de modo a esgotar completamente suas características(Cf. Idll, S 16). Cabe então à ciência prosseguir com a determina-

dosnexosde relaçõescausaispara além da doação interminável das coisas na experiência imediata:s Ção

Vale enfatizar que os níveis de realidade objetivo apresentados por Husserl até agora supõem operações perceptivas básicas, em relaÇão

um

às quais é cabível buscar um grau muito maior de exatidão. Em primeiro nível de manifestação da coisa, há então correlação di-

reta entre as regularidades causais atestadase as capacidades perceptivas.Supõe-se aqui um critério de norma/idade perceptiva em relação

à qual as regularidades causais seriam corretamente apreendidas (Cf.

Idll, S 18b), normalidade que seria partilhada por diferentes sujeitos de uma comunidade, de maneira que a realidade da coisa possaser reconhecidaínfersub/etívamente (Cf. Idll, S 18e). Cabe observar que

nessaexperiência perceptiva coordenada intersubjetivamente se estabeleceuma distinção entre mera aPczrêrzcía e dado e$etívo.Já nesse

.

grato 15c, que as propriedades ligadas à materialidade devem ser rena.

Mohanty,2011, 13-42;Rang,1990,52-105.

reconhecíveis em interações causais, ou seja, dependentes dos

'' '' ' ' -"'

!4. Por exemplo, em meio a um forte vento, vemosa elasticidade dosbambus que securvam. Se um bambu permanecessecompletamente imóvel, alheio à ventania, eleteria um aspecto ilusório. Nesse caso, ainda haveria propriedades sensíveis extensas

jcor,preenchimento do espaço) mas que não se confirmariam como uma coisa, pois não estão sintetizadas com as qualidades materiais atestadas pelas interações causais

15. "Perseguir essesnexos [causaisl e determinar as propriedades reais no pensa-

mentocientífico, com basena progressãoda experiência, essaé a tarefa da física (num sentidolato), a qual, partindo das unidades mais básicasna sequência hierárquica de experiênciase daquilo que se manifesta primordialmente aí, atinge unidades sempre

maisaltas"(Idll, S 15e,45)

A cientiflcidade na fenomenologiade Husserl

nível se reconhecem circunstâncias anormais de torcem a apreensãoda coisa tal como se daria em apreensão. Em suma, aí se distinguem entre a coisa ta] si mesma e aparências de coisas relativas

jetivas anormais de apreensão. ainda permanece ]igada a

Com basenos result,dos coisa, um novo estrato da

termos de propriedades exatas, entidade gerência mesmo aos parâmetros de Nesse novo estrato, consideram-se

minadas matemática ou física tal como ela é. As

naturalistaparaem seguidacontrastaressaúltima com a de apreensão do espírito. Em relação à natureza naturalista reconhece aí novas propriedades onseacrescentam à base objetiva física com relativa autonoa delimitar um campo próprio de estudos (o da biologia e a camada estesiológica ou de sensaçõesvividas que anima o

vivo, o qual é, em seu aspecto mais básico, uma coisa material. boaparte da segunda seção de Ideias 11,Husserl tenta mostrar maneira se constitui como um dado para a consciência o corpo

Por um lado, o corpo animal ou humano tem um aspecto objetivo, por intermédio do qual está inserido, juntamente

de manifestação

ascoisas,no tecido da causalidade mundana. Mas, por outro, o

ceptiva, serviriam somente como índices físico. Para

priedades matemáticas

dessetrecho que não pretendo explorar aqui'' reconstruir o movimento geral realizado pela

experimental, como veremos). Trata-se inicialmente

a noção de ob/efo /ikico como

vel puramente

estático e método genético na ftJndamentação das ciênçlias

e

é portador de sensações, é sede de uma atividade senciente que das meras coisas materiais (Cf. Idll, S 36). E cada sujeito

constatar isso em relação a si próprio, já na experiência pré-teó-

subjetivas amuam, tais

Importa a Husserl compreender como a partir dessaapreensão ge-

as discute em detalhe em Ideias JI, e

próximo capítulo, ao comentarA crisedas menologiatranscendental.Pol de objeto físico matematizado, a mente ospredicadosestéticos, ceptiva dosdados, namenteobjetivo:'.

raldo corpo animado a orientação naturalista constrói uma abordagem

teóricaobjetivante da natureza animada

O ponto crucial para a objetivação dos organismosvivos é, conforme a análise husserliana, estabelecer as correlações causais entre circunstâncias materiais e estados sensíveis. Busca-se determinar

de forma cada vez mais precisa as correlações entre o contexto causal jcompreendido como conjunto de estímulos) e assensações,que desde

Após apresentar as etapas pelas quaisa naturezafísica, em seusaspeitos essenciais,é constituída Husserl passaa explicitar a constituição do segundonível de fenómenos naturais reconhecido pela orienta-

então passam a se apresentar como reações localizadas corporalmente

ção naturalista: a natureza animada (Idll, SS 19-47) rá muitos temas

dureza)por meio da localizaçãodasvivênciassensíveisem mecanis

ICf. Idll, S 40). O ser vivo é então inserido no espaço-tempoobjetivo jque já havia sido delimitado no primeiro nível de constituição da na mos fisiológicos em interação causal com as circunstâncias ambien-

H#$1#!ii: u:i l ;i:ini:n 178

tais. Esse procedimento de objetivação não se limita à vida sensível 17. Para uma análise detalhada dessaseção de Ideias JI, cf. Mohanty, 201 1, 29-42 Bernet, 2008 179

A cientificidade na fenomenologiade H usserl

Método estática e método genético na fundamentação das ciências

animal, mas também é estendido à vida

estesiológico (e daí o enraizamento b.Porém, ele insiste, há uma

a serlocalizada no cérebro. leis causais da natureza

coordenando a apreensão dessesdado fluxo temporal da consciência:'. A

vaçao, uma vez que os mecanismos fisiológicos e o

imanente de historicidade que é mais com-

maparentespara o sujeito que vivenda suas

as vivências cons-

quicos, ou seja, não se atestam como tais em sua

tam fluxo temporal

pré-teórica. Para atingir esse nível de objetivação do

elas não desaparecemsem deixar instauram tendências, disposubjetivas. Assim, em deveria reconhecer que

põem-se aqui dissecações e experimentos

tas propõem hipóteses sobre a fundação estrato material objetivo do corpoi9

Cabe acentuar que essafundação naturalista das tos subjetivos na base objetiva material não

não se reduzem totalmente a interaentão admitir uma complexidade ine-

pelas ciências naturais de uma relativa dores de fenómenos. Por isso Husserl

uma vez que propriedades basexemplo, a orclenavivências no fluxo da

bio/og;a e da psico/ogícz em relação à

animada constituem-se propriedades nível físico, e, embora dependentes

estratificada naturalista

fico, essas propriedades requerem

há propriedades e dependência física basilar. Veremos, entreas características do es-

Quanto a essas propriedades, vimos

mada é constituída como vid

tituição do níve] psíquico,no qual relativa autonomia ontológica. Em

emergentes da natureza física, mas

acentua a dependência da consciência em relação aos dados

caráter ontológico fundante

clãs"'.(Idll, S33,136) 180

181

A cientificidade na fenomenologiade Husserl

Método estático e método genético na fundamentação das ciênf=iqs .

Naturalismo versus personalismo comprei

Tentei recuperarminimamente as linhas gerais de da natureza conforme a orientação teórica naturalista. O mento dessetema é apresentado,na primeira parte de Ideias

rf

;'i' A.

ndidas. E esse outro tipo de orientação se desenvolvem

(intitulada "personaas ciências humanas.

Éírnportante ter em vista que esselimite da orientação naturalista

no interior dela mesma,já que sobesseponto de

apreensão naturalista do ser humano acentua os nexos de

nãoé reconhecido t'isto os fenómenos ligados às enter-relações pessoais seriam abarcáveis licativos causais (tratar-se-ia de representações psíqui assensivelmente e processadas segundo as regulações ce c8sestimulad Na verdade, Husserl alerta para uma tentativa de universa.ebraisetc.) propostas explicativas naturalistas. No entanto, ele buscara jizaçãodas universalizante não se cumpre justamente mostrarque essapretensão e não é possívelabordar corretamente a complexidade dosfenâporqu menosespirituais/humanos apenas do ponto de vista de suas depen-

cia causal entre consciência, corpo e ambiente físico. e

dências causais

nenhuma censura quanto ao modo naturalista de abordar a Tem-se até a impressão, ao final dessa narrativa. de

turalista abarcada todos os fenómenos mundanos. de fornecer explicações exczustívassobre a vida estesiológica e dessanos eventos físicos. do livro Husserl aponta talvez pela primeira vez nessa mífe da explicação naturalista dos fenómenos reais. .qi.

Torna-seagora patente que não há uma passagemhamzõnícada

esgota a complexidade da experiência da lações interpessoaisZZ. Haveria, então, um

oríent çã0 71atura/esta r)ara a f'ersonalísta, como se do interior da pri-

cedeaquilo que é investigadona orientação naturalista.

Beira se

dona como exemplos relações estéticas ou

qu

belecidas com as coisasou situações preciso tomar decisõesou estabelecerfins e ou relações normativas com as instituições gredir regras, por exemplo). Em todos essescasos,as

pendência causalentre corpo e ambiente não são bém parecem não ser decisivaspara entender como o

fere em seu meio cultural e social. Trata-se aqui de defender a tese de que os recursos explicativos das

ciências naturais não captaram a especificidade das relações pessoais, ou seja, o fato de que elas não se guiam por nexos causais submetidos

reconhecessemlimites inbínsecos que então levariam os pesa admitir a autonomia de uma outra orientação do pensar.

Na verdade, é o próprio Husserl que se distancia do procedimento ex-

plicativo naturalista e aponta para a existência de outras orientações a se

assumir.Essamobilidade entre as diferentes orientações do pensar é

comentadano parágrafo 49d de Ideias 11.Ali, o autor nota que os pesquisadoresnaturalistas têm dificuldades de reconhecer que seusresulLados supõem certas decisões teóricas e restrições metódicas, e que os mesmosfenómenos por eles estudados poderiam ter outros aspectos acentuados,se explicitados em correlação com orientações teóricas diferentesz3. Dessa dificuldade não padece o filósofo que pratica a redu-

/izza/idades,em suma, por categorias que exigem outro tipo de orientação do pensar para ser devidamente

ção fenomenológica, pois ele sabe neutralizar a orientação natural do pensarem suasvárias modalidades para revelar exatamente asetapas de constituição do sentido de objetividade por ele visado:'. E é apenaspor

J 22. "A apreensãona qual o ser humano é dado como uma pessoaque vive, agee

23. "0 homem natural, e particularmente o pesquisador da natureza,,não está conscientedessasresbições jde sentido por meio da orientação assumidas;ele não vê

a leis físicas,

e sim por 77zofívos,

padece: e de quem somos conscientes como uma pessoarea/ que se comporta sob as circunstâncias de sua vida pessoal agora.desse jeito e agora desse outro jeito, parece mnler

unzexcessoque não se apresentasimplesmente como um mero complexode momentos constitutivos de apreensãodo tipo que descrevemos"(Idll, S 34, 140) 182

que a todos os seusresultados adere um índice determinado, que manifesta o seu sentido meramente relativo" (Idll, S 49d, 179) 24. Como vimos, a orientação naturalista é somente uma especialização teórica no

interior da orientação natural 183

A cienti6cidade

na fenomenologia

de Husser]

meio dos recursos da claras as distinções nos raçõesnaturalista e E como

das ciências

deõonta, remetendo-os a nexos causais objetivamente estabeleci-

Ocorre,assim,uma ampliação do sentido de "orientação". Em todo essesentido amP/o supõe as operações teóricas daquele sentido res-

naturalismo, em que se descartam as propriedades subjetivas a

com a orientação naturalista ?

tas como dois modos indica dos. Nesse (e píc.-««a)

Método estático e método genético na fundamentação

deiso[ar as puras re]ações de dependência causa]. Afinal, a orienta-

naturalistacomo modo amplo de atribuição de sentido justamente os dados mundanos como eventos espaçotemporais-causais, de-

estabelecidapelas particularidades metódicas do naturalismo

«ão

visado nos dois

orientação teórica restrita. E, em relação a esseaspecto metó-

jresponsávelpor direcionar o modo geral de apreensãodos dados),

dado em questãozõ.

iterença notável entre naturalismo e personalismo

egopsqujco (tema de estudo da

Husserl, a apreensãopersonalista dos dados nao supoe nenhumtipo de abstraçãometódica, tal como ocorre no naturalismo

o ego pessoa/ (ta] como

nânimos, embora apreendidos apercepçãoz7.Em cada sentido constitutjvo (egocomo unidade

Esseé um dos principais temas expostos no parágrafo 49e de Ideias IJ. Aorientação personalista é a orientação na qual originalmente os su)ei-

xos seapreendemcomo pessoasinseridasem um meio cultural e social. Éa orientaçãopor meio da qual se vivem as interaçõesintersubjetivas,

Há aqui, sem tido de

combasena qual aspessoasse comunicam, fazem planos, realizam in-

lista. Nina].

a orientação natura. era apresentadacomo um a atençãoem de. (e isso

modo de pensar teórico.

Eemincidosaspectos,

em contaste com outros

tenções, enfim, por meio da qual as pessoasconcretasse inseremem comunidadese instituições históricas. Dessaforma, a oderzfczção persorza/esta é czoríenfaçâo natura/, ou seja, a orientação do pensar na qual

aspessoas habitualmente exercem o seu ser pessoalconcreto em interaçõescom outras pessoasem um certo ambiente cultural. Isso,de fato, já estavaanunciado no parágrafo 27 de Ideíczs1. Ali a oríenfação lzatu

ético etc.). No entanto também almeja a a quaisquer dadoscom

ra/ era caracterizada como aquela por meio da qual as pessoas se rela-

cionamcom o mundo como um dado que se impõe à consciência(e a passagempara a orientação fenomenológica se dava justamente ao se suspenderessaimposição do ser do mundo por meio da epoc/zé).Ao de-

linearali minimamente o mundo da orientação natural, já se reconhecia:osdados da orientação natural não são puras coisas(tais como delimitadas pelas ciências naturais), pois os cczrczcferes axío/ógicos e f)rátícos sãoconstitutivos dos objetos e das situações disponíveis aos sujeitos:'. 28. "0 mundo estáaí para mim não somente como mero mundo de coisas,mas também,com a mesma imediatidade, como mundo de va/ares.como mundo de bens como mundo práfíco" (Idl, $ 27, 59) 184 185

A cientificidade na fenomenologia de Ht.isserl

E importante

então observar

sonalista não compõem

como duas metadescom direitos dialmente personalista,é uma

Método estático e método genético na fundamentação das ciênc\as

Começa a ficar mais claro, assim, qual é aquele excessohumano ou

a realidade caracterizada pela orientação naturalista. Se

o mundo e o eu na orientação personalista,desvelam-se

predicados valorativos, estéticos e

mais ricos, com propriedades mais complexas que aquemateriais e causaisacentuadas pelo naturalismo. E uma h; ..:e-m"t' da terceira seção de Ideias ll é dedicada à explicitação de boaparte

amplos29. Deve-se, assim, admitir fiada da apreensão naturaldo

.a orientaçãopersonalista. Husserl parece esboçar aqui ao menos em

E precisoque se

parteuma

lizar a apreensão

místicas

mundanas se doam não como uma tardia construção teórica

caçõesde dependênciacausal,excluir sua vez, a orientação personalista não assumida, já que é nela que as

se desenrolam30. Desse modo. a

volve abstração, pois ela se do dado originário do eu e do mundo3i.

29. "Nós estamos na nos rodeiam precisamente como ê para as ciências naturais' 30. Na verdade. ção da epoc/zé,a

desses

componentesdo mundo e do eu tal como apreendidos

oncologia do espírito", ou seja, uma exposição das caracte-

eidéticasque demarcam uma região ontológica material espeentão tomar tais característicascomo fios condutores até cífica,para

os que tornam possívela atestaçãode tal tipo de ser. Retornando aqui de modo muito rápido tal esboço,vale observarque o filósofo acentuaque o mundo vivido na orientaçãopersonalistaé essencialmente diferente do mundo apresentado pelo naturalismo, o os fitos subjeti'

é composto de objetos em-si em interações causais;:. Na orientaÇãopersonalista os sujeitos se relacionam com o mundo circundante Umwe/tl que é sempre portador de qualidades subjetivas (valores, propriedadesestéticas, finalidades etc.). Instauram-se entre sujeito e relações de motivação: conforme o sentido da situação ou da

coisaem pauta para o sujeito, essepode ou não assumircertos cur-

uva dos correlatosa

sosde ação tendo em vista certos fins. Da mesma forma, os sujeitos na orientaçãopersonalista não se apreendem como complexos de vivênciastendo por base reaçõesorgânicas dependentes de condições físicas cessa é uma descrição teórica tardia, construída pelo naturalismo), mas como pessoasconcretas, portadoras de intenções e interessesem inte-

ponto: "a orientação natural é

raçõespré-linguísticas e linguísticas com outras pessoassob as regras de

mente os sereshumanosdesenvolvidos orientação,supomosa existênciade

instituiçõese de determinações culturais amplas (Cf. Idll, SS 5 1-52).

31.Em uma modificaçãoteorizante orientação natural do

torno de nós, e

dadesnesse 32. "0 mundo circundante de qualquer pessoa não é a realidade física pura e sim-

em suamaior parte não crítico, dos seres como pessoas (orientação

ples,semqualificações, mas é o mundo circundante apenasna medida em que a pes'

ciências naturais

soa'sabe'dele, enquantoela o apreendepor apercepçãoe (...) é dele conscientena

turalista, não deixamos quisasquantitativamente orientadas -- e a nós

horizonte da sua existência (. ..). Se a pessoa nada sabe das descobertas da física, então

gamoso mundo" (Staiti, 2014,105-106)

o mundo com o conteúdo de sentido da física não pertence ao seumundo circundante efetivo" (Idll, S 50, 186). Veremos tlo decorrer do capítulo que em textos posteriores

Husserlminimiza essadistinção entre mundo da física e mundo circundante concreto 186

187

A cientificidade

na fenomenologia de Husser]

Cabe aqui observarque é no interior do desenvolv de determinadas instituições sociais que o interesse grupos humanos pede ser sistematizado em um mentos transmitidos e aperfeiçoados de geração Beira que o con/zecímentocÍenfÍHco

zido e sedimentadocomo um bem

Método estático e método genético na fundamentação das ciência:

normas que permitem legitimar os resultados sob elas obtidos),

sebusca assentimento para as posições teóricas propostas. O supõe, dessemodo, interações comunicativas normativas,

baseadasem razõese almejando o consenso,algo bem difede interações meramente guiadas por reações causais explicativo

se deixam apreender como frutos das nalistas (interações em que preponderam os não a Causalidade material). Com base nessa

zar certa püoãdade da orientação personalista tentei mostrar que essaúltima envolvia um

ta[idade do rea] como um conjunto de causalmente sobre a base física. Mesmo as que envolvessem propriedades emergentes, como um conjunto de reações nucassubmetidas àsleis físicas. é esse prometo llaturalista de

naturalista

o princi-

para as relações pessoais3s

assim,reconhecer que a obtenção de resultadosnaturaválidos acerca dos componentes objetivos da natureza pressupõe

humanas guiadas por normas racionais. Essaé uma condi-

a constituição do domínio teórico naturalista que não é devitematizada conforme os recursos teóricos disponíveis para o 3ó.O naturalismo tem então como pressuposto estruturas que só são explicitadas em uma orientação não naturalista, forma que nem todas as suas condições teóricas poderiam ser devi-

damente tematizadaspor meio do instrumental metodológicocom o qualopera.

bebe uma fundamentação

o contextohistórico no interior do qual foi desenv( mteressesteóricos sedimentados em e disseminam seusprocedimentos e ralismo (que pretende fundar as sais) é fundado pelasrelações de mundo humanos'. O llaturalismo

Apdoddadedo espíHtosobrea natureza Vimos que as operaçõesconstitutivas da orientação naturalista são inicialmente

retratadas em Ideias ll seno nenhum

tipo de cen-

sura quanto às suas pretensões. Ao centrar-se em relações causais ob

jetivaspor meio das quais as camadas de eventos superiores seriam reé um

versostipos de interações

metidasà camada física fundante, o naturalismo desenvolveum es-

quemateórico por meio do qual tenta explicar toda a realidade.No entanto, Husserl destaca um excesso temático que escapa à abordagem

35. Essa incapacidade naturalista de dar conta de seus pressupostos personalistas teráum grande papel na tematização da crise das ciências nos textos tardios de Husserl.

Conformecomenta J. Benoist, "para Husserl, a crise da Europa está ligada ao fato de queela tenha se pervertido em uma racionalidade (o que então a caracteriza) exc/usíva-

menferzaMra/isca,que, como tal, é incapaz de pâr para ela mesma a suaprópria questão" (Benoist, 1994, 260). Veremos com detalhes no último capítulo de que maneira as

limitaçõestemática e metodológica do naturalismo ou objetivismo alimentam a crise dasciências europeias.

36. Sigo aqui a interpretação de Scanlon, 1996. 188

189

A cientificidade na fenomenologia de Husser]

naturalista e só seria bem compreendido

como conjunto de relações causais objetivas nas quais a pes-

sonalista37. Nesse ponto, torna-se visível

estáinserida, dadasas cadeias de dependência da vida psí-

ção husserliana. Tentei mostrar que a

relação ao substrato material do corpo e deste em relação ao Hsico. Por outro lado, no entanto, ao investigar os componen'

ração natural, no sentido de

cas e valorativas pelas quais

do espírito ou da pessoalidade concreta enquanto região

entre si e com o mundo. Por sua vez. a essa base de interações personalistas em suas oração é um recurso metódico meneado Culturalmente

no interior

Método estático e método genético na fundamentação das ciências

de

ontológica, desvela-seaí a natureza (tal como tematizadapenaturais) como um produto de associaçõesintersubjetivas normas racionais. A situação é então a seguinte: "parece em um círculo vicioso" (Idl1, 2 10), no qual cada uma das

normas. Ocorre que muitos pesquisadores cer essespressupostos de seu l

orientações em questão pretende fundamentar a outra. Estaremos

condenadosa uma oposição irreconciliável de apreensõesglo-

sonalista, pretendem univer! Husser] asseverano parágrafo 49e de Ideias 'somente adquire certa autoílomia

divergentes,cada qual pretendendo sobrepor-se à outra? Na verHusserl julga que o círculo pode ser desfeito, de maneira a não

alternância de dois modos de apreensão sem comunica-

do ego pessoal, autoesquecimento

si. E qual será então a orientação verdadeiramente fundente?

mamente seu mundo, a natureza'

aquelas considerações críticas quanto à pretensão universalizante

ralista de esgotara exploração de

naturalismo já nos dão a pista a seguir: o fenomenólogo tencionará exibir o caráter fundacional do esf)ú'íto em relação à natureza.

Cabe notar que inicialmente Husserl concede que "todo espírito temum 'lado natural"' (Idll, S 61, 279). Mesmo do ponto de vista personalista,as pessoasnão são agentes racionais abstratos,e sim indivíduos concretos inseridos em um entorno sensível-histórico-cultural. Deve-selevar em conta que as interações humanas concretas não ocorremsomente mediadas por normas racionais, mas também por hábitos quc lido Sa0

ficará mais clara passagempara o personalismo parece ter Jdeías11.Esse«c- ' círculo dos fundamentos parece ter sido sido criado criado em em Ideias enfrentado no parágrafo parágrafo 53 do livro. Por um blema é explicitamente enfrentado lado, ao acompanhar os resultados da orientação natural esta,desvelou-se

::'ú 11;u:ç : : : : :: ;:;::.= :1:::: 190

ou disposiçõescuja origem pode ser até mesmo desconhecidapara os sujeitosque as exercem. Husserl aponta aqui para a infraestrutura de tendênciase impulsos, para asformações disposicionais sensíveispassivas,que se sedimentam como camadas retencionais do fluxo da consciência, tornando-se, assim, parte da história pessoal que condiciona, ao menos em parte, as esco]has do eu raciona]38. ])aí Husserl afirmar que "toda a vida do espírito é permeada pelas operações cegas de asso-

38. Um artigo que expõe de modo claro as tesesprincipais relativas a essetema é

Sakakibara,1998. Parauma abordagem mais aprofundada do tema da passividadena fenomenologia husserliana, cf. Montavont, 1999, e Biceaga, 2010 191

A cientilicidade

na fenomenologia de Husserl

fiações, impulsos, sentimentos ( . . . ), tendências que

curidade" (Idll, S 61, 277). Cabe aqui, porém, acentuar unção entre atividade racional e passividadedisposicional é cimano interior da própria orientação personalistae irão

reconduçãoda vida pessoalao substratofísico das naturais. Trata-se, antes, do reconhecimento, pelos tos, da base passiva para suas operações espirituais, e isso

tifica com as tesesteóricas de dependência causal do espírito em ção aos estratos materiais básicos da natureza. No final do

Husserl afirma que essabasepassivado espírito "não é objetiva (natural)" (Idl1, 280), ou seja, não é uma

Nlétodo estático e método genético na fundamentação

das ciências

# ,r';} #

concreta é um sujeito encarnado, inserido em ambientes madeterminados. Por essa perspectiva, deve-se admitir que terialmente inúmeras circunstâncias subjetivas "a causalidade natu-

A pessoa

ral entra aqui

também" (IdlT, S 61, 276). Husserl elucida essetópico

como seguinte exemplo: "dada uma queda séria, alguém pode se tornaraleijado e isso tem consequências para sua vida espiritual: certos

motivação estão mortos a partir de então" (ibid.). Muitos

gruposde los outrosexemp podem ilustrar esseponto: se o corpo próprio de alémé mutilado então seu âmbito de ação espiritual se reduz; se há ;nvenenamento do organismo, há uma correspondente alteração do campoperceptivo etc. Em suma, dada a inserção da vida pessoalnos

pela aplicação dos métodos naturalistas, mas um conjunto

nexoscausaisdo mundo material e dos processosfisiológicos, é então

ções experimentadas pelos sujeitos em suas vivências pré-teóricas.

peúeitamentecabível propor diversas correlações entre certos eventos

conjunto, longe de ser um constructo teórico, segue uma imanente" (ibid.), ou seja, trata-se de uma estrutura d príon

físicos

ou condições orgânicas e certos eventos no domínio pessoal.

lesseos fundamentos de toda atividade espiritual. Ainda assim,o autor

Husserl observaque essascorrelações de dependência estão limifadas a circunstâncias em que há objetos reais em interações objetivas jmecânicas elétricas, ópticas etc.). Somente nessescasosseria possível delimitar relações de dependência causal entre a pessoae seu meio Masjustamente importa acentuar que os sujeitos espirituais estabeleiuiiniaui«eiw entre si e com o mundo mesmo quando não /zá ob/elos

irredutível, assim, às relações causais acentuadas pelo naturalismo.

Husserl admite, desse modo, uma camada "natural" (em um sen-

tido amplo) sobre a qual o espírito se erige, embora issonão signifique atribuir prioridade à abordagem naturalista, como se essa[ililelluKíi concede que a base passivado espírito pode ao melros em parte serÍn.

reaisdefemzínando-os.No parágrafo 55 de Ideias 11,distinguem-se re-

vestígada em temposnatura/estas. Conforme o parágrafo 53 de Ideiasll.

laçõesreais (em que objetos existentes interagem causalmente) e re-

a natureza (enquanto correlata da orientação naturalista) e o espírito (enquanto correlato da orientação personalista)não são regiões onto-

laçõesírzte7zcíorzaís. Nesse último tipo, a consciência se volta para seu

lógicas incomunicáveis; ervagrande medida, os temas de ambos são os

cognitiva etc.). Essevoltar-se para algo já é estabelecer alguma rela-

mesmos, embora explicitados por modos de apreensão diferentes. Há,

cao

dessamaneira, "relações de sentido" (Idl1, 2 1 1) entre os dados naturais

comoob/eto rzo tecido causa/ da n dureza, sendo apenas imaginado ou

e espirituais, e não meramente oposiçãoou mesmo ausência de rela-

mesmoilusório. Nessetipo de relação, importam a qualidade ou a mo-

ção. E uma das possibilidades de explicitar tais relações de sentido é

dalidade do visar intencional e as relações de motivação firmadas entre

o estabelecimento de correlações de coordenação hncionat entre o suba trato matedcz/-orgáízícoe as rea/ízações pessoais. Daí Husserl conceder

osujeito e seu correlato (esseúltimo servindo de motivo para diferentes

correlato em diferentes modalidades intencionais

(prática, estética,

ainda que o conelato em questão nem mesmo exista efetivamente

atitudesassumidaspelo sujeito)

que parte da vida espiritual possa ser investigada naturalísticamente3ç. e espirituais.Em todo caso,desde ali, era sugerido que a naturalização em vista é se 39. Vimos que essaconcessãojá estavapresente de modo muito geral no pará-

grafo 152 de Ideias 1, em que se apontava para o entrelaçamento entre eventos naturais 192

mente parcial, e que aspectos essenciais da vida do espírito, como veremos a seguir, es

capim a qualquer tentativa de explicação naturalista 93

A cienti6jcidade na fenomenologia de Husser]

Método estático e método genético na fundamentação dasciênçias

As relaçõesintencionais vigoram na lco

são irredutíveis a relações há nenhuma causalidade real sujeito intencional visa çõesde motivação se qualquerpercepção de biológicos destravados

fíçico4

Por "paralelismo psicofísico" entende-se aqui uma dou-

naturalista segundo a qual todos os estados e conteúdos da cons-

crina

poderiam ser remetidos a interações físicas cerebrais, o que

ciência

que a atividade consciente é ontologicamente dependente da neuras.A recusa do paralelismo vai tornar patente que a passagem

provaria base

entre

orientação naturalista e personalista envolve mais do que uma

mudança no modo de apreensão geral sobre um mesmo dado, seria passívelde dupla exploração. A princípio, parecia que a dioque simples

dúvida, há aqui relações ,edis Mas essasrelações, que erva

ferença entre ambas as orientações era apenas essa, conforme sugeria

sentidos até determinadas regiões cerebrais, as motivações assumidas buição de um valor.

aquele

exemplo de que ego psíquico e ego pessoal são o mesmo. No

.«tanto Husserl defenderá agora que não se trata de apontar para um

dadoneutro que se deixaria apreender integralmente, seja pela orien-

instauram sempre como relações su)eito e os correlatos visados tido. Ora, conexões nervosas investigações teóricas bastante

taçãonaturalista, seja pela orientação personalista. Esse não é o caso, pois haverá componentes estruturadores da nao sãoabarcadospela orientação naturalista pessoal

ciência subjetiva e, assim, não

consciência pessoal que (o que implica que o ego

só pczrcía/mente é o ego psíquico). Daqui resultará uma consi-

derável autonomia da região ontológica do espírito en] relação à natu-

nalistas e nem, por l As relações des imanentes" à este.a

reza,apesarda sobreposiçãoFareja/ reconhecida há pouco. Pararecusar o paralelismo psicofísico, Husserl enfatiza as caracte-

que o na-

turalismo não esgota plicitados na tal entre os domínios

ex-

to-

funcional do segundo em relação ção são um claro relação à natureza.

rísticaseidéticasda consciência,ou seja, aquilo que pertenceria à noçãode consciência independentemente de sua realização empírica Pretende-se neste ponto que as características definidoras daquilo que

sepoderia chamar de "consciência" remetam a determinações eidétimotiva-

espírito em

Husserl complexifica a sua exposiçãoacerca desse excessodo espírito em relação à natureza no parágrafo 63 de /delas ll em que rejeita, ao apelar para legalidades imanentes à esfera espiritual o paralelismo

casa priori (que valeriam para qualquer noção concebível de consciên-

cia),sem nada dever, assim, a relações reais entre as partes cerebrais.

Valeobservarque essetema lembra a explicitação do caráter absoluto

daconsciênciano parágrafo49 de Ideias1. De fato, entre asdeterminaçõesa priori da consciência,Husserl destacao fluxo temporal, com sua abertura protensional que se preenche impressionalmente e se se-

dimenta em retenções, tal como havia sugerido em Ideias 1. Trata-se

aqui de uma forma predelineada a príoH e no interior da qual o conteúdo empírico das estimulações sensíveis (o qual, sem dúvida, pode 41. Uma exposiçãomais detida desse tema pode ser encontrada em Marcelle 20o6 194 195

A cientificidade

na fenomenologia de Husser]

Método estático e método genético na fundamentação das ciênçfas

ser descrito empiricamente) se ordena'z. A estimulação sensível(ca.. salmente explicável) é sempre uma sucessãode dados por sua vez,a Or. denação temporal da consciência, em termos de fnrmn eidética. é una rede intencional que se estende ao futuro e ao passado,e para a qual assimcrê o autor, não há paralelismo neuronal estrito. Na consciência, cada experiência presente está inserida em um fundo de c:onexões

recusado paralelismo psicofísico, uma prioridade especificamente do espírito (e da orientação correspondente, o personaarztoZÓgícú relação à natureza e ao naturalismo lisrno)em

tencionais passivasque se estendem para além do momento de

pírito o que impede uma total rlatura/ízação de suaspropriedades (ou

nnpres

são e que poderiam ser desdobradas em novos aros associados à vivên.

cia principal.

A argumentação acerca dessa prioridade ontológica é exposta, conforme

mencioneihá pouco no parágrafo64 de Ideias11.A recusado

paralelismo psicofísico sustenta a tese da autonomia ontológica do essela

urna aplicação dos métodos naturalistas capaz de explicar todas as

..rncterísticas espirituais). Com base nessaautonomia, Husserl almeja

A estrutura eidética da temporalidade imanente é o principal tema

umateseainda mais forte, a saber,que "a natureza é um campo geral

explorado por Husserl, ao lado daquele da motivação, para evidenciar

derelatividades, e deve ser assim porque essasúltimas são sempre rela-

a impossibilidade de reduzir a região ontológica

tivasa um absoluto, ao espírito, o qual, por conseguinte, sustenta todas asrelatividades" (Idl1, 297). Fica claro que não se trata somente de ga-

espírito

à natureza+3

Garante-se,assim, a relativa independência de ambas. Entretanto, ess. não é o ponto final da argumentação.No parágrafo 64 de Ideias IJ, Husserl pretende revelar a prioridade do ?sf)frito enquanto domínio hn dance da lzaüreza. Vimos inicialmente uma circularidade entre orien. raçõesnaturalista e personalistano que concerne à pressuposiçãode

uma pela outra, e em seguida a defesado caráter prioritário do espí. rito em relaçãoà natureza. Essaprioridade se atestavapelo fato de que a orientação naturalista é uma abstraçãometódica sobre a orientação personalista, abstração que então supõe essaúltima, de modo que condições importantes para a realização dos propósitos naturalistas só se. riam explicitadas por recurso a noções personalistas (tais como consensoracional, submissãoa normas de justificação etc ). Estabelecia-se. dessa maneira, uma prioridade ePísfêmíca do personalismo sobre o na-

rantir a autonomia da região espírito, dada sua irredutibilidade

aos ne-

xoscausaisque compõem a natureza, mas sim de marcar que essaúltimaé dependente,em sua estrutura eidética, do espírito, enquanto esse

é apresentadocomo absoluto. Nesseponto, fica explícita a referência aoparágrafo49 de Ideias J, longamente discutido no capítulo anterior. Assimcomo a consciência era absoluta em Ideias l por se revelar independentedo curso de eventos que compõem o mundo empírico, o espírito também será dito absoluto em um sentido similar, já que não de-

penderiade referênciasà naturezapara sero que é, ao menos em seus

aspectos eidéticos«.Há, dessamaneira,uma unidade do espíritoque nadadeve à natureza e que, como veremos a seguir, seráresponsável pelaunidade da natureza enquanto campo de relatividades.

turalismo, dada a insuficiência dos recursoswulignimõEsniununiiiill

O argumentocentral para defender essaúltima teseé uma distin-

para teorizar a sua própria prática científica. Contudo, Husserl nãose

ção entre dois sentidos hierarquizáveis de individualidade: um sentido

contenta com tal resultado e tenta mostrar, ao estender os result,dos de

relativo,aplicável às coisase aos eventosnaturais, e um sentido abso-

42. 'Apenas aquilo que os nexos essenciaisdeixam em aberto pode ser empiricamente condicionado. Por exemplo, apenasa sensaçãopoderia ser con(iicionada. mas

nao o que estáessencialmenteligado a ela em termos'de retenções Ou, maisprecisamente,o que é condicionado seria somente o conteúdo da sensação,no interior da forma prl?Sielineadada sequênciaretencional" (Idll, S 63, 293) 43. Há também uma menção às relaçõesintersubjetivas como irredutíveis a Feia. ções reais, tema que não explorarem.Cf. Idll, S 63, 295-297 196

luto, aplicável aos espíritos. As coisas físicas se individuam, no sentido dese tornar discerníveis de outras coisas semelhantes, por sua inserção 44. "Se pudéssemos eliminar todos os espíritos do mundo, então seria o fim da natureza.Mas, se eliminamos a natureza, a existência intersubjetiva-objetiva, 'verdadeira', então ainda resta algo: o espírito enquanto espírito individual. Ele apenas perde a possibilidade de sociabilidade, a possibilidade de compreensão, que pressupõe a intersubjetividade corporal" (Idl1, 297) 197

A cíentificidade na fenomenologiade Husser] Método estático e método genético na fundamentação

das ciências 4

em nexosde relaçõescausaisem uma çotemporal. Nesse

ern temas relativos à região ontológica natureza (pressuposta

individualidade em si

ciênciasnaturais) e pouco ou nada mencionava a região ontoló-

nexos de relações decorre da testadaspaulatinamente e Cogiloscente, tal como o autor

pelas ciências humanas, o espírito. A análise dessaúlem Ideias ll deveria preencher essalacuna. O espírito deveentãoser a região temática de um tipo de investigação realizada em

qualldo explicitou a

orientaçãoprópria, a saber,o personalismo. Com efeito, é o que

orientação naturalista. A

no parágrafo 48 de Ideias 11,segundo o qual a delimitação da

rurais deriva então do processode cia, uma produção não é relativa a

espírito levará a cabo a crítica incipiente de Dilthey à interprenaturalista das ciências humanas's. No esboço da ontologia do

temporal do fluxo da consciência.

persona-

que se segue a esseparágrafo (esboço que supõe a explicitação

lista),fica então claro que Husserl tinha em mente a circunscrição de

retenções e propensõesdo campo de querem seu caráter único. Desse próprios espíritos (os denação d pdod da

certosmétodos científicos próprios às ciências humanas. Isso quer di-

zerquea orientação personalista, na qual imediatamente as pessoasse

situamno mundo, também comporta o desenvolvimentode um tipo particularde produção de conhecimento. Daí, por exemplo, Husserl

píritos, nexos de experiências venspela de aparência Segundo Husserl, a

comentar,no final do parágrafo49d, que a passagemda orientação naturalista para a personalista significa, entre outras coisas, uma passa

gemdasciências respectivamente produzidas em tais orientações%.

No entanto, essaassociaçãode certo tipo de conhecimento científico com a orientação personalistanão é algo óbvio. Afinal de contas, Husserlapresentaessaorientação como pré-teórica, eminentemente

a priori para o ser relativo da natural depende da existência

forma, a prioridade do no nível ontológico, na condição para o estabelecimento

e uma

prática e valorativa, na qual os sujeitos estão inseridos em relações m tersubjetivasdesenroladas em ambientes sócio-históricos particulares. Como se vê agora, além disso, o autor também considera a orienta-

çãopersonalistacomo produtora de conhecimento científico. Dessa maneira,a orientação personalista é pré-teórica e teórica; ela é um

Di$culdades

modo geral de apreensão centrado em aspectos práticos e axiológicos dos dados, mas também um modo de circunscrição de dados teóricos

45. "Somente uma investigação radica/, dirigida àsfontes fenomenológicas da constituição das ideias de natureza, corpo e alma, e das várias ideias de ego e pessoa, pode aqui oferecer elucidações decisivas e ao mesmo tempo garantir os direitos dos motivos válidos de todas essasinvestigações jde Dilthey e outros autores da épocas" (Idl1, 173) 46. E possível passar "de uma atitude a outra, da naturalista para a persona/iscae quanto às respectivas ciências, das ciências naturais para as ciências do esPz'nto"(Idl1, 180) 198 199

A cientificidade

na fenomenologia

de Husserl

Nlétodo estático e método genético na ftlndamentação das ciências 4

De que modo, porém, essasduas funções diversassão realizadaspela mesma orientação do pensar?De que modo ocorre a passagemdos dados pré-teóricos para os dados teóricos no personalismo? Husserl pouco desenvolve esseproblema em Ideias 11.Em suacrí.

tica ao paralelismo psicofísico, ele sugere que haveria tÓPicosespecÍ. ficou das ciências humanas que não seriam corretamente tematizá. veis pelas ciências naturais. Entre essesestão os nexos de motivacã.

os

quais já eram mencionados como tema das ciências humanas no parágrafo 56f. Ali, é sugerido que a explicação científica (em termos aupios) fornecida pelas ciências humanas se desenvolve como uma expjo-

ração dos mofívos que levaram os agentes (individual

ou coletivamente)

a agir ou não agir de certa maneiras'. Mas em que medida a explicação teórica da motivação difere da sua vivência pré-teórica, ou, em term. mais gerais, o que caracteriza a especificidade teórica do personalismo em contraste com a experiência personalista pré-teórica? Não parece

haver uma respostanítida a esseponto. Dessamaneira, a oferecer uma clarificação acercados fundamentos dasciências huma. nas com base na exposição da constituição de sua região ontológica

eOsuarelaçãocom o mundo circundante. Pararesolveressatarefa, "o cientistahumano não tem necessidadede nenhuma reduçãofenomenológico-transcendental

aos fenómenos

da fenomenologia"

(Idll,

ap-

12, S 12, 367), assegura-nosHusserl em um apêndice de Ideias 11.As ciênciashumanas, empíricas ou eidéticas, desenvolvem-sesob a posícãode ser dos seus temas (tal como ocorre com as ciências naturais). E

verdadeque, mediante o exercício da epoché aplicada às ciências humanas,abre-seuma via à orientação fenomenológica que Husserl julga maisfrutífera do que se se partisse das ciências naturais4s.Nessapassa' gernao domínio fenomenológico-transcendental, a validade objetiva do eu pessoal e de seu mundo circundante seria suspensa, restando

apenasos seus fenómenos, com base nos quais se acompanharia a constituiçãoda objetividade espiritual. Husserl distingue, assim, entre asciências humanas, voltadas para estudar as estruturas do ego pessoal

inseridoem um mundo concreto intersubjetivo e cultural, e a investigaçãofenomeno[ógico-transcendental, voltada para "a subjetívidade constitutiva mundana pré-pessoal, escondida na orientação mundana

temática não se concretiza plenamente, uma vez que não são

pessoal-- a subjetividade transcendental em sentido próprio" (Idll, 369).Essaúltima investigaçãonão se limitaria a uma morfologia das

dados os modos específicos de produção de conhecimento no interior

estruturas espirituais humanas, mas almejada as possibilidades puras

de uma orientação considerada eminentemente prática e axiológica.

deestruturasde consciência sob uma legalidade eidética universal

Além disso, o esboço da região ontológica espírito em correlação com uma orientação do pensar (personalismo) é problemático no que tange à sua distinção em relação ao domínio da própria fenomenologia transcendental, a saber, aquele da consciência pura Segundo

o prometo

husserliano de clarificação das ciências, reconhece-se BllH@HHmmiml!

mento científico é desenvolvidode modo dogmático na orientaçãonatural, sem depender de qualquer reflexão transcendental. Isso ocorre tanto no nível empírico quanto no eidético. Quanto às ciências humanas, caberia ao pesquisador personalista investigar os sujeitos concretos

A antologiado espíritoe a fenomenologiatranscendentaldeveriam,dessamaneira, sedistinguir temática e metodologicamente. Contudo,issoparece não ocorrer em alguns momentos de Ideias 11.Husserl reconheceessadificuldade no apêndice IV do livro. Ali, ele afirma que 'a constituição de uma eidética do espírito impele imediatamente à vi-

sãode que a fenomenologia é uma disciplina aí incluída" (Idl1, 314) Quer dizer, os elementos da eidética do espírito sugerem uma assimilação da própria temática fenomenológica, uma consequência que borrada a distinção entre ambas apregoada em outros trechos da obra

Masquaiselementossugeririam a inclusão da fenomenologia na eidé47. "Na esferadas ciências do espírito, dizer que historiadores, sociólogos ou antropólogos culturais 'explicam' fatos cie]] típicos humanos significa que eles querem elucidar motivações, tornar inteligível

üca do espírito? Lembremo-nos de que, no parágrafo 64 de Ideíczs11,o

como as pessoas em questão 'vieram a fazer isso', vie-

ram a se comportar de tal modo, quais influências elas sofreram e quais elas exerceram, o que as determinou na e para a comunidade de ação e assim por diante"(Idl1, 229) 200

48. "Não sãoas ciências da natureza mas as ciências humanas que conduzem às profundezas 'filosóficas"'(Idl1,

366) 201

A cientificidade na

fenomenologiade Husser] Método estático e método genético na fundamentação das ciências

espírito é descrito como

qual a individualidade ráterabsoluto daindiv

l Análisegenéticado mundo da experiência lzovocaminho

consciência, da Ora, essa

Nosanos subsequentesà escrita de Ideias 11,Husserl paulatina-

exatamente o que

Consciência absoluta

reformula sua abordagem à distinção entre as regiões eidétícas e espírito e, por conseguinte, o seu próprio modelo de fundarnentaçao filosófica das ciências correspondentes. Vimos nos capítulos ,.tenores que, ao menos desde Pro/egõmenos,o filósofo propõe a cla-

a especificidade

rificação dos conceitos básicos científicos (o seu reenvio às operações

mente

existência autónoma em rece ser qualificada de da

ter absoluto da consciência

subjetivasque os constituem) como principal estratégia para oferecer

Justificativa da

osfundamentos da prática científica. Essa estratégia foi complexificada

reza em Ideias 11.Nesse

à medidaque a noção de ciências eidéticas materiais, responsáveispor

no interior da eidética do liga fenomenológica mítica no domínio das caráter absoluto da

delimitar o âmbito e a metodologia apropriada para a produção de co-

IdeÍczs l propõe-seque os conceitos definidores das regiões ontológicas sirvamde fios condutores para a explicitação das operações subjetivas

rito. O caráter absoluto da

responsáveis pela constituição de tais regiões.Mas acabamosde ver

ontología material

quea aplicação dessemétodo em Ideias ll chega a certos impassesdifí-

nhecimentopelas respectivasciências empíricas, foi elaborada. Em

Jade da

ceisde se superar sob o quadro teórico ali assumido. Nesse texto, tenta-

antologia do clãs objetivas), se pados por ta] Creio que essas

da

sedesvelarinicialmente os componentes eidéticos da natureza e, em

as Ciên-

seguida,do espírito. Há obviamente tentativas de expor "relações de sentido entre essasduas regiões, mas é notável que, na maior parte do tempo, cada uma delas seja tomada como um dado ílz;cia/ que se trata

recado por /delas //, e será

simplesmente de descrever.As regiões ontológicas são aquelas explora-

para buscar as respostas.

daspelas respectivas orientações teóricas, e importa tornar visível a cor-

relação entre as características eidéticas em questão e a orientação teórica que as investiga. Ora, é essaassunção das regiões otltológicas como

dadosprontos a partir dos quais se marcam as diferenças teóricas entre naturalismo e personalismo que será prob]ematizada por Husser] até o final da década de 1910so

Numa conferênciade 1919,intitulada "Natureza e espírito", já é possívelvislumbrar o novo caminho a ser percorrido. Ali, inicialmente,

50. Vários comentadores acentuam a importância dessapassagem na obra de Hus.

será.Cf., por exemplo, Pradelle, 2010, 160-162; Perreau,2003, 371-374 202 203

A cientificidade na fenomenologiade Husserl

Método estático e método genético na fundamentação das ciências

demuitas questões

que não serãoexploradasaqui, um novo tipo de

intitulada arzá/ísegenética. A luz dessanova análise Husserl avalia alguns dos seus textos anteriores como represen' ta.tesdo que então denomina aízá/íse estática. Nesse último tipo de investigação busca-se explicitar os constituintes dos objetos em corre-

loçãocom as capacidades subjetivas que os atestam. Trata-se de uma análise

poético-noemáticatal como articulada em Ideias1: almeja-se

ejucidar em seu aspecto eidético ascorrelações estruturais entre os mo-

dosde doação fenomênicos e as operaçõessubjetivasque assimos reconhecem Em um texto de 1921 sobre os diferentes tipos de análise fenomenológica,Husserl reconhece que as análises constitutivas que dos domínios objetivos prontos como fios condutores são anápartem iõesestáticass', e delas distingue a arzá/ísegenética, que se dedica a desvelara história da constituição do sentido em diferentes camadas da consciência,nas quais as operações sintéticas se desenrolam primeiro demodo passivo,quer dizer, sem a intervenção dosfitos voluntários do eucognoscente" O movimento argumentativo pelo qual Husserl deixa de se centrar na explicitação das correlações estáticas entre regiões eidéticas e orienraçõesdo pensar e passaa buscar as etapasde formação dasprincipais regiõescom base na experiência mundana explicita a aplicação do método genético. Segundo essenovo método, interessadesvelarcomo o 5 1. "Não é a fenomenologia estática precisamente a fenomenologia dos Eloscondutores, a fenomenologia dos tipos condutores de objetidades em seu ser, e a fenomenologia da constihição do seu não ser, de meras ilusões, de nulidades, de inconsistências?"(Husser1, 1973, 41). Isso não quer dizer que será preciso abandonar o método dos 6os condutores objetivos a fim de exercer a análise fenomenológica genética. Será pre caso,no entanto, adapta-lo para as llovas exigências metodológicas em vista 52. "A fenomenologia'da gênese segue a história, a história necessária dessaobje:

tivaçãoe portanto a história do próprio objeto como objeto de conhecimento possível" IHusserl,'1966, 345). A análise genética pode ser aplicada a vários níveis da vida subzrzft/zfzvcz

do ?7zu7zdo.

'

r

-''

jetiva;é possível,por exemplo, acompanhar a história das decisõesludicativas do ego. delineatldo assim a géneseafíva da objetivação. Também é possível acompanhar as formações sensíveis passivas por meio das quais a objetivação inicialmente.ocorre.

Em um

último nível, "a história primordial dos objetos conduz aos objetos hi/éticos e àqueles imanentes em geral, isto 'é, à gênese deles na consciência originária do tempo" (ibid.)

Nestecapítulo, vou me deter principalmente nas análisesgenéticaspassivas,sem adentrar nesseúltimo nível 204

205

A cieiitificidade na fenomenologia de Husserl

Nlétodo estático e método genético na fundamentação

das ciênci?s. 4

:terísticas essenciaisque tornam inteligíveis as realizaçõesda expe-

conhecimento científico se origina na experiênciaintuitiva do rnund. ordenada passivamente e sobre a qual, paulatinamente,

as próprias

giões eidéticas são circunscritas. Vamos acompanhar como esse«..

blema é montado em outro texto do mesmoperíodo.

' r"b

(FTL, 373). Não basta, a partir de então, reenviar as produções

íiêncta

para os fitos de pensamento produtores; é preciso, se se quer .umprir de modo radical a elucidação fenomenológica da possibilidade científicas

deconhecimento mostrar que o próprio pensar teórico (em correlação com

seu domínio objetivo) está enraizado em operações pré-teóricas

voltadas

para o mundo da experiência. Nesse sentido, Husserl afirma: "é

;ível entender o que o pensamento é de modo específico a fim de trodução dessecurso, Husserl inicialmente retoma a noção de douhina

podem

da ciência

uma

como

"a ciência

da essência

da ciência

genuína

em geral«s3

ser exprimido pela linguagem(. . .) e a fim de prover uma ciência,

teoria, se não retomamos a antes do pensamento, a aqueles fitos e

Assim concebida, a doutrina da ciência atumcomo "ideia-guia" lli'H.

realizações

371) do desenvolvimento histórico das ciências, a qual teria permane.

Aponta-se aqui para a vida pré-teórica da consciência como corzdíçãoda aüvidade conceitual por meio da qual o pensamento produz os resulta-

cêdoobscura na maior parte dessedesenvolvimento, mas que deve I us lamente ser elucidada se sequer atribuir plena racionalidade ao edifício

dns

que compõem a mais extensaparte da nossavida" (ibid.)

científicos. Desde então, a elucidação do conhecimento científico

científico. A doutrina da ciência deveria,por um lado, recensearasprin..

nãose limita a revelar as correlações estruturais enü-e teorias e opera

cipais formas pelas quais resultados objetivos são exprimíveis nas mais diversasciências e, por outro, tornar explícitos os processossubjetivos

çõesnoéticas, mas explora a í?z»aestmturczde experiência sobre a qual opensamento teórico é construído. E isso, afirma Husserl, "sob o ponto

de constituição desseconhecimentos4. Segundo Husserl, com O surgi. mento da fenomenologia, a correlação entre o aspecto ideal objetivo das

devista condutor de uma doutrina da ciência" (ibid.). Isso quer dizer

teorias e a atividade subjetiva pôde finalmente se tornar compreensível: foi somente

com

a fenomenologia

que tivemos

caminhos

de acesso

métodose intuições que tornam possíveluma doutrina da ciência efe. uva, a saber, por meio da sua radicalidade

em retornar à consciência

que,longe de abandonar o prometode fundamentação dasciências pelo (desenvolvimento de uma Wíssensc/za#s/e/zre, a exploração dascamadas inferioresda vida da consciência é feita em nome desseprometo,embora,

agora,de um ponto de vista diferente: "começando de baixo e ascendendo,para mostrar como o pensamento genuíno em todos os seus ní-

doadora de sentido e ao todo da vida consciente" (ibid.). Husserl sere.

veisaqui emerge, como ele é motivado e construído em sua realização

fere, de início, à explicitação estáticadascorrelaçõesnoético-noemáti-

fundada" (ibid.). Assim, o que Husserl esboça no final da década de

cas pelas quais se compreende

1910,à luz do desenvolvimento das análisesgenéticas, é uma nova maneirade enunciar o problema da fundamentação das ciências, a qual, a

a constituição

do sentido das realizações

teóricas.No entanto, a análise fenomenológica não para nesseponto. Além de mostrar os nexos estruturais entre formas teóricas e atos subjeti-

vos, a fenomenologia "remonta, indo de todos os tipos de objetos como substratos de teorias possíveis para a consciência experienciadora e suas

partir de então, não se limitará a formular as correlações estáticas entre asformas teóricas e os atos do pensar, mas recuará até a base experien

cialda consciência para, a partir daí, acompanhar a construção do pensamentoteórico e de seuscorrelatos objetivos

trina da ciência ou lógica teriam de ser duplos: subjetivamente dirigidos para a atividade de conhecer e objetivamente dirigidos para a teoria" (liTL, 371)

Vê-seaqui que o tema da fundamentação do conhecimento pela clarificaçãofenomenológica se entrelaça com o tema da fundação da atividadecognitiva nas estruturas passivasda sensibilidade. De certo modo, isso já se encontrava em Investigações/ógícczs.Lá, conforme

206

207

53. HussERI.,

endental:

EDMUNn,

Varbereiteitende

Betrachtungen

zur vorlesung

Logik" in Forma/e urze trarzszerzdeizfa/eLogfê, 371 .

tiber transz-

'

54. ' Os esforçosde elucidação do conhecimento científico pertencentes à dou-

A cientificidade na fenomenologiade Husser]

Método estático e método genético na fundamentação das ciências

visto no primeiro ficava levar os

Husser[ inicia esse curso com um tema que ]he é caro ao menos

negra a tornar visíveis os fitos de

desde a P ublicação de

Interessava, nesse ponto, desvelar as como pressupostos teóricos do

sabei, que o surgime

seu artigo A /í/oso/ia como czenczcz rigorosa, a

nto da cu/ftzra cíent@ca (localizado por ele na

GréciaAntiga) instaurou um novo ideal de formação humana, baseado

Justificativas racionais e não em superstições ou mitos. Esse ideal servesomente ao desenvolvimento de um interesse puramente teó-

por meio deles se garante o

nas

jetiva dos princípios lógicos. Mas, além

não

Bica, Husser] busca remeter essa

rico mastambém a uma reforma de toda a vida prática, que passaria

lógica (chamada de "intuição

entãoa se guiar por metas racionais. (.) desenvolvimento da ciência

si mesmas são pré-teóricasss. Nesse

moderna,com seus potentes métodos explicativos, mas também com

é somente aquela da

ênfasena resolução de problemas práticos da humanidade, significaria

enquanto um

a assunçãoconsciente da constituição da cultura científica como um dosmarcoscentrais da vida cultural europeia (Cf. NG, 4)

Também se analisa

Contudo, no decorrer da modernidade, faltava unia cl,re:,

dos em camadas pré-teóricas

independente dasua da década de ]910 e começo zar os problemas da fundamentação do

de

princípio acerca da divisão dos temas a estudar e dos próprios procedimentos metódicos científicos, julga Husserl. Muitas vezes, a ciên-

ciaavançavasem uma crítica suficiente de seus conceitos basilares.

que a basegenética (que também

osquais envolviam obscuridades que tingiam todo o edifício do saber. Husserlmenciona como circunstância decisiva dessaausência de cla-

rico) do conhecimentocientífico

rezasobreos princípios da produção do saber a tecnicização do mé-

inserção concreta em um mundo pré-teórico.

todocientífico, isto é, a aplicação de algoritmos preestabelecidos tendo emvista a obtenção de certos resultados, sem a devida clare:a em re-

ção genética de modo bem mais

lação às razões pelas quais essessão os procedimentos escolhidos e os

A tragédiada cultura científica

resultados alcançados ICf. NG, 6). Com a especializaçãodasdiscipli nas, esse tipo de uso pouco refletido dos procedimentos metódicos se

multiplica visto que muitas vezes só se investigam partes de um tema mais amplo

sem que se tenha a chance de acompanhar a síntesedos

resultados parciais fixados Segundo Husserl, essatecnicização dos pro

sedimentos científicos

inibe o progressoda cultura científica" (NG,

6), uma vez que dispensaos cientistas, na medida em que essesapenas buscam

computar resultados,de ganhar clareza no que se refere aos

conceitos

mais básicos que definem a sua própria área de atuação.

Nesse

ponto, Husserl retoma sua crítica àspretensõesuniversalizanpresente já em ideias IJ. É justamente por ausência de clareza em relação ao sentido do conceito de natureza. delimitador tes do naturalismo 55. Cf. LU2, VI, SS40-52. Um excelente artigo sobre o tema é Lohmar, 2001.

do âmbito de ação das ciências naturais, que se tenta ingenuamente

208 209

A cientificidade na fenomenologiade Husserl

b'métodoestático e método genético na fundamentação das ciências f +'

4

estender o tipo de análise aplicável ao domínio natural para fenâHe.

Bata-se de propor uma investigaçãodos /ürzdamezztos da produção

nos que pertencem a outro domínio ontológico (aquele do espírito, por

científica, de retornar às "fontes últimas" do conhecimento para ali ga-

exemplo).

nhar clareza no que se refere à legitimidade

Essa ingenuidade

derivaria

da ignorância

relativa

às diferem.

e aos limites das determi-

ças radicais entre os domínios natural e espiritual (Cf. NG, 1 1), diferem.

naçõescientíficas (Cf. NG, 13)5'. Husserl reconhece que a experiência

ças que são desrespeitados se se insiste em aplicar procedimentos

pré-científicaé vaga, e que somente por meio das operaçõesteóricas seobtémconhecimento preciso sobre o que é experienciado(Cf. NG,

prees-

tabelecidos sem investigar profundamente a sua adequação metodolÓ. gica para o âmbito em vista. Cabe observar que também se reconhecem

15). Desse modo, é razoável esperar que as ciências naturais e humanas

problemas semelhantes nas ciências humanas: falta muitas vezesaos

esclareçamas principais características dos domínios da natureza e do

pesquisadores dessasáreas clareza de princípio

espírito respectivamente estudados por elas. Apesar disso, Husserl de-

relativa à especificidade

da sua região temática e dos métodos adequados para explora-la. Daí a; assunção ingênua de técnicas das ciências naturais, quer dizer, a adoção de procedimentos bem-sucedidos na investigação naturalista sem Uma

reflexão detida sobre a especificidade dessesprocedimentos e de possí-

fendeque "toda determinação lógica jproduzida teoricamentel deriva seusentido de um pré-lógico, de uma fonte originária (...). Somente quando entendermos essadoação de sentido primitiva poderemos esperarentender as operações elevadas das ciências" (NG, 17). A com-

veisincompatibilidades com o domínio espiritual (Cf. NG, l l). Em suma, a tecnicização da investigação científica é lamentada como um dos principais motivos responsáveispela degradaçãodo ideal

preensãodo sentido último dos temas e das abordagenscientíficas exige,dessamaneira, uma investigaçãodo domínio pré-científico so-

de cultura científica. E Husserl não deixa de acentuar a situação "trá-

clarecer as principais divisões temáticas e mesmo as prescrições me-

gica" a que se chegou: o ideal de uma vida guiada em todos os seus

todológicasadequadaspara a produção de conhecimento. Os objetos

âmbitos por princípios racionais, livre de superstições limitadoras, ali-

científicos, mesmo aqueles que envolvem aspectos inobserváveis dire-

mentou o progressodas ciências,tendo em vista a implementação de uma cultura científica. Porém o desenrolarefetivo de disciplinascada

tamente, remetem a um substrato último de experiência pré-teórica

vez mais especializadase tecnicizadas leva ao resultado inverso. Afirma

Husserl: "a ciência deve nos tornar livres, primeiro teoricamente livres

Cabeentão explorar essavivência pré-científica e o seu correlato geral, omundo pré-teórico, para trazer à luz os fundamentos últimos do saber

e então livres em todo nosso agir e criar. Mas a ciência

científico.Tal como crê Husserl, "a estrutura originária do mundo da

que se especia-

liza e setecniciza não nos torna nem mesmo livres teoricamente" (NG, 12). Sem clareza em relação aos princípios de sua própria prática, os cientistas muitas vezes se limitam

a acumular teses que não portam

nelas mesmas a sua evidência legitimadora.

O sentido dos resultados

fragmentadosse opacifica, de maneira que o conhecimento deixade fomentar o impulso racional da culturasõ. E diante dessequadro crítico que Husserl propõe sua tarefa filosófica. Não se pretende ensinar os cientistas a cumprir bem o seu métíer;

bre o qual a investigação teórica se erige. Nesse domínio,

devem se es-

sobreo qual todasas práticas científicas sãoconstruídas (Cf. NG, 19).

57. A. Staiti ajuda a entender asamplas pretensões de Husserl com sua análise clarificadora em NG: trata-se "de um incremento teórico ao trabalho da pesquisa especiali-

zada,a fim de trazer preenchimento genuíno ao ideal de conhecimento ingenuamente abraçado mas nunca plenamente

escrutinado pelos pesquisadores especializados. (. . .)

Ao mesmo tempo, espera-se que uma clarificação basilar das regiões e tarefas pertencentesàs diferentes áreas da pesquisa científica seja relevante no desenvolvimento futuro da própria ciência, prevenindo o desperdício de energias intelectuais em caminhos

depesquisainevitavelmente estéreis,e superandoa imagem unilateral de mundo que emanadas ciências naturais ainda não desenvolvidas" (Staiti, 2014, 140). Assim, a ex-

ploraçãoda experiência fundante do conhecimento deve revelar toda uma riqueza fe56. Husserl explorará com vagar em textos tardios essaperspectiva cultural alimen-

tada pelo desenrolarhistórico dasciências.\voltarei a essetema no próximo capítulo 210

nomenal que por vezes escapa aos métodos especializados, bem como atentar para os errosde tentar forçar certo padrão metodológico na análise de fenómenos cujas características esbuturais escapam aos recursos técnicos e conceituais empregados 211

A cientificidade na fenomenologiade Husserl

Método estático e método genético na fundamentação das ciências

./ #

4

consciência pré-científica e as demarcações esboçadasem seu sentia.

..nsciência,daquilo que se atestadiretamente no agora vivido, é pos-

próprio

diferentes de investiga-

síveldistinguir dois conjuntos de dados: aqueles relativos ao próprio eu

ções teóricas possíveis e, com isso, determinam as ciências por princí. pio possíveis" (NG, 21). E então como tentativa de descrição da e*..

f,s vivências, passíveis de uma percepção reflexiva que as apreende de

riência pré-científica

esüangeiro ou transcendenteao eu, e que só se doa de maneira inade-

determinam

pré-teórica

e o mundo

direções .essencialmente

(em seus dois polos constituintes:

a consciência

por ela visado) que Husserl passará a desenvol.

bodo absoluto) (Cf. NG, 25-27; Idl, S 42) e aqueles relativos ao que é .fiada, sendo sempre passível de dúvida (NG, 32-33; Idl S46)

' Husserl recupera, dessemodo, na descrição da vida pré-teórica da

ver a sua análise sobre os fundamentos de sentido da prática científica análise que pretende contribuir para a crítica da tecnicização dasciên.

consciência,a sua doutrina da experiência imanente e transcendente e

clãs e de suas consequências daninhas para a cultura científica

dosrespectivos graus de evidência a ela atribuídos. Em seguida, a fenomenologia é anunciada como ciência eídétíca do domírzío ímanerzte da

elpeHêrzcía, também de uma maneira que, em linhas gerais,segueos

A análise da experiência pré-científica

princípios firmados em Ideíczs1. Não interessa aqui retomar essaexposiVamos acompanhar com mais detalhes os frutos dessa descrição.

çãometodológica, mas simplesmente notar que muitos dos temas que

que muitas vezes Husserl intitula de "estética transcendental" (NG.

ernIdeias l apareciam sob uma perspectiva estática são agora recupera-

175, 187, 193, 195), no sentido de uma análise lata dos componentes da experiência referentes à doação intuitiva básica, por oposição às forma-

dosdo ponto de vista da "história" das produções intencionais da cons-

ções lógico-categoriais superioress'. Cabe observar que em uma parte considerável dessecurso de 1919 (NG, 21-117) Husserl retoma, ainda

que com modificações,algumasde suasprincipias tesessobrea estrlltura da consciência pura (tais como formuladas principalmente em Ideias 1) e as expõe como resultados da descrição da consciência précientífica. Não há de fato nenhuma menção explícita a Ideíczs1,embora

ciência,ou seja, do ponto de vista genético. No entanto, Husserl fará maisdo que simplesmente repetir suas teses outrora estabelecidas sob uma perspectiva metodológica diversa. O avanço na investigação gené-

ticapropiciará resultados novos, como veremos a seguir. Ao caracterizar o conteúdo daquilo que se mostra ao eu de modo transcendente,Husserl distingue dois tipos de entes reconhecíveis na

experiênciapré-científica: coisas(entes materiais mais ou menos dis-

a similaridade temática se imponha para o leitor atento. Em Natureza

poníveis aos sujeitos) e os próprios sujeitos (entes animados com uma

e esPíhfo, Husserl inicia a caracterização da experiência pré-científica

vidapsíquicaprópria) (Cf. NG, 119-120). Cabe detalhar de que forma

ao caracterizar como sua forma geral o fluxo temporal (Cf. NG, 22; Idl,

a consciência

SS81-82, 84). A vida pré-teórica do eu é descrita como um contínuo que é visado, um perceber que se estrutura como um centro de impres-

seu campo de impressões imanentes. Conforme já estabelecido em Ideias1, toda objetidade transcendente se doa de modo perfilado, por meio de fenómenos que se sucedem e progressivamente constituem o

sões (no qual o visado se doa de modo original, em pessoa) ao qual se

sentido global daquilo que é visado, sentido que não se esgota em ne-

ligam aberturas protensionais (nas quais há expectativas em relação ao visado) e retencionais (nas quais o visado é presentificado para a cons-

nhuma manifestação particular. Husserl nota que essadoação progressivados objetos transcendentes não ocorre de forma caótica, mas como

ciência -- Cf. NG, 24; Idl, S 82). No âmbito da esferaimpressionalda

um "sistema interminável

perceber

IPerzípíerenl,

no sentido

amplo

de doação

intuitiva

daquela

pré-científica

experimenta

de múltiplas

esses entes como dados de

manifestações

IErsc/zé?írzungenl

possíveis"(NG, 38). O percurso sucessivo da doação transcendente é 58. Parauma análise detalhada do prometohusserliano de uma estética transcendental, cf. Summa, 2014. 212

regidopelos tipos gerais das objetidades apreendidas,que funcionam como normas de prescrição de dados possíveispara a continuidade 213

A cientificidade

na fenomenologia

de Husserl

Método estático e método genético na fundamentação das ciências 4

harmónica

da experiência.

Esse papel

prescritivo

dos tipos

Objetivos

seesperaque haja mais de um lado a se pe'ceber). Aqui já seesclarece

gerais para a ordenação da experiência perfilado dos objetos transcen'

minimamente a naaneira como os sujeitos e as coisas são apreendidos

dentes já era reconhecidoem Ideias1. Ali, no parágrafo47, eraagir

naconsciência pré-teórica: como tipos gerais que prescrevemcerto modo deprogressãodos dados Í?zdívíduczís.Sujeitos e coisas se atestam paulatinamente, à medida que os horizontes dos dados impressionais se atua-

mado que os horizontes indeterminadas de cada dado transcendente

apreendido são ordenados numa progressãoprescrita pelo tipo eidétlco de cada objeto em questão. No entanto, Husserl não se aprofundava

jizamsegundo uma certa expectativa ou prescrição que guia a apreen-

no modo como essadeterminação dos horizontes dos dadosperfilados ocorria. E de fato, em relaçãoa esseponto, em um texto de 1929,in. fluído como apêndice45 no volume complementar a Ideias 1,Husserl

são dos dados (por exemplo, espera-se que a apreensão de um dado

reconhece

tiposgerais presentes na experiência pré-teórica guiam a síntese dos dadosparciais em objetos apreendidos intuitivamente. Será a partir desses

que a doação

válida

das coisas

e do mundo

Supõe Uma

consciência universal de horizonte" (Husserl, 1988, 599) em relação

à qual ideias J não teria realizado uma análise crítica satisfatóriasç. Por sua vez, no curso de 1919, Husserl explora com muito mais vagar essa

determinação dos horizontes da experiência transcendente. Segundo Natureza e esPú'ífo, cada dado transcendente apreen-

parcialde um possível sujeito se funda com outros dados capa:es de confirmar se tratar de uma pessoa e não de um boneco de cera). Certos

tiposque asregiões antológicas, que depois se tornarão tema das investigaçõescientíficas, se delimitarão, o que confirmaria a gênesedos conceitoscientíficos fundamentais na experiência pré-científicaõo.

dido no presente impressionamda consciência envolve un] halo ina.

Cabe notar que o estabelecimento da gênese das categoriais regionaisna experiência pré-teórica não é algo tão simples. A divisão das re-

tuas cointuído de novos dados passíveis de apreensão impressional pela

giões científicas "natureza" e "espírito" não é meramente fruto da te-

coíasciência.Esseé o "horizonte externo" (NG, 39) dos dados trans.

matizaçãoteórica da experiência pré-teórica de coisase sujeitos; não se

pendentes,ou seja,a aberturaa um ambienteou fundo que sempreé

trata de uma passagem linear dos tipos eidéticos de coisas e pessoas para

cointuído com cada dado anual e pode ser tematizado diretamente na sequência perceptiva. Além disso, há também o "horizonte interno"

a reflexãoteórica. Essetópico se torna mais claro por meio da explici-

(ibid.) de cada dado impressional, ou seja, possibilidades de explora-

dados com os quais se defronta. Husserl nota que na experiência pré-

ção dos seus componentes,os quais poderiam ser tematizadoscomo

científica os objetos se mostram normalmente dotados de "predicados de sentido" (NG, 122), que se caracterizam principalmente por reme-

novos dados (por exemplo, cada lado de um objeto percebido pode ser

tematizado em sua coloração, textura, dando assim ocasião para no-

taçãodos predicados atribuídos pré-teoricamente pela consciência aos

vas percepções dessescomponentes). E assim que a progressão percep-

ter, tácita ou explicitamente, a operações subjetivas específicas (apreciações estéticas, valorações morais, determinações de finalidade etc.).

tiva dos dados transcendentesocorre: cada dado impressional seordena

Trata-seaqui de predicados éticos, estéticos ou práticos, que são espon-

em sequênciasde doaçõesintuitivas possíveisconforme suasrelações externase internas. Os horizontes externo e interno atualizam as ca-

taneamente atribuídos seja a coisas, seja a sujeitos (Cf. NG, 131)

racterísticas antecipadas pelo tipo geral de objetidade em questão (por

exemplo, se se trata de um objeto material sensível, então por essência

do caráter original da orientação personalista enquanto orientação natural originária. No entanto, não setrata exatamente do mesmo recorte

59. "Tudo isso aponta com efeito para investigaçõescircunstanciadas e difíceis, cuja realização suficiente e concreta só posteriormente seráalcançada. No primeiro es-

60. O detalhamento dasoperaçõessintéticas que constituem os objetos com base nostipos geraisnão é oferecido por Husserl nessecurso de 1919, mas somente alguns

boço de ideias, ela ainda não foi levada satisfatoriamente a termo" (Husserl, 1988, 600).

anos depois, no curso Nczfureza e esPz'Hto,de 1927, como ainda veremos

214

Aqui Husserl parece retomar a exposição, contida já em Ideias ll,

215

A cientificidade

na fenomenologia de Husserl

Método estático e método genético na fundamentação das ciênçias

f

temático (e a ausência de qualquer referência à expressão

personalista" nessecurso de 1919 parece sintomática das análise). Em Jdeías11,acentuava-seque na orientação

4

Lembremo-nos de que, ao menos em um momento de Ideias ll t 11),Husserl admite que a natureza enquanto tema das ciências na-

teórica o sujeito se defronta com um Umwe/f dotado de

nraisnão é constituída por abstraçõesarbitrárias, já que a circunscriá. de um domínio de dadosobjetivos seria prescrita a príod pela pró-

subjetivas,não tendo, assim,a experiência da "realidade simples,sem qualificação"(Id 11,S 50, 186),a qual seria

níiâ essênciada natureza em geral. No entanto, ao passar a descrever a

constituída por meio dos recursos teóricos naturalistas. Por sua

r'periênciado mundo na orientação personalistapré-teórica, Husserl insistiaem afirmar que aí o sujeito não se relaciona com objetos na-

curso de 19 19, Husserl enfatiza que já na experiência pré-científica

Hrais(desprovidosde predicadossubjetivos),já que essesderivariam

só os predicadosde sentido são apreendidos,mas também os

de urna abstração

teorizantem.

Por sua vez, em

Natureza

e esPz'Hto,

cados reais", a saber, aspectos ligados às formas espaciais e

Husserladmite explicitamente que aquilo que é tematizado pelas ciên-

aos atributos materiais e às conexões causais que daí se os dados (Cf. NG, 120-121, 130). Os predicados reais são aqueles

ciasnaturais se anuncia na experiência pré-teórica (como predicados

seja, daquilo que Eazparte objetivamente dos próprios dados'i. picados são reconhecidos tanto nas coisas quanto nos sujeitos e,

reais),tornando assim verdadeiramente operante a tese da não arbitrariedadeda circunscrição científica da natureza objetiva, formulada em Idem(zs 11.Trata-se de reconhecer que, na experiência concretas as pessoasserelacionam com os predicados gerais da natureza (ao menos no sentidoamplo de que os fenómenos naturais sempre se ordenam espa-

forma, servem de base para a atribuição dos predicados de sentido, os

cial,temporal e causalmente) e entrelaçam suas motivações com os fe-

quais se apresentam

reaisõz.Será por meio dos predicados reais que se delimitará o que sere-

nómenosnaturais (tais como passivamente apreendidos). Por exemplo, um dia extremamente frio ou quente altera os planos políticos que um

conhece cientificamente (na orientação naturalista) como "natureza

governoalmejava implementar; uma tempestade inesperada fomenta

quer dizer, domínio das propriedadesreais independentes das opera-

novoslaços sociais etc. Nesses casos, embora os complexos laços cau-

ções produtivas subjetivas (Cf. NG, 127). Vale observar que, tais como discutidas em Natureza é?é?sPüíto,essaspropriedades reais não sãofruto de abstraçõesmetódicasõ3,quer dizer, não são construções teóricas tardias (como parecia ser o caso em algumas páginas de Ideias 11),masjá

saisque geraram tais eventos naturais não sejam, enquanto objetos iso-

não remetem a nenhuma operaçãosubjetiva como sua ãorzfe e que permitem circunscrever o domínio do "puro real" (NG, l

como momentos

dependentes

de todos Concretos

lados,o tema imediato das vivências, eles certamente ajudam a compor o ambiente concreto em que as motivações pessoais e sociais se desenrolamõs

compõem o dado da experiência pré-teórica. 64. Husser] chega a reconhecer, por exemplo, que "também as causalidades coi61 . Obviamente os predicados reais supõem a consciência intuitiva para que justa-

sais(natural-real,natural) são dadasintuitivamente" (Idll, $ 56f. 230), ou seja,são

mente sejam atestadoscomo tais. Mas essaatesfaçãosubjetiva é bastante diferente das

apreendidasna orientação pré-teórica. Porém, algumas páginas depois, ao comentar so-

operações criadoras da subjetividade no que tange aos predicados de sentido

bre a percepçãopré-teórica de outrem, Husser] afirma que "estamosfora da orientação

62 "lado? os predicados de sentido sãofundados, são obÍetos de grau superior (NG, 124). Pode-sesem dúvida conceber a atribuição de predicados de sentido a en-

requerida para apreender a causa]idade natura]" (]d]], $ 56g, 235). Há, assim, como se vê, ao menos hesitação, em Ideias 11,para admitir que os temas explorados pelas ciên-

tes não existentes espaçotemporalmente

ciasnaturais possamser experimentadospré-teoricamente. So#er ( 1996a, em especial

(personagens míticos OIl Htccionais, etc.). Con-

tudo, importa acentuar que, na experiência pré-teórica, os dados concretamente experimentados envolvem um misto de predicados reais e de sentido

43) e Crowel1 (1996, em especial 101) já haviam notado essa hesitação e discutido suas

63. "0 que chamamos de realidade, de mero objeto natural, é um concreto. um

65. Diante desseinescapáve] entre]açamento do natural e do cultural na experiência pré-teórica, Husserl admitirá, no curso Psíco/ogíaáenome7zo/ógíca, ministrado

algoindependente completo"(NG, 127). 216

consequências

217

A cientiflcidade na fenomenologia de Husserl

Método estático e método genético na fundamentação

Assim, segundo o curso de 1919, já se encontram na experiência pré-científica predicados reais, e não só predicados de sentido, com. parecia ser o caso em alguns trechos de Ideias /l. Quanto a essesÚltj. mos, Husserl acentua que se trata de predicados "irreais' NG já que não estão submetidos a relações causais no espaço Objetivo

das ciências

sisóspropriedades de sentido (por exemplo, as leis decididas por um .urlamento -- Cf. NG, 134). Importa

observar que, de maneira geral,

ospredicadosde sentido produzidos por indivíduos supõem oslaços socids nos quais certas formas de apreensão do mundo circundante são ivilegiadas e transmitidas como tradiçõesó8

Obviamente essespredicadospodem ser atribuídos a coisas e Sujeitos

'

reais, mas sem serem partes ou fragmentos reais deles (Cf. 'tais predicados são resultantes de relações intencionais,

diçõessociais é denominado como aquele da cu/furcz (Cf. NG, 137), ou

NG,

132).

O domínio dos predicados de sentido produzidos no interior de tra-

rme já reconhecido em Ideíczs11,supondo assim sempre uma remissão a uma produção subjetiva de sentidoóõ

seja,domínio de objetidades dotadas de sentido remissível à produção subjetivae eventualmente ligadas a um substrato real. Husserl acentua

Husserl acentua que os predicados de sentido são transmitidos entre os sujeitos, formando tradições sociais de apreensãodas coisase su.

mínio com uma diferença de ênfase: ao mencionar "espírito", atenta-

jeitos (Cf. NG, 124). Os objetos do mundo circundante são espanta-

que"espírito" ou ' cultura" são termos que se referem a um mesmo do-

separa a "subjetividade do ponto de vista de toda operação realizadora" (NG, 140), e ao mencionar "cultura",

atenta-se para os produtos

neamente apreendidos segundo os predicados de sentido em vigor na comunidade em questão, de maneira que a própria percepção sensível é carregada culturalmenteõ7. Além disso,as s se

dessaoperação. Prefigura-se aqui a região ontológica posteriormente

ordenam em unidades "subjetivas" superiores, capazes de produzir

simplesmenteaparecem pessoas,seresanimados. Na verdade, a espera

pela primeira vez em 1925, que a mvestigação teórica do ponto de vista personalista

não deve ignorar os fatos naturais objetivos. Parao pesquisadorem ciências humanas. a natureza em geral não está entre parênteses: enquanto natureza que é objeto da ex.

penência, que tem uma existência conforme a experiência e que se atestaem seucaráter de experiência em um modo pré:teórico, ela é sempre pressuposto" (PP, S 45 232)

66. Por exemplo, um pedaço de pau tem proprieda(ies reais que não' dependem de nenhuma

produção

da consciência

para existir,'mas

somente

para serem

atestadas

tuitivamente (tais como forma, co!, texhra etc.). Mas essepedaçode pau podere ceber uma função específica, servindo como bastãopara empurrar uma bola segundo regras em algum tipo de jogo. Trata-se aqui de um predicado que remete a uma p'oduç.ão de sentido subjetivo, o qual não é uma parte real do pedaço'de pau, mas uma

objetividade fundada intencionalmente, o que por si só não anula a vigência 'dos predicados reais (Cf. NG, 124).

'

'

'

67. Husserl considera que somente os predicados de sentido se constituem em di-

ferentestradições culturais. Não há nenhuma menção dessetipo em relaçãoaospredicados reais, os quais, então, não dependeriam de tradições culturais para ser transmitidos. O filósofo pa'ecS supor que tais predicados estariam aquém das variações culturais e poderiam ser partilhados pelas mais diversas culturas. Está aqui implícita a ideia de

que, ao menos em parte, a estrutura do mundo da experiência pré-científica antecipaa obje.tividadeuniversalalmejada pelo conhecimclnto científico, tema desenvolvido prin.

a serexploradapelasciências humanas. Isso quer dizer que o âmbito do espíritose prenuncia na experiência pré-teórica não porque nessa esl)iritual é delimitada pelos predicados de sentido constituídos em relaçõesírzferzcíonaís,predicados atribuíveis tanto a sujeitos quanto a coisas, e essesentes, por sua vez, também são apreendidos pré-teoricamente

conforme seuspredicados reais.

Dessamaneira, os domínios posteriormente reconhecidos na orientação

teórica

como

natureza

e espírito

enconfrczm-se

entre/czçczdos

rzaexperiência pré-teórica. Não há aí um conjunto de objetos apreen-

didocomo natural e outro como espiritual. Na maior parte dos casos, osdados pré-teóricos portam propriedades reais e de sentido, e será por

ênfaseteórica sobre cada uma delas que as orientações teóricas naturalista e personalista (para manter os termos de Ideias 11)se constituirão. Husserl minimiza, assim, ao menos em sua gênese, as distinções

femáfícasdessasduas orientações teóricas (os âmbitos da natureza e o âmbito do espírito), distinções que em muitos trechos de Ideias ll

cipalmente em textos tardios, tais como A crise das ciências europeias e a áerzomerlología

68. Husserl chega a dizer que a produção de predicadosde sentido faz parte dos 'atessociaisdo eu" (NG, 134),embora deixe em aberto a possibilidade de que essapro-

fran celzderzfa/,que analisarei no próximo capítulo

dução ocorra de modo associam, por um suposto indivíduo isolado (Cf. NC, 139)

218

219

recebiam grande destaque, visto que ]á, na maior parte do tempo enfatizada a correlação intencional estáfíca entre uma determinada .

s objetidadesintuídas. A prioridade é agora atribuída a essaexpe' ência, em relação à qual as investigações científicas são.especifica-

giro eidética e a orientação teórica correspondente,sem destacar

Ões posteriores. Que um tipo de ciência inclua entre seüÉ'téhas o prós

em sua origem os componentes eidéticos de tais regiões não se enc}

rio fazercientífico é algo legitimado pela experiência pré-científica,

trem separados

Também vale notar que ao demarcar o domínio da Cultura cor aquele das produçõesesPírífuaís a serem posteriormente estudadas las ciências humanas, Husserl volta a admitir uma tese já reconhecia em Ideíczs11, a saber, que as próprias ciências são construções huna

disponíveis no mundo circundante, de maneira que os sujeitos poden se relacionar ao menos com alguns de seus aspectos de modo Pré-&

rico (por exemplo, com as aplicações tecnológicas derivadas daste rias, com as associaçõescientíficas enquanto comunidades intersubjetivas guiadas por normas racionais etc.). Para chegar à experiência da mundo circundante, Husserl inicialmente buscou caracterizar um do. mínio anterior à atividade científica69. Contudo,

é preciso reconhecer

agora que as ciências se sedimentam como produções de sentido

passí-

veis de apreensãopré-teórica. E se a região ontológica do espírito'(correlata da orientação teórica personalista, por assim dizer) é constituída com base nas produções intencionais de sentido, então as ciências,en. quanto produto espiritual das comunidades humanas, devem ser tema das ciências humanas. "As ciências com todas as suas objetidades teó.

'.ue desmonta qualquer tipo de competição entre ciências naturais e umanasno que se refere ao caráter fundente da sua investigação em loçãoà outra

Essessão alguns dos resultados principais contidos no curso de lg19.Trata-seda exploração de um novo caminho para.aresolução da .roblemática da fundamentação das ciências por meio do qual se tenta mostrarcomo, na correlação entre a consciência pré-teórica e o mundo aí intuído, se esboçam certas estruturas que prefiguram os domínios objetivosestudadospejos diferentes tipos de ciências. Tal como já estabelecidodesdeIdeias 1, há ciências empíricas ou eidéticas, e essasúltimassão pressupostas pelas primeiras, no sentido de delimitar as possibilidadesa priori que circunscrevem o domínio factual em questão (Cf.

NG, 145-146).Agora, porém, fica claro que o conhecimento não é fun lamentado somente por referência à região eidética correspondente, poisessaspróprias regiões ontológicas derivam dczexperiência pré-teó-

ricado mundo. Desdeentão, a tarefa fenomenológica de clarificar os

ricas devem ter o seu lugar no mundo circundante enquanto compo-

fundamentos do conhecimento científico deveoferecer uma análise dessa experiênciae do mundo tal como vivido pré-teoricamente" Cabenotar que essaanálisenão seráuma descriçãoempírica da

nentes da cultura e da história" (NG, 144), asseveraHusserl, de moda

vida pré-teórica, mas uma exploração dos componentes a É)Horaque de-

que na exploração dos dados da experiência pré-científica se prenuncia que o próprio fazer científico será estudado pelas ciências humanas.

terminama ideia de um mundo da experiência em geral. Essescomponentesseriamexplicitados pela variação imaginária de casosindivi-

Em IdeiczsIJ, o autor apontavapara um aparentecírculo viciosoen-

duaisde partida (Cf. NG, 164), de forma a delinear puras possibilida-

tre ciências naturais e humanas. A retomada dessetema em 1919 mini-

desestruturaisde experiência, independentemente de sua realização

miza já de saída essa circularidade entre os diferentes tipos de ciências.

Eactual7i. E é em direção a essadescrição das estruturas a priori da expe-

Ambas se enraizam na experiência pré-teórica, ou seja, têm osseusdo-

riênciae do mundo pré-teóricos que Husserl avança no correr dos anos

mínios prefigurados

nos diferentes

tipos de predicados reconhecidos 70. "A tarefa fenomenológica ou transcendental seria estudar reflexivamellte esse

mundoconforme sua típica lrrpíkl na consciênciaoriginalmente atestadora"(NG, 69. "No início, nós excluímos todas as ciências a fim de alcançar o mundo précientífico. Mas deixamos em aberto todo tipo de operação, de predicados de sentido, por meio dos quais o sujeito encontra seu mundo circundante"(NG, 220

140)

142] 43\ 71. Husserl retoma aqui essemétodo estabelecido em Ideias 1. Alguns anos depois,no curso Psfco/agiaáerzomenorógica, ele reconhece poder haxer diferentes níveis 221

A cientificidade na fenomenologia de Husser]

Método estático e método genético na fundamentação das ciências

1920. Com efeito, nessecurso de 1919, como essameta e já amealha alguns resultados. É v.

ciência,e ciência no sentido mais alto e rigoroso" (NG2, S 1, 4), e meramente expressãode uma visão de mundo relativa. "A filosofia

tas questões ainda não se resolvem. Embora

seusinteresses e respectivamente sua esfera de conhecimento pró no universal, em oposição às ciências particulares que os têm no (NG2, S 1, 5), acredita o autor. Enquanto cada ciência par-

os temas apreendidos pela consciência mente explorados nas discutido acerca da

te dedica a uma região temática delimitada, a filosofia abarca a do (...) cognoscível" (NG2, S 1, 6), e isso porque investiga

ã experiência pré-teórica. Na parte final do durezacomo tema científico é finalmente lida há ali somente uma retomada da termal"pelas ciências naturais, tal como NG, 168). Quase nada é dito. rito, uma ausência notável em um curso

condiçõestranscendentais que tornam o conhecimento particular

a qualquer área objetivo) possível. Dessamaneira, a filosofia 'uma crítica dos fundamentos de princípio, dos conceitos bási-

princípio das ciências" (NG2, S 2, 9), ou seja, uma exploração dascondiçõestranscendentais de toda prática científica Mas de que modo essacrítica filosófica se exerce?Husserl reafirma lura já assumida no curso de 1919. Referindo-se àsciências empía

Somente nas últimas páginas do

psicologia experimental ao domínio pidamente o caráter absoluto do

ricas ele asseveraque "todas as ciências positivas se relacionam ( . . .) ao

Jade da natureza (Cf. NG, 2]5)

mundocontinuamente pré-dado" (NG2, S 3, 14), ao mundo tal como

modo bem mais paciente no final de Ideias /l. encerra nenhum grande buição dessecaráterabsoluto

intuído na experiência pré-científica. E sobre essaexperiência que a

atividadecientífica se ergue, de maneira que nela se devem buscar ao

quais se realizam na orientação natural. Será gorda versão do curso Natureza e encontrar algumas das respostas não

humanas, as estudar uma s.. 1927, para

menos algumas das suas condições estruturais basilares, tornando claro

em que medida construções conceituais que delimitam e prescrevem

oscaminhosda investigaçãocientífica, tais como "natureza" e "espírito", remetem à infraestrutura pré-teórica. Assim, a tarefa geral lançada na introdução do curso de 1927 é mostrar de que modo a experiência pré-teórica seorganiza e como a atividade científica se erige sobre ela. Cumprindo tal tarefa, a reflexão filosófica se realizaria como

A crítica $1osófica às ciêntcias

"filosofiaprimeira", ou seja,como "o solo originário para a clarificação radical de todos os pressupostos e fundamentos das ciências positivas ING2, S 3, 18). Por meio dessainvestigação filosófica genética seria enda ciência, tal como ocorrera no curso homónimo anterior, mas sim a

retomada de um tema caro a Husserl ao menos desde seu'artigo A /} /osoPa como cíêrzcía rigorosa (191 1), a saber, que "a filosofia pretende

tãopossívelatribuir uma justificativa racional plena ao conhecimento científico, quer dizer, uma justificativa que não deriva meramente da aplicaçãotécnica de algoritmos tendo em vista certos fins, e sim da compreensãodos pressupostospré-teóricos de que a legitimidade da atividade científica depende

da exploração da experiência pré-teórica, nem todos servindo se des- -- á-- . pretendo mostrarno final '' '" - "b»ç "içLUao, como

docapítulo.

222

Esseprometofilosófico é apresentadode modo bem geral na introdução do curso de 1927. No entanto o próprio Husserl reconhece 223

A cientificidade

na fenomenologia de Husser]

que não poderá aplica-lo a todos os tipos de ciências, o cussõesmuito mais complexas do filosofia. É assim, por exemplo

em que medidaas ciênciasformais, tais como a a lógica, poderiam também ser remetidas ao pré-científica (Cf. NG2, S 3, 18-lg). No 1927,Husserl delimita como âmbito cação das diferenças entre ciências

bTétodo estático e método genético na fundamentação

das ciências

4,

delimitação originária das regiões ontológicas ocorrerá de acordo com

do mundo da experiência pré-científica. E aí que se enrai como o fenomenólogo já mostrara no seu curso de 1919, asdife Barão renças prmc'pa's que sustentarão a distinção de regiões sobre as quais asestrutt

diferentesciências vão se debruçar. Assim, para justificar as diferenças ente asciências e seusmétodos, para levar a cabo uma clarificação ra-

MI dos tipos de ciências, será preciso, como disse há pouco, descrever }próprias estruturas do mundo da experiência.

sim, dirimir disputas

de disciplinas.O método será uma série de c/asse/ilações capazes de elucidar as racterísticas das ciências em vista (Cf tipologia das ciências remeterá, em última ção das próprias estruturas do mundo da bre o qual elas se constroem (Cf. NG2, S 5,

A expectativa de Husser] é elucidar como

mente delimitados das ciências Luras. Para tanto, de início, destaca a

delimita um domínio de certo

Antes de propor uma tipologia das ciências por remissãoàs estruHrasda experiência pré-teórica, Husserl expõe, no segundo capítulo docurso de 1927, uma série de classificações Óomaís das ciências, isto é. referentes à ideia de ciência em geral (no sentido de um sistema de tesesordenadas por relações de justificação e voltadas para a explica-

çãodosfenómenos de um domínio objetivo), independentemente de quaisquer das suas realizações concretas (Cf. NG2, S 6, 30-3 1). Ali, to-

dasas ciências possíveisse deixam classificar segundo vários parescon-

forme já estabelecera na

ceituais. Elas podem ser ciências

ciência em sentido forte não é algo pré-dado sem

uma partefundamental de uma

' czpriori ou a posteríoH (conforme

seus juízos se direcionem

seja para as puras idealidades, como é o caso das matemáticas, seja para entes espaçotemporais, tais como as ciências

(NG2, S 5, 28). Isso quer dizer ontológica em correlação com

o problema dasdistinçõesfundamentais entre as

pareciaocorrerem Ideias11.A tomada como um dado último.

ções que pretendem elucidar as estruturas constituintes da cia pré-científica. Segundo Husserl, «a ideia de esfera de ser essencialmente fechada

dente" (NG2, S 5, 29). Rompe-se região ontológica e orientação teórica escopo das regiões ontológicas

Asctassi$cações dasciências

é

empíricas Cf. NG2,S7); e formais ou materiais (conforme seus principais conceitos se-

jam vazios de qualquer referência a algum tipo de domínio específico,tal como ocorre com a lógica, ou conforme seus principais conceitos já contenham delimitações referentesa uma região ontológica específica, tal como ocorre com as ciências naturais ou humanas, as quais podem avançar de modo a priori ou a posteríoH-- Cf. NG2, S 7.2); ' concretas ou abstratas(conforme sua região temática seja for-

mada por indivíduos concretos tomados em sua totalidade,

sumir a orientação teórica correspondente, a qual deve se submeter

tal qual ocorre com a zoologia ou a botânica; ou conforme

às restrições eidéticas anunciadas já na experiência pré-teórica. Essa

sua região temática seja formada por aspectosdependentes

224

225

A cientificidade na fenomenologiade Husser]

Nlétodo estática e método genético na fundamentação das ciências

investigar

isolados das tonalidades Coílcretas a

ocorre com a geometria paciaís abstraídasdos tudo os corpos somente mentos -- Cf. NG2. ' dependentes ou rica abra um domínios, tal como ocorre

a Terra, planeta inserido no abrindo assim a possibilidade

ou conforme a região temática não investigaçãopara além dos seus com a matemática e a lógica pura -- Cf.

Husser] pouco desenvolve essas das. Elas permitem científica, porém, não

nal ú/rima para a em regime de análise toda teorização7Z.É classificação material das texto. O caráter mafería/ em creio específico ao sificação, trata-se

do mundo da experiênvista material, o problema Contudo, de fato, pouco

elaboradano curso de 1927,o qual se tomam quasea totalidade da das ciências73.Antes de propor eidéticas do mundo da experiência, duas material das ciências são criticadas 14, remete, em última insa distinção dos fenómenos reais assim, dois âmbitos sobre os deveria se debruçar. Para Husserl, essa a complexidade da organização

Na verdade, a separaçãoentre fenâme'mundo real existindo em si" (NG2, S 14, eventos relativos a uma parte específica do

não é um dado da consciência pré-teóda experiência. A circunscrição exclusivamente físicos, aos quais se atri-

científica, ou seja,de um procaracterísticas dos dados sen-

quais asregiões forme já havia sido devem ser tomadas

exatos, objetivos, com base em assim, aos fenómenos físicos idea-

psíquicos são tomados causal com os eventos

das à sua origem no zar de maneira radical a

das noções de "físico"

efetivo sob os olhos na

estudo desseúltimo deva sempre remeter

favorece o desenvolvida consciência. A

creia" (NG2, S 13, 68), e então vigor na experiência a fim de desse mundo. Descarte,

recusar esseresultado é questionar se e psíquicos abarca adequadamente

ti720P4ral 52.1 5q alise detida das classificações formais propostas por Husserl, Cf. 73. Veremos que essaantologia é desenvolvida no curso Psicologia $enomenológíca 226

227

A ciejjti6lcidadena fenomenologia de Husserl

Método estático e método genético na fundamentação das ciências

r

4

a complexidade da experiência pré-teórica. O mundo é apreendido como um "mundo circundante ap- V, 193) e não como exibição de um em-si

dadesfísicas.Dessamaneira,o próprio mundo já cia como dotado de propriedades subjetivas, as conhecidas como meros dados da interioridade encontrar o em-si excitoe a psique (distintos) tífica é então projetar aí resultados

Husserl também critica uma da experiência e de classificar o ele. Trata-se da análise proposta de Baden, Wilheim

dependeria'dasoperaçõesobjetivantes das formas conceituais para.ad-

pâs (no texto Hisfóría e c;ê,leia da natureza) uma

que,na análise de Rickert, ' o mundo enquanto sentido coeso da ex-

ciências naturais e humanas baseadanão na

periência(.. .) permanecenão questionado, bem como a vida experts

dos a que elas se refeririam

quirir inteligibilidade. A assunção ingênua desse press:aposto.implica

:tentadora universal enquanto aquela que constitui essesentido uno

(por exemplo,

na especificidade metodológica de cada investigação. As natureza seriam nomoféfícas, ou seja, estudariam os casos de leis, as quais deveriam ser explicitadas

timamente o conhecimento

a fim de

dos casos em questão. Já

manas seriam ídeogrcí/ocas,isto é, investigariam os fenómenos

aspectosúnicos, sem a preocupaçãode formular leis às nâmenos deveriam se subsumir. De maneira divisão metodológica

e (principalmente

ING2, S 16, 100). Mais uma vez, a tentativa de classificar as ciências

porsuareferênciaao mundo concreto falha justamentepela dificuldadede apreenderas estruturasdo mundo tais como se revelam na experiênciapré-científica. Daí que Husserl rejeite a classificaçãodas ciênciasem nomotéticas e ideográficas:Rickert não teria conseguido

legitimaressadistinçãocom baseno mundo da experiência,pois as uMdades de sentido integrantes desse mundo são ignoradas em favor de

uma concepção artificial de heterogeneidade sensível a ser superada

em

por categoriascognitivas. Segundo Husserl, é preciso retornar às es-

mação conceptual das ciências naturais) busca

truturasconcretas do mundo da experiência para acompanhar de que modoali já seanunciam as divisões temáticas das ciências e como já se prescrevemas diferenças metódicas entre elas. E issoRickert não teria

talmente ao distinguir duasmaneiras subjetividade transcendental produziria material da experiência74.

feito, contestando-seem defender que o sujeito porta em si asformas

sserl discute principalmente essatentativa rickertiana de legi-

timar a distinção metodológicaentre as ciênciaspor uma espéciede dedução transcendental" (NG2, S 15b, 87), quer (fizer, por uma tenta. uva de mostrar como conceitos a priori se reportam a objetos7s.Rickert

t74 Para uma exposllf(l:mais detalhada acerca das posições desses autores quanto

75. Sigo aqui, em lin.has gerais,a interpretação de Julien Farges(2010a) sobrea

críticahusserlianaaosneokantianos.' 228

'

'

~-''"'

de conhecimento e que por meio delas molda a experiência do mundo, queem si mesma seria ilógica Após criticar essas duas tentativas de remeter as ciências à sua ex-

periência fundadora, Husserl oferece a sua própria classificação material das ciências, e issoao mostrar de que modo já na experiência pré-

teórica do mundo vigoram estruturas que antecipam as diferençasde conteúdo e de método das ciências. Haveria, assim, continuidade en-

tre o mundo verdczdeiro, tal como proposto pelas teorias científicas, e 229

A cientificidade na fenomenologiade Husser] Método estático e método genético na fundamentação das ciênc)a+

o mundo Nessa última, já amplo de les padrões derivados da

#,

do nosso mundo da experiência (Cf. NG2, S 17, 106). Nesse 10

.Ível de generalidade

formal,

delimitam-se

possibilidades

ideais

decircunscnçao de formas objetivas (entendidas como multiplicidarnatemáticasvazias de qualquer conteúdo material), possibilidades

se contrapõe ao neokantismo princípio no mundo da anterioràs operações

regidas somente pela "concebibilidade

des

sem contradição"

(NG2,

17,108).A partir daí, tenta-sepropor restriçõesde conteúdo (não soreferentesà exclusão de contradição) que permitam delimitar

posições atacadas por Husser] rente ao mundo da

mente

ssibilidades eidéticas não mais de quaisquer tipos de experiência for-

ficava os fenómenos da racionalidade cismo, elas aí não Ora, dessamaneira. (querela se E ambas falham.

.ajmente concebíveis, mas de experiências materialmente compostas

cadavez mais concretas. Para Husserl, "dessemodo resulta um caminhodescendente do formal-analítico legal: ções

ao formal-material, das condições

de possibilidade de mera ausência de contradição às novascondi-

legais da verdade material possível" (NG2, S 17, 110).

Há, entretanto, uma segundaalternativa para evidenciar as condi-

pré-teórica,a qual,para

çõesda experiência e do conhecimento, um caminho ascerzdenfe, pri-

a atestação de distinções

vilegiado por Husserl ao menos desde o final da década de 19 10, o qual

ção Cuidadosado mundo da cimento científico se enraiza gueza inerente, não deixam do conhecimento cientíâco

parte"da intuição concreta do mundo que nos é dado na experiência" (Ibid.). Nesse caminho, consideram-se as experiências concretas va.

domundo intuído ainda em nível pré-teórico, e, em seguida,por meio dométodo da variação imaginária dessescasos de partida, busca-se des-

velaras estruturasa priori que delimitam o sentido e o alcance de tais

Com esseprometode gênese

experiências (Cf. NG2, S 18, 1 17-8). Como resultado, as restrições ma

riêncta pré-teórica do intl'adução do curso sobre que haveria um camín/zo da legitimidade do autor compara duas dições que as ciências

na

teriaisa que as ciências devem se submeter (por exemplo, as possibili-

de

dadesideaisque demarcam uma determinada região ontológica) não aparecemcomo meras particularizações de relaçõesformais vigentes paratodo conhecimento possível, mas como exigênciasque se enraí

0

zdm nas estruturas eidéticas que delimitam a experiência cottcreta do

NG2, S 17-]9). A primeira

marido. Assim, por meio desse caminho ascendente de investigação,

certo modo o

passam-sedas experiências particulares (tomadas como exemplos) para asestruturasa priori materiais que condicionam tais experiencias e a produção de conhecimento sobre domínios objetivos particulares. Fica claro, dessamaneira, que o problema da fundamentação das ciências não se resolve apenas pela explicitação das formas teóricas objetivas básicasem correlação com os fitos subjetivos de atestação de tais for-

minho de qualquer objeto

-.;...= J:.T:l!:ã:'Tl:::.=.;8:.::!::::,=:=.r::==}.:s" ,;'::lUg' «'

mas, conforme Husserl propusera em Pro/egõmerzos. Muitas ciências

230 231

A cientificidade na fenomeilojogia de Husser]

Método estático e método genético na fundamentação das ciências

pré-teórica, nível em eles se referem são

sereferem a domínios objetivos cialmente em experiências sesdomínios objetivos

-- 1927,ofilósofo sensível pré-teórica se do mundo so-

que Condicionam a produção do saber. sua fundamentação racional do saber às estruturas concretas da lamentar asciências envolve. ao

rte um sujeito isolado. abordagem artificial, uma vez envolve relações intersubletivas em um

de fundação (no sentido de relações de

K 23, 143), características que das vivências pré-teóndesvelar

teórico em relação à experiência trições eidéticas em ação nessa

dução do conhecimento, os corriqueira cielltífica e exigem uma

tornar visível a

produção de conhecimento, como

sim, recensearasformações estruturais a pré-científica para esclarecer como, a

como essencialmente de contínuas doações evidência. Porém, o con-

e asprescriçõesmetodológicascientíficas(Cf. NG2, S lg, ll

a totalidade de aspectos do

As estruturas pré-teóricasfundentes do conhecimento

poroutros 'validade relativa: é efetivamente apreendido sempre são cointuíque o fluxo vigora um nu-

o qual é

(NGZ,SZZ,is7), como

exemplo, na os demais já estão ali de vista. Além intuído e dá lugar

úiU:=:,i?u:!:u E : : an típico nelas se funda.

232

233

A cientificidade

na fenomenologia de Husser]

Pvlétodo estático e método genético na fundamentação

das ciências

.düzindoum curso de exploraçãopreenchedora dos horizontes fuHrosdo conteúdo impressional. Ao rodear uma mesa, por exemplo,

cadaponto de vista subjetivo permite a apreensãosomente de certos aspectos do obleto. Mas cada percepção não está encerrada nessesaspectosimpr.essionaisparciais. O movimento do olhar já antecipa como serãoas outras faces da mesa, ou seja, como ela será apreendida de

outroponto de vista ligado coerentemente ao ponto de vista anual,e Issocom basena modificação contínua já vivenciada entre alterações depontos de vista e alteraçõescorrespondentes dos dados intuídos. Da mesmaforma, ao ouvir uma melodia, não se está limitado ao som que imediatamentevibra, pois os sons já soldos permanecem retidos e sugeremuma antecipação dasnotas que virão a ser percebidas (conforme

o timbre, o andamento, a tonalidade etc.). Dessemodo, a percepção, enquantoabertura pré-teórica ao mundo percebido, ocorre como um

campoordenadopor uma ;adução originária, em que as vivênciasreli daspermitem antecipar ao menos o está/odos dados que serãoassimiladosà medida que a exploração perceptiva continua;' Cabe notar que por meio dessaindução originária o sujeito perceptivo jamais se limita ao caráter singular dos dados impressionais, pois reco-

nhecef)adrõescom base nas experiências sedimentadas. O que é apreendido impressionalmente são dados particulares, porém, como vimos, a percepçãonão se reduz a um registro de sensaçõessingulares isoladas; os dadosimpressionais estão inseridos em um campo de relações intencio-

naispassivas, de modo que sãosintetizadosem continuidade com dados já percebidos, o que permite pré-delinear horizontes de novas doações impressionaispossíveisconforme o sentido já esboçado nos dados retidos, ou seja, como casos de certos f;Pos ob/ef;vosai. O campo perceptivo 80. Tal como nos lembra D. Lohmar, essaprefiguração de dados é falível, de ma fieiraque há sempre alguma margem para que os dadosimpressionaisvindouros rom pam a expectativa que vinha se formando, constituindo, assim, outras pré-Gtguraçõeste

mágicas:"o conteúdo dessasexpectativasconcretas é bem precisamente determinado maspermanece Hexívele sempre contém um grau de vagueza, de modo que as expec cativas podem se ajustar a uma percepção sensível anual (. . . ). Dessa maneira, nossas ex

pectativassãorevisáveis,elas podem ser reconfiguradasno curso da experiência" (Loh 79. Escopre-delimea8o NG2tiva se dá ou por padrõesanalógicos(Cf. NG2, S22,

mar, 2014, 50)

81. "Tudo o que percebemos é 'apercebido' conforme o seu tipo"(NG2, 234 235

S23, 145)

A cientificidade na fenomenologia de Husserl

Nlétodo estático e método genético na fundamentação

das ciências

teóricoà investigação personalísta, no entanto, permanecia ali não cla.Ócado.Fina]mente, no curso Natureza e espírito ] 927, essalacuna

foipreenchidapor meio da descriçãoda indução originária. 'No curto e importante apêndice Vll desse curso, propõe-se uma demarcaçãodas orientações teóricas praticadas nas ciências naturais e humanascom base nos aspectostípicos que amuamna indução origináriaperceptivas'. Cabe agora notar que, além das características acentua-

dasem Ideias JI, a passagemda orientação pré-científica para a orientaçãocientífica estáligada à explicitação dessasgeneralidades estruturantesdo conteúdo impressional, as quais serão tomadas como princípios explicativosda diversidade factual da experiência:s. Segundo Husserl, haveriadois ti/)os de geizera/idades que se anunciam na experiência por

meioda indução originária, e a lematização de cada um dessestipos, devido às suas exigências próprias, demarca a especificidade

das orien-

taçõesteóricas naturalista e personalista

Um primeiro tipo de generalidadeque se esboçana experiência pré-científica está essencía/merzte/ígado à estatura concreta do mundo círcurzda71te, sempre podendo, assim, ser remetido aos fatos apreendi-

dosintuitivamente pela percepção.Husserl asseveraque é a tematizaçãodessasgeneralidades concretas que marca a especificidade teórica dasciências naturais descritivas (tais como a botânica e a zoologia) e, principalmente, das ciências humanas8Õ.Revela-seaqui ao menos uma especificidadedo personalismo enquanto orientação teórica: tematização de generalidades essencialmente ligadas ao mundo circundante. Na experiência pré-científica, essasgeneralidades amuampassivamente naorganização do campo perceptivo, e a passagempara a postura cien84. Sigo aqui, em linhas gerais, a interpretação de A. Konopka (2009) acerca desse tema

85. "Em qualquer momento podemos também mirar as generalidadesexplicitamente como generalidades e nos interessar teoricamente por elas"(NG2, ap. Vl1, 200)

86. "Aqui jao mundo-ambiente concreto] pertencem a maior parte das ciências descritivasprovavelmente bem conhecidas, a botânica descritiva, a mineralogia, as

rezae espírito --pl)ãil;anda gênesedo naturalismo era repetida no final do curso Nclh236

ciênciasculturais e pessoaisdescritivas. Elas são todas ciências do mundo ambiente e se mantêm todas no quadro dos modos de acesso ]Zugdng/íc/zÊeften] concreto-intuitivos, diretosou indiretos, do mundo, que é o universo do mundo ambiente humano, o palco de toda praxis humana" (NG2, ap. Vl1, 201) 237

A cientiflcidade na fenomenologiade Husserl

Método estático e método genético na fundamentação das ciências F

Lítica personalista supõe ativamente explora-las como lematização dos fatos individuais. O personalismo

,sedimento

Ente diferentes daqueles obtidos pelo personalismo. Por meio da idea-

ção teórica se mostra, assim, uma orientação

libação

na qual se deve apreender e elaborar conceitualmente que, em última instância, sempre remetem a

desconsidera-se qualquer vagueza, fluidez ou variação de in

inerentes à experiência pré-teórica sensível e se leva a generalidade ali esboçadaao limite, construindo-a então como conceito densidade

Há também um segundotipo de periência

da ídea/ízação,o que produz resultadosteóricosbas-

excito.

pré-científica87. Esse

Descarte, "os conceitos exatos transcendem a intuição no mé

.0da 'idealização"'

gado ao mundo circundante

fato de que tais generalidadesaceitam cular (a idealização), por meio da qual são clãs concretas em que se esboçam inicialmente. A segundo tipo de generalidade caracteriza a ção teórica naturalista E claro que asgeneralidades essencialmente ligadas ao mu

(NG2, 219), quer dizer, os aspectos gerais que

tratamento de determinação idealizante de seus contorpassam pelo encontram preenchimento intuitivo na experiência efetiva, nos nao naqual todos os aspectostípicos sempre figuram com diferentes graus deinexatidão As generalidades não essencialmente ligadas ao mundo concreto são, assim, passíveis de se submeter a um procedimento

de exala de seu sentido. E são os conceitos exatos, fruto da determinação

ndo cir.

cundante suportam um tratamento relativamente descolado das ex. periênciasefetivas.Afinal, na :ematização feódca de tais

generalidadescritivos amplos com os quais se pretende esclarecer fenómenos aparentemente díspares,fazer des, elas são tomadas como princípios

pre-

visõesetc. Em todo caso, cabe notar que as generalidades essencialmente ligadas ao mundo concreto mantêm como característica defi. nidora, não importando o nível de abstraçãoteórica em que sejam uti. lizadas, a possibilidade

de remissão a experiências efetivas dos sujeitos perceptivos. Essa característica estará ausente das generalidadesnãoes.

sencialmente ligadas ao mundo concreto, asqua s )ustamente compottam uma objetivação idealizante por meio da qual as suas versões teó. ficas não mais são remissíveisa experiências efetivas, como veremos.

No apêndice XIV de Natureza e espúífo -- ]927, Husser] acen.

i,realizaçãodessetipo de generalidade, que se tornam princípios explicativosna orientação naturalista Mas quais são exatamente essasgeneralidades idealizáveis? No cursode 1919, o domínio de investigação do naturalismo era esboçado naexperiência pré-teórica como aquele dos predicados reais'8,os quais nãoremetem a nenhuma operação criadora da subjetividade como sua fonte, mas se anunciam como partes integrantes dos dados atestados pelaatividade perceptiva. No curso de 1927, acentua-se que os temas centraisdas ciências explicativas naturalistas são construídos por idem lização. Fica, assim, sugerido que são justamente os predicados reais

aquelespassíveisde uma forma de objetivação que os descole da experiênciaefetiva e produza conceitos exatos. Cabe aqui notar que asgene-

ralidadesidealizáveistambém operam na indução originária e se deixam aí apreender como formas típicas de ordenação dos dados percebi-

tua que todas as generalidadesque operam diretamente na indução

dos.Nesse nível, obviamente elas estão ligadas à apresentação intuitiva

espontânea são inexatas e passíveisde uma descrição meramente mor-

do mundo para a subjetividade pré-teórica. Porém os conceitos gerais

fológica. No entanto, a construção de teorias com basenas generali-

exatosconstruídos sobre elas não estão mais diretamente relacionados

dades não essencialmente ligadas ao mundo circundante se serve do

a experiências efetivas, já que, segundo Husserl, a exatidão não é uma característicadas generalidades operantes na indução originária.

:='lU=:;=H== =;:;E:.h=Tl:*;.=: :;il'l==: s:'E::=:: : 238

88. Predicadosreferentesà forma espaçotemporal,às propriedades materiais e às relaçõescausais 239

A cientificidade na fenomenologia de Husserl

No apêndice VI ao curso de 1927, Husserl acentua a

osaspectosgeraisidealizadose de casosconcretos. Nesse

Método estático e método genético na fundamentação das ciências

f' / ? .?' 4

disso, a idealização das generalidades operantes na expe' como um critério de demarcação entre ciências humanas. Essas últimas devem destacar e descrever

típicos de diferentes experiências, isolando-os de outros exemplo, acentuo a vermelhidão com baseem vários apreendidos intuitivamente). Aqui, o

em torno dos quais a experiência dos predicados

de atestação direta em situa métodos de idealização exatasos predica-

merlfo depeizdente da totalidade

trato intuitivo. Não é o que ocorre no casoda essaúltima não é um momento dependente

mtuitivamente nos casosconcretos em pauta. Os frutos da não são assimiláveis intuitivamente na experiência mais se atestam dados exatos. A idealização não é,

uma versãoda abstração;trata-sede um criação de um domínio de puras formas e

sãopreenchidospor intuição concreta (Cf. NG2. Por meio da idealização, objetivam-se de dades (que exprimem predicados reais) tânea da experiência pré-teórica. Esse cidade da orientação teórica

tais conceitos ideais como princípios menal. Por sua vez, é possível inferir

que não há idealizaçãodaquelas das ao mundo circundante, ou são. Em contraste com as generalidades predicados reais, as generalidades curam aqueles predicados de duções culturais. Essesdevem ser os

enquanto orientação teórica. Trata-se,nessecaso, de ver as generalidades típicas que induzem à de sentido na experiência. Essasgeneralidades, teoricamente, poderiam, em última instância, ser concretas em que seriam reconhecíveis intuitivamente8ç.

dos fenómenos naturais. Assim, ciências naturais e humanas em razão de suasmetodologias, capa dos dados concretos da experiência devem então se separar simplesmente pordesdesempre distintos aos quais elas recursos epistêmicos próprios (os quais derivados de capacidades formais da subjetividade Rickert), conforme prescrições do dado concreto. A distinção naturalista e personalista é então legitifundante da atividade teórica se se encontram entrelaçados predicados um tratamento metódico específico e analisados teoricamente. Se as ciêncegamente os procedimentos melódicos das servindo-sede conceitos idealizados, romperiam en temáticas sugeridas pela experiência pré-teórica.

anuncia-seum tipo de generalidade que não se não se presta a um tratamento exato, tal como reais tematizados pelas ciências físicas.

no curso de 1927 são oferecidas expodas orientações científicas na Husserl recusa os conceitos básicos

como dadosúltimos, e pretende, divisão das regiões objetivas, às

8q Cabe notar que um autor como Max Weber discordaria desseponto, uma vez que defende a utilização de tipos ideais qualitativos nas pesquisasde ciências sociais.

Parauma discussãosobre as consequênciasdo método da idealização nas ciências hu-

240

241

manas, tendo em vista uma comparação entre Weber e Husserl, cf. Moinat, 2005.

A cientificidade na fenomenologiade Hitsserl

Nlétodo estático e método genético na fundamentação

das ciências

tentei acompanhar ao menos em parte a exposição husserliana esseponto no que concerne à fundação das ontologias materiais

pré-teórica,tópico que julgo relativamentepouco excomentadores. Por sua vez, há muitos outros textos, tais sobre as sínteses passivas e atiras, Experiência e juízo e trechos de Lóg;ca /omza/ e üarzscerzdentcz/,em que Husserl pro-

um movimento argumentativo similar tendo em vista os compo da oncologiaformal, de modo a mostrar que mesmo ela se en

em operaçõespassivasda vida subjetiva inserida no mundo da Não pretendo recuperar as particularidades da fundação categoriaslógicas na experiência passivado mundo, tema que se desenvolve com tantas minúcias que praticamente exigiria um novo jivropara ser devidamente rêconstruído9'. Pretendo, a partir de agora, acompanharmais detalhadamente como se dará a exploração das es-

truturasque constituem o mundo da experiência,o qual serviria como basepré-teórica para o desenvolvimento ulterior tanto das ciências materiaisquanto das formais. Para isso, analisarei alguns trechos do curso psÍco/ogíaÓenomeno/ógíca,ministrado por Husserl inicialmente em 1925e repetido com modificações em 1926 e em 1928. e,---u--a '-'-----"-"""ud

õuuie Q inundo, que, longe de se apresentar como

conjunto de dados irracionais, revela ]á estruturas típicas ou estilosgerais sobre os quais o conhecimento pode se erigir. Desse modo 'a "' co-

A.eidéticado psíquico

ração fenomenológica da vida concreta revela uma continuidade entre

Na introdução do curso Psíco/ogía $enomeno/ógíca, Husserl aponta

a inserção pré-teórica no mundo e a produção de conhecimento cientí-

parao desenvolvimento de uma ontologia da vida psíquica. A expli-

fico. Como vimos, já há na vida pré-teórica o esboço de padrões gerais

citação das possibilidades eidéticas puras revela necessidadesestrutu-

raisque delimitam o campo dos fenómenos concretos corresponden nal de conhecimento, mas justamente é o seu fundamento enquanto envolve padrões pré-teóricos de ordenação da experiência

tes,necessidadesque operam como normas sintéticas a príod que con

dicionam a justificação dos conhecimentos empíricos acerca de tais fenómenos.'Teriasido a sistematizaçãode um quadro a f)ríon de relaçõesexatas(pela matemática e geometria) a razão do notável desen volvimento das ciências empíricas naturais como ciências explicativasbaseadasem leis. De modo paralelo, para elevar o conhecimento 91. E de fato alguns livros já foram escritos sobre essetema, visivelmente mais discutido entre os comentadores. Cf. Bégout, 2000; Kaminski, 2003; Courtine, 2013

242

243

A cientificidade na fenomenologiade Husserl

empírico sobre a vida

Método estático e método genético na fundamentação

das ciências

4

transcendental (como detalharei logo à frente), o filó-

tido a normas a priori seria des eidéticas que delimitam

não deve ser aqui pressuposta nem exercida

a fundamentação eidética dos conhecimentos empíri em Ideias 111ocorria direta-

cológica empírica (Cf. PP, S 2). Já em nologia teria iniciado a circunscrição desse vida psíquica, comenta Husserl no no/ógíca. No correr desse trecho. o nomenologia e acentua a busca vidade. No curso de 1925. uma ciência psicológica eidétíca de outras palavras, de uma psíco/ogía .

na orientação natural, em relação a todos os outros domínios

de proximidade e distância entre psipura, Husserl defende haver

qual não implica a identificatambém haveria uma dí$erença de oHenta

mirar os componentes eidéticos do domínio se servirá do método descritivo-intuitivo e especificidades das estruturas

cológicosdeinspiração

temático, Husserl crê que as pela psicologia fenometranscendental e

O autor exprime de maneira lapidar essaidentidade temá-

Por meio dessa proposta, altera-se ideias Jll (exposta no capítulo anterior),

conhecimento psicológico empírico, a retamente, realizando o papel de unia

insiste em afirmar que deve haver uma entre o conhecimento tal, tal qual já era admitido

Óenomeno/ógíca:"o universo originária [transcendentall ao universo de dados atestáveisda minha experiência pura(PP, 45 1)ç:. Dessa maneira, experiência

filosofia) e experiência psíquica pura (tema da ciência einão se distinguem tematicamente,

Ideias Jll. É essaciência intermediária. a que será esboçada no correr do curso

uma "ciência das formas e das leis as mais

mas somente

teórica em que avançam.Issotorna comfenomenológicos pela ontoVimos na parte inicial do capítulo que,

ciência que seráfundente não só da das ciências humanas empíricas, na produções decorrentes da atividade espiritual

transcenden-

sobre a natureza, Husserl re-

consciência, tópico que havia sido fenomenologicamente em Ideias l. Ora, em Psicologia Óe-

(Cf. PP, S 5, 53), as quais prescreveriam os

cimento das ciências humanas e da Ocorre, assim, uma distlncão fenomenologia transcendental,

92. Husserl parece ignorar aqui a delimitação da fenomenologia como explicita dasestruturas a /)ríorí da consciência em geral e não somente da consciência humana tal como afirmado em Proregómenose em Ideias 1. Nessestextos, ficava aberta a possibilidade de se desvelar estruturas puras de .consciência que não se realizam como

ideias /[J. Husser] admite que o

ocorre"naorientação natural"(PP,S4, 48). que a psicologia fenomenológica ofereça um caminho de 2'H

estruturashumanas. Desse ponto de vista, delimitar a estrutura da consciência pura como aquilo que pode se atestarna expe'iência psíquica humana (ainda que eidética) seriacometer um psicologismo transcendental, do qual Husserl parece seaproximar aa menos em algumas passagensda sua argumentação 245

h/métodoestático e método genético na fundamentação das ciências

A cienti6lcidade na fenomenologia de Husserl

jetivo, mas em Ideias ll ele já apresentavaessaúltima como Umadis. ciplina independente, estratégiaargumentativa que não ficava total. mente compreensíve] ao ]eitor. Em Psíco/ogía áenomeno/(jgica, essasi-

tuação é esclarecida:o tema da eidética do subjetivo (ou'do espírito, conforme Ideias 11)é o mesmoda fenomenologia. O que se are.a é a orientação

do pensar

em que as disciplinas

se desenvolvem.

Dessa

dasuspensãodo ser mundano exigido por eles94. . Retomemos à tarefa central de delimitação da ciência psicológica eidética. Sua principal tarefa é tornar patentes as necessidades estrutu-

raisque delimitam o domínio dos eventos psíquicos possíveis.Husserl

maneira, é verdade que em ideias l Husserl apresentaraa fenomeno.

aplicaassim à psicologia fenomenológica a sua concepção do papel

logra como ciência transcendental e eidética. Porém, posteriormente. ele considerará, ecoando alguns trechos de ll.TC, que essavertente

fundante das ontologias materiais em relação ao conhecimento empírico, conforme estabelecido já em Ideias 1. No entanto, ao problema-

eidética pode se autonomizar em uma disciplina própria, a ontologia

tizar o desenvolvimentoda psicologia fenomenológica, leva-seagora

do subjetivo, a qual se desenvolve independentemente das questões

em conta a ênfase genética no tratamento do tema da fundamentação dasciências, tal como ocorre ao menos desde o curso Natureza e espí-

transcendentais.

A fenomenologia

certamente se servirá dos resultados

dessaoncologia, já que aborda a consciência pura em seus aspectoses..

rito -- ]9]9. Essa ênfase aparece claramente a partir do parágrafo 5 de

senciais;mas a sua marca central é a problemática transcendentale o

Psíco/ogíaÓenomerzoZógíca, segundo o qual a circunscrição dos aspectos

método específico para o seu tratamento (a redução).

A psicologia fenomenológica se desenvolve na orientação natural do pensar93.Enquanto ciência dogmática, ela supõe a posiçãoda mundo da experiência e do ego psíquico mundanizado como referentes últimos de suas teses. Se se realiza a epoc/zé transcendental

e se sus-

pende a vigência dessasuposição,passa-seentão do domínio eidético

especificamente psíquicos dos eventos mundanos (revelando, assim, as

característicaseidéticas delimitadoras de toda vida psíquica possível) envolveobscuridades difíceis de superar. Essasobscuridades são relativasao entrelaçamento dos fenómenos naturais e espirituais no mundo da experiência pré-teórica, o que pode fomentar sobreposições ilegítimasdas investigações das ciências naturais e humanas. Por exemplo,

psicológico para a experiência transcendental pura. Husserl insiste, então, em afirmar que a psicologia fenomenológica "oferece um ponto de

94. Dado o paralelismotemático entre ambas,a psic.ologiaferlomenológicapo-

partida natural a /)ríorí possívelparater acessoa uma fenomenologiae

deriaser desenvolvida por meio da modificação das tesesda fenomenologia banscendental. Esseseria um caminho de sistematizaçãoda ciência eidética.da subjetividade

uma filosofia transcendental em geral" (PP, S 4, 47). A investigação pei-

que nada de\ ena aos métodos da orientação naturalista. Entretanto, devido à ausência

hstórica de uma oncologia descritiva do subjetivo, as ciências psicológicas e humanas 93. Para desenvolver a psicologia fenomenológica, Husserl afirma: "nós queremos permanecer na orientação natural, nós não queremos ser senão psicólogos que, de

empíricas tenderam a seguir a metodologia naturalista. Veremos no p'oxlj=o capitulo .s escla.ecmentos de Husserl acerca dos pressupostos históricos que condicionaram

modo natural e humano, dirigidos para o mundo objetivo enquanto realidade efetiva, esforçam-separa estuda-locomo mundo do espírito" (PP, S 4, 48)

o desenvolvimento da psicologia como investigação nahralista. Sobre esseponto, cf

246

247

Feest,2012

A cientificidade

na fenomenologia de fitisserl

Nlétodo estático e método genético na fundalnerltação das ciências

ta] qual já expostoem /delas relativas às atividades teóricas construídas sobre essenúcleo

temas básicos por exclusão subjetivas. No objetiva, as ciências

A experiência pré-teórica que se tem em vista deve, desde endos resultados dos pensamentos teóricos ativos que Paratanto, propõe-sedistinguir entre, por um lado, "o

quina enquanto variante da Husserl, ignoram as

a nós como imediatamente percebido, como isso de que se faz

domínio eidético do ciências humanas catenação dos eventos cia dos métodos

a experiênciaenquanto existindo em carne e ossoe que

sido incapazesde obter psíquico-espiritual.

doaçãointuitiva, no qual o mundo é apreendido sem ao pensamentoativo, o que implica

de olhar e apreender em pessoa" e, por outro lado, "o

aí se exerce,e os pensamentosque aí se formam so(PP, S 6, 57). Trata-se de delimitar, artificialmente, um

toda teorização, mas também de toda

E preciso, assim, superar certas

e denominação (Cf. PP, S 6, 59)

são teórica dos limites da

aqui uma dificuldade importante: muitas de-

julga Husserl, por um retomo à

doam "como pertencentes a isso de que se faz a S 6, 57) são oriundas das funções ativas do pensa tal como ocorre, por exemplo, com alguns predicadosde sencasos,importa salientar que mesmo o que foi produção

ies temas, a saber, a experiência

concreto. Cabe então. 1919, "partir dessaunidade

penêncla pré-científica e clarificar orientações teóricas do pensamento nessecontexto, natureza e espírito verbais,sempre Natureza e espírito são temas

cia pré-teórica; é então nessaúltima

do sujeito pode ser passivamente experimentado e, nessesentido, e como. temasunitários uni.

conta como parte da vivência pré-teórica que se tenta circunscrever.

(pp, S õ, 55) na experiên-

em parte deve seu conteúdo a operações do pensamento ativo. Não setrata, desdeentão, de buscar como conteúdos pré-teóricos apenas o que é originalmente passivo o que jamais se misturou com as ope raçõesativas da subjetividade cognoscente. Busca-se distinguir, índepe7zderztemenfe de sua origem Última (Cf. PP, S 6, 59), se o conteúdo de experiência em questão se ordena apenas pelas associaçõespassi-

cials que permitem demarcar o quico, a ser tematizado essaúltima é fundada que somente por uma análise nhará clareza acerca dos temas

nio psicológico-espiritual Em relação às características rica do mundo, Husserl busca àquela abordagem limitada Em Psíco/ogía teórica apenas a camada 248

Admite-se,assim, que o domínio da experiência pré-teórica ao menos

e que se ga do domí.

vasatuantesna percepçãoou se dependede funçõessintéticassupe' dores,da ordem da atividade subjetiva em geral. Deve-seentão aten tar somente para aquilo que é atualmente assimilado de forma passiva, mesmo se em suas origens tenha sido fruto de operações ativas. E assim

quese circunscreve o núcleo de experiência pré-teórica sobreo qual se e eSPÍTito-- 1927. experiência prépor oposição

desenvolvem formações teóricas posteriores.

Husserl também volta a problematizar um tópico com o qual já se preocupava ao menos desde Ideias 1, a saber, a possiblidade de 249

A cientificidade na fenomenologia de Husser]

Método estática e método genético na fundamentação

apreensão do mundo como correlato da

das ciências

r'/ } ;l,'.,

esclarecercertas delimitações temáticas e metodológi e, dessamaneira, cumprir a tarefa de fundado conhecimento enquanto elucidação dos pressu a produção de resultados científicos válidos

PP, S 6, 60-62). A dificuldade surge

é sempre limitada a un] campo tece que falar de "mundo" como seria já apelar para uma produção atiça do mação racional que se acrescentaria aos

do mundo da experiência

cia sensível.E, conforme o critério estabelecido

AontoZogía

das as produções subjetivas ativas devem ser dance a experiência pré-teórica em Porém, feita essaexclusão.

ocorre uma notável inflexão na exposição husz'hto após anunciar o domínio da serliana.Nos cursosNatureza e esP lesmente de descreverquaisforA partir desseponto

bém deveria ser deixada de

!!-"'"-«-nE

Para salvaguardar o "mundo" como correlato espontaneamente atestado na experiência pré-teórica, Husserl retoma a sua doutrin

maçõesali antecipariam medida, essa descrição era apresentada como e espírito. Em grande t reÉd d.z áerzomeno/ogí'z No entanto, no curso Psicologia ãeno-

a dos

horizontes cointuídos em cada dado para o qual a atenção da conaciência atualmente se volta. O campo perceptivo da consciência não

se encerra nos dados assimilados impressionalmente, mas envolve um;

abertura para dados a se experimentar (e isso co] rme o estilo geral dos dados já experimentados), de maneira que a experiência pré-teó. rica é formada por uma continuidade de experiências concordantes que lança expectativasde que novos dados nam à ordem Íá con. figurada. E, nesse sentido de abertura regrada a horizontes de no. vas experiências, o próprio mundo é passivamente visado na vivência pré-teórica9s.Tal como proposto desde os cursos Natureza e espÍHto, essavivência será explorada como fonte das teorizações cienl .cas,a qual permitirá esclarecer a divisão temática das ciências e a prescrição de seusmétodos. Husserl defende que a experiência pré-teóricaeo mundo que aí se anuncia são "o pressuposto de todas as ciências obíe-

uvas" (PP, S 6, 63), já que elas supõem a continuidade ordenada daex. per'ência e supõem o ser do mundo que aí se anuncia como mundo a ser cientificamente explorado. Cabe, assim, explorar essabase pré-teó-

250

a divisão teórica posterior das regiões natureza

mero/ógíca,a descrição da experiência pré-teórica será desenvolvida comouma ontologia específica que expora os principais componentes Nesse sentido, a análise do mundo eidéticosdo mundo da experiência do ponto de vista fenomenolópré-teóriconão ocorrerá imediatamente de vista da orientação natural. Bico mas sim do ponto É preciso aqui atentar para o movimento argumentativo planelado. Husserl iniciou seu curso pelo reconhecimento da necessidade

de fundação eidética para o conhecimento empírico psicológico-espi-

ritual,o que o levou a propor uma psicologia fenomenológica respon'

sávelpor delimitar a príon o domínio dos eventos psíquicos. Em secuida,notou que a própria caracterização dos eventospsíquicos remete àexperiência pré-teórica na qual essesse encontram entrelaçados com eventosposteriormente associadosao domínio da natureza. Faz-senecessário, a partir daqui, retornar à experiência pré-teórica para ali obter clareza sobre a circunscrição dos eventos psíquico-espirituais, os quais

terão,posteriormente, suasestruturas d priori investigadaspela psicologia fenomenológica. Cabe agora notar que também não seráa própria psicologia fenomenológica a disciplina responsável por tal exploração daexperiência pré-teórica a ela cabendo apenas a formulação dos prin cípios a prior que delimitam o domínio dos eventos psíquicos possa veia.Essa formulação supõe a antecipação do sentido dos fenómenos psíquicos na experiência pré-teórica já que é sempre sobre essaque o 251

A cientificidade na fenomenologiade Husserl

N/método estático e método genético na fundamentação das ciências

pensamento teórico (do qual a

de uma explicitação das características gerais que delimitam

plo) se erige. Isso quer dizer detalha restriçõeseidéticas em correlação com o mundo percebido. Dessa

ideais constituintes de todos os eventosparticulares em questão.Trata-se de buscar as generalidades típicas que da experiência do mundo em geral. Nesse parágrafo, que "devemos partir de exemplos de experiências do

em última instância tais restrições, é

se esboçam no mundo pré-teórico

em vigor" (PP, S 7 66), ou seja,que as generali

pré-teórica) .

em vista devem ser obtidas com base em exemplos factuais de

Tudo issojá estava,de certo modo, em

O método para a obtenção dessasgeneralida-

e esPÚífo. A inovação marcante de

closhorizontes cointuídos na assimilação de qual-

uma disciplina eidética especificamente riência pré-teórica e exprimir

experiência: parte-sede um exemplo factual qualquer en-

seus resultados no

impressional da consciência e se explicitam as poderiam vivenciar por meio da atualização dos com o dado originalmente apreendido.Nessa

eidéticas. E, assim como fez com a eidéticas do psíquico, Husserl da fenomenologia transcendental,

que as antecipações indeterminadas de novos da

antologia do mundo da

são prefiguradas conforme experiências fama que estilos gerais de doação sensível do mundo se

supõe a posição objetivo das essências a em formular

H

os problemas

reconhecerna organizaçãodo campo fenomenalpelo qual a

Porém, cabe notar aqui que a

sensível ocorre. Como exemplos desses estilos gerais de ex-

mundo da experiência não

mundana, Husserl aponta para certas formas de ligação dos

em dois níveis diferentes:inicialmente, como

a saber, o espaço, o tempo e a causalidade, bem como para característicastípicas das coisas (por exemplo, propriedades materiais

rais do mundo Éacfua/da experiência e, em puras possibilidades que constituem um

tis ou ligadas à duração temporal em geral) ssim que se obteria um primeiro conceito amplo de mundo da

ralçõ.Vamos ver com mais detalhes cada um

E no parágrafo 7 de Psíco/og;a cia a necessidade de desenvolver uma ciência

temática geral do mundo pré-dado na

composto das generalidades estruturais típicas que consti-

asvivênciasÉactuczís dessemundo, e que seria pressupostopelas sobrea

qual as ciências empíricas se velar essaestrutura geral é a neira completamente geral do mundo considerado em sua totalidade. puramente enquanto mundo apenasda experiência, quaisquer quese-

Jamo momento e o lugar em que se examine a experiência como ex periência do mundo?" (PP, S 7, 65). Como se vê,desde vê, desde o início, a ciên-

cia do mundo da experiênciaé concebidacomo uma oncologia,no 96. Sigo aqui de perto a interpretação de Sou a, 2010. 252

ciênciasque se dedicam a explorar os fenómenos factuais mundanos. A explicitação desseconceito científico de mundo da experiência deveria auxiliar as ciências particulares em prol de obter clareza em relação à extensãoe aos limites de seustemas, bem como acerca de prescrições metodológicas para respeitar a especificidade das estruturas eidéticas mundanas No parágrafo 8 de Psíco/ogía Óenomeno/ógíca, Husserl ad-

mite que essesresultados ainda estãoconectados ao domínio empírico, já que as considerações gerais foram obtidas a partir de exemplos con-

cretos,e antevêuma formulação ainda mais ampla da ciência eidética do mundo pré-teórico, a saber,como "ciência pura e a príoH" (PP, S 8, 253

A cientificidade na fenomenologia de Husserl

Método estático e método genético na fundamentação das ciências

,rificação, espera-seabrir o caminho para o desenvolvimento de uma iênciapsicológica livre dos cacoetes naturalistas (Cf. PP, 88), os quais

iam sido historicamente assimilados pela investigação psicológica çasà ausência de clareza em relação à especificidade eidética do do-

míniopsíquico-espiritual Husserl apresenta alguns resultados dessa exploração científica

dasestruturasa priori do mundo da experiência, retomando tesesque desenvolveraem outros textos, porém, desassociando-asda problemáticatranscendental, já que agora elas são expostas por uma disciplina eidéticadesenvolvida na orientação natural. No parágrafo 1 1, afirma-

seque todo ob/eto índív;dua/ real só se doa na experiência inserido emum horizonte cointuído por meio do qual justamente esseobjeto seatestacomo ob/efo de um mundo. Além disso, deve-se reconhecer

queessaforma ontológica do mundo "só é possívelsevista mais de pertocomo um mundo de formasuniversaisdo espaçoe do tempo IPP,S 11, 97), de maneira que cada realidade mundana concebível não é senão,ao menos em sua infraestrutura eidética, um certo espaço e um certo tempo preenchidos concretamente. No que concerneàs realidades mundanas singulares, Husserl expõe no parágrafo

13a distinção entre indivíduos concretos reais (coisasem sentido amplo Cf. PP, S 14) e os atributos, características dependentes dos indivíduos concretos. Além disso, os indivíduos concretos se distin-

guementre sujeitos, portadores de vida psíquica, e não sujeitos ou coisasem sentido estrito (Cf. PP, S 14), tal como já se propôs no curso

de 1919.E a partir daqui, finalmente, que "a espiritualidade aparece como momento estrutural no mundo da experiência"(PP,

S 14, 104),

a saber,como componente de certas realidades individuais, os sujeitos,osquais, ao menos se se enfatiza o estilo geral empírico do mundo

recerao as normas a pr;orí para o desenvolvimento das ciências par.culares do nosso mundo (Cf. PP, S 10, 92). Em 1particular,','expli"» H'HE) u VAI/ll citação dos domínios mundanos fundamentais permitirá clarificar a distinção teorica entre natureza e espírito (Cf. PP, S ]0, 90), tema que Husserl analisa ao menos desde/delas 11,como vimos. Por meio dessa

ICf. PP, S 15, 107), são sujeitos encarnados, isto é, unidades psicofísicasinseridas no ambiente por seu corpo próprio, o que atestao ente/açamerzto,na experiência pré-teórica, dos temas posteriormente divididos entre ciências naturais e humanas. Em seguida, Husserl expõeno parágrafo 16 que há predicados irreais ligados à ativídade

subjetivaresponsáveis pela elaboraçãoda cultura, e que é pela exclusão desses predicados e, no geral, dos modos subjetivos de doação

254 255

A cientificidade na fenomenologiade Husser]

fenomenal dascoisas(Cf. PP,S]8)que as ciências naturaisse teoricamente97

Método estático e método genético na fundamentação das ciências

erigeh

Sugere-se,assim, que a orientação teórica em turaissão produzidas não do domínio subjetivo, que cem. Dessa maneira, a domínio exige uma orientação mento de examinar "a especificidade gênero de investigação que são característicos (PP, S 27, ]50). Esboça-se finalmente ,

ao caminho ascendente de fundamentação do conhecicientífico. Não se trata simplesmeTlte de remeter os concei-

um passo 10

e formais à experiência pré-teórica fundente, nologicamente Essa própria experiência e o mundo descritarenome Ihe é correlato devem por sua vez ser tema de uma disciplina prótos

on tológicos regionais

da ontologia do mundo da experiência pré-científica, disciplina sua vez, fundamentará, de um modo que Husserl não havia que,por recon decido loglas

antes de desenvolver a fenomenologia genética, as onto-

formal e regionais. Do ponto de vista de sua gênese, essasonenquanto veiculam conceitos teóricos basilares para a pes' empírica, dependem das restrições d priori vigentes na expenên-

tojogias

estruturas invariantes gerais que creção do mundo da experiência

qutsa

ciapré-científica em geral. Confirma-se, assim,que a fundamelltação

um domínio em particular, a

obÍetiva

vestigações da oncologia do mundo da

das ciências, no sentido de explicitação dos seus pressupos-

'nsteóricos, não se encerra com a análise das restrições eidéticas for-

tadossuficientes,então cabe

maisou materiais que esteticamente delimitam o alcance das opera' teóricas basilares das ciências correspondentes. E preciso elucie isso no nível da validade eidética, as estruturas pré-teóricas que

ção de Psíco/ogía tecado domínio subjetivo.

Não pretendo acompanharem detalhe a eidética do subjetivo apresentada nessecurso, a qual não oferece

grandes contribuições .m reza e espÚÍfoç8.Interessa enfatizar que em Psíco/ogía Áenomeno/Ógíca Husserl acrescenta mais comparação com Ideias // e os cursos

N,it

estãona origem das restrições formais e materiais. E será na direção do

desenvolvimentode uma antologia do mundo da vida (não mais abar-

cadode forma artificialmente limitada, e sim em toda a sua concretudesensível-histórico-culturallque Husserl seencaminhará em textos dadécada de 1920 e 1930, elaborando, assim, o que parece ser a versão

maissofisticada do prometode fundamentação das ciências, conforme veremosno próximo capítulo

256

257

CAPÍTULOIV

As ciênciascomo produçãohistórica no mundo da vida

Apresentação

Nos capítulos anteriores, vimos as linhas gerais do prometode fundamentação das ciências por meio da clarificação dos conceitos básicos

dasdisciplinascientíficas eidéticas.Clarificar significa reenviar os conceitosque circunscrevem regiõesontológicas e os conceitos formais à suaorigem fenomenológica, quer dizer, aos nexos de consciência que ibuem sentido a essasformações objetivas. Com o desenvolvimento

do método fenomenológico genético, esseprometorecebe alterações importantes.A fenomenologia genética investiga as diversascamadas de operações da consciência na constituição do sentido dos fenóme-

nos,de maneira a reconstituir uma espécie de "história" da subjetivi-

dade,segundo a qual a atividade ludicativa (em que o conhecimento científico é produzido) se funda na experiência perceptiva, em sentido amplo. Essaperspectiva genética abre novos desafios para o prometode

fundamentação fenomenológica do conhecimento. Tal como apre' sentado no período das Ideias, esse prometoelegia como ponto de par-

tida para a análise constitutiva fenomenológica os conceitos básicos das 259

A cieiltificidade na fenornenojogiade Husserl

ontologias, ou seja, temas já elaborados

As ciências como produção histórica no mundo da vida

fenomenológica (dedicada às condições subjetivas da

aplica a análise genética a tais conceitos, deve-se as atividades teóricas por meio das quais eles são operações pré-teóricas, asquais a qual as produções científicas são Tais considerações revelam

sentido de sendaobjetividade) essanova lematização dos fundaa ela associado.Antes,

o horizonte teórico em que Husserl insere

rel notar que há outro tótextos finais, as tarefas da feno-

ao conhecimento científico, cuja feto de fundamentação do

que deve serreunido àquele da

tividade é uma condição estrutural

mundo para obter o entendimento

e cabe estuda-la em detalhe para

fenomenologia. Trata-se aqui da ampla reflexão sobre o desenvoJE no interior dessareflexão que tornará plenamente compreensível

operaçõeselevadasdo pensar ludicativo. tos textos na década de 1920 para descrever a em seus dois polos constitutivos:

as

experiência tal como visadopor elas Quanto ao polo objetivo, trata-sedo mundo v vido na orientação natural do pensar, no qual nos situamos imediatamente , sem reflexões

críticas. Esse mundo se apresenta composto de coisase eventos nata-

raís, mas também de objetos e situações culturais em que as pessoasse relacionam entre si como seres

concretos inseridos em contextos só.

cio-históricos.

Há, assim, diversas camadas de

quem o mundo da experiência

(camada

para o exercício da fenomenologia transno correr do capítulo.

AI O problema da história

Umarelação ambígua com d hístóHa

fenómenos que consti-

Cabe notar, de início, que, em seus primeiros trabalhos, Husserl

puramente sensível, Camada

pouco ou nada avalia as tarefas da fenomenologia de um ponto de vista

social, camada histórica); e, tomado em toda a sua complexidade, esse

histórico. Como vimos, em Pro/egõmenose em textos do mesmo pe'

mundo da vivência pré-teórica é o mulzdo da vida, no seíltido de sero domínio de manifestação originária da subjetividade por meio de suas diferentes capacidades intencionais. Caberia então explorar as estruhi. ras dessemundo da vida a fim de tornar compreensível de que maneira a experiência pré-científica condiciona a produção de conhecimento objetivo. Para isso, Husserl propõe uma 07zfo/agiado mundo pré-dado à subjetividade, o que é esboçado (principalmente em relação à camade puramente sensível da experiência) no =urso Psicologia fe no/óbice, conforme expus na parte final do capítulo anterior. Essaon.

díodo, a fenomenologia era apresentada como uma investigação eidé-

tologia seria uma disciplina pré-fenomenológica e ofereceria uma via

savaa Husserl, tomada como fio condutor para a explicitação dascon-

de acesso privilegiada

à problemática transcendental. Estaria mantida.

assim, mesmo no nível da análise genética, a demarcação entre invesligação científica (dedicada às condições objetivas do conhecimen to) 260

tica das estruturas d /)Horada consciência. As ponderações históricas se

limitavam ao reconhecimento do estadode imperfeição teórica atuaZ dasciências, sem se preocupar com a problemática da constituição do

conhecimentocientífico no tempo histórico. Ali, a análise fenomenológica almejava mostrar os componentes subjetivos ideais (e, porá.acto, não submetidos à temporalidade empírica) responsáveis pela atestação evidente das estruturas objetivas das teorias científicas. Era, então, prin-

cipalmente a armadura teórica a priori do conhecimento que interesdições noéticas de atribuição de sentido aos princípios objetivamente válidos, e não o fato de que essaarmadura foi proposta por comunidades científicas historicamente

situadas 261

A cientificidade na fenomenologia de Husserl

As ciências como produção histórica no mundo da vida

#H lilR IE:%:$

seriao sentido originário de conhecimento científico ou rigoroso, sentido que alimentaria, ainda que implicitamente, o desenvolvimento dasciênciasespecializadas Todos essessão temas apresentados de forma muito rápida na intro-

duçãode seu artigo. Não sabemos,por exemplo, que estatuto teórico atribuir a essa"constatação" de que desde o seu início a filosofia pre-

O autor recusatratar as ciências como fenómenos sociaishistóri.

tendeser ciência rigorosa.Paulatinamente, Husserl deixaráclaro que seuinteressenão é o de fornecer juízos historiográficos empíricos, e simde marcar a instituição de uma tarefa histórica que se revela ur-

,entedo ponto de vista do estadode crise presente.Por ora, importa acentuar que, apesar da pouca elaboração, já se entrevê ali um papel

centralà reflexão histórica, ao menos no que tange à história da filosofia,paraa justificação do próprio prometoteórico da fenomenologia blemas ligados à fundamentação do conhecimento quanto a apresentação das tarefas fenomenológicas dispensava qualquer recurso à história

stands o apelo a estruturas ideais, cuja validade não estaria limitada ao desenrolar dos eventostemporalmente determinados. Em alguns textos publicados Tla década de 1910, Husserl passaa admitir o interesse histórico do prometofenomenológico, embora man.. tenha uma postura ambígua em relação a essetema. Consideraremdois deles para tornar visíveis as hesitações do filósofo quanto a esseponto: o artigo A /í/oso/ia como cíêlzcía rigorosa, publicado em 19 11, e alguns parágrafos de Ideias 1, de 1913. No artigo, o autor combate duramente

A tentativa de construir uma filosofia de caráter cíent@co (no sentido amplo de elaboração de tesesválidas e justificadas à luz de princípios partilhados por uma comunidade) é apresentada como consecução

de uma ideia por meio da qual a filosofia se formou historicamente Husserldescreve alguns momentos históricos decisivos na tentativa de implementação de uma filosofia rigorosa: o momento socrático-platónico e o momento cartesiano. Em ambos, uma crítica radical das tradiçõesepistêmicas estabelecidas é realizada, e pretende-se estabelecer

osprincípios últimos sobre os quais o conhecimento é produzido de maneira corneta. Segundo Husserl, é esse movimento de crítica global

o naturalismo e o historicismo, interpretaçõesfilosóficas que enfraquecem ou distorcemo ideal de uma filosofia científica. Esseideal é apre-

queguia o desenvolvimento da filosofia, ao menos em seus melhores

sentado como uma espécie de nomza /zísfórícczque teria guiado os filósofos de diferentes épocas e que se anuncia como uma tarefa a ser as-

investigaçãorigoroso,daquilo que é chamado de "filosofia científica em sentido amplo:. E a fenomenologia pretende justamente retomar

sumida pela fenomenologia, a qual, desde então, passaa ser avaliada em relaçãoà história da filosofia:. Segundoo autor, a filosofia teria sis-

momentos, apontando para a sistematização paulatina de um modo de

vistaético-religioso uma vida regrada pelas normas puramente racionais. Essapretensãofoi asseveradaora com mais ora com menos energia, masnunca foi completamente

abandonada" (PSW,3). 1. "Desde o seu início, a filosofia pretendeu ser ciência rigorosa, e até mesmo a ciência que satisfaz às necessidadesteóricas mais altas e torna possível de um ponto de

tensãodas filosofias anteriores de serem científicas é desintegradapela crítica de seu

262

263

2. "As 'viradas'decisivaspara o progressoda filosofia são aquelasem que a pre'

A cienti6lcidadena fenomenologiade Husserl

As ciências como produção histórica no mundo da vida

esseímPu/se /zísfóüco de formação de uma filosofia crítica rigorosa e es. tabelecer algo como um terceiro momento fundente da paulatin; realização do ideal filosófico anunciado pelosgregos antigos;.

Além disso, Husserl acrescenta certa filosofia científica. No final da introdução do artigo afirma-se que a exposição subsequente se apoia na tese de que "os mais a tos interes. sesda cultura humana exigem a construção de uma fila-.

fia rigorosa. mente científica" (PSW, 7). Mais adiante, uma referência ainda mais

dramática aparece: o naturalismo filosófico seria uma conde PÇãocolos erros "significam um perigo crescente para a nossacultura"

(psW 81

O naturalismo implicaria uma distorcão do leal de filosofia

rigorosa.

temas investigados,os quais Husserl propõe fina-

derivardos próprios método da intuição de essências,sem nada dever a uma relidarpelo histórica dos conceitos filosóficos consüuçao

Nal erdade, para ser mais preciso, o autor admite que as reflexões históricas têm alguma importância

para a filosofia. Mas não se trata

i de fornecer dados para análisestemáticas. Não é a história factual aqu ,leve interessar ao filósofo e sim o conteúdo das filosofias de ouque hora

retomadas como "estimulantes" (ibid.) para a reflexão contempo-

rânea. O apeloà história deve ter em vista explicitar "a força de mon-

fiações vivas"(ibid.), que inspiram os filósofos atuais a empreender suas Lisas Porém,de que tipo de história não factual se trata aqui e de

pois simplesmente transportaria, sem crítica, os princípios e procedi. mentos das ciências naturais para o tratamento das questões concel duaise valorativas. Ora, essadistorção da ideia de filosofia cientíHlcaé

iões presentes, são questões não esclarecidasnesseartigo, mas que te-

apresentada como uma ameaça cultural, e,

como veremos.

correra da tarefa de construir tal filosofia

por outro

lado,

a assunção

aparece como uma exigên.

quemodo essainspiração motivaciona]

do passadoaguasobre asrefle-

rão um papel central ns análise introdutória tardia à fenomenologia, Antes de passar a essaanálise, quero expor mais um exemplo de

cia marcanteda cultura humana. Como entender tal exigência? Por

hesitação de Husserl sobre o papel da história (no caso, da história da

que cabe ao desenvolvimento da filosofia como

con hecimento rigoroso preenchê-la? São temas inexplorados nesseartigo de 1911, cuja men.

filosofia)parao prometo fenomenológico extraído agora de Ideíasl,li-

ção permite ao menos confirmar um esforçoinicial para para integra. integrar ,. prometo fenomenológicoreflexõeshistóricassobreafilosofia e astarefas da fenomenologia.

chosdesselivro no segundocapítulo, em que acentuei a apresentação

No entanto, conforme mencionei há pouco, o reconhecimentoda importância da história nesseperíodo da obra de Husser] é ambíguo. No final do artigo de 1911, o autor praticamente recusaqualquer importância teórica à história da filosofia: "não é por meio das filosoHns

doartigo de 1911,segundo a qual não é por meio da história da filosofia que se constrói um programa filosófico, e sim por reflexão direta se bre os temas a se tratar. Essa pretensão fica bem clara, por exemplo, no enrrerdo orimeiro capítulo de Ideias 1, que, segundo o autor, teria sido

que nos tornamos filósofos. Permanecer na história, ver-se imerso em

desenvolvido de modo "puramente lógico" (Idl, S 17, 38), sem pr'ssu

atividade histórico-crítica, e esperarobter a ciência filosófica por meio

poi nenhum dado factual ou mesmo filosófico. Ademais, o alcance e os

de assimilação eclética e de um renascimento anacrónico:

métodosda própria fenomenologia sãoelaborados sem grande menção filosóficas com exceçãodo reconhecimento de que a reàstradiçõesfilosóficas,

apenastentativasvãs" (PSW, 61). O impulso filosófico deve, por fim,

foi próxima do artigo de 191 1. Já analisei vários tre-

da fenomenologia como ciência eidética e transcendental. Em termos gerais,essaapresentaçãoparece seguir à risca a recomendação do final

dução fenomenológica foi inspirada pela dúvida hiperbólica cartesiana supostoprocedimento científico e.em que deve ser remoldada a vontade plenamente

ICÍ. Idl, SS3 1-32).Por sua vez, na aplicação dessemétodo em toda a

ente de filoso6ta no sentido de uma ciência radicalmente rigorosa" (PSW 6) 3. "Nós reconhecemos uma ciência de cuja extraordinária extensão nossos contem-

sua extensão, é a ligação da fenomenologia com quaisquer tradições fi-

porâneos não têm ideia, uma ciência da consciência que não é a psicologia, uma fenomenologia da consciência enquanto oposta à ciência natural sobre a consciência" (PSW, ] 7). 264

losóficas (enquanto produzidas na orientação natural) que é suspens'

Tratemos com vagar desseúltimo ponto265

A cientificidade na fenomenologiade Husserl As ciências como produção histórica no mundo da vida

Lembremo-nos de asquaistêm a sua validade suspensa Desde então, a fenomenologia se constróisomente a partir da aplicação dos seusmétodos a problemas específicos,tal como já recomendado no final de A /í/osoPa como cíên-

cidadeda orientação peia vida subjetiva. pela consciência

é

que as operaçõesconstituintes ser sejam clarificadas. A

cjÓ Hgorosa

vida pré-científica,

laçãoentre o prometofenomenológico e as tradiçõesfilosóficas. Vimos

Contudo, como mencionei logo acima, há hesitações quanto à re-

mas

por meio da ePoc/zéfilosófica, busca-segarantir o desenvolvimento independente da fenomenologia em relação às filosofias passadas Porém,em outro trecho de Ideias 1, o autor claramente liga a feno-

dogmático, o que afeta

que

filosóficas? São elas

notar que Husserl

rnenologia ao menos a algumas das filosofias passadas, ecoando agora outra linha de considerações presentes no artigo de 191 1, aquela que

sentido de suspender postos para o prometo

apontavadiferentes estágiosde uma ideia-guia que se realizava paulatinamentena história Em Ideias 1,essareflexão ocorre no parágrafo 62

parágrafo 18 de/deíasJ,logo tre as regiões eidéticas

sido realizada somente Husserl:

Ali, a fenomenologia é reafirmada como ciência crítica, ou seja, aquela

queesclarece a possibilidade de obtenção de conhecimento por todas

asoutrasciências.E, dessaforma, "compreende-seque a fenomenologia é, por assim dizer, o anseio secreto de toda a filosofia moderna" (Idl,

133).Em seguida, Husserl menciona "esforços para chegar a ela« reconhecíveisnas filosofias de Descartes, Locke, Hume e Kant O que se exprime nessestrechos é bem diferente da posição assumida no parágrafo 18. Agora, a continuidade histórica entre a fenome-

nologiae a tradição filosófica moderna é acentuada, e issode forma a salientar que essatradição já apontava, ainda de modo tateante, para a

formulação da fenomenologia. Há, dessamaneira, a retomada da noção de.sucessão de etapas que realizam de modo cada vez naais aper-

feiçoadoum ideal de filosofia. Contudo, não há uma elaboraçãomais refinada dessaconcepção de ideal filosófico, e isso porque, de modo geral, a referência às tradições filosóficas foi suspensa, como vimos há pouco' Descarte, a fenomenologia deve se desenvolver de modo independente de qualquer impulso histórico, e, no interior dos marcos teó. 4. M. Brainard captura de modo lapidar a posição husserliana:"Husserl entende a si mesmo como continuador do efAosradical da filosofia moderna enquanto também tem de romper com seuspredecessores"(Brainard, 2002, 19). Entretant;u Brainard não

esclarecede que maneira Husserl harmonizará essasduas exigênciasaparentemente

contrárias 266

267

A cientiâcidade na fenomenologia de Husser]

As ciências como produção histórica no mundo da vida

ricos de /delas J, ma] se compreende

.r

/

f'

,:'

de

que maneira um profeta que suspende a validade de todas as filosofias ao mesmo tem POpode sere. conhecer como uma espécie de realização dessas

Husser] pergunta se os meta/bicas "poderiam 45). Há nesse ponto a motivações para animar Não interessa propriamente cartesiana, mas sim extrair dela um

as ciências como parte da cultura

para fazer avançar as tarefas anuais da

seservede um autor clássicota] como czênctarigorosa não buscava fatos. e propiciada pelas obras dos autoainda são significatiEsse tipo de interesse Já no primeiro parágrafo reconstrói rapidamente a

por meio de uma evidência indubi. absolu tamen te fundamenciências se desenvolveriam

porquepermite uma leitura historioporta "uma signie as novas formações transcenden na obra de Descarnes. já em desenvolvimento

motivacional contida nessaobra dará assim, a Descarnes para renovar

da fenomenologia, a qual

maneira imperfeita, e cuja contié "uma tarefa imposta pela própria Lis-

i:ÜZHU

:l'õ:::;:: ,:: %J::l

2003 e Lavigne a2descrição detalhada das posições de Husser] nessa obra, cf. Smith,

268

parabem além dissmficará claro que a posição de Husserl acerca da história avançará

1:iii:$iiEU 3i 269

!iiBi:i: ) :::

A cientificidade na fenomenologiade Husserl

:.,.:..«.:

As ciências como produção histórica no mundo da vida

il HF:l:E iHiill:ll$

IHiÜW:jHlliZ: a crença nessaciência esmoreceu com o correr dos séculos(Cf. MC

:l BX l:qXilH$Xlilr

rização da própria filosofia em diferentes sistemasdoutrinários muitas vezes incompatíveis

entre si. No entanto,

o autor

crê que o anseio

Qual a legitimidade dessaideia de ciência filosófica universal?Para Husserl,essaideia, ao menos em seu sentido geral, se deixa reconhecerno desenrolar das ciências factualmente existentes. As mudanças de

teorias,o apeúeiçoamento dos métodos e da linguagem conceitual, por exemplo,são propostos pelos cientistas em nome de um conhecimento

cadavez mais bem estabelecido, com maior abrangência fenomenal e capacidadede predição. Vigora, assim, no correr da história dos sistemas científicos, a perspectiva de produzir um conhecimento absolutamente justificado, evidente e com o maior escopo possívelto. Por sua vez, o reco

nhecimento da atuação desse ideal nos diferentes momentos históricos daempreitada científica não implica um comprometimento

com as teo-

riasjá defendidashistoricamente, uma vez que nenhuma delas teria conido realizar de forma adequada esseideal. Husserl reconhece que as ciênciassão"fatos da cultura objetiva" (MC, S 4, 50) e têm seu desenvol-

:W;Z:i;!iiEX;:Sina;lE:

vimento atrelado a limitações concretas que dificultam a sua realização

plena.Mas importa reconhecernessedesenvolvimentocultural con-

siana, na qual o ideal dessaciência filosófica já estavapresente

Cabe acentuar que esse esquema teórico, que ainda amadurecerá

em outros textos, permite resolver aquelas hesitações presentes nos tex. tos do início da década de 1910 entre a herança histórica e o prometofe-

nomenológico. No parágrafo 3 de Medífações carfesianas,Husserl re. toma o procedimento cartesiano de suspensãodas convicções tradicionais para estabelecer um conhecimento absolutamente fundamentado. Essasuspensão envolve todas as ciências existentes, devido a obscuridades nelas presentes que as impedem de tornar-se exemplo dessetipo de

conhecimento. Mas que dizer da própria ideia que guia as reflexõescartesianas, a saber, aquela de uma ciência filosófica onienglobante? Essa

ideia continua valendo como norma para a reflexão radical que se tem em vista?Husserl sustentaque essaideia não é apenasmais um pressuposto tradicional a ser suspenso, e sim que ela é legítima justamente en-

quanto guia a reflexão filosófica para além das ciências imperfeitas existentes rumo ao fe/osdo conhecimento absolutamente fundamentados.

cretodas ciências uma aspiração gera/ que guia o apeúeiçoamento do fazercientífico. Ora, o prometocartesiano de uma ciência universal expli-

citaexatamenteo ideal que anima o desenvolvimento concreto dasciências,ainda que esseideal esteja muito distante de se cumprir''. Assim,

bansmitidas pela .tradição e pelo senso comum, assim como pelas ciências, que pre

tendemreagir a eles. (. . .) Entretanto, o sentido do começo da'filosofia só se e;cla;ec. verdadeiramente graças à consciência de sua finalidade. Com efeito, essecomeço é de

um sógolpe determinado por uma certa ideia de filosofia e de seusfins fundamentais IBégout, 2008, 25)

10. Conforme Bégout, a ideia de ciência que resiste à epoché "se revela primeira-

mentecomo exigência:há um ideal normativo de ciência que transcende todasas figurashistóricasque asciênciastomaram, tomam e tomarão, um ideal cuja validade não íoi aindaesclarecida autenticamente, já que a cada vez ela é assimilada a I'rabaffue surf uma concepçãodeterminada da ciência ' (Bégout, 2008, 28). Mais à frente, Bégout detalha o sentidoda normatividade do ideal de ciência: "toda prática científica não deseja simplesmenteemitir juízos acerca de tal ou tal estado do mundo, mas fundamenta-los em última instância sobre uma verdade irrecusável= A fundamentação aqui requerida significa a legi-

bmaçãoúltima, aquela que, por suaevidência inegável, encerra toda busca por uma justificação.ulterior mais satisfatória" (id., 30). O ideal normativo de ciência lança, assim, a ta9 B. Bégout exprime bem a posição de Husser] nesseponto: "o começo radical da filosofia exige a exclusão prévia das verdades do dia, de todos os dias, de todas ascertezas 270

refadebuscarum conhecimento absolutamentefundamentado em evidência apodítica 11. Como uma norma no interior da cultura, o [e/os do conhecimento abso]ut, mentefundamentado é normalmente assumidode forma passivapelos indivíduos que se 271

A cientificidade na fenomenologiade Husser]

longe de simplesmente cortar enquanto impeúeitas, o do conhecimento deve senvolvimento histórico de desdeentão,a relevância do

As ciências como produção histórica no mundo da vida

Husserl delineia, dessaforma. para a fenomenologia, no qual a ePomas para a qual se oferece uma lustifi-

o reconhecimento de um ideal científico

meter com as formas históric,s Essasolução losófica contidas a validade de todasas ciências e ainda pretende fundar uma fará as intenções da filosofia como historicamente qual a justificativa dição filosófica cientificidade como um ção natural, por da

4,

fenomenologia vai apare. muito maior, de abrangente já em vigor na da ciência aponta por evidência

para o qual tenderia, de modo interminá. de conhecimento (Cf. MC S 5). E Husser] re.

devese exerceràluz desseideal como um pressuposto tradicional assumido acriuma motivação ílzfema que justamente receberá seuscomponentes e do alcance por meio dos re-

tibilizar a estruturar de sentido legi-

desenrolar após a

concreta. As metas ge-

o reconhecimento

quesegue nãosão tópicosarde uma investigação do

o próprio Husserl confessa no modo bem mais E um problema /delas 1, mas que em Meditações cartesianos.

inserção do próprio produtor já está aqui bem afastado da-

rias científicas vigentes, devido às cer que em seu desenrolar histórico reis, se submetem à menos implícito toda nologia, como veremos). A =UTclObietiva ou concreta para a

a qual pouco importa, paratratar cientificidade, o exame das ciên. Agora ciencias que se sentido geral de cientiHcida fundamentação das ciências deve

o caráter histórico do próprio ideal fundamentado. Essainves-

dedicam às tareias tiver o sentido a graves

via introdutória à fenomenologia, pouco que ganhará um amplo

uma crise das Ciêllcias derivada

e A crise das ciências euro272

franscezzderzta/. Em um manuscritoum pouco 273

A cienLificidadena fenomenologiade Httsserl

As ciências como produção histórica no mundo da vida

mais tardio (]937) publicado no volume de textos

.rlTzê7zCZa

crise das ciências (Husser/fará XXIX, doravante

segue-seque uma introdução sistemática

que

r'

/ f'

.:'

do senfído para dí$erentes gerações. Husserl reconhece

a ideia-guia de ciência opera como um unificador da atividade das

começa e se realiza a partir do problema

gerações

produz a ePoc/zésem a análise histórica, então o

que

da vida ou antes da história universal

gado

que se dedicam à produção científica. Cabe então investigar o

é essesentido que não se esgota na experiência isolada e é comun-

por diferentes sujeitos entrelaçados em uma temporalidade históBruce Bégout explicita de modo bem claro algumas das questões envolvidas no apelo ao ideal de ciência como uma norma histórica à rica

nac/zl. Embora a introdução de Jdefas l

tomo a via histórica por mais sistemática e

a própria fenomenologia deve se submeter: "Com efeito, qual a

trecho, além de deixar claro que as novo caminho introdutório à

bilidade de doação fenomenal desseideal? O que garante a sua posei apreensão? En quanto ideal, a ideia de ciência absoluta nao parece pu-

se pode simplesmente ignorar a

serdada em um fenómeno singular presente, em uma realização anualqualquer" (Bégout, 2008, 28). O desenvolvimento adequadoda der

estaria, por assim dizer, à espreita, e acabaria por se pressupostoinescapável ao

via histórica exige, assim, um tipo de investigação que torne compreen-

ideias J, como vimos, a

sível a eficácia das unidades de sentido /zístórícas. Esboça-se aqui um

permanecia latente, tornando difícil ções que deveriam guiar os fenomenóloaos. Agora. a ínçprr6- ,.1.',.

novotipo de fio condutor para as análises fenomenológicas, um ponto

departida que não se reduz a um objeto estático e nem mesmose esgotana exploração das camadas genéticas da sua doação subjetiva.

Importa observar, por ora, que Husserl eleva em Medífações cadeszanasa um novo nível de problematização conceitual aquelas conside-

A investigação de sentido

raçõessobre o valor da história lançadasno artigo de 1911. Ali, o inte-

A reflexãosobreo conhecimento como fato cultural guiado por um

ressepela história era principalmente exortativo, de modo a encontrar

feiosque predelineia o desenvolvimento histórico das ciências avança

nos exemplos do passado inspiração para as análises presentes. Vimos

consideravelmente na introdução de uma obra escrita no mesmope-

que essecaráter exortativo não é abandonado em Meditações ca#esía-

ríodo de Meditações cartesíanas, a saber, Lógica coma/ e franscenden-

nas; mas agora ele é notavelmente desenvolvido quanto a seuspressu-

fa/ (doravante, LFT), publicada em 1929.Ali, Husserl retoma o prometo

postos. Afinal de contas, para que os exemplos do passadofaçam sentido

dedoutrina da ciência lançado muitos anos antes,em Pro/egóme7zos à lógicapura. Ta] como nessaobra anterior, propõe-sea elaboraçãode

para o presente, supõe-seuma corztinuídade /zísfóríca do sentido que é então partilhado geracionalmente. Se os filósofos clássicos inspiram o presente, é porque as tareias globais a que eles se dedicaram ainda são as nossas,

e abre-se

aqui

o questionamento

sobre

o que

significa

essa

SoKerPlra uma análise detalhada dos manuscritossobre história publicados em Kll,

i:,:==Zll$$ 1=:=!.=='=:.==r:h! :l.?;=::';= 274

uma teoria lógica ampla, que explicite as condições objetivas de formu-

laçãodo conhecimento, e em paralelo a isso, uma reflexão filosófica que tematize as condições subjetivas de constituição desse arcabouço

lógico objetivo. Porém, diferentemente de Pro/egõmenos,Husserl traça agoraa história desseideal de doutrina da ciência, remetendo de forma muito mais detalhada a ideia de ciência como conhecimento absolutamente fundamentado (tematizada já em A /i/oso/íci como ciência rigorosa)à Grécia Antiga. 275

A cienLificidade na fenomenologia de Husserl

As ciências como produção histórica no mundo da vida

Husserl atribui a gênese histórica do sentido a Platãoi4. Ciência, nessesentido

ii' #.

independentes" ILFT, 2) e cada vez mais se dividiram em disciplinas

alizadasque se fiam em procedimentos técnicos autónomos para

das teses defendidas. E "lógica'

çao por princípios racionais gerais. O sentido por Platão supõe, assim, que cada

#'' / i

obter

seusresultados. Paulatinamente, as ciências deixaram de seguiar

normas de fundamentação absoluta tematizadas pela doutrina da pelas riêRCla

e passarama avançar sem clareza de princípio no que se refere

justificado, de maneira que possa válido, de acordo com princípios" (LFT, 1). Não

aospróprios passosmetódicos e do sentido dos resultados obtidos. E

mente selecionar dados e buscar

mesmoa lógica, pouco a pouco, também teria abandonado a sua tarefa

tífica exige que os procedimentos

princípios que garantam a legitimidade dos resultados então, "ciência" exprime um conhecimento eles mesmos, bem estabelecidos.

Concomitantemente a essadelimitação da ciência em sentido genuíno, Platão teria esboçado a lógica como disciplina que investigana os princípios do conhecimento em ação em qualquer empreitada científica. Surge aqui, como condição para que o conhecimento cientípico possa ser devidamente

compreendido, o esboçode uma douhn.

da ciência que recuaria até os

princípios últimos de regitimação do sa. ber e esclareceria de que modo as investigações científicas devem re. meter a esses fundamentos para garantir resultados justificados. Aa ser atribuído a Platão, esse prometo de doutrina da ciência ganha um lugar de destaque para o entendimento da história da filosofia e, como veremos, mesmo da própria cultura europeia. Conforme já acontecia em Medífações cdrfesíd?zczs,Husserl passaa admitir que a ideia de uma disciplina que garanta o caráter justiflcado do conhecimento científico era

uma norma-guia para osfilósofos antigos, de modo que é possívelacom. panhar desdea Antiguidade diferentes etapas de realização desseideal.

Na introduçãode LFT, Husserlainda não detalha a história dessa norma-guia,e sefoca em um momento em que teria se cristalizado uma mudança nas relaçõesentre asciências particulares e a doutrina da ciência. Na Modernidade, conta-noso autor, "as ciências se tornaram

central de exibir os princípios iões

capazes de fundamentar

todas as forma-

teóricaspossíveis,pois ela também "se tornou uma ciência par-

ticular' ILFT, 4), absorvida na resolução de problemas específicos.

Ora, o desenvolvimento histórico das ciências, narrado, é verdade,

demodo muito sintético até esteponto, teria levado as "ciências europeias"(Lli1', 9) a se afastardo te/os de fundamentação absoluta em princípios claramente compreendidos. Por conseguinte, as pessoasnão

maisapreendem as ciências como "auto-objetivação da razão humana

ou a atividade universal que a humanidade planejou para si a fim de tornar possível uma vida totalmente satisfat(ária" (ibid.). A crença na

ciência como fonte crítica de sabedoria e mesmo de felicidade perdeu das ciencias espe-

força. Apesar dos múmeros progressos tecnológicos

cializadas, "o mundo se tornou ininteligível"

(ibid.) e o conhecimento

científico não oferece mais os parâmetros para uma prática racional

Husserlretoma aqui uma ideia já presenteem Ideias IJI. No parágrafo 18dessetexto, admite-se que o desenvolvimento da ciência pode prescindir da clareza intuitiva acerca do sentido e do alcance dos seusmétodos.Com efeito, reconhece-se ali que seria difícil evitar essaseparação entre clareza intuitiva e produção teórica à medida que asciencias

se tornam mais complexase refinadas, e issoporque elas se tornam, em seu desenvolvimento, cada vez mais simbólicas's. Em seu avanço, 15. "Prevalece uma notável teleologia no desenvolvimento da cultura humana em

geral,e assimtambém na cultura científica, de modo que resultadosválidos podem surgir sem visão intuitiva ou por meio de uma mistura de visão intuitiva e instinto no exercício das forças psíquicas. (. . .) Quanto mais altamente

:!HliBÊ 111 illilliXJ%l: :. .:=:::!

desenvolvida se torna uma

ciência, (...) mais o seu trabalho principal recorre à esferasimbólica do pensamento osconceitosoriginalmente orientados para a intuição sãousadosde modo meramente simbólicos" (Idl11, 94-95) 277

A cientificidade na fenomenologiade Husser] As ciências como produção histórica no mundo da vida

as ciências se servem cada vez mais de sistemas de

dais, os quais facilitam consideravelmente a tos, embora impliquem em uma fontes intuitivas que legitimam tos. O fenomenólogo liga do pensarcientíflco menos de algumas delas) como

a serem comercializadasem ponto de vista, devem se guiar sar à extração de trote sobre os eventos

tecnológicas sejam tantas vezesadmiráveis. que "os avanços das ciências não nos tuições evidentes. O mundo não está por causa deles; ele apenas se tornou mais

O mesmo diagnóstico, como vimos há ção de LFT. Apesar do sucessotécnico pouco se avança na instituição mundo.

Por meio

dessas

ramente a ideia de crise das volve todos os pressupostos,uma nessaobra, em apontar um método diante dessediagnóstico.

Após analisar sucintamente as ciências contemporâneas, Husserl compara a suasituação com a de Descarnes exatamente como propõe

no parágrafo 2 das Medífações cczüesíanas' Diante da profusão de sebebesdesconectados das fontes originárias de lustiücação, é preciso

renovar a crença no ideal de ciência enquanto conhecimento

funda

Conforme sugerido em Medífações carfesiazzas,a via histórica não

exigeum rompimento ;7zÍcÍd/com toda a experiência natural, tal qual 17. Há mesmo uma nota na introdução de LIÍT qilese refere ao te},to 1- A'-J.,.

çõe8cade farás, então noprelo, Cf. L]iT,']],

nota.

'

'' ' '--

-vud'""ullu-

ocorria na via cartesiana. Pelo contrário, trata-se de justificar a passa-

gem para a. orientação.fenomenológica por meio da explicitação da ideia-guia de cientificidade que teria norteado o desenvolvimento

278 279

A cientificidade na fenomenologiade Husserl

As ciências como produção histórica no monda da vida

Como se vê, a via histórica que vai se delineando na introdução

l

não se tenha mais tanta clareza sobre as exigências da fundamentação

Husserlfala em Besínnurzgcomo o procedimento analítico especifico dessa via histórica. Cabem aqui algumas consideraçõesetimológicas.

por princípios(por exemplo, que ela supõe a construção da doutrina da ciência, a qual, por sua vez, exige a clarificação transcendental), a Ciên. cia ainda é, ao menos em parte, conhecimento fundamentado, e cabe

'BesÍ7znung"normalmente designa um processo meditativo ou inves-

esclarecero sentido dessareivindicação em sua progressãohistórica. Desde então, Husserl assumeas ciências em sua formação histórico.

"BesÍnnu7zg"). Realizar uma Besííznungé então propor uma tentativa

cultural como ponto de padída para o prometode fundamentação do sa.

ral,não haja problema em traduzir "Besínnung" por "reflexão" ou "me-

ber pela doutrina da ciência. "Quer as ciências e a lógica sejam autên.

ditação" (enquanto pensamento metodicamente conduzido), é pre-

Ficas,quer não, nós temos experiência delas como formações Culturais

cisocerto cuidado devido ao caráter técnico atribuído por Husserl a

pré-dadasque portam em si seu 'sentido'" (LFT, 13), asseverao autor.

esses termos. É melhor evitar chamar "Besírzrzung"de "reflexão", uma

E esse sentido, formado

vezque, em fenomenologia, entende-sepor esseúltimo termo um retornoa si como esferaprivilegiada de ser imanente. Não é assim que

no correr de diferentes gerações, cada uma

buscando realizar da melhor forma possívelas tarefascientíficas e ]e. gando às posteriores novas tarefas e as normas pelas quais deveriam jul-

gar os resultados obtidos, que Husserl almeja agora clarificar. Essacla. rificação supõe então assumir as teorias científicas enquanto produção cultural histórica. O desenrolar histórico-cultural das ciências torna-se. desde então, um pressuposto dessaefaf)czda ínvesfígação'9, a qual, longe

de suspender de partida todas as produções da orientação natural, se

serviráde algumasdelasparadelimitar o significadoda própria atividade científica, que a fenomenologia, conforme tentarei mostrar, anseiaretomar em seualcance originário.

Ügativo,em sentido amplo, que serve para esclarecer o sentido de algo Incite-seque o termo "sentido" -- Sínn -- já está contido na palavra

de compreender o sentido de algo em questão. Embora, de modo ge-

Husserl pretende realizar uma Besínnung. Nessa última, não se supõe uma esfera imanente como fonte de sentido, mas busca-se obter clareza acerca de sentidos em relação aos quais justamente não se tem a

evidência imanente como garantia. A Besínrzungenvolve uma explicitaçãopaulatina de um sentido que não se esgota nas operações sintéticasimanentes a uma subjetividade particular. Ao sistematizar a Besínnung como recurso metodológico, Husserl tem clareza de abordar o problema das unidades ideais de sentido para

além dos limites da constituição subjetiva isolada. O sentido de formações históricas não se revela como um dado estático correlato de

18. "Mas o essencialera que essaexigência radical conduzia um correspondente

esforçoprático paraa peúeiçãoe que à lógica permaneciaatribuídaa grandefunção de investigar em generalidadede essênciaos caminhos possíveisaosprincípios últimos (. . .), dando à ciência efetiva norma e condução" (LFT, 4) ] 9. "Assim, nós pressupomos as ciências, bem como a lógica, com base na sua 'ex-

periência' pré-dada"(LFT,

12)

algum tipo de apreensão subjetiva especial, e nem mesmo se resolve nas diversas camadas genéticas por meio das quais a subjetividade ordena conteúdos objetivos idênticos conforme as sínteses da temporali-

dadeimanente. O tema do sentido histórico envolve particularidades que não são adequadamente abordadas pelas análises fenomenológicas

280

281

A cientificidadena fenomenologiade Husserl As ciências como produção histórica no mundo da vida

estáticasou genéticas2'.A explicitação do caráfer /zíst(iricodo sentido

::.'=== =::1.,='= :1::T:TiTT':? y' """';.m''.d.IÓ;i

de modo Obscuro com o aprendizado da atividade cien. ganhar clareza em relação que é constantemente rea embora sem ser aí explicitacientífico enquanto preene um pressuposto não cla-

a isso, Husserl alerta que a

nítido do que inteiramente constituído pelas síntesesindividuais. A.sua

l$1Zl;X;l:HE:l:F f: l O desvelamento desse caráter histórico envolve uma recuperação das cadeiasde transmissãopor meio das quais o sentidoperna-

nece para além da experiência de reativação por sujeitos individuais. Husserl propõe a Besínnuizgcomo um método específico paraexplorar ossentidos de formações ideais enquanto historicamente lastreados isto é, colo conteúdo objetivo se constitui por meio de uma cadeia mul.

um sentido pretensamente A sedimentação do sentido his-

uma reativação evidente das formações aideialegada geraciooriginal está sujeito a deslocaque novas conexões conceituais sesoessassão distorcidas por meio de com Diante disso, haverá uma tarefa histórico, capaz de salientar as

com o correr dasgerações.No 1i.

tigeraciona] de transmissão e reativação. Para resguardar a particulari-

novamente" (LFT, ]4), quer dizer, patente oseu conteúdo fundador.

dade desse método, proponho traduzir "Besí?znung" por "investigação

de sentido Como

essa investigação

de sentido

se aplica

sentido originária signiindeterminada.

ao tema da cientiHi-

cidade? O sentido geral da prática científica tem sido herdado a cada

que se originam dos despreluízos que conflitam

geração que a ela se dedica e contribui para a sua sedimentação como componente da cultura. Porém, trata-se de um sentido "pairando va-

Não se trata, assim. mera-

gamente diante de nós" (LFT, 13), ou seja, em relação ao qual não há clareza, mesmo que ele continue a operar como um componente

da ciência tal como assimilado pas-

morecuperar suascadeiasde trens. e criticar as distorções a ele associadas.

20..B. Hopkins captu'a de modo convincente esseponto. Segundo esseautor, a caráter histórico das formações de sentido "excede a forma eidética universal da gênese intencional. pertencente à temporalidade interna da identidade dessaapresentação imediata. A análise husserliana da necessidade de investigar a gênese desses elemen-

tos torna evidente o fato de que as origens constitutivas dessasformações categoriais, que compõem o sentido intencional da unidade de um objeto, excedem a históriase-

por Husserl exige, então, investigar, de parque em visão panorâmica nos são fome. líbia.), o que, por sua vez, supõe a

dimentada desse sentido tal como ele é reproduzido em termos de sua temporalidade mterna ' (Hopkins, 2010, 184). Assim, a explicitação da gênese histórica não se reduz à descrição.da história do sentido sedimentada nos limites da temporalidade imanente de um sujeito

282 283

A científlcidade

As ciências como produção histórica no mundo da vida

na fenomenologia de Husserl

imersão, ainda que provisória, no domínio da cultura, o qual, longe d.

lconformell.TC e mesmo Idl) e incluirá a respons'bilidade de reno-

ter sua validade suspens' logo de início (como era o caso em Ideias il

varo te/os de cientiflcidade que permite uma transformação radical em

servirá de guia para o reconhecimento do sentido de ciência de quem

própria fenomenologia partilha. E essereconhecimento envolvepor si

todaa humanidade. Para chegar a essetema, é preciso acompanhar a 'investigação de sentido" em ação. Por meio dela, vai se revelar uma

só uma espécie de purificação crítica dos aspectos conceituais indevi.

gravecrise afligindo a humanidade europeia

damente identificados ao sentido em vista, de maneira a tornar visíveis as intenções originais das quais as formações teóricas anuais derivaram.

Nesse ponto, compreende-se que a abordagem histórica aqui proposta

não seja uma historiografia dasciências, isto é, uma narrativa factual. mente lastreadade momentos-chaveda prática científica. Mais do que o registro de fatos, o que se almeja

por meio da Besínnung

é o desvela.

mento de estmtur.zs intencionais de transmissão e sedímenfação por diferentes gerações de um serztído, de um ídea/. O desinteresse pelos fatos,

Atestaçãoda case das ciências Vimos que, ainda sem utilizar o termo "crise", Husserl aponta, na introdução de LFT, para uma perda da crença na capacidade científica

defornecer inteligibilidade aoseventos mundanos e fomentar modos deação racionalmente fundados.Configura-se aqui um núcleo temático ao qual o autor passaase dedicar cada vez mais na década de 1930.

marcante já desdeA /i/oso/ia como ciência Hgorosa,encontra no mé.

A Besínízung, ao fazer aparecer as transformações h istóricas sofridas pe-

todo da Besí7znnung a sua justificação: trata-se de explicitar a /zistóría

las ciências, permite circunscrever mudanças nas expectativas em re-

í7ztencíona/

da ideia de ciência

e não a sua história

factual.

A sucessão

empírica envolve inúmeros aspectoscontingentes, mas a produção e

a transmissãodo sentidopor meio dessesfatosdependemde estruturasintencionais que constituem uma historicidadeordenadaconforme nexos multigeracionais de experiências de transmissão e sedimentação Interessam a Husserl as relações de motivação entre as gerações, aspos-

sibilidades e os riscos da assimilação sedimentadora de sentidos que permanecem para além da atestaçãosubjetiva isolada.

Com basenessemétodo, seráelaboradauma nova introdução à fenomenologiazz. O sentido histórico (em particular aquele da cientificidade) serve de fio colldutor específico para a problematização fenomenológico-transcendental. E, como veremos, não se trata de uma mera

introdução exterior ao prometofenomenológico, uma vez que, à luz dessasconsiderações históricas, a fenomenologia deixará de ser concebida como instauração de uma ciência universal da consciência pura

lação ao saber científico e nas formas de apropriação de seus resultados. Em um texto de 1934 A tarefa cztua/ da /i/oso/ia, que Husserl

pretendia enviar para um congresso de filosofia em Praga:; , já aparece de modo mais preciso o diagnóstico de crise da cultura europeia. Ali, Husserl localiza no século XIX o momento em que "a crença dinâmica na filosofia e na ciência(...) vacila"(Husserl, 1989b, 208), de modo que, ao menos desde então, deve-se reconhecer "uma Europa,

perturbadapelo ceticismo, que vive essascrises" (ibid.). Cabe notar que Husserl não tem em vista certos desarranjos socioeconómicos geraisque repercutiriam no campo da filosofia. Lembremo-nos de que a Besí7znung não se volta, ao menos inicialmente, para aspectossociopolíticos empíricos da vida europeia, mas busca elucidar a história do sentido de ciência formulado na Antiguidade e herdado pela contempora-

neidade.Importa mencionar, por ora, que a noção de crise das ciências europeiasnão seráderivada de uma constatação de problemas conjunturais da sociedade, e sim o contrário: diversas situações sociais problemáticas serão remetidas à crise das ciências, como veremos

22. Veremos mais adiante que, alguns anos mais tarde, Husserl reconhece.que essaproposta de história intencional é uma abordagem das ciências do espírito. E, as-

sim, na orientação personalista que a via histórica é construída como introdução à fenomenologia. 284

23. Paradetalhes acerca dascircunstâncias históricas dessetexto, Cf. Nenon, T Sepp, H., 1989, xxv-xix. 285

A cientificidade na fenomenologiade Husserl

As ciências como produção histórica no mundo da vida

f'

#,

sabercientífico, e sim um refinamento dos instrumentos teóricos (em buscade maior alcance explicativo e capacidadepreditiva) que acaba realizar de forma ainda mais aprimorada a cientificidade referente certo âmbito fenomênico. Não parece, assim, haver razão, se se toma

asciênciasestabelecidas,para anunciar uma crise.

No segundoparágrafo do livro, revela-se qual é o ponto de vista a partirdo qual é significativo reconhecer uma crise das ciências. Esse ponto de vista é aquele da relevância das ciências em geral para a exis-

tência humana (K, 3). No que tange às questões acerca do sentido ou

nãosentido do existir humano enquanto se desenrola historicamente limo pretendia ainda desenvolver mais duas partes para complementar a obra (Cf. .K, 514-5 16), as quais nunca foram efetivamente compostas.

no mundo, a ciência contemporânea, mesmo com todo o esplendor de

seusresultadostécnicos, "nada tem a nos dizer" (K, 4), asseverapesadamenteo autor. Tal como no texto A tarefa fua/ da /í/oso/ia, Husserl volta a apontar o século XIX como o momento

em que as ciências cris-

talizam um modo de produção do saber guiado pela verificação mera-

mentefactual, modo que afastaa investigaçãocientífica das questões prementesdo existir (tais como a finitude, as metas pessoaisa que se dedicar, as responsabilidades éticas etc.). Essas questões exigem valora-

Husserl inicia o texto admitindo que dificilmente o alerta de crise das ciências soa convincente diante da enorme profusão de disciplinas

ções,tomadas de posição diante do significado das circunstâncias concretase dos objetivos a se cumprir. Por sua vez, as ciências. desenvol-

gica das ciências e nem de lamentar que teorias clássicassejam substi-

vidasde modo positivista ao menos desde o século XIX, excluem consideraçõesvalorativas, resumindo-se a mostrar correlações gerais entre fatos.Ora, se as ciências se limitam a investigações sobre domínios fenomenaisempíricos, então toda dimensão ética do existir fica excluída

tuídas por outras. Essasamplas mudanças teóricas, tais como a passa-

do seu alcance, e, consequentemente, as resoluções subjetivas ou in-

científicas bem estabelecidas e capazes de gerar aplicações técnicas notáveis:ó. Não se trata, da sua parte, de questionar a correção metodoló-

gem da física newtoniana para a einsteiniana, não atestam o fracassodo

24. Cabe notar que o parágrafo 73, com o qual a parte 3 se encerra na edição pósa da coleção husserliana, é na verdade um manuscrito independente, que o editor escolheu como conclusão para a obra, embora isso não tivesse sido previsto claramente por Husser] cap

tersubjetivasacerca de uma condução satisfatória da vida concreta (do ponto de vista das possibilidades de sentido que Ihe cabem) pouco ou nadapodem se servir dos resultados científicos.

E então do ponto de vista do sentido da existência humana concreta que se diagnostico uma crise nas ciênciasz7.E preciso atenção

25. Para mais detalhes acerca da edição de K, Cf. Biemel, 1976, e Moran, 2012,

26. Dessaexortaçãoda efic.iênciacientífica, Husser]exclui a psicologia.A razão para tanto é que a psico]ogiaainda ma] teria clarezada especiülcidadedo seudomínio e dos procedimentos exigidos para estuda-lo, deixando-se guiar ingenuamente pelos métodos das ciências exatas. Voltarei a essetema no correr da exposição.

27. Certamente a referência a esseponto de vista não é algo banal. Atribuindo centralidade à existêllcia concreta, Husserl indica que dispõe de recursos conceituais para abarcar essetema em uma reflexão rigorosa. Essa perspectiva conHlante já havia

sidolançadaem uma conferênciaintitulada Rerzomeno/agia e anhopo/ogza,de 1931 na qual assevera que por meio das análises fenomenológicas "torna se possível uma

286 287

A cientificidade na fenomenologiade Husserl

.\s ciências como produção histórica no mundo da vida

para com o tipo de problema que se pretende analisar aqui. O termo

de Husserl aqui é que as ciências a princípio teriam algo a dizer

crise" tem, entre outras, conotaçõesmedicinais, e sugere um estado ou uma situação vivenciada como gravemente problemática. Trat.

as questões da existência humana e, assim, teriam ao menos se es-

no entanto, de um estado provisório, e não definitivo;

um estado

para baça do historicamente

de forma sa

No parágrafo3, Husserl tematiza explicitamente essepressuposto

qual se adensa mediante certas circunstânciase do qual se esperasair

.m vigor no início de K. Ali, é dito que "nem sempre as questões especi-

de forma positiva, seguindo certas recomendações. Assim, se do ponto

ficas da humanidade estiveram banidas do domínio da ciência" (K, 5),

de vista do sentidoda existênciaatesta-seuma crise dasciências,su. põem-se, por contraste, uma condição "saudável" das ciências e um

demodo que seria possívelreconhecer momentos em que a ciencia pôde reivindicar um significado para a humanidade europeia" (ibid.)

momento em que as modificações das circunstâncias marcam justamente a manifestaçãoda "doença". Ao falar em termos de "crise"

trata-sede explicitar o sentido de ciência em vigor em certa configura-

Para

justificar

essas afirmações,

Husserl põe em ação a Besin7zung

dizer sobre a existência humana, e que cabia a elas, entre outrastape.

çãohistórico-cultural para acompanhar criticamente suastransformações.E a configuração privilegiada no início de K é o Renascimento

fas, oferecer uma base racional para o desenrolar significativo do existir

europeu, abordado em termos das intenções /i/osó/ocas dos seus repre-

concreto. Além disso, ao findar do parágrafo 2, já fica também sugerido

sentantes,e não em relação aos eventosfactuais que o delimitaram

que a crise das ciências, se tiver remédio, se resolverá por uma reconstrução do laço, obscurecido desdeo século XIX, entre a cíentj/icídadee o dírecionamento racíona/ do existir corzcreto.A crise semanifesta justamente como perda da crença no papel condutor da ciência paraa exis-

No Renascimento, garante-nos Husserl, houve uma desvalorização do

Husserl parece supor que nem sempre as ciências não tiveram nadaa

tência e, mesmo, como veremos,

para a cultura

em geralz8, e o pressu-

modomedieval de existir (centrado nas instituições religiosas)e unia retomadado ideal grego de existência filosófica, no sentido de coordenaçãoda vida prática por princípios racionais. Dessaforma, o início da Modernidade europeia se marca por uma retomada auspiciosa de um

idealde filosofia que já determinará a configuração histórico-cultural daGrécia Antigazç. investigaçãorealmente radical daquilo que existede modo último e absoluto" (Husserl. 1989a, 178). As questões existenciais não escapariam, assim, à fenomenologia transcendental. Conforme bem comenta G. HeKernan, "é evidente que, enquanto rejeitaa acusaçãode que a fenomenologia falha em lidar com os problemas da 'assimchamada existência', Husserl reconhece que tais problemas existem e que uma filosofia universal

deles trata. Assim, seriaprecipitado assumirque Husserl não põe as questõesconcretas da existência humana a que os Exísfenzphí/osophenapontam" (HeHernan, 2015, 18SI Ao construir o início de K centrado na existência concreta, Husserl julga oferecerum poderoso exemplo de como seus métodos descritivos conseguiriam abarcar as questões referentes a essedomínio. É verdade que asanálises iniciais de K ainda não pressupõem

a passagempara a orientação transcendental. Contudo, veremos no final do capitula mesmo após a epoc/zé,as questões relativas à existência concreta no mundo ainda são centrais para Husserl 28. E, no entanto, Husserl não deixará, a partir de Ideias 111,de descrever um exa-

cerbado entusiasmomuitas vezesacrítico em relação à implementação de tecnologias extraídas de teorias científicas. Na verdade, a crítica inicial de K às ciências permanece mesmo se se salienta esse aspecto: em termos gerais, as implementações

tecnológicas

29. Nesse ponto, fica mais claro que, ao sereferir à ideia originária de ciência, H us-

ser]não pretende fazer a datação historiográfica de um fato. A referência à Crécia Antigaé mediada pela referência à Modernidade, e essa,por sua vez, é tematizada à luz de questõesprementes para a contemporaneidade. No parágrafo 15 de K, o autor esclarece que setrata de encontrar na Grécia Antiga a instituição originária IUrstí/tungl da tarefa

deconhecimento que teria concentrado de modo único asforças culturais da Europa No entanto, esse"encontrar" não é uma mera atestaçãode um atributo inerente à falo

sofragrega("seruma instituiçãooriginária"), assimcomo seencontrariaum bssil com taise tais características.O reconhecimento do caráter originário da ideia de filosofia ocorredo ponto de vista de uma refundação INac/zstí/tungl dessaideia no presente.É, então,a partir de uma questão retroativa IRticÃ#agel, centrada nos temas urgentes da

contemporaneidade, que a instituição originária pode serlocalizada.O caráter instituinte originário não é um atributo objetivo que opera de maneira causalmente cega; elese deixa reconhecer por meio da refundação do seu conteúdo de sentido pelos Hjlósofospresentes.Conforme bem nota J. Dodd, "o caráter originário dessecomeço como

propiciam maior conforto e, em alguns casos,longevidade, mas não respondem,por sí

um problema histórico é assim somente válido 'para nós'; ele não se aplica para os pró-

sós,às questões de sentido e não sentido do existir concreto

priosgregos,pois não fazia nenhum sentido para eles ser um começo para rzós

288

289

os

A cientificidade na fenomenologiade Husserl

As ciências como produção histórica no mundo da vida

H

Depois veremos que essaretomada já envolveu Obscuridades que fomentarem a limitação positivista das ciências contem

instaura um fe/os de conhecimeTltO absolutamente fundamentado que

Importa circunscreverde início qual é esseideal de fi osofia herdad.

cortante acentuar, conforme já notei ao tratar de Meditações caNesía-

porâneas.

dos antigos. Vale notar, para tanto, que Husserl começa aqui a ampliar sua análise de que uma ideia de filosofia teria guiado d versosprojetos filosóficos no correr dos séculos (já proposta em A.filosofia coma ciên cía ngoros.z). Em 191 1, essa análise valia

prmcipaimente para clarifi. car o desenvolvimento histórico da filosofia como veremos, essa análise abarcará o próprio destino da Itumanidade euros)eia. Segundo Husserl, o sentido de filosofia forjado na Grécia Antiga e r..

:K

Husserlretoma ao tematizar a noção de ciência onienglobante. E imncZS, que a Besírz?zune revela como ideia instituinte da ciencia nao uma

teoriafixa ou um conjunto determinado de axiomas; o que é expliciFadoé uma tczre/apara asgeraçõesfuturas. A ideia originária de ciencia

apontadapela Besínizu/zgnão envolve nenhuma teoria acabada,mas motiva um determinado modo de pensar e agir; essaideia lança um curso de desenvolvimento histórico ao qual sucessivasgerações devem

aderirpara que paulatinamente teorias rigorosas acerca dos mais diversosdomínios temáticos sejam formuladas;'

lliiK:::il;i:xilil$

Antiga aquilo que é,não fatos ou eventos empíricos, mas de todos os domínios de fenõmen.s

Voltemos a nos centrar no texto de K. A retomada desseideal fi-

que inclui, por exemplo, aqueles dos valores e das ações éticas (Cf. K,

losóficode conhecimentoexaustivodo ser por princípios racionaisé a "instituição inaugural da Modernidade filosófica" (K, S 5, 10), asseveraali o fenomenólogo. A crise dasciências decorre do "desmorona-

7). A Besínntzng desvela esse ideal fundante das ciências como o sentido

mento da crença na 'razão"' (ibid.), ou seja, do enfraquecimento

originário de filosofia: instituição do ideal de conhecimento abrangente com base no qual as ciências particulares poderiam paulatinamente se concretizar. Nesse sentido originário, a filosofia é então retratada como a ciência-matriz de todos os ramos particulares do saber30 Como se nota, Husserl reelabora aqui temas explorados ao menos desde Medífações ca#esíczlzas.Vimos que nos IUIHlgHlleinn neini na l texto e na introdução

de Lógica Áomza/ e trar2scenderzfa/, tratava-se de

apresentaro ideal de ciência universalcomo um ideal de origem fi. losófica que, mesmo se de forma obscura, ainda guiada as produções

científicas concretas. É essaideia de que, em sua origem, a filosofia

da

crençanesseideal que iluminaría todos os âmbitos do existir humano. Aqui a Besírznungexerce seu potencial crítico: é preciso reconhecer que "esse ideal experimenta uma dissolução interna" (ibid.), de naodo

que o avanço das ciências deixa de ser fazer em nome do sentido ori

Bináriode conhecimento onienglobante racional. Daí, como já se ha via reconhecido nas páginas iniciais de K, a ênfase quase exclusiva das

ciênciascontemporâneasnos fatos e eventosempíricos, o que exclui dasabordagens científicas as questões relativas ao significado do existir humano. Ora, é verdade que a dissolução do laço entre as investigações

científicaspositivistas e o ideal de cientificidade universal não altera os resultados particulares a que tais investigações chegam, os quais se de-

gregos não eram cônscios do sentido em que eles se tornariam algum dia rzossosgregos"

vemà aplicação carreta dastécnicas de obtenção de dados e verificação

(Dodd, .2004,74)...É porque há uma tarefa global do conhecimento em nossotempo,é

de hipóteses vigentes no interior de cada disciplina. Por isso Husserl ha-

porque isso constitui, de forma ingenuamente sedimentada, o horizonte de nossaspreo cupações culturais, que é cabíve] reavivar o sentido desseempreendimento, atribuindo-

viaconcedido que não há nenhuma crise dasciências em relação aos

Ihe uma refundação crítica (a qual, ao mesmo tempo, põe a sua fundação originária) como esclarecimento da herança com a qual temos de anualmente lidar 30. Esse impu]so 6t]osófico original para a produção cientí6lca ainda seria reconhe-

cível em todasas disciplinasparticulares.No texto A farejaafia/ da /í/oso/ía,o autor afirma: "aí onde uma ciência verdadeiraestáem ação, a filosofia estáviva. e aí ondehá filosofia, há ciência" (Husserl, 1989b, 185). ' 290

31. Daí que nos textos em que Husserl retomava os filósofos do passado,interes sa\amenos referir-se a dados historiográficos que recuperar neles a continuação desse

impulso motivacional de construção histórica da ciência onienglobante, impulso que também deve alimentar os esforços dos filósofos do preseílte

29]

A científicidade na fenomenologiade Husserl

métodos e resultados específicos das ciências há uma crise em relação ao sentida gera! da

as quais perdem a clareza quanto à sua remissão conhecimento onienglobante do da /í/oso/ia, Husserl afirma de que "existe na finalidade de toda ciência

ciência e filosofias (. . .), uma coordenaçãointencional manecer implícita a tais trabalhos jespecializadosdas estar ausente de sua significação temática, enquanto

terminar o sentido pleno e concreto de todas as particulares e de todas as teorias" (Husserl, 1989b. l nas ciências especializadas, ainda sófico de conhecimento exaustivo Esseideal impulsiona o progressodessas perde a clareza em relação a ele, tal progresso

gam mesmo a renegar a importância da produção do conhecimento. Essa é ao menos em parte a situação que Husserl busca apontar com a noção de "crise". Não se trata simolesmen te de criticar a limita. ção positivista aos fatos, mas sim de tornar visíveis quaisoscondicionan. tes de sentido de tal decisão teórica. É

porque o ideal-guia de cientifi. cidade racional onienglobante não mais reluz como um sentido cona. cientemente assumido, é porque se perde a referência a essanorma geral de cientificidade que as ciências se transmutaram em nvestigações positivistas. A redução do escopo teórico aos temas empíricos,a exclusão do significado do existir do âmbito científico não é senãocon. sequência desseobscurecimento do sentido-guia da cientificidade. Antes de detalhar as razões para a crise, cabe notar que o obscurecimento do fe/os científico mplica uma perda de referência para o desenvolvimento da cultura humana. A Besízzrzuzzg aponta uma ligação essencialentre a ideia de ciência e a próPHa humanidade, a qual pretendo reconstruir no correr do capítulo. Por ora, enfatizo que, para Husserl, "a instituição originária da nova filosofia é (...) a institui-

ção inaugural da humanidadeeuropeiamoderna" rK l dizer que há um laço constitutivo entre o autorreconhecimentoda

.\s ciências como produção histórica no mundo da vida

humanidade europeia e a adoção do ideal filosófico de conhecimento oníenglobante. Esselaço é delineado de modo um pouco mais claro

no parágrafo 6 de K. Ali, afirma-se que o nascimento da filosofia im Plicou a instauração de um fe/os (a saber, a existência orientada, em sUaS

dimensões teórica e prática, por razões) para toda a /zunzalz;Jade.

Essete/os teria moldado, ao menos de início, o desenrolar histórico da humanidadeeuropeia enquanto unidade espiritual que se reconhece como essencialmente guiada por razões.Assim, se há uma crise nas ciênciasdevido à perda de clareza em relação ao sentido originário que guiadao seu desenvolvimento deve haver então uma crise da própria humanidadeeuropeia, uma vez que seria dela constitutivo guiar-se pelasnormas racionais expressasno saber teórico Cabe esclarecer que a submissão as normas racionais enquanto

guiapara a existência concreta não é julgada por Husserl como uma particularidadeantropológica dos europeus, que poderia ser relativizadaante particularidades de outros povos, tais como os chineses ou indianos,citados no parágrafo 6 de K3z.A racionalidade seria um aspecto esselzcía/do ser humano

rais isso não se manifeste

ainda que em muitas configurações cultuabertamente. Longe então de ser a porta-

dou exclusiva da racionalidade a humanidade europeia renasomente o mérito de ser a

primeira a se conduzir conscientemente pelas nor-

mas racionais, submetendo-se a um ideal que não é relativo às idiossincrasias

das nações europeias, mas partilhável pelas mais diferentes

culturas das

que também despertem,por assim dizer, para a centralidade

normas teóricas na organização da vida concreta. Daí Husserl afir-

mar que "a filosofia, a ciência, seria então o movimento histórico da revelação da razão

universal,'inata' como tal à humanidade" (K, 13-

14). Irredutível a uma particularidade antropológica, a ideia de filosofia, estabelecida

originalmente na Grécia Antiga, revela algo de es-

senciala toda a humanidade, a saber, a capacidade e mesmo (em um sentido ainda a se esclarecer) a zzecessídadede se guiar por normas racionais. Desse modo, a realização da filosofia, a consecução interminá32. Segundo Husserl, enquanto exprime uma ideia tmiversalizável de razão. a Europanão seria "uin tipo meramente empírico, como a China ou a Índia" (K, 14)

292 293

A cientificidade na fenomenologia de Husserl

As ciências como produção histórica no mundo da vida

vel do seuideal, implica uma transformaçãoda própria hu--- .. que passaa seguiar por normas racionais.

""-Unidade,

sentidogeradoras da crise

A gêlzese

europeia da cíentí/icÍdade

Vamos acompanhar com mais detalhes como o fe/os que nortea-

dao desenvolvimento da humanidade é descrito por Husserl nos textos

doperíodoaqui estudado.Nos parágrafosiniciais de K, expostosna seção anterior, narra-se principalmente

a retomada

moderna

desse te/os (a

qual é marcada por obscuridades), mas pouco se explora a sua formação,

o que justamentepermitiria compreender com mais clareza as marcas dessaapreensãomoderna. Contudo, em uma conferência ministrada dade mteiramente pessoal pelo nosso verdadeiro ser próprio, enquanto

filósofos na nossaíntima vocação pessoal,traz em si, ao mesmo tempo,

a responsabilidadepelo verdadeiro serda humanidade, o qual só é en. quanto ser dirigido a um fe/os" (K, 15), crê Husserl. Dessamaneira,a missão central dos filósofos deve ser explicitar o te/os filosófico capaz de

guiar a transformação histórica da humanidade

em Viena em 1935 (que muito provavelmente foi levada em conta na escritadessesparágrafosiniciais de K), Husserl explora com vagaro fe/os racional da humanidade. Trata-se do texto A crise da humanidade europeia e a /í/osoPa, incluído como apêndice na edição póstuma de K.

A tarefa central dessetexto é compreender a "crise europeia" (K, 314) à luz do desenrolar histórico da filosofia enquanto núcleo cen-

tral da cultura. O autor deixa claro que a sua abordagem dessetema Nesse

ponto,

entrelaçam-se

os temas

construídos

pela

Besí7zzzung

com a atividade pessoal filosófica. Conforme J. Dodd observa de modo

convincente, o enfrentamento da crise presente não é apresentadopor

::;=c;:J : i: 2 c:iJ=:='=üí: i.::ii =.::=H::::= 1".=1:=::===f :::}:i:== ':==: 33. "A história não vem de fora, empurrando nos em seu fluxo e atribuindo-nos um desígnio que não é. originalmente nosso ma? forçado sobre nós pelos acasosdas transmissõespassadas;ela emerge.como uma unidade interna de sentido que descobri-

moscomonossa, no nível'pessoal"' (Dodd, 2004,65). 294

'

é pré-ÓenomerzoZógíca, no sentidode pressupora históriae as produçõesculturais da Europa, temas que se atestam na orientação natural do pensar. "0 nosso tema da Europa espiritual", revela-nos Husserl, é

tratado "como um problema puro das ciências do espírito" (K, 318). Dessemodo, é do ponto de vista da orientação personalista,uma formaçãoteórica que participa da orientação natural, que a cultura europeia será estudada. Confirma-se aqui o que já estava esboçado na intro-

dução de LFT e se repete na primeira e segunda partes de K: as consideraçõesacerca da historicidade das ciências compõem um camínbo

ínüodutórío à fenomenologia, o qual não supõe ainda a realizaçãoda epoché transcendental. Na conferência de 1935, trata-se de um novo 295

A cientificidade

na fenomenologia de Husserl

As ciêi leias cama produção histórica no mundo da vida 8' / } .'1' 4

exercício de Besínrzt/lzg,que o autor pretende realizar "sem preconcei.

nãode uma grande transformação da vida europeia à luz de outras cul-

tos" (K, 321), de maneira a tornar visível o lugar central da filosofia na vida espiritual europeia.

Hras,tais como a indiana, por exemp]o. Husser] diz que os europeus,

Vamos reconstruir os tópicos centrais dessa Besínnungacercada Europa. De início, Husserl esclareceque, ao mencionar "vida espiri-

Essasafirmações, que soam inicialmente como pretensiosasou mesmo

tual", tem em vista as realizações culturais das pessoasunidas em torno

quetentarei reconstruir a seguir. Em termos gerais, para compreender a posição husserliana, é im-

de diferentes tipos de produções de sentido (tais como instituições, re. aras sociais etc.) sedimentadas e reatualizadas no correr das gerações.

A Europa será então perscrutadocomo uma "forma espiritual", isto é como a unidade dos arosintersubjetivos que criam, sustentame trens. formam a vida cultural em toda a sua complexidade de interpretações valores, finalidades e interesses (Cf. K, 322). Essa ênfase nas produções culturais como critério de demarcação da forma espiritual europeia permite a Husserl não se comprometer com descrições geográficas ou

"se nos compreendermos bem, nunca nos indianizaremos"

(K, 320)

preconceituosas,recebem uma justificativa argumentativa complexa,

portante retomar a tese de que a forma espiritual europeia teria sido for-

jadaem torno de um ideal que permite explicitar algo essencialà humanidade,a saber, a possibilidade de reger a existência finita por ideais teóricos cuja realização exigiria um desenrolar interminável da história. Esseseria um resultado intimamente ligado ao ideal de cientifici-

dadeonienglobante e absolutamentefundamentada lançado pela pri

dados demográficos. A EuroPa que se fem em vísfa não é de/ímífada geo

medravez na história pelos filósofos gregos e assumido sucessivamente pelasgerações que constituíram a forma de vida europeia justamente

gra$camente pelos países que compõem a comunidade europeia, nem

ao tomar por base tal ideal. Nesse sentido, há uma singularidade da

os europeus são necessariamente aquelas pessoasnascidas nos ten'itórios

cultura europeia, devido à posição central nela atribuída ao ideal de fi-

geoPo/ífícameízfe pedencezzfes à EuroPa. Comunidades

losofia.Segundoo autor, na Grécia Antiga, por volta dosséculosVll e

guiadas pelos

nente europeu;'. Por outro lado, comunidadesque não partilham des-

vl a.C., um novo tipo de orientação do pensar ganha corpo, a saber, a orientação puramente teórica; e, como sua expressão,constitui-se a filosofa enquanto um ideal de conhecimento universal. Essacompreen

sesideais não são denominadas europeias, ainda que se encontrem em

são da filosofia está exposta, como vimos, nos parágrafos iniciais de K.

territórios oficialmente europeus;s. Essadesferríforia/ilação da Europa leva Husserl a privilegiar um

Porém, ali Husserl não aprofundou o tema da constituição do te/os de cientificidade universal por meio do nascimento da filosofia. Na confe-

tipo de europeização de outras comunidades ou formas espirituais que não é a anexação imperialista territorial, e sim o compartilhamento voluntário das tarefas racionais instituídas pela teleologia imanente à vida espiritual europeia. De modo aparentemente polêmico, o autor crê que

rência de 1935, essetema é esmiuçado; fica patente então que a ideia

defilosofia ou ciência universal envolve dois aspectosconstitutivos. O primeiro deles, o único elaborado na primeira parte de K, é o aspecto

essemovimento intercultural é unilateral. Em outraspalavras,antevê-

todo mundano, da unidade total de tudo aquilo que é"(K, 321), e desse modo ela seria a matriz de todas as disciplinas especializadas constituí-

ideais culturais que demarcam a vida espiritual europeia podem ser denominadas europeias, ainda que distantes geograficamente do conti-

se a possibilidade de europeização das outras formas espirituais3Õ,mas

temático: a filosofia lança o prometo de "ciência universal, ciência do

dasno correr dos séculos que se esforçam por realizar, em relação à sua 34. Husserl cita como exemplo "os domínios ingleses,os EstadosUnidos" (K, 321) 35. Husserl cita "os ciganosque perpetuamente circunvagueiam pela Europa"(K, 321)

áreade estudo, esseideal geral. No entanto, há outro aspecto da ideia

originária de filosofia, referente à va/idade írzfersub/etíva.A investiga çãocientífica pretende estabelecer teses cuja validade não é provisória

36. Conforme o parágrafo 6 de K, o "espetáculo da europeização" (14) já ocorre. 296

ou ligada às relatividades do contexto cultural em que foi produzida 297

A cientificidade na fenomenologiade Husserl

Nas palavrasde Husserl, "aquilo que o fazer científico algo real, mas sim ideal" (K, 323), isto é, não limitado às clãsempíricas atuais e que, em seu grau máximo de para todos os tempos. Essecaráter onitemporal dos cos permite a sua apreensão por pessoas que não

descoberta ou expressãoprimeira. As idealidades

miudas por geraçõese conservamseu sentido, de modo que um que repita corretamente os passosargumentativos utilizados seu estabelecimento poderá atesta-lascom evidência: A universalidade instaurada pelo ideal filosófico de conhecimento onienglobante não se refere apenas à possibilidade de abarcar a totall Jade dos fenómenos mundanos, mas também à possibilidade de tnstaurar teses válidas para todos aqueles que se dispuserem a reconstruir as etapas lógicas de fundamentação das teses,e isso independentemente

das particularidades culturais dos sujeitos envolvidos Esboça-seaqui o ideal de ob/etívídade como recon/zecímerzfo ev;dente untersubjetivoda va/idade ídea/ das tesescíenfz'ocas.E a realização paulatina desse

fomenta a assimilaçãodastesesfilosófico-científicas em círculos cada vez maiores de pessoasque se disponham a seguir os passosmetódicos para o estabelecimento do saberválido. Daí que haja, para Husserl,um processo de europeização: a produção científica constituída na Grécia e consolidada na Europa é passívelde reconstrução com evidência por outras comunidades espirituais, as quais então podem aceitar volunta.

riamente o modo de pensar científico. O reconhecimento da validade científica por esferascada vez mais amplas de pessoasnão depende senão do exercício da capacidade racional dessas pessoas. A europeiza-

As ciências como produção histórica no mundo da vida

Paraentender em toda a sua radicalidade essaideia de historicidade racionalou científica, é preciso ainda esmiuçar a orientação específica

crê Husserl,a ideia de filosofia teria sido forjada. Somenteenclaro por que o autor julga que esseprocessode ampliação deuma cultura racional é exclusivamentefomentado pela Europa, da na qua:

tõn ficará

qual p artériaum movimento unilateral cletransnacionalização Para compree nder a singularidade da filosofia nascida na Grécia jque instaura o ideal de desenvolvimento científico na Europa), é precaso

acentuar que ela sedesenvolve em uma nova orientação do pensar

ali expressa em toda a sua autonomia, a saber, a orientação puramente feérica (Cf. K, 326). Nessa orientação ocorre uma "epoc/zé voluntária de toda e qualquer praxis" (K, 328), quer dizer, uma suspensão da vali-

dadede todos os interessespráticos. Aquele que teoriza, enquanto especcador desinteressadodas finalidades práticas dos fenâmerlos, per-

junta pelo ser em sí, por aquilo que é, independentemente dos usos ou interesseshumanos. Nessa investigação, importa somente conhecer os

aspectos definidores dos fenómenos em questão.Teria sido por meio dessemodo de pensar, sedimentado inicialmente

em pequenos grupos

depessoase paulatinamente institucionalizado em comunidades, que a ideia de ciência universal foi forjada, ideia que teria se tornado o te/os paraa progressãohistórica da cultura europeia

Husserl admite que componentes temáticos dessaorientação podem ser empiricamente confirmados em vários povos antigos que não osgregos, tais COTÃO a astronomia e a matemática estabelecidas por ba-

bilónicos e egípcios (Cf. K, 331). Porém, nessescasos,essasdisciplinas

pensar metódico científico, e não a imposição de modos de vida idiossincráticos constituídos nos territórios da Europa. A noção de europeização em pauta aqui envolve uma inserção livre das pessoasno tios de

seriamainda submetidasa uma orientação mítico-prática do pensar, naqual se elaboram visõesde mundo que almejam responderàs questõesdo bem-estare do infortúnio humano. Husserl asseveraque, nas sociedadesem que vigora essaorientação mítico-prática, "todo o sa-

historicidade esboçadacom a formulação do te/osde ciência universal,

ber especulativo tem como finalidade servir aos homens nas suas me

e não tem nada a ver com algum tipo de dominação imperialista.

tashumanas,para que mordem suavida mundana do modo mais feliz

ção a que Husserl aponta sigrlifica, assim,"racíoncz/ízação",difusãodo

possível,e possamse proteger da doença, da fatalidade de todo tipo, da 37. "As pessoasligadas umas às outras na compreensão recíproca anual não podem deixar de experimentar o que foi produzido pelos respectivos companheiros, em arosde produção iguais, como identicamente o mesmo que aquilo que eles produzem" (K, 323). 298

penúria e da morte" (ibid.). Nessas condições, o saber teórico está limi-

tado por interessespráticos, ainda que notavelmente gerais. Somente

na Grécia Antiga teria se desenvolvidoem toda a sua autonomia a 299

A cientificidade

na fenomenologia de Husserl

orientação teórica pura, a qual, longe de se submeter a interessespráticos, transforma a vida prática ao gerar uma "síntese" (K, 329) inédita

As ciências como produção histórica no mundo da vida

tarefade cn'tícczracíorzcz/voltada aos modos de vida tradicionais. Dessa forma, ospovos não se europeízam porque assimilam hábitos europeus

com essaúltima, da qual surgiria aquilo que caracteriza,em seunú.

jsuasreligiões, a culinária, as danças folclóricas etc.), mas porque as-

cleo, o que Husserl reconhece então como comunidade esPíríüa/ euro

sumem uma postura crítica em relação ao seu próprio modo de vida,

peia. Não se deve pensar, dessa maneira, que a orientação teórica pura

alvejando transforma-lo conforme normas racionais. E essatarefa de consbuir uma praxis racional vale mesmo para a Europa geográfica,

se desenvolve de modo alheio às questões práticas. O que ocorre, na

verdade, é uma inversãodas relaçõesentre teoria e prática tais como ordenadas nas comunidades mítico-práticas. Nessas últimas, são os in. teressespráticos que guiam as descobertas teóricas. Porém, sob a orien. ração teórica pura, a vida prática é transformada à luz dos ideais de co.

nhecimento absolutamente fundamentado.

paraas suastradiçõese os seuscostumes,que devem receberuma crítica constantese pretendem pertencer à comunidade espiritual europeia, no sentido empregado por Husserl38 Como se vê, a europeização husserliana não é senão a divulgação e sedimentação, em círculos humanos cada vez mais amplos, de uma

A respeito dessasíntese entre teoria e prática propiciada pela orientação teórica do pensar, Husserl menciona que ela seexpressaem uma

cultura racional39.A Grécia Antiga e a Europa que dela se formou fo-

ramresponsáveis por lançar na história humana esseideal de crítica

;posturacrítica" (K, 333) de alcance universal, isto é, não limitada a

universal. Isso marcaria a singularidade da cultura europeia: lançar um

questõesteóricas especializadas,masaplicável a todos osdomínios existenciais. Por meio da orientação teórica, circunscrevem-se idealidades

fe/osinédito, que nenhuma civilização anterior vislumbrou, mas do qualtodas as posteriores podem participar. E, uma vez fixada a meta

de validade universal independente de relatividades culturais. Na pos-

devida racionalmente guiada, Husserl insiste em afirmar que a humanidade "não mais pode e não mais quer viver a não ser na livre forma-

tura crítica, essasidealidadesajudam a constituir normas para a justificação das atividades práticas, de maneira que asformas tradicionais de ação nos contextos sociais passam a ser avaliadas pelo crivo da verdade

ideal incondicionada. Nas palavrasde Husserl, "resulta daí uma transformação de grande alcance da praxis inteira da existência humana e, portanto, da vida cultural em seu todo; ela não mais deve deixar que as

ção da sua existência, da sua vida histórica, a partir da ideia da razão, a partir de tarefas infinitas" (K, 319). Cabe ainda esclarecer esse tom de

rzecess;dczde atribuído à vida racional. Por que a humanidade europeia, enquantohumanidade formada pelo ideal de guiar a vida por normas racionaisderivadas da noção de validade universal, não pode viver de

suasnormas sejam tomadas da empina ingênua do cotidiano e da tradi-

outra forma? Ao responder a essa questão, começará a ficar claro que

ção, mas, antes, da verdade objetiva" (ibid.). Toda a vida cultural tradi-

a crise das ciências europeias não é só um problema te(5rico, mas uma

cional é, assim,paulatinamente transformada,à medida que a postura crítica constrói contextos práticos guiados por normas racionais e não meramente pela autoridade tradicional. E assim que se vai formando o que Husserl chama de /zuzna7zídade europeia, quer dizer, não simplesmente um conjunto de pessoascasualmente nascidasem territórios europeus, e sim uma unidade espiritual alimentada por todos aquelesque aceitam o ideal de uma vida guiada por normas racionais, independentemente de sua origem étnica. A europeização não é, volto a insistir, de

nenhum modo uma transmissão(forçada ou não) de costumese crenças tradicionais vigentes nos territórios da Europa, mas a aceitação da 300

ameaçaao próprio modo de ser da Europa. 38. Talvez Husserl evitasse alguns mal-entendidos que levam a caracterizar sua posição, nesse ponto, como eurocentrista se, em vez de "Europa espiritual", se referisse de modo mais explícito a uma "cultura racional", e se em vez de "europeização", apontasse

simplesmente para uma "racionalização" dos modos de vida tradicionais. No entanto, é

precisolevar em consideraçãoo contexto histórico-social da conferência de 1935. Husser]se dirigia a seuscontemporâneos europeus (no sentido tradicional) tentando justa mentelegitimar um sentido de "europeu" não diluível nos nacionalismos então cada vez mais aflorados. O autor pretendia despertar os europeus "nativos" para um sentido espiritual-racional de Europa, para uma tarefa crítica em torno da qual poderiam se unir

paraalém dasdivisõesnacionais, políticas e religiosasda Europa geográfica 39. Para reflexões mais detalhadas acerca dessetema, cf. Hart, 1992 301

A cientificidade

As ciências como produção histórica no mundo da vida

na fenomenologia de Husserl

As condições mofívacíonaís da oríenfação teóHca

çãoa essefato ocorrido, supõe-seque certas restriçõesintencionais de

Husserlenfatiza que a novidade da orientação teórica e o seupotencial transformador da humanidade só são bem compreendidoseD contrastecom o modo de vida tradicional que justamente passarásob

transmissão e sedimentação

o crivo da crítica universal40. Deve-se então reconhecer "uma primeira

quere busca narrar4z

historicidade" (K, 326) dasculturas humanas, ainda anterior à instou. ração da orientação teórica. E importante notar que não se pretende fornecer uma descriçãoempírica das estruturasculturais prático-míti-

taçãoteórica, é preciso recorrer a alguns textos publicados em Kll, em

cas. Husserl mantém-se fiel aos limites da história intencional: nãose

de sentidos tenham se cumprido.

São as-

simascondições intencionais da formação histórica da orientação teórica je da imposição de um modo de vida particular a seuspraticantes)

Parareconstruir os condicionantes histórico-intencionais da orienparticular, A vida buma7za rz /zísforícídade e Díáererztesformas de historicidade, ambos de 1934, cujas teses ainda se fazem presentes na con-

trata de focar-se nos acontecimentos contingentes, e sim nas estruturas

ferência de 1935. Nesses dois textos, propõem-se algumas etapas de or-

intencionais de produção e modificação históricas do sentido investigado. Na conferência de 1935 há uma complexificação dessaprescri-

denaçãosocial como momentos intencionais que devem ser cumpridosparaque o surgimento da orientação teórica se torne possível.Isso

ção geral. Toma-se ali um evento empírico consolidado (no caso, a ir-

querdizer que a orientação teórica não é um evento aleatório, mas um acontecimento que supõe realizadas certas relações motivacionais en-

rupção da orientação teórica na Grécia Antiga) e busca-se pelas condições mofívacíonaís que o tornaram possível. Há, então, apelo a relações

tre as pessoas. Vamos acompanhar

motivacionais enquanto restrições estruturantes de eventos factuais O

Uma primeira etapa de ordenação social concebível refere-se aos pequenosagrupamentos ou povos, ainda com unidade familiar. Nesses povos,vigorariam relações hierárquicas bem estabelecidas,com base

surgimento da orientação teórica na Grécia não será,desseponto de vista, esclarecido por meio da enumeração de fatos pontuais. Almeja-se

de perto esse tópico

passagemà orientação teórica, sem a pretensão de explicar asparticula-

nasquais os potenciais conflitos acerca da compreensão dos fatos e das prescriçõespara a ação seriam resolvidos. No entanto, nesse estágio ini-

ridades empa'ocas do caso grego. Essas estruturas operariam

como uma

cial de sociabilidade, poucos problemas com relação às divergências

espécie de a priori írztezzciona/-/zístóríco,isto é, restrições que delimitam

interpretativas surgiriam, uma vez que os indivíduos aí se formariam de

a possibilidadede instauraçãofactual de algo como a orientaçãoteó-

modo bastante homogêneo, à luz de opções culturais restritas (Cf. Kll,

formular quais seriam as estruturas intencionais que condicionam a

rica'i. Husserl não buscara narrar fatos comprovados ou a se comprovar relativos à história empírica grega, e sim aclarar laços motivacio-

3-7).Do crescimento dessespovos e da complexificação das institui-

histórico. Que essaconfiguração tenha se realizado na Grécia Antiga

çõesregentes da vida social, molda-se o que Husserl chama de nação: gruposhumanos bem maiores, mas que partilham de um sistema relati\amente coeso de valores e crenças míticos, que atribuem identidade

e não em algum

àsformações culturais produzidas em seu interior (Cf. Kl1, 44-5). Já nas

nais que delimitam a configuração da orientação teórica enquanto fato outro lugar é uma facticidade

que escapa ao esquema

de análise das condições motivacionais a príod. Em todo caso, em rela-

relaçõesintranacionais os indivíduos se confrontam com relatividades advindosdasfunções sociais, das condições económicas, de alguns cos-

40. "Em sua novidade, a orientação teórica refere-seretrospectivamentea uma

tivos com relação ao sentido dos fatos ou da correção das ações podem

orientação precedente, que antes era a norma" (K, 326) 41 . Segundo Husserl, "em uma das orientações naturais historicamente

factuais da

humanidade devem surgir, a partir da situaçãointerna e externa que em um determinado momento do tempo se tornou concreta, motivos que, de seu interior, levem primeiro homens isolados e depois grupos humanos a uma conversão" (K, 327). 302

tumesetc. Diante dessascircunstâncias,diferentesconflitos interpreta-

42. Parauma discussãomais detalhada sobreos laços histórico-intencionais como estruturascondicionantes a priori do sentido dos fatos, cf. Pradelle, 2003 303

A cieljtificidade na fenomenologiade Husser]

surgir. Husser] supõe, contudo, que essasrelatividades

veia por referência às normas valorativasúltimas das para a vida nacional. As das e de recomendação

É a partia desseponto, ou seja,é com basenessaestrutura intencional de soda ização (a historicidade política) que se instaura o impulso para

de

padrões de crença vigentes para a

Uma nova etapa do desenvolvimento quando se estabelecem re/anões entre tadora de um sistema etapa de "historicidade

As ciências Gamo produção histórica no mundo da vida

política'

novo de desafio, derivado da convivência pacífica: impõe-se um tipo especial de em última instância para a relatividade sustentadoras da normalidade nacional. diferentes nações têm costumes muito diversos.

que vigoram sob critérios variados, crenças míticas incompatíveis e ao se comunicarem, irrompem dissensosreferentesà interpretação interpretação da ex. por meio do apelo penência que não são solucionáveis por meio do apelo aos aos valores valores funcomo ocorria com dentes de cada ordenação social, como ocorria com os conflitos intra. nacionais, e isso porque tais dissensos podem podem se se referir referir a esses próprios

valoresfundantes.

o surgimento de uma nova orientação do pensar e do agir, que estabelecer a validade do conhecimento e dos valores que enfor-

main as anõespara além das visõesde mundo constituídas como relaticulürais (Cf. Kl1, 12 et seq.; 41 et seq.). Trata-se justamente da orientaçãofeóHca enquanto busca daquilo que é íne/atívo, da verdade vídades

condicionada por idiossincrasias culturais e que se atesta de modo evidente para aqueles que se puserem a seguir a sua formulação metó

dica.Não é o caso aqui meramente do enriquecimento de certa visão

demundotradicional, e sim do rompimento com o modo tradicional de justificação de crenças (por mitos e valores circunscritos à unidade

nacional)e de aberturapara um novo modo de organizaçãoda existência,a saber,aquele guiado pelas normas racionais irrelativas. Daí Husserlinsistir, conforme vimos há pouco, em que aspessoasformadas pelo modo de vida fundado na orientação teórica não poderiam viver deoutra forma. Diante de inúmeros conflitos interpretativos instaurados,uma vez atestada a relatividade insuperável das visõesde mundo, não resta senão a busca por elaborar teses verdadeiras independentemente dos valores nacionais, teses que se atestariam como válidas in-

Os membros de uma nação se remetem ao seu próprio sistemade

ternacionalmente. Conforme a conferência de 1935, dado o contraste

valores e crenças para resolver os conflitos de interpretação de fatos e

entre asculturas, "sobrevém a distinção entre representação de mundo e mundo efetivo, e surge a nova pergunta pela verdade; não então a verdade do cotidiano, veiculada à tradição, mas antes uma verdade idêntica, válida para todos os que não estão ofuscados pela tradição, uma

ações.Isso, porém, não basta para convencer membros de outra na. ção, que, por sua vez, apelam à validade do seu próprio sistema de valores tradicionais. Assim, entre outros resultados possíveis, possíveis o confafo ín :emocional fomenta uma tomada de consciênciaacerca da relatividade mesmodas Honras tradíci07tais tomadas como absolutas no interior da

vida nacíorza/.Não é mais possíveljustificar as interpretaçõestradicionais do que compõe a realidade e de como se deve agir apenas por regerênciaà visão de mundo nacional, já gue as relações internacionais revelam que cada visão de mundo não é senão uma formação espiritual entre tantas outras possíveis.As crenças tradicionais perdem o seu valor outrora absoluto ao se marcarem como fruto de

ma configuração cuitural particular, o que fomenta uma situaçãoexistencial de confusão e até mesmo angústia. 304

verdadeem si" (K, 332). Assim, o surgimento da orientação científica estáligado à tarefa de desvelamento irrelativo do mundo, a qual aponta para a superação das visões de mundo das tradições mítico-práticas

A humanidade guiada por nomtas racionais Como se vê, a configuração da orientação teórica supõe um desvencilhamento das visões de mundo tradicionais e a paulatina sedimentação do conhecimento e da ação sustentados por princípios racio-

nais universais. Daí Husserl sugerir uma "conversão" para a orientação 305

A cientificídade na fenomenologiade Husserl

As ciências como produção histórica no mundo da vida

teórica e a cultura transnacional por ela fomentada: "a filosofia vê nn mundo o universodaquilo que é, e o mundo torna-se mundo Objetivo

a humanidade" (K, 336). A filosofia e as ciêllcias particulares derivadas

diante dasrepresentações de mundo, que mudam do ponto de vista dasnaçõese das subjetividadesindividuais" (K, 340). Essabuscapelo

desenvolvimento da cultura europeia (no sentido de cultura racional)

irrelativo leva à elaboração de um modo de vida que não se guia mais

osaspectosda cultura europeia tradicional e que obviamente seria in-

pela autoridade tradicional, sempre ligada a uma visão de mundo en.

gênuo identificar os dois sentidos de "europeu" em )ogo aqui. No entanto, ao explicitar a formação do ideal de filosofia na Grécia Antiga, o

tre outras, mas por princípios racionais. Por sua vez, essemodo de Vida

deseu ideal de conhecimento onienglobante constituem o centro de Husserl tem consciência de que essacultura racional não esgota todos

crítico implica uma transformaçãoda própria humanidade, na medida em que as configuraçõessociaiscada vez mais passema se pautar por

autor julga ter revelado talvez o núcleo da cultura europeia tradicional.

critérios racionais. Abre-se uma tarefa infinita, a compreensão racional onienglobante do mundo e a transformação da praxis pela postura crí. rica mencionada acima, que passaos hábitos sociais pelo crivo racional.

siçãofica clara: "a filosofia universal com todas as ciências particulares constitui certamente uma aparição parcelar da cultura europeia. Mas jaz no sentido de toda a minha exposição que essaparte é, por assim dizer, o cérebro operante, de cHIa funcionamento normal depende a

Essa transformação

se propaga pelas sucessivas gerações que se deixam

Háuma passagemimportante na conferência de 1935em que essapo-

p'utar pelo ideal de validade objetivo. Assim, "a nova humanidade" IK, 332), conduzida por normas racionais, configura-se por meio de tarefas

autêntica e saudávelespiritualidade europeia" (K, 338). Haveria, en-

que são desconhecidas por aquelas nações isoladas em sua relatividade

cleo racíorza/ que não está ligado a relatividades culturais das nações

mítico-prática. Nessasnações,o conhecimento serveàs finalidadesde manutenção da felicidade nos limites da ordem social tradicional, considerada ingenuamente como válida de modo absoluto. Já a humanidade racional contribui para "edificar conhecimento teórico sobreconhecimento teórico ín írz/ínítum" (ibid.), de maneira a se guiar não somente pela obtenção de felicidade na vida finita conforme os valores

particulares,mas que justamente impulsiona a humanidade europeia

tradicionais vigentes, mas principalmente pela meta de contribuir para a realização interminável da ciência onienglobante do ser.

fere às ciências euros)elasno título de K. Não se trata de uma adjetivaçãorestritiva, que marca particularidades étnicas que distinguiriam entre diferentes tipos de ciências possíveis(nessesentido, asciências europeiassediferenciariam das ciências japonesasou turcas, por exemplo).

E assimque a filosofia se desenvolvecomo um movimento transnacional,

adregando

mais e mais pessoas que assumem

a tarefa

de passar

pe[o crivo crífíco o seu modo de vida tradicional, contribuindo,

dessa

forma, para a reformulação racional das instituições sociais e, em geral, para a divulgação de uma cultura racional, quer dizer, de hábitos cen-

tradosnão em costumesarbitrários, masem princípios e normaspassí-

tão,como centro legislador do desenrolar da cultura europeia, um nú-

paraa universalidade, de maneira que até mesmo outros povos distan-

testerritorialmente da Europa possamse identificar com essemovimentointerminável de construção de um conhecimento racional e se reconhecer como parte dessahumanidade europeia

Agora é possívelentender mais claramente por que Husserl se re-

Com a expressão "ciências europeias", Husserl tem em vista uma adie tivação explicativa por meio da qual se desvela uma característica cons-

titutiva da própria noção de ciência. A ideia de ciência enquanto conhecimento teórico justificado e o seu desenrolar histórico enquanto

veis de atestação evidente. Essa busca pela validade justificada racionalmente foi, acredita Husserl, fundamental para a formação de uma humanidade particular na história, a saber, a europeia. Cabe aqui enfa-

produção paulatina de um saber onienglobante remetem à Europa en

tizar o papel central da filosofia: "em uma humanidade europeia, constantemente a filosofia tem de exercer a sua função arcântica para toda

veram conhecimentos parciais de fenómenos mundanos. Porém, como já vimos, julga Husserl que essesconhecimentos estavam limitados por

306

307

quanto berço da orientação teórica e da postura crítica universal dela derivada. Outras nações em diferentes momentos históricos desenvol-

A cientificidade na fenomenologiade Husserl

interessespráticos, ainda que muito gerais. Somente na Grécia Antiga e na Europa que dela se formou, investigações puramente teóricas te. riam sido sistematizadas de maneira a constituir a própria ideia de ciên.

As ciências como produção histórica no mundo da vida

Daí Husserl afirmar que, diante da crise, uma alternativa é a "deca-

dênciada Europa na alienação diante do seu próprio sentido racional

pois a formação espiritual que alme)a o conhecimento universal e ins.

devida, a quedana hostilidade espiritual e barbárie" (K, 347). Ceder à crise seria a autodestruição da Europa enquanto cultura guiada nor normas racionais. Por sorte, essenão é um destino inescapável,

taura a noção de validade irrelativa teria vindo à luz inicialmente na

e Husserl pretende, com toda essa longa investigação sobre a gênese

cultura europeia, cultura que é modificada por essaformação à medida que a tarefa de crítica universal aos modos de vida tradicionais é prati-

dosentido de cientificidade, tornar a crise "compreensível a partir do

cia em sentido forte. As ciências são então genefícamenteeuropeias

cada em círculos comunitários cada vez mais amplos" Vê-se, assim, que Husserl conecta intimamente a humanidade europeia e o desenrolar histórico da cientificidade. Torna-seentãovisível o alcance da problemática da crise das ciências. Essaúltima se revela principalmente

como

perda da confiança

no ideal de Ganhe.

cimento englobante e na praxis racional daí derivada. A humanidade europeia estáem crise porque deixa de se reconhecer nesseideal ou em outras palavras,porque esseideal não é mais apreendido em todo

o seu poder unificador da cultura e transformadordasgeraçõesque nele se formam. Conforme os parágrafosiniciais de K, as ciênciasnão mais dizem respeito à totalidade da vida humana, não mais oferecem

normas racionais capazesde enformar a existência prática, que de-

panode fundo da teleologia da história europeia, desvelável filosoficamente" (ibid.). Uma vez compreendido que a crise da cultura europeia

nãoé uma crise dassuasinstituições particulares, mas uma crise referenteà condução do devir histórico da humanidade pelas normas racionais de cientificidade,

esboça-se outra alternativa, a saber, "o renas-

cimento da Europa a partir do espírito da filosofia" (K, 348), ou seja, a

retomadaevidente da ideia-guia de Europa, uma vez feita a crítica de sua deriva histórica

B)A crise das ciências e o papel fundante do mundo da vida A génesehístódco-ínfencíonaZ da case

veria ser conduzida pela crítica universal.Há certamente muito entusiasmo com as tecnologias inseridas constantemente no cotidiano; masessesucessoprático não significa um reforço do ideal de com-

Acredito ter reconstruído os elementos principais da noção de crise empregadapor Husserl. Para circunscrever o sentido de "crise dasciênciaseuropeias", o filósofo supõe uma elaborada Besinnung histórico-in-

preensão racional do mundo e de crítica radical dos modos práticos de

tencionalpor meio da qual se revela a teleologia imanente ao vir-a-ser

vida. Ora, a análise histórico-intencional pretende ter desveladoquea ideia de cientificidade onienglobante estáno coração da cultura europeia enquanto cultura racional. Se essaideia estáem crise, à medida que a ciência deixa de legislar sobre as questõesprementes do existir humano e deixa de receber o apoio efusivo dasnovas gerações,então é a própria humanidade europeia que perde seu centro e arrisca-sea dissolvero sentido teleológico do seu devir histórico enquanto objeti-

da humanidade europeia. Cabe agora investigar por que tal teleologia

vação interminável da razão.

fraquejae deixa de receber o apoio dos "bons europeus". Cabe agora perguntarqual a deriva histórica que desfigurou a realização concreta dasciências de modo que, na contemporaneidade, como se pretende ter constatado, elas nada tenham a dizer a respeito das questões últimas

da existência humana. Essetema ainda faz parte da introdução à feno-

menologiaplanejada por Husserl em K, e o método para sua abordagem ainda será o mesmo (a Besííznu7zg hist(5rico-intencional). Como vimos, por meio desse método não se trata de investigar fatos efetiva-

43. Parauma aná]isebastantedetalhada do papel da Europa nasreflexõeshusserlianas, cf. Mietbnen, 2013

mente ocorridos, mas sim conexões motivacionais que, por um lado,

alimentam o interesse dos filósofos atuais para realizar suastarefas e, 308

309

A cientificidade na fenomenologiade Husserl

As ciências como produção histórica no mundo da vida ..r

por outro, estabelecem condições de compreensão de certos eventos históricos empíricos. Dessa maneira, pode-se dizer que, em seusanos finais, Husse.l Huss..l ..

mportância entre os problemas como estabelecida ãgorosa. Nesse texto, conforme

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s'--- exortadora --- UH-+-''-'-' diante -'x''xxt.x- dos uvo problemas J:'p'L\"/U.lt;llld.S 1110S0-

explorados

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4

contemporaneidadesupõe uma situação, por assim dizer, de racio-

nalidade"saudável",que Husserl localiza na Grécia Antiga, quando daprópria formação da ideia de cientificidade onienglobante. No en tanto, não se trata aqui de propor uma espécie de "época de ouro" da

filosofia,em que os filósofos tinham plena clareza da amplitude de sua tarefae dos melhores métodos para cumpri-la. A crítica radical das rela-

tividadesculturais pela orientação teórica impõe a tarefa de conhecer aquilo que é irra/afívo, que existe em sí mesmo,e não como mero efeito

história passa

de escolhas subjetivas arbitrárias. Conforme narra Husserl, "a filosofia

apêndice

vê no mundo o universodaquilo que é, e o mundo torna-semundo ob-

qualquer dúvida de que temos aprofundar em considerações históricas, se devemos poder nos compreender como filósofos e compreender isso que em nós surgirá como

filosofia. Já não basta,por assim dizer, captar captar problemas de trabalho ainda no impulso ingênuo da vida e da ação, ainda que vindos das profundezas existenciais da personalidade" (K, 510). O trabalho filosófico é. dessemodo, reconhecido não como um CçenrPn esforço isolado, mas como re. geracional em que os temas e prosultante da inserção em uma cadeia geracional ))

blemas amadurecem, tendo em vista vista uma uma teleologia teleologia racional. A dedi. cação satisfatória às tarefas filosóficas anuais exige exige, assim, uma perspec-

hierarquizam em grausde tiva histórica a partir da qual tais tarefasse hierarquizam urgência. Diante do estadoatual da crise dasciênciaseuropeias,o entendimento da deriva histórica do racionalismo torna-secentral, já que estáem jogo aqui a continuidade do fazer filosófico não como merasatisfação de proletos pessoaisidiossincráticos, e sim como paulatina se-

dimentação de uma cultura racional. E esseentendimento seráobtido por meio de uma Besínnung realizada de modo "despreocupado com a

historicidade científica" (K, 512), quer dizer, por uma investigaçãoque vai buscar as condições motivacionais constitutivas de certa situação histórica, sem se limitar a dados historiográficos objetivos. reconstrl l ir a análise husserliana das conVamos então começar a reconstruir

jetivo diante das representações do mundo, que mudam conforme os pontos de vista das nações e das subjetividades individuais" (K, 340). A

buscapor um conhecimento irrelativo, de validade universal, torna-se buscapela objetividade, busca que se inicia por aquilo que mais fácil mente se atesta às pessoas:as coisas concretas do mundo espaçotempo-

ral. Independentemente de quaisquer predicados culturais que tais coisasrecebam, elas são atestáveis perceptivelmente

por todas as pessoas

deconstituição dita normal. Daí, afirma Husserl, começa a filosofia como cosmologia; como é compreensível,ela está,no seu interesse teórico, dirigida primeiro para a natureza corpóreo (. . .). Pessoase animais não são simplesmente corpos, mas na direção do olhar mundano, eles aparecem como algo que existe cor-

poralmente e, por conseguinte, aparecemcomo realidades inseridas na espaço-temporalidadeuniversal(íd.).

É, assim, a materialidade mundana que oferece de modo mais sim-

ples dadosirrelativos, de forma que, já na Antiguidade, a tareia do conhecimento onienglobante foi principalmente centrada em análises ligadas aos fenómenos materiais-espaçotemporais. Daí também que uma das primeiras ciências a atingir um alto grau de fundação rácio-

nal tenha sido a geometria, que trata das relaçõesinerentes a formas espaciais abstratas. Descarte, no próprio desenvolvimento da cientifi

dições histórico-intencionais que tornam compreensível a deformação histórica do racionalismo científico em un] positivismo limitado,

cidade antiga, vigora, conforme Husserl destaca em um texto de 1936

conforme já anunciadono começode K. De início, é importante salientar o seguinte: o diagnóstico de crise das ciências europeias na

ção da objetividade a ser expressapelo conhecimento ao substrato ma-

310

(publicado em Kll), certo tipo de objetívísmo, quer dizer, de associa-

terial dos fenómenos. Segundo Husserl, essa associaçãofavorece a 3 11

A cientificidade

na fenomenologia de Husserl

desconsideração de outros aspectos constituintes da experiência que não podem ser plenamente compreendidos à luz dessaredução da ob.

As ciências como produção histórica no mundo da vida

racional de quaisquer relações aí estabelecidas) teria sido claramente concebida's

jetividade racionalmente válida à atestação dos aspectos materiais irre.

O que Husserlpretende tornar visível por meio dessainfinitização

lativos. E issojá ocorria na filosofia antiga: "a ingenuidade dos filóso.

moderna da matemática é a inclusão do domínio da natureza concreta

fos gregos, seu objetivismo se devem a uma idealização da ideia de um

entre os temas a serem compreendidos pela racionalidade matemática.

mundo em si, a qual determina todo o seu agir fundente metódico, en-

Serápor meio do desenvolvimentode uma ciência matemática da na-

quanto eles, sobre o subjetivo dessemétodo, desseagir subjetivamente fundente(...), não fazem nenhuma reflexão"(Kl1, 161). O ideal de co.

tureza que ocorre, na Modernidade, uma transformação redutora do

nhecimento onienglobante avançavana Grécia Antiga principalmente

sea matemática como aplicável a toda forma de ser concebível, inclu-

em relação às determinações materiais do mundo (por abordagensempíricas ou mesmo eidéticas, como no caso da geometria)H. Havia, as-

siveàquelas formas que compõem o mundo da experiência concreta. As ciências modernas da natureza logo assumiram os métodos mate-

sim, certas limitações na execuçãoda tarefa da filosofia, de maneira que, mesmo na Antiguidade, o ideal de conhecimento universal não

máticospara explicar os fenómenos naturais e, em seguida,tentou-se o desenvolvimentode uma psicologia experimental que explicasseos

havia sido plenamente explorado. E será justamente uma exacerbação

fenómenos da vida psíquica e humana segundo o modelo do conheci-

dessaslimitações na Modernidade, acumulando sobre o te/osfilosófico

mento físico. Assim, a paulatina matematização das ciências modernas

várias obscuridades, que comentará a manifestação concreta da crise das ciências como redução positivista. Essainterpretação restritiva moderna do sentido de universalidade do conhecimento tem início curiosamente com uma exParzsãodo domínio de aplicação da matemática e da geometria, ciências herdadas do mundo antigo. Tal como narra Husserl no parágrafo 8 de K, asmatemáticas antigas já acumulavam resultados ideais sistemáticos, ordena-

parece oferecer um novo caminho para esgotar o conhecimento da to-

dos axiomática-dedutivamente,

de modo a antever logicamente as pos-

ideal de conhecimento englobante do ser. Na Modernidade, concebe-

talidade daquilo que é'ó. Porém, como insistirá Husserl, a universalidadeproduzida pela aplicação generalizada da matemática é /imitada,

baseada na idem/ízação de certos aspectosda experiência(espaciaise quantitativos,principalmente) e incapaz de dar a devida importância a outros aspectos constituintes dessa experiência (por exemplo, o pa-

pel ativo da subjetividade como produtora do conhecimento). Dessa maneira, a reapropriação moderna do ideal grego de conhecimento

sibilidades contidas em um domínio temático. No entanto, "a geometria euclidiana e a matemática antiga em geral, contudo, só conhecem

onienglobante envolve um desvio notável do sentido de cientificidade

tarefas finitas, um a f)doó #níto fechado" (K, 19), garante-nos o autor.

histórico-intencional, explicitar criticamente esse desvio e suas deletérias consequências, a fim de reavivar o sentido originário da tarefa

Para os teóricos gregos, o domínio das matemáticas não se estendein-

originalmente antevisto.Cabe ao filósofo, por meio da sua Besírznung

definidamente, e somente na Modernidade a ideia de um espaçogeométrico infinito (juntamente com as possibilidades de determinação 44. Em outro texto do mesmo período, A areia c tua/ da /í/osoPa, Husserl admite

que houve reflexõesdos filósofos antigos sobre a subjetividade, mas insuficientes para estabe[ecer uma ciência a priori sobre o subjetivo, ta] como ocorre com as formas espa-

ciais tratadaseideticamente pela geometria, e nem, de maneira geral, capazesde "refutar a pretensãodo adversário jobjetivistal de um conhecimento absoluto do mundo (Husser1, 1989b, 196). 312

45. V. Cérard compreende a especificidade do uso moderno da matemática por meio da ênfasena definibilidade extensional, conceito que permite determinar a totalidade de objetos concebíveis sem deixar possibilidades indeterminadas, em contraste com a ênfasedos antigos na deRinibilidade elementar, segundo a qual meramente se determinam os componentes de conjuntos específicos ao definir se um objeto pertell ce ou não a eles. Nesse último caso, não há a pretensão de esgotar a totalidade dos objetos possíveis.Cf. Cérard, 2008 46. Para uma análise detalhada do papel dessanova concepção de matemática na ordenação das ciências, cf. Casché, 2010 313

A cientificidade

na fenomenologia de Husser]

As ciências como produção histórica no mundo da vida

da filosofia, Obscurecido no doque fruto de uma pesquisahistoriográfica. Importa, ali, acentuar a diHcaçãode sentido na tarefa geral do conhecimento científico ge-

Husserl fará no longo tencionais que levaram à

radapela investigação matemática da natureza. Galileu é reconhecido

comoo principal ator dessamodificação, mas a meta central dasanáA matematjzação da natureza

jisesé capturar o sentido de tal evento histórico e não oferecer um esHdo detido da vida e da obra de Galileu, as quais são expostas de modo

assumidamenteesquemático Vamos acompanhar mais de perto as etapas de modificação do sen-

tido da investigação científica na Modernidade. De início, Husserl expjicita qual a tradição do pensamentoem que Galileu, enquanto fun-

dador da física matemática, se insere. Trata-se de trazer à luz, nesse

ponto,quais as formações teóricas e práticas herdadaspor Galileu e a partir das quais uma compreensão matemática do mundo concreto seráproposta. Conforme o início do parágrafo 9b, Galileu tinha à sua

disposiçãocertos ramos da matemática e principalmente da geometria já bem desenvolvidos desde os antigos. Além disso, diferentes contextos

científicos e extracientíficos de aplicação do instrumental matemáticogeométrico (astronomia, engenharia, agrimensura etc.) também já estavam substancialmente avançados em sua época. E a partir dessa he-

rança cultural que Galileu constrói a proposta de estudar a totalidade da natureza enquanto multiplicidade

matemática. Esses são os moti-

vosconscientes sobre os quais Galileu opera. No entanto, crê Husserl, Galileu não se interessou em questionar profundamente o sentido epistêmico dessaherança teórica, o que seria fundamental para estabelecer

com clareza a justificação e os limites do conhecimento matemático.

Galileu "estavamuito longe de pensar que para a geometria (.. .) pudesseser re]evantee atéde uma importância fundamental tomar como problema a evidência geométrica, o 'como' da sua origem" (K, S 9b, 26). Não há nada a estranhar aqui, na verdade. O cie7ztístaGalileu se move na esfera da orientação natural do pensar, a qual supõe a objeti-

vidadedo mundo paraa qual asdiferentesoperaçõessubjetivassedirigem. Nessaorientação, considera-seque o instrumental teórico, uma vez evitados os erros de sua aplicação, dirige-se à verdadeira natureza semgrandes complicações. Essacrença ingênua, afirma Husserl no início do parágrafo 9, é uma motivação subjacente à concepção científica 314 3 15

A cientificidade

na fenomenologia de Husserl

galílaica, a qual, então, sem problematizar criticamente as condições de possibilidade do conhecimento, serve-seda geometria como instou. mento de exploração do mundo".

As ciências como produção histórica no mundo da vida

exatas,purificados de todas as circunstâncias relativizantes empíricas Játratei dela rapidamente no capítulo anterior. Agora, teremos chance de disseca-la com vagar. Para Husserl, "as coisas no mundo circundante

Por sua vez, para o filósofo que busca exibir os deslocamentos histó. ricos da noção de cientificidade, há um interesse "essencial" em realizar

intuível estão,em geral, e segundo todas as suaspropriedades, na osci-

uma "conversão do olhar" e tematizar "a 'origem' do conhecimento"(K, S 9b, 27) propiciado pela geometria. SÓ assim será possível compreen-

rica, as coisas carecem de exatidão, manifestando-se segundo características identificáveis em diferentes graus de intensidade. Isso quer di-

der o alcance da ciência natural matemática para além da interpretação

zer que as formas exatasda geometria não são díretame7zte infuúeis,

ingênua que o próprio Galileu Ihe atribui. Dessamaneira, Husserlpropõe uma czná/íse /zístódco-íízterzcíona/ nos parágrafos9a-b de K, acerca do sentido geral da atividade geométrica.Nessaanálise, é imprescindí-

massupõem, para sua validação, uma elaboração metódica sobre a ex-

vel abandonar nossa familiaridade

pio, reconhecem-senascoisasintuídas no mundo circundante diferen-

contemporânea

com os resultados da

lação do que é meramente típico" (K, S9a, 22). Na experiência pré-teó-

periência mundana, que, por si só, é inexata. E justamente aqui que entra em cena a "idealização", composta das seguintes etapas: a princí-

geometria, em relação aosquais normalmente não se vê descontinui-

tes graus em relação a vários aspectos ligados principalmente à forma

dade com os objetos da experiência concreta, e acompanhar a própria elaboraçãodo conhecimento geométrico como aplicado ao mundo«. A principal operação que constitui o domínio temático da geometria é a ídea/ízação, quer dizer, a construção de formas com determinações

espacial (as coisas aparecem como mais ou menos curvas, regas etc.).

47. Em uma palavra, Galileu assumiu a herança teórica e prática da geometria como uma "obviedade" (Se/bshersfdnd/íc/zleíf).Vale a pena detalhar um pouco mais essanoção, bastante empregadana análise da matematizaçãoda natureza. O que aparece como óbvio é algo habitual, algo em relaçãoao qual seestáacostumado.Em ousas palavras, o que é óbvio não precisa ser questionado, e é aceito em sua suposta evidência, sem que se retomem as camadas formadoras do sentido sedimentado. Conforme bem

comenta J. Dodd sobreessetema, "a própria familiaridade que abre para nós o mundo ao mesmo tempo introduz o perigo de uma eskanha obscuridade. E estranha porque não é uma obscuridade oposta à claridade, que o entendimento, como um poder, poderia tentar penetrar; antes,trata-sede uma obscuridade sistêmicano interior do desenrolar histórico da claridade como tal" (Dodd, 2004, 71). As obviedadesa que Husserl se refere envolvem um sentido manipulável sem grandes dificuldades, uma compreen-

são disponível acerca de um tema que é então aceito sem proa/emafizaçõescrfHcas Daí que a suposta evidência da obviedade implique uma obscuridade a ser superada: o sentido disponível dispensa a reativação da sua produção, do seu alcance e mesmo dos seusprincipais componentes. Enquanto obviedade, um tema se perpetua segundo uma

interpretação tomada de modo ingênuo como evidente, quando na verdade inclui ca-

Dessemodo, com as experiências intuitivas, "temos já um horizonte abertode aperfeiçoamentoconcebível, a conduzir sempremais além IK, 23). As coisassão ordenáveis em graus de concretização de certo aspecto espacial, e essasérie interminável de aperfeiçoamento possível sugere uma extrapolação conceitual (quer dizer, para além daquilo que

se doa intuitivamente), segundo a qual o aspecto em questão se apre-

senta em sua perfeição, quer dizer, como uma Éomzcz-/imite ideal, que porta em si mesmaa exatidão49.Determinam-se, assim,formas puras, asquais por de#níção contêm atributos exatos.A exploração conceitual dessasformas, das suas relações e transformações configura o trabalho

do geâmetra, trabalho que pode ser sumarizado como uma lida com

objetosconceituaislivres de toda relatividade empírica. Conforme afirma Husserl, "nessa prática matemática alcançámos aquilo que nos é vedado na prática empírica: 'exatidão', porque, para as figuras ideias

abre-sea possibilidade de determina-las em identidade absoluta, de conhecê-lasde modo absolutamente idêntico e metodicamente unívoco" (K, 24). Dessaforma, em princípio, há uma notável descontínuí-

madas de decisões teóricas que devem ser justamente reativadas e criticadas para que

seobtenha uma compreensãoplena do sentido ali veiculado. Essareativaçãocrítica é, como vimos, a principal tareia da Besfnnurzg proposta por Husserl 48. Para um comentário deta]hado acerca das aná]ises de Husser] sobre a geometria, cf. Silva, 2012. 316

49. É verdadeque, ao equiparar grausde manifestaçãode certo aspectoempírico Íá se supõe o conceito idealizado como medida dessa escala; caberá ao geâmetra forma

lar explicitamente essamedida 317

A cientificidade na fenomenologiade Husser]

As ciências como produção histórica no mundo da vida.

#'' /

aqui o procedimento chamado por Husserl de subsfmção (Cf. K, S 9d).

Nele, não se trata de tomar um padrão a f)ríoH exato como guia para

a mensuraçãode fenómenos concebidos em si mesmos como inexatos.A substTUÇão implica uma idealização da própria experiência empírica inexata, e isso por meio de uma atribuição de características puras

Ídeczís aos ob/elosque lze/czse czpresenfamsi. Os fenómenos empíricos substruídossão então passíveisde decodificação exala, e isso porque passama ser considerados como portadores de características exatas.O

exemploprivilegiado por Husserl é o da extensãoempírica, que, uma vez substruída, é analisável como infinitamente

divisível em partes ho-

trocossedá de modo mais visível como me7zsuraçâo. As figuras geométri. caspuras e os teoremas que delas se extraem servem como guia a pHoH

mogêneas,tornando-se tema do cálculo infinitesimal. Atribui-se, desse modo, uma característica excita(a divisibilidade homogênea) a um elemento empírico (a extensão), o qual, desde então, contaria com uma

p'ra a determinação dos aspectos (peúectíveis em termos de exatidão)

Ílz/}aestrufura idealizada

das coisas inexatas da experiência do mundo circundante. Obtêm-se/

Essa noção de infraestrutura permite sublinhar um aspecto marcante do processo de substrução. Conforme já notado acima, a experiência do mundo circundante só nos oferece coisascom atributos ine-

assim, parâmetros intersubjetivamente válidos para a aplicação de me.

dições em relação às características aproximadas das coisas sensíveis. Por exemplo, as dimensões dos terrenos, as distâncias a se percorrer, a determinação da posição dos objetos, tudo isso passaa ser tratado como

mensurável com precisão. l)essa maneira, as técnicas de mensuração,

ao incorporarem resultados exatosda geometria, oferecem meios de determinação universalmente válidos dos dados empíricos. E verdade

xatos. Para considera-las em si mesmas portadoras de características exatas,deve-seestabelecerque, embora essasúltimas não se doem à intuição, formam uma espécie de camada constituinte basilar dos fenómenos inexatos. No parágrafo 34d de K, Husserl apresenta as caracte-

que as necessidades práticas de mensuração antecedem a maturação de uma ciência das puras formas espaciais (Cf. K, 24-25). No entantc..

rísticassubstruídascomo "algo por princípio não perceptível, por princípio não experienciáve]no seu ser si mesmo" (K, 130). A substrução permite então idealizar os fenómenos concretos ao reconhecer neles

uma vez desenvolvida tal ciência geométrica, ocorre um enorme refinamento das técnicas gerais de mensuração, cujas unidades de medida

uma base ou infraestrutura, não intuível diretamente, de características

passam a ser estabelecidas com base nas formas idealizadasso.

passíveisde descrição excita. Ainda em relação à substrução, ela é um procedimento

progressivo

Há pelo menos mais uma "técnica" que aproxima os resultados

de idealização da experiência sensível. No texto A orzto/ogía do mundo

exatos geométricos da experiência sensível, que não é simplesmente

da vida e czsciências concretczs,publicado em Kll, Husserl comenta

uma ap/ícação dos dados de um domínio para outro. Tenho em vista 50. R. Sokolowski ajuda a enteTlder esseponto: "quando estabelecemos uma forma

exala, quando partimos: poTexemplo, do tampo de uma mesapara uma superfície geo-

métrica.(.-..): a forma ideal não ;e torna uma unidade de medida; ela ='torna uma forma ideal de algo medido. Partedo sentido desseideal é que unidades ideais de medida também são estabelecidas em ftJnção da forma a ser medida. isto é, nós não temos 318

somente a projeção ideal em direção à superhcie, mastambém a projeção ideal de unidades que medem a superfície e seus lados" (Sokolowski, 1979, 102)

5 1. Por meio dessemétodo, "é idealizada também a empiricidade impeúeita, na qual a nossa experiência anual progride das coisas conhecidas para as desconhecidas; é,

assim,substruída no curso do apeúeiçoamento iterativo, uma iteração pura e simples da infinidade como ideal" (K, 361, nota) 319

A cienti6lcidade na fenomenologia de Husserl

As ciências como produção histórica no mundo da vida

que a idealização matemática se inicia pelo espaço,passapelo tempo e

aossentidos, não comportam uma matematização direta, como ocorre

abarca as noções de movimento e alteração qualitativas2. Como resul.

com as qualidadesligadas à figura e à extensão.Essasúltimas, já vi-

Ladodessesdiferentes níveis de idealização, cumpre se a "substrução

mos, se ordenam em diferentes graus de perfectibilidade, de modo que

idealizante de um mundo de coisasinfinito, estruturalmente moldado.

é possívelconceberuma forma-limite em que o abibuto em questão

de parte a parte, de modo homogêneo, na forma universal da espaço-

é expressocom exatidão. Em seguida, dada a aplicação dessasformas

temporalidade" (Kl1, 142). Destarte, a substrução se aplica a vários as.

ideais em situações empíricas, é possível determinar aspectos objetivos

pectos da experiência sensível, atribuindo a cada um deles um cara. ter infraestrutural exato. Em linhas gerais, Husserl sustenta que essa

emmeio à relatividade empírica e operar sobreeles com grande capa-

das à forma e à extensão. Porém, há a cossubstrução das qualidades fe.

cidade preditiva. Ora, nada disso parece valer para as qualidades sensíveis;não é possível isola-las abstratamente em séries de aperfeiçoamento, sugerindo um padrão ideal exato que serviria como norma para

nomenais diretamente ligadas aos sentidos corporais (visão, tato etc.)53

ordenar os casos concretos. As qualidades sensíveis não são passíveis de

Isso significa estender a idealização geométrica para a fofa/idade dcziza. furezczconcreta. Propõe-se, assim, algo inédito na história do conheci. mento; a saber, que a natureza, em todos os seus aspectos, é "constou.

idealizaçãoconstrutiva. Não há, por exemplo, o conceito ideal "doce'

vivamente determinável" (K, 31). Não se trata aqui apenas de considerar formas mais abrangentes e refinadas de mensuração, obtendo mais

çasde gradação ligadas diretamente a circunstâncias subjetivas de atestação. Não se pode chegar, nesse caso, a um padrão idealizado que sirva

campos de aplicação para a matemática, mas sim de conceber a pró-

de medida objetivo pura para classificar as experiências concretas. Dessa maneira, segundo Husserl, não há uma matematização das

operação ocorre díretamenfe apenas em relação às propriedades liga-

pria natureza como idealizada matematicamente.

ou "rugoso" que permitisse mensurar os exemplos empíricos de forma objetiva, quer dizer, por meio de conceitos puros. Há somente diferen

Cabe investigar de que modo Galileu leva adiante essaproposta. Como vimos, ele herdou a geometria como ciência de idealidades e já aplicada em contextos empíricos, de modo que, por meio dela, se obtinha "uma objetivação do mundo corpóreo concreto-causal nas esfe-

qualidades sensíveis segundo o método da construção idealizante, pelo

ras limitadas relevantes" (K, S9c, 35). A proposta galilaica é estender a

lidade geral que vincula momentos de um concreto" (K, 34), quer dizer, relações de conjunção constante entre dados sensíveis e aspectos

objetivação guiada por parâmetros exatospara a totalidade de aspectos concretos da natureza. Contudo, a dificuldade é que asqualidades sensíveisou P/eras (gosto, odor, rugosidade, cor etc.), diretamente ligadas 52. "À idealização matemática do espaçoe de suasformas sucedeu a idealização do tempo, que começou primeiramente como aquela dos corpos fixos, em repousoe imutáveis, e compreendia a decomposição e a recomposição idealizante em umas realizações intelectuais IgedanÊ/fcAerl in ín/inítum. Ela se transpôs, correlativamente, às ideias de 'movimento',

'deformação',

'alteração qualitativa"'

(Kl1, 142)

53. "A infinidade extensivae intensiva, que era substruída com a idealização dos fenómenos sensíveis para além de todos os passos da intuição efetiva -- a separabilidade

qual os aspectos ligados à forma ou à extensão dos objetos foram previa-

mente idealizados. O que se pode reconhecer na experiência concreta dessasqualidades, conforme o parágrafo 9c, é "uma espécie de causa-

relativos à figura e à extensão. Ambos "estão regularmente irmanados'

IK, 33). Por exemplo, a experiência ensina que uma barra de ferro ex-

bemamente aquecidatem alteraçõesde cor e forma correlatas.E a partir de uma universalizaçãod priori dessetipo de regularidadeen tre os diferentesatributos das coisasque Galileu obtém a "matemati zação indireta" (K, 32) das qualidades sensíveis. A estratégia aqui é sus-

tentar que "qualquer alteração experienciável de qualidades específi-

casdos corpos intuíveis, imaginável na experiência efetiva e possível,

e a divisibilidade in ín/ínffum, assim como tudo o que pertence ao confirzuum matemá-

depende causalmente de ocorrência no estrato do mundo abstrato de

tico --, significa uma substruçãode infinidades para as qualidades do P/erzum,eo ipso

figuras" (K, 34). Desde então, a mera regularidade factual é transfor-

cossubstruídas" (K, $ 9d, 37)

madaem uma cczuscz/idade ulzíverscz/ d priori, que liga univocamente 320

321

A cientificidade na fenomenologiade Husserl

As ciências como produção histórica no mundo da vida F

as qualidades sensíveis às qualidades da extensão e

mente idealizadas: "tudo o que nas qualidades das esferasdas figuras, pensadasobviamente das" (K, 3 5). As qualidades sensíveis nelas mas são remetidas, graças à suposição de uma mterações entre as qualidades da forma e da extensão

como ficará mais claro adiante, o donaínio redutíveis

a explicações

Como sevê, a física galilaica é sustentada pela ideia de causalidade

IE:U:

se anuncia como real deve ter o seu hdfce

4

llER:l: jl:l;

Hczo caráter hipotético de t / ideia. O fenomenólogo admite que "para

Galileu essaindutividade universal não era certamente entendida como/zípótese"(K, S 9d, 38). Confiante nos resultados da geometria

,plicada aos asp'ctos formais-extensosdos objetos, Galileu teria julsecundárias gado,por meio da distinção.entre qualidades primárias e

exatass4.

e da suposição de sua correlação causal estrita, apenas estender sem mandedificuldade as possibilidades de determinação unívoca fornecidaspelo método matemático. Dessa maneira, para Galileu, "era óbvia uma causa/idade excita ulzíversa/, a qual, naturalmente, não se obtém

porindução a partir da identificação de causalidades particulares, mas queprecede todas as induções de causalidades particulares e as conduz"' (ibid.). Essa universalização das correlações causais, porém, de Segue-se que todos os fatos experimentados em sua riqueza gradativa

no mundo circundante são passíveisde determinação objetiva unívoca desde que se faça corretamente a redução dos P/ena a interações causais

maneiraa permitir a determinação dos fenómenos mundanos por meio da recondução das qualidades sensíveisàs qualidades objetivas, não seria digo írztuítívamenfe bem /undcimentado. De fato, há rega/arídade

entre as qualidades diretamente idealizadas. Abre-se o caminho, dessa maneira, para uma investigação matemática da natureza que pretende explicar todos osfenómenos do mundo natural pela redução de sua ma.

nas interações entre os aspectos fenomenais das coisas e dos eventos,

nifestação subjetiva a relações objetivas causalmente determinadasss.

esseprincípio dweria envolver a indetenninação de relações causais con-

e, com basenessaconstataçãogeral, é legítimo formular um princípio a priori de causalidadena experiência. No entanto, segundo Husserl, cretas,já que não é possívelantecipar d priori que todas as alterações

54. Para uma análise detalhada desse tema, Cf. Drummoíld.

1992

das qualidades sensíveis remetam univocamente a alterações das quali-

dadesdiretamente matematizadassõ.Deve-se reconhecer, diante disso,

que todas as confirmações paulatinas do método da física matemánas passam.a ser consideradas como os atributos constituintes da realidade física do mundo. Além disso,por sua intrínseca exprimibilidade em linguagem exala, essasca-

tica não alteram o caráter hipotético da sua estrutura explicativa geral.

racterísticas podem ser compreendidas por todos aqueles que sabem lidar com o inshu-

mental matemático. Desse modo, os dois sentidosde universalidade contidos na ideia originária de ciência serão aqui modificados. J. Mensch captura bem esseponto: "as

texturas, cores, cheiros e sons do mundo. Elas são aspectos que nossos sentidos vei-

qualidades primárias dos corpos são seus aspectos numericamente mensuráveis. En-

meira pessoa' e subjetivo" (Mensch, 201 5, 190)

culam. (. . .) O que se reporta nessaárea não é objetivo, mas irremediavelmente de 'pri-

quanto mensuráveis,elas portam aquilo que pode ser chamado uma objetividade de

56. Exceções à ideia de uma causalidade universal unilateral são concebíveis;

'terceira pessoal.Assim, dadas as unidades comuns de medidas, qualquer um pode concordar acerca das dimensões de. um objeto,.de sua velocida(ie, massa temperatura,'e assim por diante. (. . .) As qualidades secundárias, por contraste. consistem'de gostos

por exemplo,sensações geradaspor membros-fantasmas em amputados,que, embora

322

323

sejamvivenciadascom grande impacto subjetivo, não remetem à infraestrutura objetiva material de que elas parecem ser índices

J A cientifícidade

na fenomenologia

de Husserl

As ciências cama produção histórica no mundo da vida 4

Para Husserl, "a hipótese permanece também, apesar da confirmação,

construção de jómzu/as que permitissem operar de modo reiterável e

ainda e sempre hipótese; a confirmação (a única para ela concebível) é um curso infinito de confirmações" (K, 41). Dada a complexidade dos fenómenos naturais, que muitas vezesenvolvem aspectosinesperados. novas relações e interações com outros aspectosjá conhecidos, e dada

unívoco com os aspectos idealizados dos fenómenos em questão. A ob tenção da fórmula relativa a certo tipo de fenómeno (movimento acele-

a possibilidade de alteração das teorias acerca de fenómenos já explo-

o caráter exato dos fenómenos naturais. Contudo, longe de provar a

rados e a se explorar, dever-se-ia reconhecer que a ideia de correlação

exatidão dos fenómenos, o pensar científico centrado em fórmulas se

universal e unilateral entre dados sensíveise qualidades objetivasnão

limita a operarsimbolicamente com termos que representamcaracterísticas/á idem/ízadczs arzferiomente, sem que o próprio sentido dessa

estáefetivamente /)sovada.Mesmo diante de notáveis confirmações da causalidade unidirecional universal, essaúltima ainda guarda o caráter hipotético, e não deveria simplesmente ser tomada como algo certo. Husserl insiste na "estranheza" (K, S9c, 35) ao menos inicial dessa hipótese fundadora

da física matemática.

Com o passar das gerações

radodos corpos, queda dos corpos etc.) oferecia a possibilidade de lidar com dadosobjetivos da experiência, o que, por sua vez, parecia atestar

idealização seja problematizado criticamente. O pensarsimbólico fazia parte da herança científica disponível para

Galileu.Afinal, segundoHusserl,"já antesde Galileu" (K, S 9f, 43) a tecnicização crescente dos métodos científicos era notória. Importa

e a sedimentação cultural de resultados teóricos confiáveis baseados

acentuarque os feitos teóricos galilaicos foram rapidamente assimila-

nessemétodo, é verdade que a hipótese de uma causalidadeunidire-

dosna comunidade científica conforme os recursos técnico-simbólicos

cional universal foi reconhecida como evidente. No entanto, de início.

disponíveis. É assim, por exemplo, que ocorre a "aritmetização da geo-

não se tratava de uma tese óbvia. Desse modo, a sua aceitação depen-

met:ria" (K, 44), ou seja, a redução dos métodos consbutivos geométri-

deu de ao menos mais uma condição histórico-intencional em vigor na Modernidade. Nesseponto da exposição,Husserl retoma uma ob-

cos ao cálculo. Desde então, as idealidades geométricas (figuras-limite

servação geral acerca do pensamento científico defendida desde antes de Pro/egõmenos à /ógíca pura, a saber, que há uma tendência a um

emprego tecnícízado dos métodos científicos, ou seja, enquanto operaçõessobre símbolos, sem preocupações referentesàs intuições fundentes que delimitam o alcance e o sentido de tais métodoss7.No parágrafo 9fde K, o autor defende que a ênfase da ciência natural, já na época de

concebidas como portadoras de exatidão) são tratadas por meio do simbolismo matemático, sem qualquer necessidade de remissão às séries intuitivas de manifestação gradual das qualidades em pauta para compreender qual sua especificidade. A formalização ou simbolização técnica torna desnecessáriaqualquer referência das idealidades geométricas à sua base intuitiva inicial. Em relação aos métodos da física, essa

Galileu, estavaem buscade sistematizações do entendimentodosfe-

formalização torna inaparentes as operações de construção dos dados exatos, os quais passam a ser ingenuamente considerados como um as-

nómenos naturais por meio de coordenações funcionais entre aspectos

pecto constituinte da natureza.

quantificáveis dessesfenómenos. Em outras palavras, a ênfase estava na

Eis como se cumpre efetivamentea matematízaçãoda natureza, uma vez que Galileu teria facultado principalmente a sua geomefrí-

57. A raiz do pensar tecnicizado estána inescapabilidade do uso de representações simbólicas na investigação teórica de conteúdos temáticos que fogem ao alcance da in-

tuição direta. Por meio delas,discriminam-se objetossomente por coordenação conceptual submetida a regraslógico-gramaticais, sem que seja preciso recuar geneticamente até os alas intuitivos fundentes que dão acessoaosdomínios objetivos em pauta. Vale

zação.Por meio da subsunçãoda geometria ao cálculo, pela formalização das relaçõesconstrutíveis geometricamente, consolida-seum modo de pensar que se descola da base intuitiva fundentes'. Conforme

notar que Husserl reconhece o caráter indispensável das operações sobre símbolos para o desenvolvimento da ciência (cf., p. ex., Husserl, 1970, cap. Xlll; um bom livro sobre o tema é Centrone, 2010).

58. Tal qual observa D. Cair, a transformação moderna no sentido de natureza "pode ser separada em dois passos: a geomeMzação galileana da natureza e a

324

325

J A cientificidade

na fenomenologia de Husser]

As ciências como produção histórica no mundo da vida

vimos, a idealizaçãode formas-limite supõeuma comparaçãointuitiva

Cabe agora acompanhar de que maneira a assunçãocomo óbvia

dos graus de manifestação empírica de certo atributo. Formalizado, o pensar científico pouco atenta para as intuições fundantes dos seusda.

jernvirtude da tecnicização do pensar) da hipótese galilaica gerou uma

dos teóricos. E teria sido em decorrência desseapagamento (já em vi.

dadeeuropeia, e qual o prometode Husserl para reativar o sentido originário de ciência obscurecido por tal crise.

gor no pensar formalizante dos cientistas da época) do caráterprimário da experiência concreta que a ideia de causalidade a priori universal foi se impondo como uma obviedade. A tecnicização do pensar cientí.

fico torna-seum obstáculoparao questionamentocrítico pelo sentido e alcance dos métodos teóricos, cristalizando, assim, interpretações in. gênuas acerca do seu funcionamento.

No parágrafo 9g, Husserl deixa

claro que não é de nenhum modo contrário ao desenvolvimentoda matemática formal ou da física matemática. O autor reconhece que, tendo em vista as possibilidades de explorações temáticas muito mais amplas e complexas por elas propiciadas, a formalização "é algo total-

interpretaçãodo trabalho científico que fomenta a crise da humani-

A.interpretação objetivista do ser e da ciência No parágrafo 9h, Husserl sistematiza o sentido geral da matematizaçãoda natureza e começa a extrair suas consequências. Ali, de iní-

cio, o fenomenólogo nota que por meio dostrabalhos de Galileu, base do desenvolvimentoda física moderna, ocorre "uma substituição do único mundo efetivo ( . . .), do único mundo alguma vez experienciado e experienciável -- o nosso mundo da vida cotidiano -- pelo mundo

mente legítimo e mesmo necessário"(K, 46). Ocorre que a formali-

matematicamente substruído das idealidades" (K, 49). E sobre essa

zação do pensar implica tecnicização, ou seja, operações simbólicas

operação complexa que a ciência moderna da natureza é fundada. Há uma substrução geral da experiência concreta do mundo (via hipótese

visando à aquisição de resultados sem a reativação do sentido originá-

rio dospróprios métodos utilizados. E a ausênciade clareza acercadas

da causalidade a priori unilateral) que atribui aos aspectos sensíveis da

experiências fundantes e das decisões teóricas sobre as quais os méto-

experiência uma infraestrutura de qualidades idealizadas descritíveis com exatidão. Mas, nota Husserl, Galileu não propõe somente uma universalização do método de substrução. O que marca a ciência nato

dos científicos se consolidam favorece interpretações distorcidas da ati-

vidade científica. Ora, as reflexões históricas de Husserl visam justamente construir uma via de acessoao sentido originário dasformações teóricas, de maneira a tornar visíveis os deslocamentos de sentido que levam até o estado contemporâneo de crise

ral galilaica é a substituição do mtzndo taJ como dado na experiência co-

fíd;ana Pe/osdados subsfmídos matematícamezzte.Em outras palavras, essesdados substruídos passam a valer como a realidade, como a verdadeira objetividade, e a natureza passaa ser considerada em si mesma

anmefízczçãoda geometria realizada por Descarnese Leibniz" (Carr, 1974, 122-123) A aritmetização propiciada pelas técnicas modernas do cálculo pressupõea geomezação da.natureza e, assim, envolve em mais uma camada de decisões teóricas que se sedimentam como "obviedades"

as modintcações do sentido de mundo (e da tarefa

científica que ]he seria correlata) decorrentesdo trabalho de Galileu. Ao enfatizar esse trabalho e não a aritmetização da natureza, Husserl pretendeu recuar para o momento decisivo em que ascondições histórico-intencionais fundantes da matematização da na. dureza foram postas em ação. Se se aceitam as propostas teóricas de Galileu.

a efetiva

como constituída de componentes exatos Como vimos, essaconcepção remete à ingenuidade de Galileu em

relaçãoà herançateórica a partir da qual promoveu suasinvestigações científicas. Galileu não investigou o sentido dos métodos de idealização geoméhica e nem, por conseguinte, explicitou o enraizamento das idealidades no solo da experiência intuitiva do mundo circundante. Os resultados dessesmétodos foram interpretados sob a orientação natu-

matematização da natureza (por meio do cálculo) se segue sem grandes complicações A transformação de sentido decisiva que deve ser clarificada não é a mera aplicação do cálculo às formações geométricas ideais, mas sim as decisões teóricas que tornam possí

ral, que supõe dado o domínio objetivo a que o método teórico se di-

vel compreender a natureza por meio dessasformações

IK, S 9h, 52), ou seja, compreende que a "natureza é matemática no

326

rige. Assim, Galileu toma "pelo verdadeiro ser aquilo que é método

327

A cientificidade na fenomenajogiade Husserl

As ciências como produção histórica no mundo da vida

. papel,em vigor constantemente na vida pré-científica, de contato diretOcom o mundo e, quando muito, pode funcionar, do ponto de vista

::à!:;::===i===: s:=:::=K:=;===1== seguintetrecho

seo mundo intuível de nossavida é naeramentesubjetivo,entãosão invalidados todas as verdades da vida pré e extracientíficas que dizem respeito ao scu ser de fato. Essasverdades só não são destituídas de

valor na medida em que, embora falsas,anunciam vagamente uma experiência possível que reside por trás desse mundo, um em-si a elas

transcendente (K, 54). Uma das consequênciasprincipais da substituição do mundo circundantepelo mundo substruído matematicamente é justamente tomar o ser real como uma camada de eventosintrinsecamente exatos que escapa à apreensão intuitiva.

Desse modo, estabelece-se que o "ser

verdadeiro"almejado pela ciência natural matemática não é apreen' sávelpor experiência sensívelóo e, desdeentão, o desenvolvimentodo conhecimento científico do mundo pode dispensar a especificidade

experiência cotidiana, sobre a qual os métodos de idealizaçãoforam

da experiência cotidiana intuitiva, que, nela mesma, em nada contribuiria para a realização da cientificidade. Esboça-seaqui aquela cisão, anunciada no início de K, entre o desenrolar da existência humana, envolta em suasquestõespróprias de valores e finalidades, e um determi-

historicamente desenvolvidos, é mascarado, e as propriedades exatas

nadomodo de realizaçãoda cientificidade que se cristaliza a partir da

passíveisde descriçdoselo formalismo matemático são tomadascomo Vale a pena enfatizar este ponto: a substituição da realidade do mundo circundante por um mundo substruído matematicamente /eva à desfia/oHzaçâoda exPeríê7zciairzfuífíva pré-cíerztí#cacomo forma de

=:S=:ll. :; T =1=:===1::::1.!=,:;.:Z : : ::

Modernidade. Em suma, esboça-seaqui a crise das ciências europeias do ponto de vista da especificidade da vida humana. Husserl pretende ter revelado que rza próPHa constituição da ciência morfema dcznatureza

há uma depreciação da experiência concreta do mundo, da experiência subjetiva, que passaa ter interesse somente enquanto anuncia relaçõesobjetivas que ela mesma não captura diretamente. Distinguem-se,

sensíveis üe interações ocorridas no domínio das propriedades exatas

assim,o mundo objetivo, identificado a interaçõesentre componen' tes passíveisde descrição matemática (componentes físicos), e a ex-

apreendidas pelo formalismo matemático, essaexperiência deixa de ter

periência subjetiva, encerrada em uma esfera de efeitos psicológicos

as, das 'teorde,contas,

como insiste Husserl, "o sentido próprio do método, das f6r-

60. Com efeito, reconhece Husserl no parágrafo 34d de K= :o objetivo justamente não é jamais experienciável como ele mesmo"(K,

328

329

131)

J A cientificidade na fenomenologia de Husserl

As ciências como produção histórica no mundo da vida

ciência onienglobante. O em-si mundano, aquilo que vale de modo irlli;ll«,

é ia;.-n«d.

à .bj.""id,a

n:i«,

. , -:««,iid;a

d. :.-,

que deveriaguiar uma ampliação interminável do conhecer, torna-se limitada à atestação do ser objetivo físico. Desde então, a ciência física

matemáticase torna "modelo para todo conhecimento autêntico" (K, 62).Transformadaa própria ideia de mundo, identificado o ser verda-

e mundo

anímico,

dos quais esse último,

dado o modo

de sua referên...

deiro à objetividade física, cabe às ciências, em sua tarefa geral de conhecer "aquilo que é", investigar de modo cada vez mais detalhado a infraestrutura física ou material mundana. Essaé a interpretação objetivista moderna do ser e da ciência. Vimos algumas páginas atrás que osfilósofos antigos já adotavam uma postura objetivista ao enfatizar os aspectoscosmológicos como base da ciência onienglobante. p'orém o objetivismo antigo não pretendia o alcance universal obtido pelo objetivismo moderno, o qual implica até mesmo o tratamento da subjetivi-

leais das coisasenquanto descritíveis de modo exato. E, uma vez que o

dadecomo domínio ântico secundário, submetido a correlaçõescau-

mundo em si mesmo é compreendido como um conjunto de proprie-

sais objetivas. Esse é um prometo que marca especificamente o desen-

dades exatas, todos os aspectos subjetivos de sua doação'(diferenças de

grau e intensidade do reconhecimento dos dados,e mesmo os predicados culturais atribuídos aos objetos) são tomados como dados psimlógicos em vigor somente na esfera psíquica. O sub/eüvo é reduzido do pszco/ógzco,comPreerzdídocomo um domínio /imitado e dependente d

volvimento das ciências modernas'' Deve-se notar, assim, que o grande avanço das ciências modernas, confirmado, por exemplo, pela profusão de linhas de pesquisa cada vez mais especializadas, ocorre à luz da compreensão da universalidade

esfmfura cduscz/do mundo ob/etívo.

Essa modificação no sentido do mundo está entrelaçada a uma modificação do sentido do fe/os filosófico enquanto "conhecimento daquilo que é", ou seja, enquanto realização paulatina da ciência

nascentes e agentes, e os enunciados racionais e as verdades sobre elas nunca [ivcmiu o sentido daquela objetividade com que desde Descarnesa ciência objetiva geral tem a tarefa de lidar" (Kl1, 162).

330

331

61. "A preocupaçãocientífica antiga com as pessoastomava-aspor pessoascog'

A cienti6lcidade na fenomenologia de Husserl

do ser como forma física descritível de modo exato.Tal como not, Husserl, com base na física galilaica, muitas novas ciências se deseHI. verem, e nesse desenvolvimento "especializaram a ideia de uma fi-

losofia racional motivada pela nova ciência da natureza, e dela rec.. bem o seu impulso de progressoe de conquista de novos domínios" (K, S 11: 63). Importa acentuar que as cíêizcíasf'romovídasa parfír da Modernidade supõem uma interpretação redutora da universalidade do ser czse desvendar. São ciências que reconhecem como ser verda.

As ciências como produção histórica no mundo da vida

dasciências físicas: a vida intuitiva experimentada no âmbito psíquico

deveser remetida a interaçõesfísicas entre o corpo (ou, mais especificamente,o cérebro) e o meio ambiente. Ocorre, destarte,uma "naturalização do psíquico" (K, 64), isto é, o caráter subjetivo da experiência

passaa ser investigado em função do ser físico objetivo que se anun cia na experiência sensível sem ser aí diretamente apreendido, e exige,

dessaforma, os métodos exatospara uma exploração satisfatória

A investigaçãodo domínio subjetivo na Modernidade é depen-

deiro as propriedadesfísicasdescritíveispelo formalismo matemático.

dente das ciências naturais matemáticas, e isso, a princípio,

Husserl admite que, em sentido geral, a enorme proliferação de estu-

à delimitação dessepróprio domínio, entendido como uma esferares-

dos científicos com base nessa nova compreensão da universalidade do

em relação

IK, S 12, 67). Esseprogresso,porém, não foi acompanhado'de "inves.

trita de fenómenos, determinada causalmente pela totalidade dos corpose eventos naturais. Em segundo lugar, há dependência em relação aopróprio método, já que a ênfase das investigações psicológicas desde

Ligações filosóficas de sentido IP/zí/osop/zísc/zen BesÍzzlzu7zgenj" acerca

a Modernidade tem sido, segundo Husserl, a circunscrição de corre-

de "quão longe a modelaridade destas ciências podem ser estendidas"

lações causais entre eventos psíquicos e as infraestruturas materiais do

(íd.). As ciências modernas progridem sob a assunção ingênua de que osprocedimentos matemáticos atestam diretamente o ser do mundo . E

corpo e do ambiente. O destaqueexcessivoa esseprocedimento leva

ser e dos métodos para explora-la é "sem dúvida um enorme progresso"

a extensão dessemodelo de conhecimento para todos os domínios cria

crê Husserl, proa/amas ePístên2ícosÍnso/úveís, o que, por sua vez, fn

menta um amplo ceticismo em face do entendimento do próprio funcionamento da atividade científica.

Essesproblemas referentesà extensão indevida do método da física para a exploraçãoda totalidade do ser se manifestam claramente

àquelesproblemas epistêmicos mencionados de passagemhá pouco. A subjetividade se torna um tema parcial no desenvolvimento do conhecimento do ser objetivo. Ela é tomada como esfera limitada de ser, remissível causalmente aos eventos do ser objetivo. No entanto, é a subjetividade que opera essaremissão, bem coma toda a produção científica.

Desseponto de vista, a subjetividade é o foco ativo pelo qual o conhecimento é criado e ordenado em teorias e, nessesentido, e/a não é umcz

no que tange ao estudo daquilo que é sub/etívo. O subjetivo deixa de ser uma característica essencial da manifestação do mundo circun-

pare isolávet do mundo, mas um meio universal de recorLhecimentodo

dante na experiência cotidiana e passaa ser interpretado como efeito psicológico de interações entre as propriedades objetivas do mundo.

mundo objetivo entendido como ser em-si apreensível pelo formalismo matemático, pressupõe esseúltimo sentido de subjetividade, mas não

Propõem-se, dessa forma, procedimentos para investigar esse subje-

consegue abarca-lo como tema científico. Desse modo, o progresso da

ser.Ora, o avanço da ciência moderna, guiada pelo desvelamentodo

tivo interiorizado, procedimentos inspirados no sucessoobtido pela fí-

cientificidade sob a linha interpretativa objetivista (que reduz a objeti-

sica matemática. Sendo assim, Husserl observaque na Modernidade

vidade do ser às qualidades físicas que constituem o em-si do mundo)

surge "uma psicologia de um estilo inteiramente estranho ao passado, esboçada concretamente ( . . .) como uma antropologia psicofísica" (K,

encontra um limite, a saber,a compreensão da sua própria possibilidade, já que a especificidade da vida subjetiva enquanto sistema de

S ] 1, 63). O subjetivo é reduzido a uma camada de efeitos psíquicos na interioridade humana, e passaa ser estudadoconforme as indica-

operações que permite o acesso válido aos mais diferentes domínios ob-

çõesda hipótese de causalidade universal que estána base do progresso

obtenção do conhecimento, do ser real entendido de modo objetivista,

332

jetivos parecenão encontrar lugar nessaperspectiva.A priorização, na

333

As ciências como produção histórica no mundo da vida

A cientificidade na fenomenologiade Husserl

P

dificulta, no correr da Modernidade, a compreensãoda própria origem

subjetiva do conhecimento.

'

''

4

C)transcendentalismo, a que Husserl se filia, oferece uma interpre-

taçãoda atividade científica que reconhece o papel fundante da sub-

=;:::ill::Hlilli X; ãlliã

íetividade. Com isso, em linhas gerais, pretende-se supera.r a crise das

dantes das ciências físicas. Para o autor, é apenas com Hume que se to..

desenvolvimentocientífico. A desvalorizaçãoda experiência intuitiva cotidiana(como fundante do contato com o mundo) em consequên-

nam explícitas as dificuldades de compreensão da subjetividade soba

cia da construção das ciências naturais sob a hipótese da causalidade

interpretação objetivista do progressocientífico. A proposta humiana

a priori unilateral leva o conhecimento científico a paulatinamente se

compreender a noção de causalidade como fruto dos princípios psÍ:

quicos da associaçãorevela,ainda que de modo problemático, "o que nas ciências tinha passadototal e inteiramente despercebido -- que a vida da consciência é vida produtora, correta ou incorretamente pro-

ciências consolidada em grande parte devido ao pendor objetivista do

afastardas questõesaxiológicas e existenciais, que, no máximo, funcio-

nam como índice do em-si mundano. Daí que se possafalar em crise

dutora de sentido de ser; já o é como vida sensivelmente intuidora e. d

dasciências do ponto de vista do valor dessasciências para as questões Últimas do significado da existência humana, tal como exposto no início de K. De fato, essaconclusão já era exhaída na parte final da con-

Êoüíorí,como científica" (K, S 24, 92). A obra de Hume abala a inter.

ferência de 1935, em que, após mencionar o mal-estar europeu con'

predação objetivista da atividade científica e atesta o papel fundante da

temporâneo, Husserl assevera:"estessão problemas que provêm. intei-

subjetividade na construção do conhecimento. Porém a explicitação

ramente da ingenuidade com que a ciência objetivista toma aquilo que

das operações subjetivas por Hume ainda estaria tingida por prejuízos

ela designa como mundo objetivo pelo universo de todo o ser, sem com

naturalistas, os quais se tornam superáveispela abertura da orientação tra7zscendelzta/, por Kant. Não setrata, com essanova perspectiva, de se

issoatentar que a subjetividade operante na ciência não pode, por direito, comparecerem nenhuma ciência objetivo" (K, 342): Vimos que

contrapor à ciência, de apontar erros em seus resultados e, no geral, de

a crise da humanidade europeia se manifesta como perda da confiança

desacredita-la,mas sim de questionar a ingenuidade da interpretação

no seu próprio devir enquanto auto-objetivação da razão por meto das

objetivista da atividade científica, segundo a qual a subjetividade não é

ciências, perda da confiança na expressão de sua essência racional pelo

senão uma esfera limitada de eventos determinados causalmente pelo

paulatino avanço do saber científico. E sabemos agora que a principal

ser objetivo do mundo. Essa interpretação dificulta o entendimento da própria produção subjetiva do sabercientífico, e é contra ela que a

motivação para a crise foi a interpretação obtetivista da noção de univer-

transcendentalismo se levanta. Conforme observaHusserl, em consonância com Kant, a nossaopinião não é que a evidência do método cientí6lco-positivo é uma ilusão, e que suas realizações são ilusórias, mas que essaevi-

so/idade do ser,noção que deveria guiar a exploração interminável pelasciências "daquilo que é". Daí que a crise não remexa à própria estrutura da racionalidade humana ou "à essência do próprio racionalismo", mas derive "da alienação deste, da sua absorção no 'naturalismo' e no 'objetivismo"' (K, 347).

mais questionado, cuja elucidação filosófica faz unicamente resultar

Formula-se, assim, um diagnóstico razoavelmente detalhado da crise das ciências europeias,que é, em seu núcleo, uma crise da própria humanidade europeia, pois a identidade dessaúltima estáligada

o verdadeiro sentido das realizações da ciência positiva, e correlativa-

ao desenrolar sadio da cientificidade. Esse diagnóstico foi construído

mente o verdadeiro sentido de ser do mundo objetivo como um sentido justamente subjetivo-transcendental (K, S 27, 103).

por meio de uma Besínrzuízgque pretendeu desvelar não só o sentido

dência é ela mesma urn problema; que o método científico-objetivo repousa sobre um fundamento subjetivo profundamente oculto e ja-

334

originário da cientificidade como também certas distorçõesna sua 335

A cientificidade na feilomenojogia de Husserl

As ciências como produção histórica na mundo da vida

contidas em Psíco/ogía Óenomeno/ógíca,texto estudado no capítulo an-

terior. Agora a investigação do mundo circundante deve revelar que a experiência subjetiva está na origem das operações idealizantes que

permitem a sedimentação da ciência matemática; e issodeve confirmarque o serobjetivo visadopor essaciência é uma circunscnçâo metódica de certos aspectos do mundo, a qual não esgota a riqueza ontoló-

.ica dessemundo e da vida subjetiva a que ele se doa. Desde então, os resultadosobjetivistas não poderão ser tomados como o único caminho paraa realização do Ideal de conhecimento onlenglobante'*

A investigaçãodo mundo da experiênciajá é anunciadano pará-

,rato 9h de K, em que Husserl comenta o sentido da matematização

teria ainda sido cumprida por nenhum filósofo no correr dos séculos,

da natureza como substituição do mundo da vida continuamente ex-

julga Husser]. Mesmo Kant, sistematizador da orientação transcenden.

perimentadoem nossavida pré-científicapor um mundo substruído

tal, não teria explicitado em toda a sua complexidade o fundamento subjetivo último que invalida o pretensouniversalismoobjetivista (Cf.

matematicamente. As operações de idealização e substrução supõem,

K, S 27, 102). Cabe então fazer avançar a crífíca ao ob/efívísnzode um modo desconhecido pelos filósofos anteriores, a saber, por meio de uma

nlálise genética reveladora do mundo circundante da experiência pré;ientÍfica (mundo da vida) como solo de sentido sobreo qua! as oPera;ões científicas seerigetn

Vimos, no capítulo anterior, que o método fenomenológico gené-

assim,a experiência pré-científica do mundo. O fato de que tais operaçõespermitam a decodificação dos fenómenos por meio de fórmulasmatemáticas(utilizadas, de forma técnica, como algoritmos capa:es de oferecer resultados confiáveis) favorece a interpretação objetivista

segundoa qual a experiência subjetiva não é senãoefeito psicológico do serobjetivo que trata justamente de explicar de modo matemático. No entanto, para Husserl, importa justamente questionar aspretensas

tico leva à explicitação das etapas de constituição do sentido, reme-

obviedadesassociadasao desenvolvimento técnico das ciências e reati-

tendo, por exemplo, as construçõesconceituais científicas à experiên-

varo sentido originário dasproduções científicas, o que implicará bus-

cia sensível origmária. As reflexões sobre o alcance do método genético

car a gênese desse sentido na experiência do mundo da vida. E exata-

levaram Husserl a conceber uma orzfo/ogíado mu7zdoda experiência pré-cíenfz'bica, ou seja, um estudo acerca dos condicionantes estrutu.

mente esseo tema que vamos acompanhar a seguir: de que modo uma

reis da experiência mundana pressupostos pelo exercício da atividade

norado pelas ciências matemáticas tecnicizadas,e de que modo isso

científica. Essa antologia do mundo da experiência, embora inspirada pelo método fenomenológico genético, realizar-se-ia, do ponto de vista

da orientação natural, como uma espéciede antologia material fundante das divisões entre diferentes regiões de ser, e poderia servir como uma via de acessoà problemática transcendental. Esseesquema de reflexão (recuo às estruturas do mundo da experiência pressupostas pelo

pensar científico) é amplamente explorado em K. No entanto, nesse texto, as preocupações teóricas de Husserl são mais amplas que aquelas 336

antologia do mundo da vida permite tornar visível o solo de sentido ig-

62. E. Strõker alerta corretamente "que a teoria husserliana do mundo da vida, tal como formulada em A crise das ciências, não começa no ponto em que ela poderia

indicar um novo caminho até a fenomenologia transcendental, mas apareceno .meio de suasreflexões históricas preparatórias, é algo que não deve passardespercebido

(Strõker,1997, 198).De fato, em K, o tema do mundo da vida está intrinsecamente enbelaçado àquele 'da história da cienti6lcidade e da humanidade europeia. E. a pas à reflexão transcendental que será instituída a partir dele levará em conta uma renovação do ideal originário de cientificidade e uma superação da crise das ciências, como veremos

A cientificidade na fenomenologiade Husserl

As ciências como produção histórica no mundo da vida

contribui paraa saídado estadode criseem que a humanidadeeuro-

valendo somente como índice de correlações causais objetivas a ser ex-

peia está envolvida.

plicadas matematicamente. Parece que bastaria então expandir o domínio da cientificidade e simplesmente incluir o mundo da vida como um tópico a ser abordado pelos recursos científicos em vigor. Abrir-se-ia, as-

A antologia do mundo da vida

sim, uma via para o tratamento científico do mundo da vida. Husserl a

Vimos que o desenvolvimento das ciências modernas sob a inter-

formula da seguinte maneira: "o modo como chegamos aqui ao mundo

pretação da universalidade do ser como forma física e substrato material substruídos leva a um desprezo pela investigação da experiência

da vida como um tema científico o faz aparecer como um tema auxiliar ou parcial no interior do tema completo da ciência objetiva em ge-

pré-científica em toda a sua riqueza. Ora, se essainterpretação redu-

ral« (K, 124-125). Em outras palavras, a princípio, pode-se pen?ar que

tora da universalidade do ser alimenta a crise da humanidade europeia

um estudo científico do mundo da vida envolveria apenasa aplicação

jcuja história saudávelestáligada à consecuçãopaulatina do ideal de

dos recursos metodológicos das ciências estabelecidas para um domínio

conhecimento onienglobante), en tão, para sair da situação crítica, cabe

ainda não considerado.No entanto essaé apenasa formulação inicial

rec'operar o sentido não resüíto de ser, que inclui a experiência subjetiva

do problema da investigação científica do mundo da vida, a qual logo se mostra insatisfatória, conforme é narrado no parágrafo 34 de K

como um tema científico autónomo. E o que propõe Husserl no paráfia o seu sentido fundador original, como ciência universal e de funda-

Nesseparágrafo, Husserl questiona mais diretamente qual o método e o estilo geral de cientificidade adequadospara o estudo do

mentação última se deixa este domínio ficar em seu 'anonimato'?" (K,

mundo da vida. Ao propor a Lematizaçãocientífica do mundo da vida,

114-115). Husserl tem em vista o domínio de "fenómenos puramente subjetivos sem restrição" (K, 114) que compõem a experiência coti-

Husserltinha em vista aquela ideia geral de cientificidade que, desde a Grécia Antiga, teria guiado o desenrolar histórico da humanidade

diana do mundo, fenómenos que não teriam sido devidamente pesquisador por nenhuma ciência consolidada por meio do modelo matemá-

europeia. E preciso então cuidado para não substituir "por força da tradição secular em que todos jnósl fomos educados, o conceito de ciên-

tico vigente desdea Modernidade. E preciso estudarsistematicamente

cia em geral pelo conceito de ciência objetiva" (K, S 34a, 127) Era com essapossibilidadeque se jogavano correr do parágrafo33, ou seja, ali levava-seem conta somente a interpretação moderna do que é a ati-

grafo 29 de K, a partir da seguinte pergunta retórica: "preenche a filoso-

essacamada de fenómenos, sese quer fazer justiça à ideia-guia de ciên-

cia como conhecimento da totalidade daquilo que é. Após estabelecer a meta de exploração sistemática da experiência

vidade científica. No parágrafo 34, entretanto, logo de início, Husserl

pré-científica e do mundo da vida como antídoto à interpretação re-

alerta para a ingenuidade de supor que a cientificidade objetiva moderna atualiza plenamente a ideia originária de cientificidade. Diante

dutora da universalidade do ser pelas ciências modernas, o autor se dedica, na primeira seção da terceira parte de K, a esclarecer asmaneiras de cumprir esseobjetivo. Esse problema é sistematizado, em uma pri-

dessenovo alerta, torna-se difícil aceitar que a mera expansãodas ciências existentes, formadas conforme o modelo objetivista da cientifici-

meira etapa da sua formulação, no parágrafo33. Tal como anunciado

dade moderna, possa esgotar a complexidade do mundo da vida ao in-

em seu título, nesse parágrafo o mundo da vida é tomado "como uma

cluí-lo como tema parcial de suaspesquisas

parte do problema geral da ciência objetiva"(K, 123). Considera-se aqui

uma interpretaçãobastantesimplória do avançodo conhecimento sob as restrições da cientificidade moderna. O mundo da vida tem sido his-

toricamente desvalorizado em sua especificidade como tema científico, 338

A fim de atestara insuficiência dessaprimeira abordagemcientífica do mundo davida, Husserlsugereque "a cientificidade que estemundo da vida, como tal e na sua universalidade, exige talvez seja uma cientificidade específica,justamente não lógico-objetiva" (K, S 34a, 127) 339

A cienti6icidade na fenomenologia de Husserl

As ciências como produção histórica no mundo da vida

Dessemodo, não basta simplesmente tentar aplicar a racionalidade das ciências modernas ao mundo da vida. O ponto nevrálgico em questão

relatividades subjetivas da experiência, a ciência objetivo "como praxis

é que o estabelecimento da noção moderna de conhecimento Objetivo

multaneamente,não pode deixar de ter as suaspremissas,assuasfontes de evidência naquilo que é relativo ao sujeito" (K, 135-136). A ciência

se dá por contraste com a experiência subjetiva (Cf. K, S 34b, 128 129).

Como vimos, essaúltima é reduzida a índice de relaçõescausaisdes. critíveis matematicamente, e a objetividade tematizada pelasciências é identificada às propriedades físicas substruídas, as quais excedem o

âmbito da experiência intuitiva (Cf. K, S 34d). Ora, afirma o autor. o mundo da vida "se destaca ( . . . ) precisamente pela sua efetiva experien-

ciabilidade" (K, S 34b, 130), enquanto o ser em si objetivo almejado pelas ciências modernas "não é jamais experienciável como ele mesmo" (K, 13 1). Há, assim, incompatibilidade

de princípio entre as operações

centrais das ciências modernas e o mundo da vida. As primeiras estabe. lecem seusresultadosválidos por meio do ultrapassamento da experiência subjetiva

rumo ao em-si objetivo.

/á o mundo da vida é /ustamerzfe

o correlato da experiência subjetiva em toda a sua riqueza intencional.

teóricahumana pertence ao meramente relativo ao sujeito e (...), si-

é o resultado da atividade humana em certa orientação do pensar, a sa-

ber,a teórica. Essa orientação teórica se erige da vida intencional pré-

teórica,de maneira que as produções científicas se enraizam, em última instância, na experiência subjetiva do mundo. Desse modo, para uma clarificação completa dos pressupostos de sentido das produções

científicas,"bem como de todas as outras aquisições da atividade hu-

mana,tem de ser levado em consideraçãoprimeiramente o mundo concretoda vida" (K, 136). Do ponto de vista da fundação do sentido, o mundoda vida não é mero tema parcial das ciências objetivas, mas são !asasúltimas que se revelam como uma dimensão particular da exPeriêncí(zsub/etÍva do mundo corzcreto.A análise do mundo da vida deve então

Trata-se do mundo enquanto vivido pelos sujeitos concretos, constan-

ajudar a tomar compreensíveis os fundamentos

temente experimentado conforme diferentes modalidades intencionais. Não faz sentido explora-lo sob dlretrizes metodológicas que levam

ciênciasobjetivas, e isso oferece mais uma razão pela qual não se deve

à superação da experiência subjetiva, exatamente aquilo pelo qual o mundo da vida se manifesta em toda a sua complexidade. Daí Husserl

de sentido das próprias

simplesmenteforçar a cientificidade lógico-objetiva sobre ele. Afinal de contas,como nota Husserl, asciências objetivas "estão incluídas no problema, não poderiam ser pressupostos utilizados à maneira de pre-

recusarque o tratamentocientífico do mundo da vida possaocorrer

missas"(K, 1 35). A investigação do mundo da vida deve esclarecer os

simplesmente por uma aplicação dos padrões metodológicos das ciências modernas ao que seria um mero tema parcial por elas englobado. Não é corneto tomar o mundo da vida somente como um campo limitado no interior das ciências guiadas pela objetividade moderna. Aliás,

fundamentos últimos de sentido das ciências objetivas(cujos pressupos-

se se atenta para o papel do mundo da vida como pressupostogenético dos resultados teóricos, as ciências objetivas é que devem ser avaliadas como parciais no interior da problemática geral do mundo da vida.

[ação.àsciências ]ógico-objetivas tradicionaisM. Trata-se da ePoc/zédas

Essa inversão

da questão

colocada

inicialmente

tosgenéticosserãoclarificados), de maneira que elas não podem, por issomesmo, ser assumidas como válidas no início dessa investigação.

No parágrafo 35 de K, propõe-se um procedimento crítico em re-

ciênciasobjetivas, ou seja, da suspensãoda validade das produções

no parágrafo

33 ocorre no parágrafo34f, embora já fosseindicada em outrostrechosõ3.AJI, o autor observa que, apesar de exigir uma superaçãodas 63. "Se a ciência racional (...) se torna problema,então teria de serantesde tudo considerado (...) que a ciência é, em geral, um entre outros tipos de realizações 340

341

A cietlti6icidadena fenomenologiade Husserl

As ciências como produção histórica no mundo da vida

científicas compostasà luz da orientação teórica moderna do pensar.

subjetivaconcreta (aspectosestéticos, axiológicos, práticos etc.). Dessa

Essa suspensão não implica uma passagem à orientação transcenden.

forma, a ciência objetivo avança por meio de um interesse que salienta

tal; trata-se de um recurso neutralizador de uma perspectiva tradicio.

somente certos componentes dos fenómenos da experiência concreta

nal de atividade científica a fim de abrir o caminho para outro modo de exercer essaúltima, mas sem ainda explicitar as preocupaçõesge-

do mundo. Na orientação teórica moderna, o cientista se dedica, as-

rais do acesso da subjetividade à objetividade, que tanto marcam a ePo-

c/zéfenomenológica. Vale notar que essaepochédas ciências não apaga

as produções científicas presentesem nossacultura, como se magicamente fossepossívelse transportar para um rincão livre de toda aqui-

siçãocultural científica.Não setrata de delimitar um domínio purificado da produção teórica, mas simplesmente de inibir o interessee as operações teóricas tradicionais, de maneira a suspender a vigência da

cientificidade lógico-objetivo moderna. Por que issoé preciso?Vimos que a cientificidade moderna implica uma desvalorização da experiên-

cia subjetiva pré-científica. Ora, para tornar visívela especificidadedo mundo da vida em toda a sua riqueza fenomenal, é preciso tirar de ação os procedimentos que meramente instrumentalizam a experiên-

sim, apenas a domínios particulares, e o mundo da vida elzquanto correlato da vida Ínte7zcíona/ em todczsas suas moda/idades /uncíonando

corzjzz7ztamelzte permanece não tematizado. Suspender a validade das ciências objetivas implica a suspensãodas abordagens teóricas parti-

cularizantes,que não abarcam o mundo da vida em todas as suasdimensõesintencionais cooperantes. Husserl chega a estender essaepoché do interesse teórico particula-

rizante para todos os interessespessoais(mesmo os pré-teóricos) que íso/amdomínios privilegiados sobre a universalidade pressupostado mundo da vida. Na experiência cotidiana concreta, normalmente enfatiza-secerto contexto fenomenal, tendo em vista a consecução de certos fins válidos segundo interesses específicos. Como afirma Husserl, "como homens normais, estamos permanente e simultaneamente

em

cia subjetiva, que dela se servem apenas como índice para atingir o su-

muitas 'profissões' (orientações de interesse): somos simultaneamente

posto em si mundano. A proposta de uma epocbédas ciências objetivas

pais de família, cidadãos, etc."(K,

barra essadesvalorizaçãodo mundo vivido e permite recupera-lo em

dessespapéis cotidianos implica a circunscrição de certo âmbito de ação,de maneira que ao vivencial os interessesligados a essasdiferen-

toda a sua densidade intencional intrínseca.

S 35, 139). O exercício de cada um

Essa epoc/zé permite evidenciar outro inconveniente das ciências

tesatividades"não há normalmente motivo para tornar o mundo da

lógico-objetivas modernas em relação ao mundo da vida, a saber, a par-

vida explicitamente temático de modo universal, como mundo" (K, ap.

fícu/arídadedo interesseteórico por meio do qual tais ciênciassede-

XVl1, 459). Mesmo

senvolveram. No apêndice XVTT de K, Husserl nota que o cientista,

estãovoltadas apenaspara domínios limitados do mundo, circunscritos conforme seus interessesprivados ou comunitários preponderantes. E

en] geral, "não tem olhos para mais nada a não ser para os seusfins e o

horizonte da sua obra" (K, 462). A orientação teórica, como vimos no capítulo anterior, é um estilo de pensar que isola certos tópicos do contexto prático-subjetivo da experiência a fim de analisar seuscomponentes e relações constituintes. Ela supõe, assim, um interesse muito bem

focado e um âmbito correlativo circunscrito artificialmente, com base na exclusão metódica de diversosaspectosque compõem a experiência

na experiência

cotidiana

pré-científica,

as pessoas

verdadeque não se vive em completa ignorância do mundo. Husserl acentuaque "vivemos conscientesdele como horizonte de nossosfins particulares" (ibid.), de maneira que os interessesparticularizantesassumidos no dia a dia constantemente remetem a um amplo pano de

fundo ontológico em que estãoinseridos.Porém, essaremissãolate ral não significa uma verdadeira tematização do mundo da vida em sua universalidade. Daí Husserl propor, no parágrafo 36, uma comple-

sebem que diferentemente das nossasciências, têm de ter a sua 'obÍetividade', uma validade necessáriaatribuída de modo puramente metódico" (K, 136).

mentação à suspensãodo interesse teórico tradicional. Os interesses particularizantes originados pelas diferentes funções sociais ou tarefas

342

343

A cientificidade na feitomenologia de Husserl

cotidianas exercidasna experiência pré-científica também devemS.r

As ciências como produção histórica no mundo da vida

orincÍPios sobre a uníverscz/idade daquilo que é. Trata-se agora de fazer valer essainspiração e de tematizar o mundo da vida em seu caráter

$HHHl$UiHlilH

próprio (solo de sentido e horizonte para os aios e interessesparticulares,como ainda veremos). Para tanto, é preciso promover uma orientaçãoteórica que não tenha sido afetada pela interpretação objetivista

não bastaa ePochéda orientação teórica tradicional para tornar visível

do trabalho científico. A solução será propor "uma doutrina pura da

o mundo

da vida; essa ePoc/zé não é senão um caso de uma Suspensão

essência do mundo da vida" (K, S 36, 145), quer dizer, uma oito/o-

generalizada do exercício de interessesparticularizantes no interior do

pta. no sentido já fixado ao menos desde o início da década de 1910,

mundo da vida. É a universalidadedessemundo, enquanto fundo per-

de explicitação dos constituintes a priori que delimitam em termos de

manente para os alas particulares, que deve ser explorada, e para isso

possibilidades ideais os fenómenos de um determinado domínio. Por

tanto a orientação teórica tradicional quanto as atividades prático-se.

meio de uma ontologia, fixam-serigorosamenterelaçõesd f)Horaentre

dais pré ou extrateóricas são insuficientes.

Husserl indica de modo bem claro nesseponto que a recusada aderi.

oscomponentes de um domínio e, assim, antecipam-se as pr'nclpa:s características dos eventos empíricos que exemplificam

as possibilida-

:ação lógico-objetivo moderna não signi$ca o abandono da orientação tec-

desideaisque configuram certo tipo de ser.Uma oncologiafornece, en-

em geral e um consequenteprinzado da vivência f)ré-científica para a descóçâodo mundo da vid . As situaçõesvividas pré-teoricamente na

tão,conhecimento rigoroso e com capacidade preditiva, e issosem ne-

maioria das vezes não tematízam o mundo da vida, mas o pressupõem

cessariamente partilhar da interpretaçãoobjetivista,que atribui proeminência (epistêmica e mesmo ontológica) à infraestrutura física dos

como horizonte inesgotávelde inúmeros domínios particulares circuns.

fenómenos. As ontologias, no sentido husserliano, buscam invariantes

crivos conforme os interessesvigentes. Desse modo, o mundo da vida não aparece em toda a sua riqueza no mero fluir da vida pré-científica. A so-

quepermitem discriminar ascaracterísticas definidoras de domínios de eventospossíveis;e para essafunção não é preciso apelar para méto-

lução para alcançar o mundo da vida em sua universalidade é apelar para

dosmatemáticosõs.Dessa maneira, propor uma ontologia do mundo

unia orientação teórica diferente daquela sedimentada ao menos desde

a Modernidade, que justamentedesvalorizaa riquezada vida intencio-

da vida significa, no contexto de K, atestar a limitação da abordagem científica moderna e reatar com a perspectiva universalista que consti-

nal e se centra em atributos infraestruturais passíveisde análise exala

tui, segundoo autor, o sentido originário da cientificidade, que deveria

Nesse ponto, a pretensãode Husserl é retomar, em sua intenção

guiar o desabrochar da humanidade racional

geral, aquela ideia ampla de cientificidade que marca o te/os da humanidade europeia. Como vimos, o estabelecimento das ciências moder-

dessaantologia pretendida: e/a serea/íza Hczorientação natura/ do pen-

nas supôs uma interpretação restritiva da ideia originária de cientifi-

sar, ou seja, não supõe o método da redução fenomenológica para o

cidade, centrando a investigação científica no estudo de propriedades

desvelamento do seu temaóó.Isso quer dizer que, ao menos de início, a

No parágrafo 51 de K, Husserl expõe uma importante

precisão

Hsicasdescritíveismatematicamente. Essalimitação acabapor excluir o mundo da vida em sua especí/icídade sub/etíva do âmbito científico,

reduzindo-o a índice de propriedades objetivas que constituiriam o

ser para além dasaparênciassensíveis.Porém, em sua inspiração originária, a cientificidade não recusavaautonomia a nenhum domínio

65. Afinal, como vimos no segundo capítulo, há ontologias que estabelecem conhecimento rigoroso mesmo sobreessênciasinexatas.A própria fenomenologia era assim apresentada em Ideias 1, SS71-75

temático, pois ela se caracteriza como uma investigaçãofundada em

66. "0 mundo da vida poderia sem qualquer interessetranscendental, ou.seja,na orientação natural' (. . .) tornar-setema de uma ciência própria -- de uma antologia do mundo da vida como mundo da experiência"(K, 176)

3#

345

A cientificidade na fenomenologiade Htisserl

As ciências como produção histórica no mundo da vida

objetivos.Dessemodo, propor uma antologia do mundo da vida não é investigar uma região material entre outras quaisquer, e sim recuar ao

andamento pré-teórico da diversidade de orientações teóricas e domínios matedaís padíctz/ares. Husserl retoma aqui a investigação genética proposta, por exemplo, em trechos de Psíco/ogía áenomeno/ógíca. Trata-sede buscar os invariantes estruturais constituintes do mundo da experiência concreta que está na base da circunscrição de quaisquer domínios objetivos particulares a se estudar teoricamente. A ontologia

Aqui cabe outra precisão importante. A oncologia do mundo da

do mundo da vida deve então fornecer o quadro restritivo a priori no interior do qual torna-se legítimo estabelecer antologias materiais parciais, tais como as da natureza e da cultura. Em outras palavras, a anto-

logiado mundo da vida vem explicitar ascondiçõesúltimas pressupostaspelas disciplinas científicas, mesmo pelas ontologias formal e materiais. Conforme afirma Husserl no texto A 07zto/ogíado mundo da vida e as ciências concretas,escrito na mesma época que K, "todas as onto-

certos interessesteóricos particularizantes. Contudo, para iluminar o mundo da vida em sua universalidade, foi preciso suspendera efetivj-

logias pressupõem enquanto verdadeira oncologia fundamental aquela

objetivos correlatos. Revela-se,dessemodo, que a efetuação de inte-

do mundo da vida (ainda não idealizado)" (Kl1, 151). Dessamaneira, a ontologia do mundo da vida não é só mais uma entre outras ontologias materiais, mas se localiza em um nível geneticamente fundante

ressesteóricos particularizantes, mesmo no caso da produção das ontologias, isola certo conjuntos de temas de uma experiência anterior

em relação a elas. Além desse caráter basilar em relação às demais ontologias, a ciên-

composta por muitos outros dados intencionais. Essefoi, conforme o

cia eidética do mundo da vida destasse demarca pela especificidade do seu tema. No parágrafo 36 de K, Husserl propõe diferenciar o czpriori

dade desse tipo de interesse teórico e, por conseguinte, dos domínios

capítulo anterior, um dos mais importantes resultados das investigações genéticas propostas por Husserl no correr da década de 1920: os

conceitos fundantes das ontologias materiais são remetidos à experiên-

cia pré-teórica, na qual há um entrelaçamento originário de diversostipos.de fenómenos que poderão ser explorados isoladamente, conforme

objetivo, com baseno qual as construçõescientíficas se edificam, e o cz priori universaldo mundo da vida, que ofereceo solo ou o fundamento

último para o a príoH objetivo. O a priori do mundo da vida é marcado por uma peculiaridade que obviamente falta ao d príod objetivo

tenham suasrestriçõeseidéticas especificadas.Nessesentido, a experiência pré-científica e o mundo que Ihe é correlato sãofundantesdas

(o qual inclui as ontologias materiais e formal): trata-se de um "a /)ríorí

orientações teóricas particularizantes e de seus respectivos domínios

racterísticasdefinidoras do mundo da vida, não sevai enumerar atribu

ü:HIRIÊ :l: :õnn::

vida é o mundo tal como se doa na uc4)eriência subjetiva e intersubtetiva

'relativo ao sujeito"' (K, S 36, 143). Isso quer dizer que, ao buscar as ca

tos que comportam realidades autónomas, pois justamente o muízdo da

exploração do mundo da vida.

' ''"''""-

346

-'

A oncologia do mundo da vida não pretende, desde então, formular res-

trições a priori de fenómenos mundanos independentes de qualquer relaçãocom a subjetividade. Revelar o caráterem-si dos fenómenos é 34

A cientificidade na fenomenologia de Husserl

As ciências como produção histórica no mundo da vida

sentido" (Ibid.). Assim, bem entendido, o axioma da oncologia concreta

,evelaque o a priori subjetivo-relativo do mundo da vida é na verdade .nna przoríí?ztersubjetivo-re/atívo, uma vez que o mundo concreto em todaa sua riqueza fenomenal não é somente mundo da experiência subjetiva isolada, mas de comunidades que partilham predicados cultu-

.aishistoricamente instituídos.

Essacaracterísticamarcante do mundo da vida suscita uma apa rente dificuldade ao prometo husserliano. Afinal de contas, é preciso re-

conhecerque o caráter eminentemente subjetivo do mundo da vida o mundo tal como vivenciado pelos sujeitos, e não um domínio que poderia ser circunscrito em seuscomponentes puramente objetivos. A antologia do mundo da vida visa a, dessemodo, desvelar as estruturas

pareceimplicar uma relativização daquilo que essemundo e: uma vezque ele sempre vigora em correlação com capacidadessubjetivas e intersubjetivas particulares. A própria formulação do axioma da on-

cologiaconcreta faculta essaconsequência, já que não se vincula ali

eidéticasque delimitam as possibilidadesde um mundo ta/ comoexpe-

o mundo da vida a uma forma geral de subjetividade,

rimentado subjetiva e intersubjetivamente.

concretas. O mundo

A validade írztersub/etívada experiência concreta do mundo é acentuada em outro manuscrito publicado em Kll, Sobre a exp/Ícífação da vida de consciência do murado. Segundo essetexto, para caracte-

da vida é o correlato

e sim a pessoas

da experiência

de pessoas

quevivem em comunidadesformadas historicamente e nasquais vigoram sistemasinterpretativos de fatos e ações não plenamente compa' cíveisentre si. As pessoasassim consideradas avaliam sua experiência

rizar a vida intencional que sustentao mundo da vida, "não podemos

conforme critérios valorativose interpretativos delimitados histórica e

nos permitir negligenciar uma grande obviedade que pertence estruturalmente a toda vida" (Kl1, 197), a saber, que as validades ou os sentidos de ser por meio dos quais a experiência do mundo se organiza não

culturalmente. Segundo Husserl, no parágrafo 73 de K, "o mundo não é jamais dado ao sujeito e às comunidades de sujeitos senão como valendo de maneira subjetivo-relativa para eles, com issoque a cada vez é

são frutos de um sujeito isolado, mas sempre de operações ;zzfersub/etí-

seuconteúdo de experiência" (K, 272). Em outraspalavras,o mundo é válido enquanto experimentado intersubjetivamente, e a constituição

vas. Husserl chega mesmo a atribuir o caráter de necessidade eidética a essaconstituição intersubjetiva do sentido: "o mundo ( . . .) que a cada

vez eu compreendo com respeitoà minha consciênciado mundo logo perde seu sentido de ser ( . . . ) se eu abstrair os meus semelhantes" (Kll 198). O mundo da vida não é, descarte, jamais mundo para um sujeito

isolado; a vida que sustentaa experiência concreta do mundo é sempre vida írztersub/etíva,constituição conjunta de sentido. Um pouco à frente da citação anterior, Husser] reforça ainda mais o seu ponto:

intersubjetiva de sentido envolve particularidades culturais que por ve' zespodem levar a diferenças marcantes de crenças acerca daquilo que seapresentana experiência

Husserl exemplifica rapidamente a possibilidade de conflitos cognitivosresultantesda relatividadecultural no parágrafo36 de K. Interpretadaà luz da cultura científica europeia, o mundo da vida aparece como formado por tais e tais tipos de fatos, em relação aosquais se

se eu eliminasse de um só golpe todos os outros homens, o horizonte

tem grande segurançasobre o seu sentido e modo de funcionamento.

completo da humanidade, eu perderia o mundo e, sobretudo, o seu sentido de ser para mim. Não é somente que não haveria o 'mundo

Em seguida, nota Husserl, "mas se nos deslocamos para um círculo de relações estranho, para os negros no Conho, para os camponeses chine-

de fato' como se houvesseum outro. O mundo perderia todo o seu

ses, então confrontamo-nos

348

com o fato de que as suas verdades, os fatos 349

A cientificidade lla fenomenologiade Husserl

As ciências como produção histórica no mundo da vida

Oscomponenteseidéticos do mundo da vida como

andamentosdasciências Paracompreender a estrutura geral do mundo da vida, é preciso ter em mente o axioma geral que relaciona essemundo à experiência subjetiva e intersubjetiva. Diante disso, a estrutura geral em vista não caracteriza o "em si" mundano, e sim as formas gerais pelas quais um mundo

particulares

concreto pode ser experimentado e receber diversos predicados (entre

Poderia essarelatividade da experiência do mundo constituir uma

os quais aqueles responsáveis pela relativização prático-cognitiva

do seu

dificuldade para o desenvolvimento de uma ontologia? Husserl não julga que os conflitos interpretativossão insuperáveis nem que asco.

sentido de ser). Husserl já havia esboçado algumas análisesdos constituintes da forma eidética "mundo" como correlato da experiência em

munidades estão condenadas a só experimentar "mundos" particulares

válidos conforme suascrençastradicionais. Além disso,a antologia do

ideias IÓ8.Algumas das conclusões ali entrevistas são retomadas nessa circunscrição da essência do mundo da experiência concreta. Em parti-

mundo da vida não seráuma mera descriçãode conteúdosde expe-

cular, acentua-seque a estatura gercz/do mundo não é formada por um

cias particulares de sujeitos ou comunidades quaisquer. Vimos que

conjunto Pxo de entes, e sim por um modo geral de ordenação da experiên

as atividades e os interesses práticos particularizantes no interior da ex.

cía,a saber,a relaçãoentre dadospróximos, que tendem a se sintetizar

periência do mundo devem justamente ser suspensospara que se evi-

em vivências concordantes, e horizontes amplos de sentido, que ofere-

dencie o mundo da vida em sua universalidade. O que se trata de bus. car são os componentes a priori de um mundo da vida em geral e não interpretações empíricas parciais acerca da experiência mundana. Na verdade, como veremos, é ao exibir a estrutura a pHori do mundo da

cem os esquemaspara essasíntese. Essa estrutura geral valeria não só

vida que se pode entender como múltiplas interpretaçõesrelativasda realidade são possíveis.A relatividade da experiência concreta deve ser remetida aos e/eme/ztosíne/cztívosque constituem a essênciado mundo

paraa vida perceptiva, mas para os diversos níveis de atividades intencio-

nais que se entrelaçam na experiência mundana (intencionalidade linguística,afetiva, empática). Conforme afirma Husserl, "o mundo da vida 1...) estáem um movimento de permanente relatividade de validade e referencialidade aosque vivem em relação mútua" (K, ap. XVTl1, 465).

C)mundo não tem entãocomo seu a pdorí um conjunto fixo de entes,e

da vida. Nas palavras de Husserl, a solução é a seguinte: "a dificuldade desaparece assim que nos damos conta de que este mundo da vida, em

sim certa mobilidade constante dos conteúdos da experiência subjetiva

todas as suas relatividades,

tem a sua estmfura gera/. Essa estrutura ge-

horizontes de possibilidades que pré-delineiam as validades de ser que se

ral, a que todo ente relativo estávinculado, não é ela mesmarelativa

atestamou se desconfirmam no correr da experiência. Asseverao autor

Podemos observa-la em sua generalidade e, com o devido cuidado, es-

no mesmo texto: "o mundo, como o horizonte comum com perma-

tabelecê-la igualmente como acessívelde uma vez por todas" (K, S 36,

nente validade de ser das coisas que são, tem sempre e de antemão a vali-

142). Enquanto ontologia, a investigaçãocientífica do mundo da vida

dade de ser algo corrigível por coerência, coerentemente experienciável

deve tornar evidentes as cczracfe7útícaseídéfícas que constituem as pos-

e corrigível onilateral e mutuamente" (K, 464). O mundo é, desseponto de vista, o que se doa a cada vez na experiência concreta sobrehorizontes de validades de ser que abrem expectativas de continuação do pró-

sibilidades ideais de fenómenos mundanos. Essascaracterísticas eidéticas delimitam de modo necessário o sentido e o alcance das mais varia-

e intersubjetiva, mobilidade

que não é aleat(ária porque desenrolada sob

das e relativas experiências empíricas no mundo da vida. Vamos acom-

panhar como Husserl ascaracteriza. 350

68. Esseponto foi discutido no capítulo ll 35 1

A cienti6icidade na fenomenologia de Husserl

prio curso da experiência (em seusdiferentes níveis intencionais)óç.Pn.

As ciências coma produção histórica no mundo da vida

r

rIDetange às relações intersubjetivas sedimentadas à luz de horizontes culturais. Assim, certos dogmas de uma visão de mundo têm sua legiti-

midadeabaladaem virtude de conflitos interculturais, como ocorre na "historicidade política", exposta no início deste capítulo. Desde então, a

por exemplo) que constituem um horizonte geral de perceptibilidade no interior do qual efetuo minhas diversasvivências particulares

E importante enfatizar que essaexperiência na qual o mundo se

estruturageral de experiência por meio da qual o mundo da vida se manifesta(permanente mobilidade de conteúdos à luz de horizontes também móveis)permite compreender, ao mesmo tempo, que haja relativi-

atestaconcretamente estáem "permanente mobilidade"(K,465),de

dadesculturais e também que elasnão sejam totalmente insuperáveis.

maneira que ela permite "transformações e correções" (ibid.) acerca da validade de ser que é atribuída aos conteúdos que nela paulatinamente

Afinal, ao menos de modo ideal, é possível antever vias de consenso por

seperfilam. Essascorreçõesocorrem em duasdireções.Por um lado,de

terpretativoscom relação à validade de certa crença remetem, muitas vezes,a horizontes de sentido incompatíveis entre si. A aproximação

maneira mais óbvia, o sentido manifestado por atesparticulares pode ser corrigido por referência ao horizonte geral em vigor. Assim, por exemp[o, uma percepção i]usória é atestadacomo ta] à ]uz do desenrolarco..

rente do fluxo perceptivo conforme as expectativasgerais de perceptibilidade por meio das quais a progressãoda experiêncianormalmente

meio de alteraçõesdos horizontes vigentes de sentido. Os conflitos in-

desses horizontes por meio de esforçosinterpretativos convergentesde certos fatos ou eventos mutuamente disponíveis poderia mitigar ao me nos os graus extremos de relativização cultural''. Dessa maneira, ao enfatizar a estrutura de horizonte móvel, revela-se a experiência não como

se ordena. Por outro lado, o próprio horizonte de sentido em vigor é

imposiçãode um bloco de dadoscom sentidoúnico, e sim como um

alterável à luz de vivênciasparticulares cruciais, que atestem os limi-

fluir constante de conteúdos que sãosintetizados sempre em função da

tes dos esquemas amplos de apreensão e interpretação em vigor70.Essa

coerê?leiag/oba/ das vivências à luz de amplas normas interpretativas. E ao menos nos níveis intencionais superiores (interações linguísticas,

última possibilidade se efetiva de modo consideravelmente comum no

69. "0 que a cada vez é ativamente consciente e, correlativamellte, a posseatava da consciência, o ativo estar dirigido para, estar ocupado com, permanece sempre cir-

cundado por uma atmosferade validadesmudas, ocultas, mas cofuncionais, por um Àonzonfe vivo em que o eu anualpode também se situar voluntariamente ao reativaraquisições antigas, ao apreender conscientemente ocorrências aperceptivas, transformandoas em intuições. Assim, em virtude dessa /zorizorzfa/idade em permanente curso, toda

a validade efetuada na vida natural do mundo pressupõe sempre já validades, fazenda

remontar, imediata ou mediatamente,até um subsolo necessáriode verdadesobscuras. embora ocasionalmente disponíveis, as quais constituem todas entre si, e juntamente com os fitos propriamente ditos, uma única conexão vital inseparável" (K, $ 40, 152) 70. S. Geniusas expõe de modo claro esse ponto: "os horizontes são despertados

como horizontes de determinabilidade indeterminada. Isso quer dizer que o fenâmena em suaduraçãoenvolve não apenaspreenchimento permanente, mastambém elementos de frustração, que modificam a configuração proÍetada de sentido que acompanha a objetividade manifestada. Assim, o horizonte de pré-reconhecimento típico é deÕlzfdor

crenças,predicados culturais), para cada unidade cultural ou visão de mundo, diversas normas interpretativas, não plellamente compatíveis entre si, poderiam operar como horizonte de compreensão dos fatos vividos. Essa relativização do sentido da experiência, porém, graças à mo-

bilidade inerente aos próprios horizontes esquematizadores do sentido, não é insuperável, uma vez que tais horizontes sãopassíveisde transformação conforme o desenrolar das experiências particulares': eventos singulares resistem à esquematização pelos padrões disponíveis nos horizontes de sentido e forçam mesmo uma recon6lguração dessesúltimos

71. Husserl crê que a cultura racional tem um forte potencial transformador dos horizontes prático-mítico de sentidos, uma vez que a atestação dos resultados cientí6lcos levaria ao abandono de certas crenças tornadas então insustentáveis. Voltarei ao tema da

menos manifestados, é por sua vez governado por elas" (Geniusas, 2012, 102). Certos

ciênciacomo transformadorado horizonte mundano 72. J. Benoist ajuda a compíeertder esseponto. Apesar de sempre medrado por crençasculturais relativas, o mundo da vida é experimentado como o mundo verdadeiro e não como alguma imagem relativa de um em-si universal. Cada comunidade

352

353

mas não de/irzffívo;é defermfnanfe, mas não determinado. As modificações incessantes de que o horizonte é passívelindicam que o horizonte, apesarde governar os fenó-

A cientificidade na fenomenologia de Husserl

As ciências como produção histórica no mundo da vida

pré-cientificamente, o mundo já é um mundo espaçoternporal: é certo que em relação a essa espaçotemporalidade não se fala de paRI.. tos matemáticos ideais, de retasou planos 'puros', tampouco dacon. tinuidade matematicamente infinitesimal, da 'exatidão' pertencente ao sentido do a prior geométrico (...). O mesmo se passacom a causalidade ou com a infinidade espaçotemporal. O categorial do

mundo da vida tem os mesmos nomes, masnão se preocupa, por assim dizer, com as idealizações teóricas e substruções hipotéticas do geõmetra e do físico (K, 142-143).

Isso quer dizer que as estruturaseidéticaspor meio das quaiso mundo da vida se revela como um conjunto de fenómenos universal. mente típicos são fique/asanalisadaspelas ciências objetivas. E cabível até mesmo usar os mesmos nomes para tematizar essasestruturas, a

saber, espacialidade, temporalidade, causalidade; no entanto, deve-se

observarque no mundo da vida essasestruturas portam certo padrão de organização que não envolve determinação objetivo unívoca. As

pretende, assim, que o mundo vivido particularmente seja válido para lodos. A vigência do mtmdo supõe, desse modo, o asserzffmerzfodos denzaís acerca daquilo que eie é

Aqui se encontra uma forte possibilidade de modificação dos horizontes culturais. Aâ-

nal de contas,"na própria pretensãode atingir o mundo como ele é (...), estáaberta a possibilidade de que ele seja de um modo outro que não aquele em que nos é imediatamente dado" (Benoist, 1998, 228). Ocorre que a validade universal das experiências culturalmente carregadas riem senzPrese con/ir17za,o que justamente instaura con-

flitos interpretativos interculturais acerca do sentido dos fatos em vista. Cada visão de mundo particular visa ao mundo universalmente, o que obriga a buscar o assentimento

a[heio para confirmar o caráter universal da própria visada. "Não há mundo que não seja delimitado (. . .) pela possibilidade, sempre pressuposta,do questionamento por outrem, na medida mesma em que não há mundo que não seja uma demanda de assen-

timento" (rd., 229). Essademanda interminável por acordo como garantia da universalidade do mundo visadoabre oportunidades de alteraçãodoshorizontes tradicionais de compreensãoà luz do convívio intercultural. 354

355

A cientificidade

As ciências como produção histórica no mundo da vida

na fenomenologia de Husserl

mente típico, na experiência mundana. Daí que Husserl insistisseprincipalmente em uma desfia/odzaçâoda experiência subjetivc-relativa e não em uma total desapariçãodessacomo resultadodo exercício in. gênuo das ciências modernas. Essasse servem das estruturas típicas do

mundo da vida; porém, interpretam que os domínios objetivos exatos. construídos teoricamente, são o fundamento ontológico da experiência mundana. E essefoi o ponto duramente criticado por nossoautor: a interpretação objetivista, que toma aquilo que resulta da aplicação dos métodos matemáticos como explicitação do em-sí mundano7+ Por

sua vez, a oncologia do mundo da vida permite atribuir o devido peso às produções teóricas modernas. Trata-se da objetivação de domínios de relações exatas, o que se obtém pela aplicação de métodos de idealização e substrução sobre as características típicas da experiência do mundo

da vida, as quais formam,

então,

em um sentido

ainda

a escoa.

recer, uma camada ontológica fundente do conhecimento científico.

A explicitação da continuidade entre resultadoscientí6lcose estruturas constituintes da multiplicidade fenomênica do mundo da vida vale não só para as ciências exatas,mas para todas asciências possíveis,

conforme anuncia o parágrafo66 de K. Ali, afirma-se que "a simples

tabelecidos no correr da década de 1920, nos cursos em que buscava a

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Ü ii! ii ::R :i R i:iul ül=1::=:u::?;l!illql que por sua base corporal exercem funções vitais) e .inanimadas. E os

organismosse dividem entre aqueles portadores de vida psíquica com-

tençõestípicas da experiência mundana não são desenvolvidas em K, e somente ecoam resultados obtidos em textos anteriores. A sua menção, no entanto, funciona aqui para marcar o caráter /undczntedo muradoda vida em relação àsciências. Para Husserl, "tais distinções e agrupamen' da expe-

tos mais geraissão,a partir do mundo da vida como mundo

nencia originária, determinantes para as distinções dos domínios ciende todas tíficos ( . .). Por outm lado, abstrações universais abrangentes

as concreções codeterminam, simultaneamente, temas para as ciências

possíveis"(K, S 66, 230). As típicas regionais de fenómenos mundanos 74. A. Steinbock resume de forma muito clara o problema aqui em vista: "de acordo com Husserl: as ciências obÍetivas têm as 'mesmas' estruturas que o mundo da vida 'pré-cientíâco'- Mas as ciências as pressupõem e delas esquece em sua substrução

deuma'verdadeemsi"'(Steinbock,

1995,95). 356

'

'"'''"'-'

antecipam a delimitação dos domínios científicos, os quais são então metodicamente investigados principalmente por meio da abstração ou do isolamento de características a se analisar em detrimento de outras 357

A cientificidade

na fenomenologia

de Husserl

que compõem a experiência concreta. Torna-se, assim, possível acom-

panhar a gênesedo conhecimento científico em sua especificidadetemática e metodológica (por exemplo, esclarecendo as diferenças entre as ciências exatas e humanas) com base nas estruturas eidéticas do

As ciências como produção histórica no mundo da vida

f

4

para nós que nele vivemos despertos, existindo sempre.}á de antemão,

o 'solo' para toda praxis, tanto teórica quanto extrateórica" (K, 145). Nessafunção geral, o mundo "é pré-dado como horizonte, não uma vez, ocasionalmente, mas sempre e necessariamente como campo um' versal de toda a praxis efetiva e possível. A vida é permanentemente vi-

mundo da vida7s.

A antologia do mundo da vida almeja, dessamaneira, explicitar condições "objetivas" últimas que devem ser cumpridas para a produção do conhecimento, isto é, os pressupostos genéticos referentes às regiões mundanas por meio das quais os domínios objetivos e as disciplinas científicas correspondentes são formulados. Já no primeiro capíhilo havíamos estabelecido: fundamentar o conhecimento científico é, para Husserl, clarificar os pressupostos que delimitam seu sentido e

alcance, atribuindo, dessemodo, a perfeição racional que faz justiça à

ideia original de cientificidade, segundo a qual o conhecimento cien-

tífico deveserfundamentadoem princípiosde maneiraevidente.No correr de sua carreira, Husserl amplia a noção de condições objetivas do conhecimento, considerando não só a armadura formal pela qual as teses são exprimidas, mas também as restrições a príoã dos domínios

a se estudar. E, por meio da análise genética, reconhece-se que é preciso recuar até a origem dessascondições objetivas estáticas no próprio

mundo vivido pré-teoricamente, sobre o qual os domínios científicos são circunscritos. A ontologia do mundo da vida fornece, desse modo,

uma clarificação última dos pressupostostemáticos que tornam possí-

ver na certezado mundo" (ibid.). Enquanto solo, o mundo funciona como pano de fundo de crenças tácitas sobre o qual os interessespar' ticulares se desenrolam. O "tomar por tema" ou o "dirigir-se para algo em particular" supõem esquemas amplos de ordenação dos dados de

forma coerente,o que ocorre por remissãoa horizontesde validades de ser que sustentam contínua e passivamente a progressão dessasex-

periências. Nessesentido, o mundo da vida é "para nós sempre:xlstente, continuamente pré-dado" (K, S 34e, 133); ele permanece válido

como solo de sentido sobre o qual as mais diversasatividadespartícula res (pré-teóricas e teóricas) ocorrem. Desse ponto de vista, o mundo da

vida não é só uma espécie de premissa inicial assumida pelo trabalho

científico, masum conjunto de validadesde serpressupostaspor todos os aros subjetivos particulares, uma estrutura geral de pré-doação da ex-

periência que acompanha o desenrolar de qualquer tarefa pessoal, inclusive aquelas da esfera cieTItífica7ó

Deve-seenfatizar que mesmo nessafunção de solo o mundo da vida não é um ente estático. Conforme o apêndice XVlll de K, os juízos científicos são produzidos sobre o solo do mundo da vida, pressu'

vel a atividadecientífica. Tal como esboçadaem K, essaclarificação

posto em todas asfases da consecução das atividades particulares, como

fundente ocorre pelo menosem dois níveis.

manentemobilidade da vida de validade subjetiva" (K, 465). A pro-

Em um nível maisgeral,o mundo da vida é explicitadoem sua função de se/o para toda a experiência natural, inclusive para.as práti.

cas científicas. Segundoo parágrafo37 de K, "o mundo da vida é (.. l

"o fundamento de uma validade universal de ser que se produz na per' dução científica particular remete ao solo do mundo, ou seja, supõe evidências originárias básicas que acompanham toda progressão de 76. Conforme observa D. Follesdal, "toda reivindicação de validade ou ve.idade jaz

75. Husserl havia realizado em parte esseprograma em Ideias 11,ao tentar mostrar

as fases(ie constituição da noção de' objeto físico a partir da experiência pré-científica do mundo. Não é corneto então, como afirma J. C. Evans, que a análise.de K implica

sobre esse'iceberg' de aceitações antejudicativas não tematizadas ( . . .)-.Husserl defende que é exatamente a natureza não tematizada do mundo da vida que o torna.solo último

de justificação Aceitação e crença não sãoatitudes que decidimos ter por algum ato de decisão ludicativa. O que aceitamos, e o próprio fenómeno da aceitação, são integrais

ao nossomundo da vida, e não há como começar do zero" (Follesdal, 2010,45) Nesse sentido. o mundo da vida constitui um pano de fundo de crençasbásicasnão questioprefiguram os domínios e métodos científicos

nadas, sobre as quais os alas pessoais particulares se desenvolvem

359 358

A cientificidade na fenomenologia de Husserl

As ciências como produção histórica no mundo da vida

atividades particulares, evidências tais como a existência do própria mundo, a coerência do fluir da experiência, os estilos tÍPicosde feno.

queaspossibilidades do desenvolvimento dasciências estãosempre antecipadasno mundo da vida. Por sua vez, a produção científica pode se

menos por meio dos quais se pode antecipar o avanço dos eventos. Mias

sedimentar,por meio da educação e de hábitos culturais, como parte

é, em sua essência,uma estrutura geral móvel, já discutimos

do pano de fundo vivenciado passivamente como horizonte de valida-

há pouco. .Afinal, a compreensão daquilo que o próprio mundo é pode

desde ser no qual as pessoasrealizam seusfins e suasatividadesparti-

se are.rar, bem como a compreensão de quais os princípios que regem

culares.Husserl nota que, muitas vezes,a ciência "é corzüastadacom o

os estilos típicos de síntese da experiência mundana.

'

'

Cabe enfatizar que uma fonte de transformaçãoda compreensão dos componentes do mundo é a própria atividade científica. Issoé re. conhecido no parágrafo 34e de K: "os resultados teóricos têm o caráter

mundo da vida (. . .). Por outro lado, tudo o que surge e surgiu pelo ser humano (individualmente e em comunidade) é também uma parte do mundo da vida: assim o contraste se anula" (K, ap. XVl1, 462).

A resolução desse aparente paradoxo ensina algo importante.

de validades para o mundo da vida, as quais constantemente acrescer. fam o seu conteúdo e são,então, de antemão a ele pertencentes, como

Tomadoem sua concretudede experiência,o mundo da vida não é redutível a um núcleo de conteúdos puramente sensíveis,anterior a

horizontes de realização possíveis da ciência em surgimento" (K, 134).

qualquer atividade conceitual". O mundo da vida em sua doação concretaenvolve uma multiplicidade de diferentes conteúdos intencionais

Os resultadoscientíficos e o pensar teórico em geral são adicionados à experiência do mundo da vida e constituem, ao menos em parte, a horizonte de sentido geral no qual os aros particulares da experiência

fluem. Dessamaneira,"o mundo da vida concreto (...) simultane;. mente é o solo fundente para o mundo 'cientificamente verdadeiro'e o compreende na sua própria concreção universal" (ibid.). Parecehaver aqui um paradoxo:por um lado, o mundo da vida é a basedasproduções científicas, que, dessaforma, o supõem. Por outro lado, a atividade científica toma parte na composição dos horizontes de sentido

apreendidos simultaneamente (por fitos perceptivos, mas também lin-

guísticos,empáticos etc.). Ele envolve, assim, em seus horizontes de sentido, regrasou crenças culturais amplas, o que indica que a produ-

ção científica não é algo que ocorre cora do mundo da vida, mas um tipo de atividade realizada sob os /zorízor7fescu/forais mundanos, uma

atividadeque também compõe o mundo da vida e que, em particular, tem grande potencial para alterar estruturas amplas de crença e de moda dp nrãn78

que constituem o próprio mundo da vida. Contudo, essadificuldadese desfaz quando se leva em conta que as produções científicas são remis-

síveisao a priori do mundo da vida como fonte última de sentido.Daí Husserl afirmar, na citação acima, que tais resultadospertencem "de

77. Em alguns textos, Husserl propõe uma desconstrução metódica da experiência a fim de circunscrever a sua camada puramente sensível (por exemplo, em Psfco/ogia

antemão" ao mundo da vida. Vimos que asestruturas típicas mundanas

lenomeno/ógíca,S.6), conforme vimos no capítulo anterior. Nesses'casos,trata-se,porém, claramente do isolamento artificial de alguns componentes da experiência e não

são exploradas de forma metódica e especializada pelas ciências, cujos

de uma apresentação do mundo da vida concreto. Conforme observa J.'Farges, "não se

resultadosnão estão,dessemodo, em oposiçãoao, massim em continuidade com o mundo da vida. Destarte, a sedimentação de resultados

científicos na cultura não vem destruir o que seria um supostomundo da vida puro, pois trata-se de explicitações metodicamente conduzidas de aspectos que /á co?zstífuema exPeríêlzcícz concreta. Os dom ínios cien-

tíficos nada mais são que delimitações idealizantesde estruturasque pertencem, em seu caráter típico, à experiência mundana, de forma 360

deveria tentar identi6lcar [asl 'coisas do mundo da vida' a simp]es substratossensíveis naturais; sãounidades intersubjetivas de sentido, carregadasde predicados espirituais, ainda que não haja contradição em pensar o mundo ambiente da vida como mundo histórico-cu]tura] e em determina-lo 'simultaneamente como 'mundo de coisas"' (Farges,2010b, 31). Tal como já delineado nos cursos Nahreza e espídÍo, o mundo da experiência pré-científica apresentapredicados naturais e culturais entrelaçadosem unidades significativas

78. No mesmo texto citado na nota acima, J. Fargesdescrevebem a característica central do mundo da vida em questãoaqui: "o mundo da vida é fundamento da vala dade dasverdadesda ciência enquanto é simultaneamente potência de incorporação do 361

A cientiflcidade

As ciências como produção histórica no mundo da vida

na fenomenologia de Husserl

Apenas para reforçar esseponto, lembremos que em sua função de solo, o mundo da vida é como um conjunto

de certezas ou evidências

básicas, não questionadas senão em circunstâncias especiais (de trans.

culturais. Daí que, em sua função de solo de sentido, o mundo da vida inclua sedimentações culturais oriundas de investigações teóricas'' Toda essadiscussãoainda se refere apenasà função geral do mundo

formação dos horizontes de sentido) e assumidas como óbvias, solo se.

da vida como solo de sentido. Há também outro papel do mundo re-

bre o qual as mais diversaspráticasparticulares se desenrolamsignificativamente. Não se deve então propor nenhuma restriçãoem relação

ferente à fundamentação das ciências, que diz respeito à questão par-

à origem intencional dos componentes desseshorizontes de validades ser; não se deve exigir que eles se)am, por exemplo, conteúdos mera.

essepapel no parágrafo36, ao afirmar que o a priori das ciências objetivasremete ao a priori do mundo da vida. "Este estar remetido é o

mente sensíveise não culturais. Conteúdos intencionalmente origina-

de uma fundamentação de validade" (K, 143), acrescenta o autor. De

dos em fitos teóricos podem se sedimentar e vigorar como Componen-

fato, no parágrafo 34d, já se havia comentado acerca dessafundamentação da validade das teses científicas por remissão ao mundo da vida. O trecho em questãoé o seguinte:

tes dos horizontes passivamente vivenciados como solo sobre o qual os interesses pessoais particulares são vivenciados. Esse é o caso do hora.

ticular da validade das teses científicas. Husserl menciona claramente

zonte de sentido da cultura científica europeia, conforme o qual certos

tem de ser totalmente esclarecido(. . .) que toda evidência dasprodu

fenómenos mundanos são espontaneamente compreendidos à luz do

çõeslógico-objetivas, nas quais a teoria objetivo (a teoria matemática e a cientí6lco-natural) está fundada, quanto à forma e ao conteúdo, tem as suasfontes ocultas de fundamentação na vida produtiva, na

sabercientífico em vigor (por exemplo, um raio em uma tempestade é apreendido como um fenómeno elétrico e não como uma manifestação demoníaca). Em muitos momentos de K, Husserl propôs uma

tar para um mundo inteiramente sensível e anterior a toda contribui-

qual os dados evidentes do mundo da vida permanentemente têm, adquirem e readquirem o seu sentido de ser pré-cientí6lco. O caminho conduz aqui da evidência lógico-objetivo ( . . .) de volta à evidência originária na qual o mundo da vida é permanentemente pré-dado

ção cultural, e sim, como sabemos agora, de apontar para as estruturas

(K

suspensãodessaapreensãoóbvia do mundo segundo a vestimenta de ideias científicas. Não se tratava, entretanto, por meio disso, de apon-

típicas do mundo da vida, as quais, como vimos, pré-delineiam toda atividade e todo domínio científicos possíveis.Husserl centralizou sua

em relação à própria evidência lógico-objetiva dos resultados teóricos

crítica somentena indevida operaçãoobjetivista por meio da qual o

Essasevidências remeteriam a evidências do mundo da vida, e, assim,

mundo da vida era substituído por uma natureza substruída. Essainter-

ao menos em parte, a fundamentação das premissas teóricas depende

pretação objetivista levavaa crer que o mundo era em si mesmoa natureza idealizada.Contra essainterpretação, o autor recupera a prece-

da experiência do mundo da vida. O que Husserl parece ter em vista nesseponto é que a validação de tesescientíficas (tesesque podem tra-

dência do mundo da experiência concreta, que vale como solo de sen-

tar de domínios objetivos que nem mesmo se doam diretamente à ex-

tido paraa própria atividadecientífica. Que fique claro, porém, que em nenhum momento tratou-sede afirmar que essemundo concreto é um

periência, como é o caso lia física de partículas, por exemplo) supõe.o apelo a experiências disponíveis no mundo da vida enquanto mundo

Salienta-seaqui que o mundo da vida exerce um papel fundante

mero conjunto de dadossensíveiscompletamente alheios àsproduções 79. Como reconhece Husserl, "o mundo, que é o universo aberto,( . . .) campo unipredicativo e do teórico em suaprópria imediatidade pré-teórica" (Farges,2010b, 33) As produções teóricasauxiliam na constituição doshorizontes de sentido por meio dos quais o mundo é vivido, ainda que de forma passiva,em sua concretude significativa.

versal do ente, que toda a praxis pressupõe e enriquece nos seus resultados" (K, S 52: 180 itálico meu). Os resultados das atividades particulares contribuem, assim, para '

362

363

elaboraçãodo horizonte geral do mundo

A cientificidade

na fenomenologia

de Husserl

partilhado intersubjetivamente. Esse tema é explorado no parágrafo 34b de K. Ali, observa-seque a validação das teses científicas depende

do recursoa evidênciasque não estãono mesmonível lógico-objetivo das teses defendidas, mas sim no nível das evidências mundanas co. muns. Trata-se, por exemplo, das evidências perceptivas pelas quais se leem os resultados dos aparelhos de mensuração e se cometam dados

observáveispublicamente. Assim, em momentos cruciais de suaativi. dade, o cientista recorre às evidências do domínio subjetivo-relativo. que, nessesentido, "não funciona para ele como uma transcriçãoirrelevante, mas como aquilo que é em última instância fundamentador

As ciências como produção histórica no mundo da vida

Cabe acentuar, entretanto, que o fenomenólogo notara essaexigência. O dado sensívelusado pelo cientista ou, em outras palavras, a evidência perceptiva de que ele se serve tem de ser "acessívela ele bem como

a toda a gente no mundo pré-científico" (K, 128), asseveraHusserl ao discutir especificamentea experiência de Michelson utilizada por Einstein. Fica aqui claro que, ao insistir na função fundamentadora da validade científica, Husserl não tem em vista o mundo da vida enquanto fenómeno sensívelprivado, e sim como estrutura de horizonte intencionalmente

densa, na qual os conteúdos sensíveis, os predicados

culturais e as possiblidades de interações linguísticas estão entrelaça-

da validade de ser teórico-objetivo para toda confirmação objetiva, ou

dos.O cientista, ao tratar o mundo como domínio em-si objetivo ou

seja, funciona como fonte de evidência, como fonte de confirmação

mesmo ao tratar objetivamente do ser humano (enquanto conjunto de

(K, S 34b, 129). A atestação de teses objetivas, a afirmação da sua cor-

órgãosem relações de dependência causal com o meio), depende das

reção, remete à experiência sensívelcotidiana, na qual se tem acesso

evidências do mundo da vida para validar suas teses: evidências sen-

aosdados que efetivamente confirmam ou desconfirmam os resultados

síveisinterpretáveis segundo normas de discurso racional, partilhadas

acerca dos domínios objetlvos.

nas comunidades científicas, as quais estão inseridas em sociedades

Sem dúvida, Husserl valoriza nesseponto a experiência perceptiva como capacidade intencional fundente das validades das teses cientí-

complexas e que assimilam e reproduzem ritos e comportamentos em

ficas. Dessaforma, é mantido o papel de destaqueatribuído à percep-

ção já no parágrafo28 de K: "em todasas confirmaçõesda vida natural de interesses,da vida contida puramenteno mundo da vida, o

vigor em determinado período histórico. E esseconjunto perceptivonormativo-tradicional que funciona como fonte de validade das teses das ciências objetivas80

retorno à intuição 'sensivelmente' experienciadora desempenha um

E assimque o mundo da vida é explicitado em seu papel de fundamento da ciência, e issoem uma dupla função: por um lado, como

papel proeminente" (K, 108). No entanto, como nota o comentador

pressuposto constante de sentido para o desenrolar de cada passo da ati-

Claude Romano, em tom crítico, os resultados experimentais observá-

vidade científica, e por outro, como fonte de evidências originárias responsáveispela atestaçãoda validade das tesesacerca dos domínios obje-

veis a que os cientistas recorrem para validar suas teses não têm valor

de prova apenas porque são temas perceptíveis sensivelmente, como se a percepção estivessea salvo de toda possibilidade de engano. O valor de prova dessesresultados experimentais jaz "na reprodutibilidade da experiência e na possibilidade de pâr-se de acordo sobre sua especifi-

tivos,muitas vezes,em si mesmosnão intuíveis. A ontologia do mundo da vida revelaria, dessemodo, as condições "objetivas" últimas do co-

nhecimento científico, referentesà doação da experiência pré-científica. Vale observarque essesresultadossão muito mais programáticos

cação para a teoria" (Romano, 2009, 120). O papel fundente dasevidências do mundo da vida não está, assim, ligado à atestação perceptiva

individual, pois decorre dasinteraçõesracionaisem que se discutem os resultados experimentais na comunidade científica. Essaprecisão de Romano é importante, na medida em que esclarece que não é o ca-

80. Insiste Husserl em relação ao caráter intersubjetivo da vivência do mundo cada um tem as suaspercepções, assuas presentificações, assuascoerências, desvalorizaçõesdas suascertezas em meras possibilidades, dúvidas, questões, ilusões. No viver em relação mútua, porém, cada um pode tomar parte na vida do outro. Assim, o mundo não

é, de todo, existentesomente para a pessoaisolada, mas para a comunidade humana.

ráter privado sensívelaquilo que justifica ou funda as tesescientíficas.

e, na verdade, isso já é assim pelo tornar-se comum da mera percepção" (K, S47, 166)

364

365

A cientiHjcidadena fenomenologiade Husserl

As ciências como produção histórica no mundo da vida

do que definitivos. A ontologia do mundo da vida ainda não é urn; ciência acabada,e, no correr de K, Husserl muito mais indica suasli.

dcZ subjetívídczdeque o vivência e assim o sustenta enqua7zto mundo subktívo-re/atívo. Isso quer dizer que a antologia do mundo da vida não se

nuas gerais do que a desenvolve plenamente. Em todo caso, não deve

encerraem si mesma, pois se abre para uma investigação das estrutu-

passar despercebido que, ao propor essaontologia, o fenomenólogo re.

toma, de forma visivelmente ampliada, aquele esquemade fundamen. ração das ciências lançado muitos anos antes em Pro/egõmenos à J(5gíca pura: levar à clarificação pressupostosjá em atuação na prática científica, atribuindo, dessemodo, perfeição estrutural ao conhecimento científico, que, segundo seu sentido ideal, deve sempre remeter com evidência seusresultados aos princípios que os legitimam.

rasa pHorí da subjetividade em geral. Esseponto é sugerido no parágrafo37 de K. Ali, é esboçadauma distinção ontológica a priori basilar acercado mundo da vida, a saber,aquela entre as coisasparticulares e o próprio mundo como horizonte geral englobante dessascoisas.Para darconta dessadistinção, deve-setornar visível "uma diferença fundamental na maneira da consciência do mundo e da consciência do obieto" (K, 146). A consciência do mundo será remetida à experiência doshorizontes de sentido enquanto a consciência das coisasé marcada pelasíntesede perfis parciais experimentados em uma progressãocoe-

C) Passagemà orientação transcendental

rente. Importa acentuar que a possibilidade de lematização das pro-

O a priori do mundo da víd

priedadeseidéticas pelas quais o mundo da vida se manifesta implica

e a ãenomenoZogía

uma remissão às capacidades sub/etívas de apreensão. Conforme asse-

Por meio da ontologia do mundo da vida, Husserl tem em vista os componentes eidéticos do mundo pré-teórico pressupostosna atividade

veraHusserl no mesmo parágrafo: "essadiferença dos modos de ser de

científica. Essa oncologia se desenvolve sob a orientação natural do pen-

a cada um modos de consciência correlativos fundamentalmente dife-

sar,o que significa que ela ofereceuma nova via de passagemà proble-

rentes" (K, 146). Dessa maneira, a circunscrição de estruturas típicas

mática transcendental, assim como ocorria com as ontologias materiais

vigentesno interior do mundo da vida só pode serfeita por uma expli-

no período dasIdeias. Como vimos, os temasontológicos servemde fios condutores para a explicitação dos fitos constituintes de sentido doscor-

citação dos modos de consciência em que o mundo se doa como tal. Ora, isso é bem diferente da exploração eidética das regiões objetivas

relatos visados. Entretanto a passagem da oncologia do mundo da vida à

científicas, passíveisde investigação sem que houvesse uma remissão quaseimediata à consciência que produz o sentido de ser ali em pauta. Nessecaso, a referência à consciência marcava justamente o início da

fenomenologia transcendental envolverá especificidadesmarcantesem relação às outras vias abertas por Husserl no correr de sua obra.

Paracompreender tais especificidades, voltemos, de início, a acen-

tuar a particularidade do a r)ríori do mundo da vida em relaçãoao a priori das regiões objetivas exploradascientificamente. O mundo da

um objeto no mundo e do próprio mundo prescrevemanifestamente

reflexãofenomenológica, que se servedo a priori objetivo em questão como fio condutor para tornar visível a atividade constituinte da sub

vida deve ser eideticamente referido aos sujeitos, já que sempre é "sub-

jetividade. Por sua vez, no caso da ontologia do mundo da vida, por sí mesmaela reenvia à tematização da subjetividade produtora de sentido

jetivo-relativo". Tanto é assim que, ao descrever as características eidé-

Dessa forma, trata-se de uma antologia muito especial, que não isola de

ticas que restringem as possibilidadesfenomenais do mundo da vida,

modo ingênuo um domínio objetivo de investigação, pois sua própria

Husserl não trata de espéciesde entes ou propriedades, e sim de modos de orderzaçãodas experiências, nos quais o estilo geral dos tipos feno-

execução impõe uma análise da subjetividade81. Daí Husserl comentar

menais mundanos se atesta. Dessa maneira, czoírzvestigar os írzvaríantes

8 1. Como bem nota J. Farges,"a ontologia do mundo da vida não é senãouma ta-

eidéticos do mundo da vida, é preciso remeter-seàs estaturas invariantes

refapreparatória" (Farges, 20 10c, 49) para a investigação transcendental da experiência

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367

A cienti6icidadena fenomenologiade Husserl

As ciências como produção histórica no mundo da vida

davida leva intrinsecamente à formulação de uma "ciência da subjetividade pré-doadora do mundo" (ibid.); em uma palavra, leva à feno-

menologia,enquanto investigaçãodos fundamentos subjetivos da experiência do mundo em geral. A oncologia do mundo da vida foi con-

cebida como uma disciplina que explorada em sua base genética os pressupostos objetivos das ciências, isto é, pressupostos ligados à pró-

pria distinção das regiões temáticas e dos métodos adequados para ex-

plora-las.No entanto, ao recuar ao mundo pré-teórico enquanto fundoação subjetivos por meio dos quais se vivenda o mundo, tema marcante da fenomenologiasz

Como se vê, a antologia do mundo da vida não trata especifica-

dante do saber científico, revela-se um mundo eideticamente ligado à

subjetividade,de maneira que, nessenível eidético fundente, as con dições objetivas do conhecimento não são separáveis como um tema

mente das condições ob/et;vas últimas pressupostas pelas ciências. pois

plenamente autónomo. Elas estão entrelaçadas às cor)dições subjetivas

a compreensão dos seus temas centrais exige uma investigação das es. truturas eidéticas da consciência e da vida subjetiva como tal. Ao bus. car revelar o a priori desse mundo, essaoncologia leva ao reconheci.

de sua doação, de maneira que é preciso passarpara a análise fenomenológica para que os fundamentos genéticos do saber sejam corretamente elucidados.

mento da "vida universalmente produtora, em que o mundo jél para nós permanentemente numa particularidade fluente" (K, S 38, 148).A sua execução plena requer, então, uma análise das condições subjetivasda experiência, o que para Husserl é assunto de uma ciência muito específica, a saber, a fenomenologia transcendental. Trata-se de uma

A redução ãenomenoZ(igíca em A crise das ciências

ciência que "em contraste com todas as evidências objetivas até aqui delineadas seria uma ciência do como universal da doação prévia do

A lematizaçãoeidética do subjetivo enquanto tal, das estruturasa f)ríori que delimitam o que pode ser uma vida intencional que apreendeum mundo concreto da experiência, implica, assim,a passagem da problemática ontológica para a problemática transcendental.

mundo, ou seja, daquilo que constitui o seu ser-solo para toda e qual-

Essapassagem já era anunciada no parágrafo 37 de K, em que Husserl

quer objetividade" (K, 149). Dessamaneira, a explicitação do mundo

aponta para uma "tarefa que, como se verá, é muito maior e, na ver-

do mundo. Cabe à fenomenologia transcendental "regressarreflexivamentedasunida-

vida" (K, 145). Na continuação desse texto, o autor assevera: "essa te

dade, que também abarca a formulação da oncologia do mundo da des antológicas estruturais assim exibidas até a multiplicidade sintética de abasda consciência pura nas quais essasunidades se constituem e recebem seu sentido objetivo ZDZ

82. S. Luft.ellfatiza que "a antologia do mundo da vida (. ..) produz um caminho para o transcendentall uma vez que entendamos que o mundo da' vida é um 'produto da constituição-

(. . .) É preciso a redução para explicitar a esfera da subjetividade

trans-

cendental que constitui essemundo como o mundo da orientação natural« (Luft, 2004, 2 19).A oncologia do mundo da vida exige, em razão do próprio modo como o mundo da experiência é nela desvelado, a assunção da orientação transcendental. No entanto,

mágica nova que concerne por essência ao mundo da vida, mas que não

é, entretanto, uma temática ontológica" (ibid.). Tem-se em vista nesse ponto exatamente a investigação transcendental, que é exigida pela análise ontológica do mundo da vida, embora não possaser confundida com ela. Mantém-se aqui a distinção em vigor no período dasIdeias en-

tre as ontologias, ciênciasdogmáticas,e a fenomenologia, ciência filo-

conforme visto anteriormente, tal como apresentado em K, o tema do mundo da vida

sófica que esclarece as condições subjetivas d priori do conhecimento e

está entrelaçado àquele da história da humanidade europeia. Veremos de que maneira

da experiência em geral. A ciência da subjetividade pura, a fenomeno-

issoé levado em conta pela fenomenologia transcendental 368

logia transcendental, elucida os pressupostos subjetivos das atividades 369

A cieijtificidade

na fenomenologia de Husserl

cognitivas, inclusive aqueles por meio dos quais as próprias ontologias setornam possíveis.

Essa reafirmação da especificidade do trabalho fenomenológico (que não se confunde com a mera análise ontológica) complexifica o entendimento da relação entre a ontologia do mundo da vida e a feno-

menologia. Vimos que essaoncologia, uma vez que estávoltada à explicitação do a priori subjetivo-relativomundano, conduz, em seu desenrolar próprio, a uma consideração das estruturas da consciência que sustentam e atribuem sentido à experiência mundana. No entanto essa consideração, ao se desenvolver como uma disciplina científica autó-

As ciências como produção histórica na mundo da vida

pensar e o correspondente abandono da orientação em que comumente as ontologias são desenvolvidas.

A redução fenomenológica

foi exposta com detalhes no segundo

capítulo dessetexto, em que Ideias r é analisado. Pode-sedizer, sem exagero,que Husserl retoma a radicalidade da aplicação da redução daquele livro em K. Trata-se de desvelara vida produtora de sentido

por meio da qual há a experiênciado mundo vivido concretamente Dessemodo, não se deve pressupor nenhum componente do mundo, ou, em outraspalavras,não se devepressupornenhuma validade de ser já constituída como mundo, pois justamente o que está em causa

noma, não vai simplesmente ser um subtema no interior da ontologia do mundo da vida. Afinal de contas, o estudo da subjetividade como

é mostrar de que maneira o sentido de ser "mundo" é constituído

vida produtiva que atribui sentido e torna possívela experiência se faz

dental. E, para assumiressaorientação, sem carregarpressupostosin-

mundo na vida científica e pré-científica, de maneira a tornar visível o seupuro aparecerfenomenal. AsseveraHusserl que, por meio da ePoché,"o olhar do filósofo se torna pela primeira vez inteiramente livre (. ..) do vínculo interno mais forte e mais universal de todos, e por isso

gênuos da orientação natural (em que as ontologias se desenvolvem), é

mais oculto, o vínculo da pré-doação do mundo" (K, S41, 154). Vimos

preciso aplicar o método da redução fenomenológica.

que o mundo da vida é o horizoíite universal de validade de ser pressu'

em uma orientação específica do pensar, diferente daquela das antologias em geral. Trata-se aqui da orientação fenomenológico-transcen-

Propõe-seentão a epoc/zéuniversal em relação à doação espontânea do

a oncologia do mundo da vida avança na orientação natural;;. No entanto, já sabemos, em seu desenvolvimento essaontologia exige uma

posto por todas as nossasações e pelos interesses particulares, que supõem, assim, uma doação passivado sentido de ser do mundo. E justamente essavalidade ubíqua do mundo que deve ser suspensapela ePo-

investigação da subjetividade produtora de sentido da própria experiên-

ché fenomenológica, o que implica uma neutralização da apreensão

cia do mundo, cuja investigação,por sua vez, não pode pressuporo mundo, que justamentetem seu sentidode ser constituídopor meio

ingênua do solo de validades mundanas e, por conseguinte, das práti-

Lembremo-nos de que, no parágrafo 51, Husserl reconhece que

casparticulares que se erigem sobre eles'

das operaçõessubjetivas que se trata de explicitar. Há, assim, uma ten-

são inerente à ontologia do mundo da vida, o que talvez tenha levado Husserl a chamar de absurda a sua própria empreitada, conforme cita-

ção acima. Afinal de contas, a investigaçãoda subjetividade, tornada necessáriano interior da própria ontologia do mundo da vida, não será por essaúltima completada, e sim pela fenomenologia, disciplina que exige para a sua consecuçãocorrera uma mudança na orientação do

84. Na experiência natural, o mundo da vida estádado como fundo universal de todos os aros particulares; e esse "estar dado" é aceito ingenuamente

sem que.se. pe'junte

por suascondiçõestranscendentaisde constituição. Conforme nota J. Dodd, "a questão da realização do ter o mundo não é uma questão que possaser posta no interior da experiência que foi formada e recebeu seu sentido no despertar do evento do mundo em.sua pré-doação. A própria aceitação do mundo como pré-dado bloqueia esta questão. (. . .)

O mundo como pré-dado é justamente o mundo que não precisaserrealizado; ele sem-

pre lá foi 'tido' por nós,e não aparececomouma realizaçãoe sim como um horizonte para realizações" (Dodd, 2004, 188-189). Soljlente por meio da epocbé fenomenal.ógica 83. "0 mundo da vida poderia sem qualquer interesse transcendental, ou seja, na :orientação natural' ( . ..) tornar-se tema de uma ciência própria de uma ontologia do

suspende-sea validadedo mundo como horizonte no interior do qual os aros partícula

mundo da vida como mundo da experiência" (K, 176).

diçõesde constituição de sentido do mundo como horizonte pré-dado

370

res se desenrolam; dessamaneira, abre-se o caminho para perguntar pelas próprias con-

371

A cientiHlcidade na fenomenologia de Husserl

As ciências como produção histórica no mundo da vida

Segundo Husserl, ao praticar a epoc/zé,o filósofo "recusa-sea levar. tar questões sobre o solo do mundo disponível, questões de ser, ques-

terna de um modo de pensar dogmático e passaa servir como po:to de partida para as análisesconstitutivas transcendentes. Conforme afir-

tões de valor, questões práticas, questões pelo ser ou não ser, pelo ser vá. lido, ser útil, ser bom etc. Assim, todos os interesses naturais estão fora de ação" (K, 155). Por meio dessaef)oc/zé,garante-nos Husserl, "de um

só golpe" (K, S 40, 153) toda a efetividade ou validade de ser na qual o mundo, enquanto estrutura de horizonte, se doa é suspensa Dessa forma, o horizonte mundano e as experiências particulares que nele se desenrolam (teóricas ou pré-teóricas) sãopostosentre parênteses,isto é, têm as suasvalidades de ser metodicamente interrompidas's.

madono parágrafo50, "o mundo da vida torna-seuma primeira rubrica, z'ndíce,fio condutor intencional para o questionamento retrosestruturas intenpectivo dos múltiplos modos de aparição e das suas cionais" (K, 176). O mundo da vida perde a sua autonomia temática

(aqual, de fato, já era problemática no interior do próprio pensar ontológico, como vimos) e "se transforma, em nosso contexto transcendental-filosófico, no fenómeno meramente transcendental. [0 mundo

da viral permanece aí, em sua essênciaprópria, o que era, mas mos-

(inclusive aqueles por meio dos quais as ontologias são produzidas), é possívelassumir o ponto de vista transcendental, que toma o ser mundano como fenómeno manifestado nos nexos de experiência da cons-

büa-se, então, por assimdizer, como mero 'componente'da subjetividadetranscendental concreta" (K, S 51, 177). Tal como ocorria em Ideias1, o mundo passaa vigorarna orientaçãofenomenológicasomentecomo fenómeno, como correlato das operaçõesda subjetivi-

ciência. Dessamaneira, reafirma-seem K (em particular nos parágra-

dade constituinte, a qual, desde então, não tem exterior, já que todos os

fos 48-49) o prometode análise constitutiva sistematizado em Ideias l.

domínios mundanos são a ela referidos justamente para receber o seu sentido de ser.

Por meio dessasuspensão dos interesses práticos e teóricos naturais

Aquilo que na experiência natural apareciacomo ser é reduzido pela epoc/zéao seu aPczrecer,e cabe, desde então, tornar evidentes assíntesessubjetivas pelas quais se atribui paulatinamente validade ontológica aos fenómenos revelados em sua pureza transcendental8ó.

Ocorre, assim, uma transformação global da experiência mun-

O papel filndante da subjetividade transcendenüt

De modo similar a Ideias 1, em K, Husserl também apresenta a

dana, que deixa de ser vivida ingenuamente e passaa ser explicitada em

subjetividade transcendental como absoluta, como um todo indepen-

suasfunções constituintes de sentido. O mundo da vida, que serviu de

dente que envolve o próprio mundo enquanto seu correlato. Issoper' mire resolveruma ambiguidade que despontavano interior da ontologia do mundo da vida e que também é central para a psicologia. Essa

via de acessopara a perspectiva transcendental, deixa de vigorar como 85. "Pretendemos observar,concretamente, o mundo da vida circundante na sua desprezada relatividade e segundo todos os modos de relatividade que Ihe são essencialmente próprios, o mundo (. .) tal como se nos doa na simples experiência (. . .). N.ão .é nosso tema, por conseguinte, se as coisas e as realidades do mundo são e o que são(.:.),

ambiguidade já aparece no parágrafo 28 e é desenvolvida nos parágrafos 53 a 55 de K. Trata-se do estatuto paradoxal da subjetividade no mundo da vida. Tal como mencionado no parágrafo 28,

nem tampouco o que o mundo efetivamente é (. . .). Excluímos, por conseguinte, todos

em termos do mundo da vida, somosnele objetos entre objetos,a

osconhecimentos,'todas asconfirmações do verdadeiro sentido e de verdades predicati-

saber, estando aqui e ali, na certeza simples da experiência, antes de todas as observaçõescientíficas (. . .). Somos por outro lado sujei-

vas, tal como necessárias para a praxis da vida aviva (. . .); mas também todas as ciências (...) com os seus conhecimentos

sobre o mundo tal como ele é 'em si', na 'verdade ob-

jetiva"' (K, S44, 158-159)

86. Na orientação transcendental, "todo ente vivido, para mim e para qualquer sujeito imaginável, como sendona efetividade é, assim,conelativamente com necessidade de essência, índice de suas multiplicidades sistemáticas" (K, S48, 169) de modos de doação subjetivos nos quais o sentido de ser se constitui. 372

tos para este mundo, a saber,como os eus sujeitos a ele referidos de modo teleologicamente ativo (...), para quem este mundo circundante tem somente o sentido de ser que nossasexperiências (. . .) em

cadacasoIhe conferem (K, 107). 373

J A cíentificidade

na fenomenologia

de Husserl

As ciências como produção histórica no mundo da vida +,

remeteao polo constituinte, que é revelado em toda a sua amplitude pelafenomenologia transcendental8=

'

A dificuldadede compreendera especificidadeda vida produ-

tora subjetiva sem o apelo à redução fenomenológica se faz sentir não

nomenais típicos do mundo da vida. No entanto, em sentido geral,o mundo da vida é caracterizado conforme os modos de experiência em que ele se manifesta, o que supõe a subjetividade como atribuidora de sentido ao próprio mundo. Desse último ponto de vista, os sujeitos não

sãoum mero componentetípico mundano, masaquilo mesmoque constitui o sentido de ser do mundo.

'

só na ontologia do mundo da vida, mas também na psicologia, con forme mencionei há pouco. Vimos que a psicologia moderna nasce sobo pressupostoda ciência matematizada da natureza, que de antemão toma o mundo como conjunto de propriedades determinadas de modo univocamente excito, em relação ao qual toda vivência subjetiva

do papel do sujeito é exprimida no parágrafo

sereduz à interioridade psicológica, situada no interior da natureza já idealizada. Conforme o parágrafo 60 de K,

53 como "o paradoxoda subjetividadehumana". Ali seformula cla.

a psicologia começou (...) com un] conceito de alma derivado do

Essa duplicidade

o problema referente ao papel da subjetividade na antologia

dualismocartesiano,que Ihe tinha sido oferecidopor uma ideia

do mundo da vida: "como pode uma parte constitutiva do mundo. a subjetividade humana, constituir o mundo inteiro, constituí-jo como

constitutiva anterior, de uma naturezacorpórca e de uma ciência

sua configuração intencional?" (K, 183). No interior da oncologia do

mundo da vida não há como solucionar esseparadoxo,já que ali a subjetividade é atestadaconcomitantemente nessesdois papéis.É somente por meio da passagemà orientação fenomenológico-transcendental que se hierarquizam de modo inequívoco essespapéis da subjetividade, desfazendoo paradoxo vigente na orientação natural, em que a antologia do mundo da vida é construída. Após a redução feno-

menológica, deve ficar claro que a subjetividade enquanto produtora de sentido é /urzdarzfeda subjetividade enquanto componente típico da concreção do mundo da vida. Conforme asseveraHusserl, "na ePo-

matemática da natureza. Assim, foi a psicologia antecipadamente carregadacom a tarefa de ser uma ciência paralela e com a concep' ção:a alma seu tema -- seria algo real em um sentido semelhante àquele da natureza corpórea, tema da ciência da natureza (K, 2 16)

O psicólogo moderno trata ingenuamente a vida psíquica como um domínio temático fechado (a interioridade da alma), tal qual a natureza corpóreo formaria por si só um domínio objetivo. Dessa maneira, mal se consegue apreender a especificidade da vida subjetiva, conforme ela se deixa antever, ainda que paradoxalmente, na ontologia

do mundo da vida. No parágrafo62 de K, Husserl critica, à luz dessa ontologia, a equiparaçãoda esferasubjetiva, interpretada como alma

c/zée no puro olhar parao polo eu funcional (. ..) não se mostranada de humano ( . . . ), não se mostra o homem como real psicofísico -- tudo

isso pertenceao 'fenómeno', ao mundo como polo constituído" (K, S 54a, 187). Dessamaneira, desfaz-sea posição paradoxal da subjetividade.As duas funções da subjetividade reconhecidas pela antologia do mundo da vida não estão no mesmo nível. Uma delas, a subjetividade

87. J. Dodd observa com razão que a descrição ontológica do mundo da vida "é um recurso importante na elaboração das implicações fllosó6icasdesseparadoxo. Enbetanto, não se trata de um recurso suficiente para desfazer o paradoxo; o que ela faz é permitir reconhecer que a ingenuidade da orientação natural oculta um paríldoxo

e que esseocultamento faz parte das próprias estruturasdo mundo da vida". (Dodd, 2004, 215). É por meio da descrição do mundo da vida que o caráter paradoxal da sub-

que, como todas as configurações concretas da experiência mundana,

jetividade apareceenquanto um componente dessepróprio mundo. Dessa forma, a antologia do mundo da vida anuncia a função transcendental da subjetividade Íá em.açãa na experiência ingênua, função que serádevidamente tematizada pela fenomenologia

374

375

como parte dos fenómenos típicos mundanos, é um polo constituído

A cientificidade na fenomenologia de Husserl

real, ao domínio de corpos estudadospela física. Essaequiparação"é contrária ao que é essencialmentepróprio aos corpos e às almas, tal como é efetivamente dado na experiência do mundo da vida, de modo determinante para o selltido genuíno de todos os conceitos científicos"

As ciências como produção histórica no mundo da vida

perspectiva de Ideias l e 111,segundo a qual, em sua vertente eidética, a fenomenologia delimita as restrições puras que fundamentam as investigaçõesempíricas psicológicas. No entanto, enquanto investigação

nscendental, a fenomenologia não se confunde com nenhuma on-

(K, 219). Nesseponto, a oncologia do mundo da vida é utilizada de modo crítico em relação à psicologia empírica. Como todas as ciên-

cologia material, já que pressupõe uma modificação na orientação do

cias, a psicologia explora uma região temática específica. Entretanto,

Enquanto descrição eídétíca da subjetividade, a fenomenologia fundamentará materialmente a cientificidade da psicologia empírica, ao explicitar o a pHorí temático no interior do qual essaúltima deve se mover. Esclarecem-se,assim, os princípios específicosda investi-

o estabelecimentofrutífero de um domínio científico deve respeitaras restrições a priori que regem os agrupamentos fenomênicos em vista.A análise eidética do mundo da vida explicita ascaracterísticas marcantes dos fenâmeiios tais como manifestados na vivência pré-científica. Essa

análise torna visível que a psicologia moderna mal conseguiu delimitar corretamente o seu âmbito de ação, visto que tenta explorar o seu tema central, a vida subjetiva, sem respeitar as particularidades eidéticaspelas quais ela se anuncia no mundo da vida. Segundo uma dessas particularidades, a vida subjetiva é constituinte do sentido do mundo da vida enquanto mundo experienciado concretamente. Conforme defende Husserl, "tudo no mundo da vida é manifestamente algo de 'subjetivo"' (K, $ 63, 223), de modo que seria contrário à essênciados fenómenos subjetivos trata-los como um domínio fechado (a interioridade anímica) em paralelo ao domínio dos corpos físicos. Em outras pala-

vras, a vida subietiva não é redutível à interioridade psicológica. Dada sua estrutura intencional, a subjetividade estásempre voltada para os correlatosmundanos, que, nessesentido, também compõem a esfera subjetiva e deveriam então ser integrados a qualquer estudo que pretendesse compreender em toda a sua extensão a vida subjetiva. Isso já era

atestado,ainda que de modo problemático, pela antologia do mundo da vida, e só se resolvia com a passagem à fenomenologia transcendental. Da mesma forma, a psicologia, sob a influência das ciências físicas

modernas, é incapaz de apreender satisfatoriamente a vida subjetiva, e

também dependeda fenomenologia para vislumbrar a verdadeiraamplitude do seu tema. Daí Husserl reconhecer no final de K que a fenomenologia exerceo pape/ de psíco/agia pura, ou seja, de uma explicitação das características a priori do tema a ser explorado pela psicolo-

gia empírica, a saber,a subjetividade (Cf. K, S 72). Retoma-seaqui a 376

nsar na qual as ontologias são propostas;8

gação psicológica, sem modelar essainvestigação pelos esquemasdas ciências físicas matemáticas. Há aqui um sentido maior nesse gesto

fundante da psicologia. A fenomenologia, enquanto ciência eidética e transcendental da subjetividade, rompe com a interpretação redutora da cientificidade pelas ciências exatas modernas, retomando, por

conseguinte, o ideal trans-histórico de cientificidade onienglobante. Segundo Husserl, "a filosofia, como ciência objetíva universal ( ..)

com todasas ciênciasobjetivas,não é, de todo, uma ciência universal«(K, S 52, 179).A ênfaseem estudaro caráterem si do mundo, já

88. Na verdade, a posição de Husserl sobre a psicologia no final de K envolve mais

complexidades.Admite-se, no parágrafo7 1, que na condução do .trabalhoda psicologia

Ihl=liÉÜ'ililE::::: 1: m ir'1l$:':X8 72, dado esse caminho de passagem ente

as reduçõe?, é a6lrmado. que "a. psicologia

1,;1;':'=;';1'.;:1i=1'L=ü:l;'fRI..n,.«;?.nd'h''l .«m. .iê-l'j'.f' T11:yÜ'm: 1;1il Jã:É;J,; '(K, IÍó 1). n-«"r ;«g". .m «I'çõ' à P?íc./ogi. ídéüca. «m «,"ím"t: emethante àquele relativo à antologia do mundo da vida, que do.seu intenoí exige uma investigação da vida subjetiva em sua.dimensão tramcendental de produção ae :enuuo.

Confa7mecomenta J. Kockelmans,"o psicólogo lida com o mundo como um.p'oduto intersubjetivo de uma comunidade indefinidamente aberta de sujeitos cujas vidas conscientes estão entrelaçadas. Mas a lógica dessedesenvolvimento exige.que o psicólogo

realize a re(iução transcendental, de modo que se torne claro como ele, enquanto ega transcen(mentalpuro, apreende outros egos como similares a ele; e também que ele possa ver como entra em comunicação com eles a fim de constituir, por cooperam;ãointersub-

jetiva em suasdiversasformas, o mundo .idêntico único comum a todos' (Kockelmans1987. 24). Dessamaneira, a delimitação dasestruturas eidéticas da subjetividade (a tareia

central da psicologia eidética ou fenomenológica) exige o reconhecimento da a\ividade hanscendental suc'lesiva,o que implica a passagempara a o'tentação fenomenológica 377

A cientificidade na fenomenologiade Husserl

As ciências como produção histórica no mundo da vida 4

presente na tradição antiga e que se tornou praticamente hegemónica na Modernidade, não esgota a totalidade do ser, e as ciências objetivas

epoc/zénada se perde" (K, S 52, 179; Cf. K, S41, 155) dos interesses e fi-

daí derivadasnão devem pretender realizar de modo pleno o ideal de conhecimento onienglobante. Essa ênfaseno "objetivo" ignora a especificidade da vida subjetiva, que envolve a totalidade do mundo en. quanto fenâmeilo constituído nos nexos da consciência transcenden.

vida são vivenciados. Nada se perde da experiência natural, quer dizer,

tal. Por meio da elaboração da perspectiva transcendental, tornam.se visíveis as limitações das investigações lógico-objetivas tradicionais, e

das maiores promessas de Ideias 1. Ali, ao colocar o mundo entre parênteses,surgia como resíduo a consciência purificada, na qual toda a expe-

reata-se com o sentido originário da tarefa científica. No parágrafo 56,

riência natural poderia ser recuperada sob a neutralização dasvalidades

ao retomar o percurso de suas análisesanteriores, o autor reconhece já

de ser nela em vigor (Cf. Idl, S 50). Vê-se, de modo geral, que, em K,

nalidades particulares nas quais os diferentes aspectos típicos mundo da a totalidade mundana que aí se prefigura é preservada, tendo apenas a sua validade de ser neutralizada

para que sejam desveladas as etapas de

constituição de seu sentido. Ora, cabe aqui lembrar que essajá era uma

ter obtido, "em um esboço provisório, o estilo de uma filosofia trens.

Husserl mantém as metas do prometoproposto em 1913; porém a via do

cendental efetivamente científica" (K, 195), e em seguida defende que somente uma tal filosofia, numa tal indagação retrospectiva até o último fundamento pensável no ego transcendental, pode preencher o

mundo da vida permite evidenciar mais claramente a ausência de qualquer perda temática na passagempara a orientação transcendental89.

sentido inato à filosofia desde a sua fundação inaugural" (ibid.). A feno-

no!ogia restabeleceriaa crença Tlaracionalidade comocapaz de tratar,

para a epoc/zé,narrado em Ideias 1, era "muito mais curto" (K, 157), e que essarapidez em atingir a orientação transcendental geravaproblemas:a via cartesianade ideias l conduzia "como que por um salto já até o ego transcendental, mas esse,dado que falta toda exploração

cam rigor científico, mesmo das questõesreferentes ao sentido da existên-

prévia, conduz o olhar até um aparente vazio de conteúdo" (K, 158).

cí.z(questõesque fazem parte da vida subjetiva no mundo), e aPorzfaHa f)ara umd saída da crise padecida pela humanidade europeia.

Em Ideias 1, o ego transcendental é explicitado por meio da suspensão

menologia vem assimreavivar o ideal de cientificidade onienglobante que deveria

guiar

a humanidade

europeia.

Dessa maneira,

a $erzome-

E importante acentuar de que modo a fenomenologia garantea

No parágrafo43 de K, Husserladmite que o caminho anterior

da validade de ser da experiência do mundo, de maneira que se aceTl-

possibilidade de tematizar a vida subjetiva em sua universalidade. A via

tua a consciênciapura como aquilo que restada epoc/zé,ou seja,como uma experiência eideticamente não dependente do mundo. Essaên-

de acessoà orientação transcendental privilegiada em K é aquela do

fasepode sugerir, erroneamente, que a consciência vigora de modo se-

mundo da vida, que "fornece-nos de antemão, em sua típica essencial

paradodo seu correlato intencional, o que lamenta mal-entendidos9'.

invariável, todos os temas científicos possíveis"(K, S 66, 229). Dessa científico, estáantecipada na experiência pré-científica do mundo da

Husserljulga agoraevita-los,uma vez que a via trilhado por K deixa claro que a subjetividade transcendental é sempresub/etívídadepara um mundo colzcretoda exPeHêncía.Daí que a oncologiado mundo da

vida. Por conseguinte, ao tematizar a subjetividade transcendental pela

vida exigisse do seu interior uma análise da subjetividade produtora de

via do mundo da vida, a fenomenologia respeita a totalidade do ser aí anunciado e abre uma linha de investigaçãocientífica desconhecida

sentido.A correlação entre o mundo e a subjetividade é enfatizada, e

pelas ciências objetivas, a saber, aquela da subjetividade enquanto pro-

dutora do sentido da experiência, e não meramente como interioridade psíquica dependente causalmente da natureza idealizada. Daí Husserl afirmar ao menos em dois trechos que "na mudança de orientação da

89. Para um comentário detalhado acercadas particularidades do mundo da vida como ponto de partida para a reflexão transcendental em contrastecom a orientação natural tal como circunscrita em Ideias J, cf. Moran, 2013 90. Analisei no segundo capítulo a possívelfonte dessesmal-entendidos: o argu mento husserlianoda aniquilação, em pensamento, do mundo.

378

379

maneira, a totalidade do ser, que deveria ser a meta do conhecimento

A cientificidade na fenomenologiade Husser]

As ciências como produção histórica no mundo da vida

Cabe lembrar que todas as ciências supõem as operações da vida

subjetivaprodutora de sentido e que, ao investigar essaúltima, a fenomenologia explicita as "condições subjetivas" pressupostas para a obtenção do conhecimento em qualquer área. Nesse sentido, a tarefa

de fundamentação clarificadora do conhecimento, anunciada desde Pro/egómenos à /ógíca pura, permanece ainda reconhecível, embora

Fica assim mais claro que nada se perde da experiência natural na pas:agem para a orientação transcendental. A totalidade de ser anun. '

'

A U

lt=

não sejamais central. No parágrafo44 de K, Husserl reconhece que a passagem do mundo da vida à subjetividade transcendental "foi originariamente motivada pela necessidade de aclarar realizações evidentes

dada na expe.ciênciado mundo da vida é respeitadana orientação

dasciências positivas. Desta motivação já nos ] ibertamos. São agora ne-

transcendental, que a toma como fio condutor para as análisesconsti. tutivas. E, dessamaneira, partindo da experiência concreta no mundo

cessáriasconsiderações mais profundas sobre como seu tema pode se tornar uma tareia autónoma, um campo de problemas a se trabalhar'

da vida, recupera-se a universalidade do fe/os da cultura europeia, uma

vez que se torna possível explicitar, por um lado, todos os temas cien.

tíficos que se prefiguram na experiência pré-teórica do mundo e, por outro, a própria vida subjetiva produtora de sentido. Em relação ; esse

último aspecto,a fenomenologia abre uma dimensão fenomenal desconhecida pelasciências objetivas;ela se firma, assim,como "ciência nova" (K, S 43, 157), que tematiza algo encoberto pela cientificidade objetivista. Dessaforma, a fenomenologia se coloca sob o ideal trans. histórico de conhecimento universal e, assim,reinserea cultura europeia em seu movimento

teleológico originário,

que teria sido Obscure-

cido pela interpretação objetivista moderna9z 9.1 ..ConformeafirmaHusse1lno parágrafo 52de K, "na epocbé retomamosà (. ..) s.ubjetividadejá dotada de mundo" (]80). Não se trata aqui de negar o experimento da aniquilação em pensamento do mundo. Sem dúvida, a variação dos correlatosaté o limite de não-mundos não implica a aniquilação das estruturas mais básicas da cons-

ciência, tais quais a intencionalidade. No entanto, em K, interessaao autor descrever ]s estruturas eidéticas da subjetividade enquanto voltada para um mundo da experiência que perr7zffaa áormu/anão de cora/zecímenloscíerzfÜcos. Não se trata, assim, de desfazer

paulatinamente assíntesesde que o mundo seconstitui, conforme propostoem Ideiasl, mas.de explorar.em toda a sua riqueza o que está eideticamente implicado na experiên-

cia de um mundo concreto em geral. Parauma análise dasdiferentesvias propostaspor Husserl para a redução fenomenológica, cf. Kern, 1962; Drummond, 1975; Luft, 2004 92. Acerca desseideal, afirma Husserl, "o racionalismo da época do Iluminismo está fora de questão, não mais podemos seguir os seus grandes filósofos, nem os do passado em geral. A sua intenção, porém -- considerada no seu sentido mais geral --, não pode jamais morrer em nós" (K, S 56, 200) 380

IK, 159). O problema

da fundamentação

das ciências

se torna,

dessa

maneira, um tema parcial no interior da investigação científica autónoma sobre a vida subjetiva produtora de sentido';. Husserl é extrema-

menteotimista em relaçãoà abrangênciatemática da fenomenologia No parágrafo 55, o autor nos garante que "não há nenhum problema da filosofia concebível com sentido até hoje e nenhum problema con-

cebível do ser em geral que a fenomenologia transcendental não tenha alguma vez no seu caminho de alcançar" (K, S 55, 192). Crê-se aqui que a fenomenologia poderá, com seus instrumentos críticos, reformular todos os problemas filosóficos significativos, de maneira que parece correto apresenta-lacomo a reformulação, em novo patamar, da intenção rigorosa que guiava a produção filosófica desdeos seusinícios. A fenomenologia abarcada, assim, até mesmo aqueles problemas referen-

tesà existência humana, problemas com basenos quais se fez inicialmente o diagnóstico de crise das ciências. Essesproblemas receberiam da fenomenologia um tratamento científico, o que contribuiria a resta-

belecero laço entre a cientificidade e a existência subjetiva concreta, rompido pelas ciências modernas, que reduziram a vida subjetiva a um conjunto de efeitos psíquicos do mundo objetivo.

93. Um resultado semelhante já havia sido extraído por Husserl quando da formu [ação da primeira versão da fenomeno]ogia transcendenta], no final da década de 1910

conforme discuti no final do primeiro capítulo. 381

A cienti6lcidade na fenomenologia de Husserl

O retorno crífíco à odenfação nafuraZ

As ciências como produção histórica no mundo da vida

r

4

Esboça-se,dessemodo, em termos bem gerais, um caminho para fora do estadode crise da humanidadeeuropeia.Trata-seda renova.

fenomenologia não termina com essalematização antinatural da experiência natural. Husserl enfatiza em seus textos tardios que há um retomo da orientação transcendental para a orientação natural, a qual

ção do racionalismo por meio de uma ciência nova, que abarca com ri-

então incorpora os resultados obtidos na primeira.

gor os temas ligados ao sentido da existência concreta, ignorados pela

cientificidade lógico-objetivo. Cabe aqui perguntar de que forma a investigação transcendental poderia oferecer um tratamento racional das questões acerca do sentido e não sentido da existência. Husserl pouco

desenvolveefetivamente essespontos em K. No entanto, um tópico esboçado ali, além de em vários outros textos da década de 1920 e 1930 fornece algumas ideias de como a fenomenologia transcendental contribuiria para a autocompreensão racional dos sujeitos históricos. Esse tópico é aquele do retomo da oríerztação üarzscelzdenta/ para a oríerztação natura/94. Em grande parte de sua obra, Husserl busca estabelecer a

passagemda orientação natural para a transcendentalpor meio da instauração da investigação fenomenológica. Inúmeros esclarecimentos se fazem necessários quanto aos diferentes aspectos dessa investigação,

de maneira que o filósofo dedicou muito tempo para elaborar vários textos que garantissem, de modo cada vez mais aperfeiçoado, a própria inteligibilidade de seu prometoglobal. Cabe aqui retomar a principal razão de suspender a orientação natural para assumir a orientação transcendental. Não se trata de uma duplicação gratuita da experiência, da criação de uma região artificial que o filósofo dominaria sem dificuldades, mas sim de pensar segundo um ponto de vísfa que não parti//za de cenas "obvíed des" vígerztes za exPeríêrzcíanaturcz/, tendo em vista, as-

sim, tornar essaexperiência mais compreensível. A meta da fenomeno-

Aqui se deve atentar para a equivocidade desse"retorno". Conforme

sugere Husserl, há um tipo de volta à orientação natural decorrente

da mera írztermpçãoda atividade filosófica e retomada dos interesses práticos da lida mundana. Nesse caso, nada se acrescenta à orienta

ção natural, que volta a ser vivida de modo transcendentalmente in gênuo. Diferentemente disso,a fenomenologia institui uma rzovare/a

çãocom a experiêncianatural, por meio de um retorno a essaúltima que não é uma mera pausa na reflexão filosófica, pois envolve uma c/arí/ícação cn'fica dos pressupostos transcendentais vigentes nessa experiênciaçs. Dessa forma, a fenomenologia não se esgota na suspensão da

orientação natural e exploraçãoeidétíco-transcendentaldosa priori aí em vigor. Mais que isso,a fenomenologia possibilita uma retomada crítica da experiência natural, que não apagaos ganhos adquiridos com a

reduçãofenomenológica, quer dizer, que permite relacionar-secom o mundo semd ingenuidade que marcava essaexperiência antes da prática da epoc/zé9ó. A fenomenologia abre, assim, um novo modo de expe-

rimentar o existir mundano, por meio de um saber crítico acerca das operações constituintes de sentido aí em ação.

Segundo Husserl, na orientação natural pré-fenomenológica, "permanece constante e necessariamente oculto" (K, S 38, 149) o subjetivo

enquanto produtor geral do sentido da própria mundanidade. Nessa situaçãopré-fenomenológica, "sou o eu transcendental, mas não sou conscientedisto, (. ..) estou totalmente entregue aos polos objetivos,

logia jamais foi isolar-seem um domínio separadoda experiênciana-

inteiramentevinculado aos interessese às tarefasdirigidos exclusi-

tural, mas simplesmente modifica-la para revelar seus condicionantes eidéticos e transcendentais. Importa agora acentuar que o trabalho da

vamente a eles" (K, S 58, 209). Isso quer dizer que na orientação na-

94. Algulls dessestextosestão contidos no volume XXXIV da coleção Husserliana,

intitulado Zur phdnonzerzoZogíscAen ReduÊtíorz. Por exemplo,o primeiro texto publicado nessevolume se chama "lama e epoché.O sentidoda redução fenomenológica. O prob[ema do retorno à orientação natural (outubro 1926)" (Husser], 2002c, p. v.). Em todo caso,vou me limitar aqui a tratar dos ecosdessetema em trechos de K 382

tural /á /zá atívídade tra7zscendenta/, e a passagem para a orientação 95. Para Husserl, com o avanço das análises constitutivas, o fenomenólogo jamais

pode "recuperar a antiga ingenuidade" (K, S 59, 214), de maneira que só Ihe resta esse retorno crítico à orientação natural 96. No S 72 de K, Husserl menciona claramente um "retorno à orientação natural agora não mais ingênua" (K, 267) 383

A cientificidade na fenomenologiade Husserl

As ciências como produção histórica no mundo da vida

fenomenológica não é a invenção de tópicos artificiais, e sim a expji-

meio dela fica ao menos sugerido de que maneira a fenomenologia po

citação metódica das operações constituintes que atuam na vida mun.

deria explorar rigorosamente a existência humana concreta e, assim

dana natural. A orientação transcendental torna visíveis essasopera-

contribuir para minimizar os danos da crise das ciências

ções e possibilita, desde então, uma experiência natural ampliada pelo entendimento

da constituição

de sentido das vivências mundanas.

Conforme nota Husserl, "cada nova descoberta transcendental enri.

quece, assim,no retorno à orientação natural, a minha vida anímica (K, S 59, 2 15). A fenomenologia instaura a possibilidade de vivenciar a existência concreta no mundo com um saber outrora ausente dos ele.

mentes constituintes transcendentais que nela operam. A subjetividade natural se reconhece, então, como subjetividade transcendental esquecida de si, objetivada ou mundanizada9'; ela ganha, nessecaso. por meio da fenomenologia, uma compreensão daquilo que ela já era,

porém de modo oculto, a saber,polo instituinte de sentido.A experiência natural é, dessaforma, elevadaa um novo patamar de autocom. preensão no qual a subjetividade mundana se sabe portadora de capacidades constituintes do sentido das situações confrontadas98. Conforme

mencionei há pouco, essatemática não é desenvolvidaem K, maspor 97. "Pertence essencialmente à operação constihidora

do mundo que a subjetivi-

dade se objetive a si mesmacomo subjetividade humana, como conteúdo do mundo (K, $ 29, 115-1 16). Muito se discute entre os comentadores sobre o sentido dessa mun-

danização da subjetividade transcendental. Não pretendo avançar nesse tema, mas so-

mente menciona-lo como exemplo dos tópicos criticamente desenvolvidospela fenomenologia para problematizar a existência humana concreta. Parauma exposiçãodetalhada do problema da mundanização do transcendental, cf. Van Kerckhoven, 2003 98. Ao exibir essestemas, a fenomenologia contribui para a difusão daquela pos-

furczcrífíca historicamente derivada do avanço da orientação teórica. Conforme visto por meio dela, os sujeitosnão deveriam aceitar a arbitrariedade dos modos de vida tradicionais, mas buscar justifica los à luz de princípios racionais, conforme expostona primeira seção deste capítulo. Por sua vez, o retorno crítico à orientação natural implica que os sujeitos desvelem os princípios gerais pelos quais atribuem sentido à pró-

pria experiência, a qual, em termos globais, deixa de ser vivida ingenuamente. Sobre

esseponto, comenta S.LuR: "a concepçãohusserlianade serhumano jdestaca]a habilidade de justificar a si mesmo em todos os momentos e de fontes profundas, que devem estar na subÍetividade. Isso é viver uma vida crítica em sentido pleno, autocrítica e crítica dos ouros e do mundo que criamos e moldamos.(...)

Após a crítica feno-

menológica, o mundo foi compreendido a partir de suasfontes mais profundas como sendo em todos os momentos um produto da criação humana. A mais profunda e

então da ideia central de Husserl: a correlação entre subÍetividade e mundo da vida

abrangente compreensão do mundo, que leva a justifica-lo e a nós mesmos nele, deriva

ll,uft, 2011,356)

384

385

Conclusão

Proponho sistematizar os principais resultados obtidos nesse longo

percurso analítico trilhado nos capítulos anteriores para então tentar capturar o sentido geral da tarefa fenomenológica como crítica das ciências.A empreitada central destelivro foi reconstruir o duplo papel da cientificidade na obra de Husserl (tema e componente da fenomeno-

logia), tornando visível que há uma complexificação.paralela entre a te-

matizaçãoda cientificidade e o carátercientífico da fenomenologia. Ao menos desdeProlegómenosà lógica f)ura a cientificidade é associada ao caráter plenamente fundamentado ou justificado do conhecimento, o que por sua vez exige uma ordenação sistemática capa: de veicular essetipo de saber. Em Prolegõmerzos,Husserl considera que somente os sistemas dedutivos são capazes de garantir a validade das relações

de fundamentação por meio das quais o conhecimento portaria cientificidade (Cf. P, S 64). Essacláusula restringe a atribuição plena de cientificidade às ciências moldadas conforme estruturasformais dedutivas, segundo as quais todos os resultados são reenviáveis a princípios

explicativos fundantes. Cabia à /ógíca pura recensear os pr'ncíp'os, as 387

A cientificidade na fenomenologiade Husserl

Conclusão

leis e formas teóricas possíveis (nas quais o conhecimento científico se

cadadomínio objetivo uma unidade regida por leis sintéticas czpriori,

exprime), oferecendo, assim,uma explicitação dos pressupostosObjetivos formais por meio dos quais a cientificidade é garantida. Por sua vez, nessequadro teórico, cabia à áenomenologíainvestigar as condi-

o que permite antever uma sistematização do conhecimento dessesdomínios também coordenada por relações de fundamentação (tal qual

ções noéticas de atestaçãoevidente dos conceitos e princípios basilares

recenseadospela lógica pura, complementando, dessamaneira, a exibição dascondiçõesfundacionais do conhecimento científico. Deve-se notar, no entanto, que a fenomenologia ofereceuma crítica do Ganhe.

no caso da estrutura das teorias puramente formais), embora não de modo axiomático-dedutivo. Legitima-se, assim, que o caráter fundamentado do saberse cumpra também em relaçãoàs ciências empíri-

cas,em particular em relaçãoàs disciplinasdescritivas,cuja unidade teórica deve respeitara legalidade d f)ríorí conforme a qual o domínio

mente lema da fenomenologia, mas não é ainda, em sentido forte, seu

investigado se compõe Em Ideias 1, Husserl sugere o desenvolvimento de ciências eidéticas materiais (ontologias) para discernir as relações sintéticas a pHorí que constituem as possibilidades ideais dos domínios estudados empiricamente. Desse modo, revelar-se-ia outro tipo de pressuposto objetivo que garante o caráter fundamentado das ciências não puramente

componente. Para que a fenomenologia seja uma ciência, é preciso am-

formais. Os pressupostosfundacionais das ciências não são apenasas

pliar o escapo das relações sistemáticas de fundamentação do saber,

estruturas formais estudadas pela lógica pura ou pela oncologia formal; no caso das ciências que se dedicam a domínios materiais específicos, a própria estrutura eidética a pHorí daquele domínio condiciona

cimento em estilo descritivo,clarificando o conteúdo formal-objetivo da lógica pura ao remetê-lo à sua origem intuitiva. Ora, dada a restrição

da cientificidade plena às ciências abstratasou nomológicas', resulta que a própria crítica filosófica não poderia ser científica, em sentido estrito. Dessamaneira, em Pro/egõmenos,a cientificidade é principal-

de maneira que mesmo disciplinas que não são unificadaspela forma axiomática-dedutiva sejam julgadas plenamente científicas. Reconstruo essaampliação tal como exposta nos textos de Inüodu-

o avanço do conhecimento científico. Desde então, fundamentar as

ção à /ógíca e à teoria do con/zecímenfo e em Ideias 1. Ali, Husserl admite

ciências do ponto de vista objetivo significa não apenas formular as res-

que os domínios objetivos a que as ciências não puramente formais se

trições formais para a elaboração das teorias, mas também, no caso das ciências empíricas, tornar visíveis as restrições materiais czpriori que de

dirigem também operam como princípios essenciaisde unificação das teorias. Em Pro/egõmenos, apenas as estruturas formais, baseadasdedu-

tivamente em princípios explicativos, ateavam como unificadores essenciaisdo conhecimento teórico (Cf. P, S 64). Paraatribuir igual va-

limitam em termos de possibilidades ideais os tipos de fenómenos de um domínio objetivo.

A essaampliaçãodasanálisessobrea cientificidade do ponto de

lor à referência aos domínios objetivos, Husserl desenvolve a ideia de a príoH sintético ou material, inicialmente lançada em Irzvestígações ló-

vista da sua fundamentação objetiva corresponde uma reformulação importante do prometofenomenológico. A descrição fenomenológica

gicas. As investigações empíricas não estão condenadas a diluir a estru-

das vivências passa a ser considerada plenamente científica, e a fe-

tura fundacional da ciência ao se confrontarem com os fatos, pois es-

nomenologia é apresentada como uma ciência da consciência pura Explicita-se, dessa maneira, o caráter científico da própria fenomenologia enquanto um tipo de doutrírza eídétícczmaferícz/que busca explorar de forma rigorosa as possibilidades ideais de um domínio eidético particular, a saber, aquele da consciência. Desse modo, não é que a fenomenologia passoua ser científica porque Husserl a submeteu aosparâmetros de validade das ciências formais. Pelo contrário, o esforço do

sesnão são meros agregadoscontingentes. Os domínios objetivos concretos instanciam possibilidades ideais que delimitam a príoH os tipos possíveis de fenómenos de que se compõem. Desse modo, haveria para

1. "101 objetivo essencial do conhecimento

científico

só pode ser alcançado pela

teoria no sentido rigoroso dasciências nomológicas" (P, S 65, 239). 388

389

A cientificidade

na fenomenologia de Husserl

Conclusão

filósofo nesseperíodo (1906-1913) foi o de garantir a cientificidade do

pelo autor no correr da década de 1910 em diante. Vimos que o filósofo

procedimento descHfívo,corrigindo a estreiteza de Pro/egõmenosem relação a esseponto.

propôs uma série de disciplinas eidéticaspara a explicitação dos pressupostosteóricos que garantem a cientificidade dos resultados cientí-

Deve-senotar, entretanto, que Husserl não reduz a fenomenolo. gia a uma antologia material entre outrasquaisquer. A ampliação da

ficos. Em relação aos pressupostosobjetivos, caberia às antologias for-

cientificidade para além dos limites puramente formais é um movi-

mal e materiais formular asleis a príoH (analíticas e sintéticas)que tornam possívela produção sistemática de conhecimento. Em seguida

mento parcial na construção de um novo prometofenomenológico, de cunho transcendente/. Husserl deixa de associara fenomenologia à in-

ao menos desdeo final da década de 1910, Husserl passaa explorar os

vestigação das capacidades noéticas ligadas à atestação dos temas da ló-

científicosacabados,e sim como resultantesde processosde teoriza-

gica pura e atribui para ela a tarefa central de investigar as condições transcendentais do conhecimento em geral. E verdade que essaversão ampliada do problema do conhecimento já havia sido mencionada no

ção aplicados sobre a experiência pré-científica. Desde então, abre-se o condicionantes estruturais da experiência que antecede as possibilidades

parágrafo 65 de Pro/egõnzerzose na introdução de Investigações /ógícas

ePístêm;cas da orientaçãoteórica. Uma vez que o conhecimentoteó-

Contudo a problemática transcendental parece, nessasobras, restrita

rico é fundado sobre a doação pré-teórica de conteúdos vividos, tornase imperativo investigar essadoação como um pressupostoda atividade científica. Do ponto de vista das condições objetivas materiais da expe-

aos avanços da lógica pura enquanto ciência natural, a qual forneceria

o material objetivo para que a análise das condições noéticas progredisse.Em llztrodução à /ógíca e feoría do con/zecímento,Husserl esclarece de modo definitivo que o problema transcendental não depende do avanço Factual das ciências, já que se põe no nível do direito. A cla-

rificação fenomenológica dos conceitos fundentes das ciências deve se aplicar às ciências eidétícas objetivas, elucidando, assim, o fundamento subjetivo delas mesmas e das ciências empíricas por elas funda-

conceitosfundentes das disciplinas ontológicas não mais como dados

campo da invé?stígação gelzétíccz da cíentí/icídade, que busca explorar os

riência, issosignifica recuar das regiõesobjetivas cientificamente delimitadas para o mundo da experiência pré-teórica. Husserl propõe uma ontologia específica para essetema, uma descrição eidética do mundo da experiência que torne compreensíveis aspossibilidades de produção de conhecimento racional com base na doação pré-teórica dos conteúdos mundanos vividos. Essa oncologia do mundo da experiência é

das.E issoé estabelecidopor prínc@ío, isto é, ainda que nem mesmo

fundente das antologias materiais específicas,as quais tratam de do

haja ciências eidéticas materiais desenvolvidas (com exceção da geo-

mínios especializados de restrições ideais que compõem a essência de

metria). Dessemodo, o tema da fundamentação subjetiva dasciências é inserido em um contexto teórico muito mais vasto, a saber,aquele

um mundo concreto em geral. Do ponto de vista das condições sub-

da investigação das condições transcendentais de qualquer conheci-

mento concebível. Após acompanhar o estabelecimento da fenomenologia transcendental como análise constitutiva estática da experiência e do conhecimento, tentei mostrar como Husserl amplia o prometofenomenológico

ao abarcaras problemáticas genética e histórica da produção do sentido. Essasproblemáticas se desenrolamna obra husserlianade modo muito mais complexo do que expostonestetrabalho. Limitei-me a retomar o papel da cientificidade à luz dessasnovasabordagensexploradas 390

jetivas, Husserl amplia as descrições fenomenológicas para abarcar as operações subjetivas anteriores à atestação da validade dos conceitos ontológicos basilares. Lembremo-nos de que o programa de clarificação fenomenológica pretendia levar à origem fenomenológica os conceitos básicos das disciplinas eidéticas, o que tornaria visíveis os pressu-

postostranscendentais de constituição de sentido dessesconceitos. Em regime de análise fenomenológica genética, o reenvio à origem fenomenológica TlãOse encerra ao revelar os atos subjetivos em direta correlação com os conceitos basilares das ontologias, mas recua até o desve-

lamento das camadassubjetivas fundentes dessesfitos superiores, o que 391

A cientificidade na fenomenologiade Husserl

leva Husserl a explorar as sínteses passivascomo responsáveis pela aber-

tura pré-teórica ao mundo da experiência. Das análises fenomenológicas genéticas, eu reconstruí somente a

Conclusão

fenomenológica. Por meio da ontologia do mundo da vida, Husserl sistematiza tanto um novo nível da análise dos fundamentos das ciências

bre as síntesespassivas,MaTtuscritosde Bemau e Expaiência e juíza,

quanto uma nova via introdutória à fenomenologia transcendental. Ocorre que, ao menos em A crisedas ciênciaseuropeiase d áenomerzologíatranscenderzta/,a exploraçãodo mundo da vida como horizonte pressupostoe solo de sentido para as atividades científicas não

Husserl descreve níveis ainda mais básicos da ordenação da experiên-

operade modo isoladocomo uma via de passagemà fenomenologia

cia pré-teórica, tornando visível como as próprias categoriasbasilares da onto]ogia formal encontram sua gênesena síntesepassivados con-

transcendental. No quarto capítulo, tentei mostrar que Husserl propõe uma ílzvestígaçãode serztídoque tematiza o caráter bísf(iríco da cientificidade, enquanto uma ideia-guia transmitida e reativada por uma longa

descriçãoda indução originária da percepção,contida no curso Natureza e espírito

1927. Em muitos outros textos, tais como Aná/iões so-

teúdos percebidos. Tal qual em outros momentos deste trabalho, não

busqueireconstituir em detalhesnenhum dos resultadosobtidospelas diferentes versõesdo prometofenomenológico, mas simplesmente

cadeia de gerações. Trata-se de buscar os nexos motivacionais que pro-

mostrar como esseprometose desenvolve em paralelo à tematização

chave da história. Em particular, o filósofo pretende ter mostrado que a

da cientificidade. Além disso, em relação às análisesgenéticas, interessou-mesalientar que elas oferecem uma via de introdução à fenomenologia que relativiza a cisão entre condiçõessubjetivase objetivas do conhecimento. Esseponto é tornado explícito no quarto capítulo, em que analiso principalmente alguns textos husserlianosda década

constituição da ciência matemática da natureza, na Modernidade, supôs uma interpretação restritiva do ser do mundo e, por conseguinte, da tarefa onienglobante definidora da ciência (estudar tudo aquilo que

de 1930.Husserl desenvolveo tema da ontologiado mundo da experiência pré-teórica por meio da noção de mtz7zdo da vida enquanto solo

dade mundana, e os aspectos subjetivos da experiência passam a ser concebidos como efeitos causalmente reconduzíveis a interações en

sensível-cultural-históricode sentido para as produções científicas. E

tre as propriedades "exatas" mundanas. Sedimenta-se, assim, uma in-

proposta a oito/ogia do mundo da vida, ou seja, uma descrição das es-

terpretação objetívísta do conhecimento

truturas essenciaispelas quais o mundo é vivenciado como horizonte

terial que explicitada as condições objetivas últimas do saber, revela

a subjetívíd de enquanto instância autónoma instituinte da própria cientificidade e instaura uma crise da própria humanidade europeia enquanto humanidade formada sob a vigência do ideal originário de ciência. E nesseponto que as consideraçõeshistóricas se entrelaçam

como estruturas essenciaisa prior do mundo não um conjunto de entes ou atributos, mas /amas de shtese, quer dizer, operações subjetivas. Dessa maneira, no nível pré-teórico, as condições objetivas para a

com asanálises genéticas do mundo da vida como fundente de todo saber. A concepção científica moderna da realidade mundana como um conjunto de atributos físicos passíveisde apreensão excita apaga o pa-

atividade científica (as restrições referentes à ordenação lógica das teo-

pel fundante da experiência pré-científica do mundo na produção do

rias e às possibilidades ideais que definem domínios materiais de atuação) não estão separadasda experiência concreta do mundo. A análise genética dos condicionantes pré-teóricos da atividade científica exige, assim, unia investigação dos modos subjetivos de ordenação da expe-

conhecimento, tema que Husserl havia explorado sistematicamente ao menos desde os cursos Natureza e esPúífo. Dessa maneira, um cami-

riência mundana, ou seja, exige a passagem para a análise constitutiva

da vida, a qual torna explícitos, com o rigor promovido pela intuição

sempre pressuposto para as atividades subjetivas. Ocorre que essaoncologia do mundo da vida, supostamente uma disciplina eidética ma-

392

duziram transformaçõesmarcantesna ideia de ciência em momentos-

é). As propriedades fenomenais descritíveis matematicamente passam

a ser ingenuamente tomadas como os componentes efetivos da reali-

científico,

que desfia/oríza

nho para abandonar a concepção restritiva do ser vigente na interpretação objetivista moderna das ciências é lançar a oizto/ogía do mundo

393

Conclusão

A cientificidade na fenomenologiade Husserl

de essências,aspectosconstituintes da experiência do mundo que não

defendidas ou as substituam por teorias que julguem mais satisfatórias.

são abarcados pelos modelos explicativos das ciências matemáticas modernas. Como vimos, essaantologia exige, do seu interior, uma investigaçãotranscendental da atividade constituinte da subjetividade. Estabelece-se,assim,como fio condutor para a fenomenologia trans-

Desse modo, nenhuma geração pode vangloriar-se por abranger teorias construídas sobre bases definitivas, embora a busca por conhecimento

cendental não só a experiência pré-cielltífica do mundo, mas também astransformações históricas do sentido de ciência. Por sua vez, a passagem para a orientação transcendental marca, no período final da obra

cabe à fenomenologia tornar explícitas as condições subjetivas que fun-

husserliana,não só a instituição da fenomenologiacomo ciência da consciência pura, mas também como disciplina responsávelpor rea-

investigada pelas ciências. E essatarefa envolve, tal como reconhecido

vivar o ideal-guia de cientlficidade então recoberto pela interpretação objetivista. E essareativação realimentaria as esperanças na transfor-

mação racional da humanidade, o que arrefeceriaa aguda crise constatada

pelo autor no início

de A crise das ciências

europeias

e d Óelzome-

fundamentado deva guiar a produção científica de todas elas:

Por sua vez, no correr de sua obra, Husserl sempre defende que damentam o conhecimento científico, isto é, as estruturas a pHorí dos

atousubjetivosque constituem o sentido da própria objetividade a ser ao menos desde 1906,uma cientificidade própria. A fenomenologia é então sistematizadacomo uma ciência capaz de oferecer os fundamentos críticos (ligados às operações da subjetividade) a todas as demais

ciências. No entanto é preciso cuidado para entender corretamente

essaprecedência da fenomenologia transcendental em relação às

no/agia transcendenfa/. De maneira bastante sintetizada, essefoi o percurso trilhado por estetrabalho. Torna-se patente que Husserl foi paulatinamente dando-

outras disciplinas científicas. Não se trata certamente de pretender as-

se conta da complexidade de pressupostosque garantem a cientifici-

supostostranscendentais que condicionam a produção do saber cientí-

dade do conhecimento científico. Do ponto de vista das condições ob-

jetivas, não só a infraestrutura lógica garanteo caráter fundamentado

segurar o conhecimento científico, tornando certas as teorias dos mais

diversosâmbitos de pesquisa.A fenomenologia almeja elucidar os pres'

fico semserdevidamente reconhecidospor tal saber.Essaexibição dos fundamentostranscendentaisdo conhecimento não implica, em prin-

do saber, mas também restrições czpriori materiais (no caso das ciên-

cípio, nenhum aperfeiçoamento das teorias científicas. Lembremo-nos

cias empíricas), além de condicionantes genéticos (nos quais os atou teóricos superiores estão fundados) e históricos (que demarcam para

de que, ao apresentara problemática transcendental no curso ll.TC, Husserl alertava que era indiferente se o conhecimento científico es-

asgeraçõesde cientistas o sentido e o alcance de suaspróprias tarefas). Essacomplexificação da análise temática da cientificidade deixa explí-

tivesse desenvolvido de forma plena ou apenas em seus rudimentos, uma vez que o questionamento banscendental não sepõe no nível dos

cito que Husserl não defende algum tipo de fundacionismo segundo

fatos, mas naquele das condições de possibilidade a priori das ciências

o qual para haver ciências é preciso dispor de fundamentos que garan-

em geral. Isso'quer dizer que a análise constitutiva transcendental não

tam attzaZmente a legitimidadede todo resultadoteórico proposto.A

concorre ou colabora com as teorias científicas vigentes, que estão vol-

cientificidade das ciências enquanto caráter fundamentado do saber é

tadaspara seusdomínios objetivos, enquanto a fenomenologia procu'a

reconhecida já nos textos iniciais do autor, e principalmente naqueles em que trata da história, como uma c07zdíção ídea/ cuja realização enganageraçõesde cientistas em um trabalho colaborativo interminável. A cada geração,busca-seconstruir as melhores teorias possíveis por meio dos dadose recursosmetodológicos disponíveis.Nada disso impede que as geraçõesfuturas encontrem falhas nas teorias outrora

2. Essaperspectiva de aperfeiçoamento interminável das teorias científicas vale r-''r"' ' ' lge filosófico acabado,é reconhecida paraafenomenologia,que,lo . de ser . um sistema . ..----...Á como uma investigaçãocientífica também submetida às limitaç.ões,daépocaem que:e produzida. Esseponto lá 6ca claro na seguinte passagemde ideias l: "a fenomenologia

394

sedá em nossasexponçoes como ciência que está em seu início. Somente o futuro há de ensinar o quanto dos resultados das análises aqui tentadas é definitivo" (Idl, S'Jb, Z't l ). 395

A cientificidade

na fenomeno]ogia de Husser]

Conclusão F

4

revelar, em sua validade eidética, as condições subjetivas que consti-

Diante disso, deve-seter em conta que a posição de Husserl em

tuem o sentido do conhecimento científico em geral. Deve-se notar que essaabsoluta neutralidade em relação à pro-

relação às ciências equilibra-se entre dois pontos. Por um lado, a crítica fenomenológica revela as estruturas subjetivas czpríoH que condicionam de modo eidético a produção científica, sem que isso interfira

gressãofactual das ciências parece ser relativizada ao setratar da psico-

logia. Vimos diferentespassagens em que Husserlcritica explicações de cunho psicológico experimental para alguns fenómenos da consciência e mesmo para a possibilidade do conhecimento. Nessescasos, porém, trata-semuito mais de uma indevida invasãoda psicologia na searafilosófica do que o contrário. Por exemplo, é porque a psicologia experimental pretende reduzir a possibilidade do conhecimento a uma análise de episódios cognitivos factuais que ela é criticada, uma vez que

essetipo de abordagem elude o caráter especificamente a pdorí do problema transcendental. Husserl deixa claro o alcance da sua crítica na

em nada na particularidadedas teoriasatualmenteaceitas.Mas, por outro lado, à medida que a análise constitutiva fenomenológica foi am-

pliando seuescopotemático paraalém dascorrelaçõesintencionais estáticas, explicitando condicionantes genéticose históricos à cientificidade, abre-sea perspectiva de uma crítica transformadora das ciências, caso essas,mal orientadas por interpretações filosóficas questionáveis, ignorem os condicionantes estruturais oriundos do mundo da vida e da

própria historicidadeda empreitada teóricas.Esseponto novamente

seguinte passagemde Ideias l: "se é efetivamente a ciência da natureza

pode ser exemplificado pela psicologia. Fascinados pelos íiotáveis resultados dos métodos matemáticos em física, os psicólogos insistiram

que fala, nós de bom grado ouvimos, na condição de discípulos. Mas nem sempre é a ciência da natureza que fala quando falam os cientis-

em mensurar as atividadessubjetivas,como se a obtenção dessesdados objetivos por si só esgotassea especificidadeeidética da vida sub

tas naturais, e seguramente não é ela quando eles falam em 'filosofia da

jetiva (Cf., p. ex., K, S 11). Por sua vez, as descrições fenomenológicas

natureza' e de 'teoria do conhecimento da ciência natural"' (Idl, S 20,

da subjetividade tornam visíveis condicionantes estruturais que não se deixam revelar por meio de fatos mensuráveis (Cf., p. ex., Idl, SS73-

46). O fenomenólogo não pretende nenhuma intervenção nas teorias científicas construídas corretamente conforme os métodos vigentes nas

75). Indica-se,dessamaneira, que a hegemonia do modelo matemá-

áreas do saber; no entanto, quando cientistas servem-se dos métodos

tico do saber, instaurado na Modernidade, não dá conta de abarcar "a

empíricos para tratar de questões da ordem do direito (tais quais aquelas acerca da possibilidade do conhecimento),

eles estão na verdade to-

mando posições filosóficas específicas, as quais são passíveisde crítica conceptual. Tratar os problemas clássicos filosóficos por métodos em-

píricos implica tomar partido nos debatesfilosóficos de um ponto de vista muito particular, o qual pode então ser legitimamente criticado por outros pontos de vista filosóHcos. [)aí a crítica fenomenológica ao

totalidade daquilo que é" nem, por conseguinte, de realizar o ideal de saberonienglobante. Ainda que essaindicação não implique que o filósofo desautorize diretamente as teorias empíricas tingidas por interpretações filosóficas frágeis, pretende-se garantir por meio dela ao menos

que a reflexão filosófica tenha algo a contribuir nas discussõesacerca do direcionamento histórico e da abrangência teórica das ciências dis-

naturalismo e ao objetivismo, os quaissãomuito mais interpretaçõesfilosóficas associadasao trabalho científico do que parte essencial desse

trabalho e de seusresultados.No entanto, dado que o objetivismo tenha fomentado uma compreensão redutora do ser e da tarefa histórica da ciência geradora da crise da humanidade europeia, vê-se que a crí-

tica fenomenológica das interpretações associadasà atividade científica não é uma tarefa menor. 396

3. Comenta Husserl sobrea importância do ponto de vista fenomenológico paraa ciência: "o conhecimento do método constitutivo 'interior', onde todo método cientí fico-objetivo recebe o seu sentido e possibilidade, não pode ser certamente sem significado para o pesquisador da natureza e para cada cientista objetivo. Posto que setrata do

mais radical e profundo autoestudoda subjetividade realizadora,como não deveriaservir para prevenir a realização ingênua-habitual de erroscomo, por exemplo, se pode observarcopiosamentena influência da teoria do conhecimento naturalista e no endeusamento de uma lógica que não se compreende a si mesma?" (K, S 55, 193) 39

A cientifícidade

na fenomenologia de Husserl

'v

poníveis. Em particular, trata-sede problematizar os limites teóricos do

modelo dominante de pesquisacientífica desde a Modernidade, e de sugerir o desenvolvimento de novasestratégiasde investigação que permitam o cumprimento da vocação universalizante do conhecimento

científico. Essacontribuição não se pauta pelos critérios técnicosvigentes internamente a cada disciplina científica para testar suas hipóteses, mas assume o ponto de vista da descrição eidética da subjetividade

Referências bibliográficas

produtora do próprio saber'. É desseponto de vista, uma vez realizada a crítica às interpretações redutoras da tarefa científica, que se pode antever uma ressignificação da importância da ciência para a humanidade, de maneira a apontar uma saída para a crise em que essaúltima encontra-se mergulhada.

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T55 11338585m/8501 . 20634275 wv\rw.loyola.com.br

Ao longo dos quase quarenta anos de sua carreira' Êfosóâca, Edmund Husserl desenvolveu a fenomenologia em diferentes versões que foram sendo

ulteriormente elaboradas durante seusestudos.Neste livro, reconstruímos aspectos centrais de quatro formulações do projeto fenomenológico husser-

liano

a fenomenologia noética; a fenomenologia transcendental estática;

a fenomenologia transcendental genética e a fenomenologia transcendental 'histórica"

--, buscando

mostrar

as interconexões

entre

essas formulações

e

tornar explícita certa complexificação progressivadas pretensõesfenomeno' lógicas aí contidas. Nossa hipótese de leitura é que um fator decisivo para as

modificações nesseprojeEOfenomenológico foi a constante reflexão do autor

acercadaquilo queconstitui a cientificidade dasciências.Essareflexão,por um lado, delimita o sentido e o escapo da investigação fenomenológica por demarcação desta com asciências e, por outro, estabelece como tarefa feno-

menológica nuclear a fundamentaçãode todo o conhecimento científico. Marcus Sacrini é professor livre-docentedo departamentode Filosofia da Universidade de São Paulo, onde trabalha desde 2010. Sua formação acadêmíca centrou-se na filosofia contemporânea, em particular na tradição fenomenológica

Publicou dois livros sobre Merleau-Ponty 10 trar7scender?ta/ e o ex/sferlfe em Merleau-Ponty, 2006. Fenomenologia e ontologia em Merleau-Ponta, 2Q09\ e desenvolveu um estudo sobre a argumentação, que foi explorado no livro /nfroduçáo à aná/ise argumentar/va. ãeoría e prática, 2016. Além disso, possui diversos artigos em revistas nacionais e internacionais.

ISBN 978-85-15-04564-8 Q

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