A cidade que queremos: Produção do espaço e democracia [2 ed.]
 9786587145242

Table of contents :
AGRADECIMENTOS ............................................................................................. 11 PREFÁCIO ................................................................................................................ 15
João Ferrão
APRESENTAÇÃO. Algumas palavras sobre “aquele momento inicial” e
para situar a redação do livro................................................................................. 21
INTRODUÇÃO... ...ou nada é tão simples quanto parece... ............................ 25 CAPÍTULO 1. A cidade como lugar de diversidade e de desigualdade ......... 41
A transformação da cidade: promoção da diversidade, mas também
da miséria............................................................................................................ 47
A construção de um discurso que enaltece a liberdade, mas
que liberdade? ............................................................................................... 56
Cotidiano e mudanças cada vez mais rápidas (para não mudar) .............. 73 CAPÍTULO 2. A mercadificação das cidades..................................................... 87
Metropolização do espaço: profundas alterações na lógica e na dinâmica de produção do espaço ..................................................................................... 92
Gestão territorial: reunindo olhares aparentemente contraditórios ......... 99 Gentrificação: a complexificação de um conceito ...................................... 104 A gentrificação não é um efeito colateral indesejado ................................ 117 A gentrificação para além da “forma clássica” ............................................ 121
CAPÍTULO 3. Da luta por segurança à luta por democracia ........................ 135
Desigualdade e precarização.......................................................................... 144 Políticas de segurança mais duras como discurso...................................... 150 E a pandemia de Covid-19 chegou ao Brasil............................................... 157 Para onde estamos indo na pandemia... para onde poderíamos ir... ...... 163
Produção do espaço e a radicalização da democracia...............................166 Possibilidades de mudança: experiências que geram esperança.............. 179
CAPÍTULO 4. Por que falar em comunismo para pensar as cidades? ......... 193 Marx e a ideia da verdadeira democracia: primeiras aproximações ....... 195 A necessária desmistificação da expressão “ditadura do proletariado” .. 202 A ideia de comunismo: mais do que possível, necessária ......................... 206 Entre o “poder-sobre” e o “poder-fazer”: uma linha tênue e perigosa.... 215 O fazer-comum: caminho para ir além?......................................................218
EPÍLOGO... ...Ou ainda vale a pena acreditar e lutar... ................................... 233
POSFÁCIO. Continuando a pensar a cidade...
Ou por uma outra cidad(e)ania .......................................................................... 247
João Rua
REFERÊNCIAS ..................................................................................................... 253 ÍNDICEREMISSIVO ..........................................................................................275

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A cidade que queremos

ALVARO FERREIRA

A cidade que queremos

Produção do espaço e democracia

CONSEQUÊNCIA

© 2021, Alvaro Ferreira Direitos desta edição reservados à Consequência Editora

Rua Alcântara Machado, nº 40, sala 202 Centro - Cep: 20.081-010 Rio de Janeiro - RJ - Brasil Contato: (21) 2233-7935 [email protected] www.consequenciaeditora.com.br

Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação do copyright (Lei nº 9.610/98). Conselho editorial Alvaro Ferreira Carlos Walter Porto-Gonçalves João Ferrão João Rua Marcelo Badaró Mattos Márcio Piñon de Oliveira Marcos Saquet Martina Neuburger Ruy Moreira Timo Bartholl Coordenação editorial e projeto gráfico: Consequência Editora Revisão: Priscilla Morandi Diagramação: Luiz Oliveira Capa: Letra e Imagem Imagem de capa: Fragmento de uma obra "Sem título" do pintor russo Vena, que vive em Nova Orleans. 1ª Reimpressão - julho 2022 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD F383c

Ferreira Alvaro A cidade que queremos: produção do espaço e democracia / Alvaro Ferreira. - Rio de Janeiro : Consequência Editora, 2021. 282 p. ; 16 x 23cm.



Inclui bibliografia e índice. ISBN: 978-65-87145-24-2



1. Geografia. 2. Cidade. 3. Democracia. 4. Justiça espacial. I. Título.

2021-3271

CDD 910 CDU 91

Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva - CRB-8/9410

Para Cláudia, a mulher da minha vida; para minha filha Beatriz, que já cresceu... para meu filho Bruno, que já é pai; e para minha neta Arielle, que ainda não sabe ler...

Os filósofos limitaram-se a interpretar o mundo de diversas maneiras; o que importa é modificá-lo. Karl Marx

SUMÁRIO

AGRADECIMENTOS.............................................................................................. 11 PREFÁCIO................................................................................................................. 15 João Ferrão APRESENTAÇÃO. Algumas palavras sobre “aquele momento inicial” e para situar a redação do livro.................................................................................. 21 INTRODUÇÃO... ...ou nada é tão simples quanto parece................................ 25 CAPÍTULO 1. A cidade como lugar de diversidade e de desigualdade.......... 41 A transformação da cidade: promoção da diversidade, mas também da miséria............................................................................................................. 47 A construção de um discurso que enaltece a liberdade, mas que liberdade?................................................................................................ 56 Cotidiano e mudanças cada vez mais rápidas (para não mudar)............... 73 CAPÍTULO 2. A mercadificação das cidades...................................................... 87 Metropolização do espaço: profundas alterações na lógica e na dinâmica de produção do espaço...................................................................................... 92 Gestão territorial: reunindo olhares aparentemente contraditórios.......... 99 Gentrificação: a complexificação de um conceito....................................... 104 A gentrificação não é um efeito colateral indesejado................................. 117 A gentrificação para além da “forma clássica”............................................. 121 CAPÍTULO 3. Da luta por segurança à luta por democracia......................... 135 Desigualdade e precarização........................................................................... 144 Políticas de segurança mais duras como discurso...................................... 150 E a pandemia de Covid-19 chegou ao Brasil............................................... 157 Para onde estamos indo na pandemia... para onde poderíamos ir.......... 163

Produção do espaço e a radicalização da democracia................................ 166 Possibilidades de mudança: experiências que geram esperança............... 179 CAPÍTULO 4. Por que falar em comunismo para pensar as cidades?.......... 193 Marx e a ideia da verdadeira democracia: primeiras aproximações........ 195 A necessária desmistificação da expressão “ditadura do proletariado”... 202 A ideia de comunismo: mais do que possível, necessária.......................... 206 Entre o “poder-sobre” e o “poder-fazer”: uma linha tênue e perigosa..... 215 O fazer-comum: caminho para ir além?....................................................... 218 EPÍLOGO... ...Ou ainda vale a pena acreditar e lutar....................................... 233 POSFÁCIO. Continuando a pensar a cidade... Ou por uma outra cidad(e)ania........................................................................... 247 João Rua REFERÊNCIAS...................................................................................................... 253 ÍNDICE REMISSIVO ........................................................................................... 275

AGRADECIMENTOS

Continuo acreditando que um livro não deixa de ser uma obra coletiva, por mais que tenha um único autor. De fato, o que escrevi nestas páginas é aquilo que construí durante minha vida por meio do estudo, da pesquisa, dos debates travados (tão importantes e necessários para o avanço de minhas elaborações), do cotidiano... São construções que trazem consigo valores e ideologias, por isso possíveis fragilidades, mas, simultaneamente, fortalezas, que se amparam no horizonte utópico da luta pelo direito à cidade, ou melhor, pelo direito à produção do espaço. Agradecimentos nominais são sempre muito arriscados, pois corremos o risco de deixar de mencionar alguém, além de não sabermos o nome de outros tantos colaboradores que, mesmo sem perceber, com seus comentários em uma variedade de ambientes institucionais ou não, como as mesas-redondas em congressos e simpósios, ou mesmo em conversas no Departamento de Geografia e Meio Ambiente da ­PUC-Rio ou na FEBF-UERJ, ou ainda nas conversas informais com os moradores de vários bairros da cidade, colaboraram bastante para a produção desta obra. Contudo, há pessoas cuja ajuda foi mais direta, seja academicamente, seja afetivamente (embora essas duas dimensões muitas vezes se misturem). Cláudia, muito obrigado pelo amor, cuidado, dedicação, carinho e por me fazer uma pessoa melhor. Tenho uma profunda admiração por você. Beatriz, minha filha, sua música, voz e talento são uma inspiração (ainda não conseguimos compor uma música juntos... Sonho Distante?). Bruno, meu filho, que continua morando longe, mas que me dá muito orgulho por sua garra e capacidade de luta. Minha querida mãe, “minha fã de carteirinha”. João Rua, amigo querido, companheiro nos debates acadêmicos e exemplo de professor em sala de aula, nunca será possível expressar com palavras o carinho e admiração que tenho por você. Agradeço também pela generosidade do seu posfácio. João Ferrão, um presente que recebi desde o I Simpósio Internacional Metropolização de Espaço, Gestão Territorial e Relações Urbano Rurais (2012), um geógrafo a quem admiro e que é extrema

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A CIDADE QUE QUEREMOS

mente competente e engajado na luta pela construção de cidades mais justas. Posso afirmar, com toda a certeza, que nossos debates contribuíram muito para a realização deste livro. Hoje posso dizer que, além de colega de profissão, é um amigo muito querido. Além disso, presenteou-me com o prefácio desta obra. Sandra Lencioni, amiga querida, exemplo de generosidade e competência. Muito do profissional que me tornei vem da convivência com você. Regina Célia de Mattos, amiga e companheira do Departamento da PUC-Rio, muito obrigado por todo apoio e carinho. São muitos anos de cumplicidade. Horacio Capel, querido amigo, grande intelectual e de uma generosidade impressionante. Meus queridos orientandos de graduação, mestrado e doutorado, que compartilham comigo suas inquietações, incertezas e indignações nas reuniões do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Espaço e Metropolização (NEPEM) na PUC-Rio, além de também suas contribuições de extrema relevância temática e teórico-conceituais. Portanto, agradeço ao Gustavo Godinho Benedito (atualmente pós-doutorando), Ernesto Imbroisi, Horácio Pizzolante, Mateus Viriato Siniscalchi, Felipe Rodrigues de Azevedo, Felipe Tavares, Felipe Silva, Felipe Perdigão, Julia Vilela Caminha, Júlia Rossi, Frederico Montanari, Artur Marreca, Rodrigo dos Santos Borges, Gabriela Nascimento e Maria Vitória Jacob, além de todos os outros que não estão mais frequentando as reuniões, mas que estão de alguma maneira também presentes neste livro. Como de praxe (ao menos para mim), não posso deixar de mencionar aqueles que contribuíram indiretamente, pois fizeram parte da trilha sonora de jazz e de rock progressivo que me acompanhou durante a redação do livro: John Coltrane, Thelonious Monk, Joshua Redman, Ravi Coltrane, Joe Lovano, Sonny Rollins, Miles Davis, Eric Alexander, Chris Potter, Dayna Stephens, Nicholas Payton, Cama de Gato, Idriss Boudrioua, Pink Floyd, Genesis (fase do Peter Gabriel, é claro), Emerson, Lake & Palmer, Yes, Gentle Giant, Pär Lindh Project, Solar Project, Spock’s Beard, Camel, Wishbone Ash, Quaterna Requiem e Bacamarte. Também não posso deixar de agradecer aos meus editores, Isabella Mota e Luís Octaviano, por todo apoio e pelo belíssimo trabalho em sua editora engajada na luta pela divulgação do pensamento crítico nestes tempos tão difíceis. Agradeço, também, ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que por meio da bolsa de Produtividade

Agradecimentos

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em Pesquisa tem possibilitado o aprofundamento de minhas pesquisas e a constituição de uma rede de pesquisadores internacionais. Agradeço, ainda, a Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), que por meio do fomento aos eventos que promovemos contribuiu para o crescimento de intercâmbios internacionais. Enfim, a todos que, direta ou indiretamente, estiveram de alguma forma envolvidos nesse longo processo que está, sempre, apenas no começo...

PREFÁCIO João Ferrão

Instituto de Ciências Sociais Universidade de Lisboa, Portugal

Este é um livro sobre democracia escrito por um imperativo de consciência. Ele nasce de um desassossego profundo que o autor explicita, de forma simples e direta, na Introdução: a cidade que queremos é muito diferente da cidade em que vivemos. Por quê? E que fazer? Alvaro Ferreira conduz-nos ao longo dos vários capítulos através de uma constelação de referências, argumentos e exemplos, explicando-nos as suas motivações, o que está em causa, que caminhos construir. O livro é uma viagem guiada por sonhos e convicções, mas fundamentada em perspetivas teóricas e abordagens analíticas rigorosas, que tem como objetivo contribuir para um debate sobre a democracia como aspiração (“a verdadeira democracia”) e como processo (“a radicalização da democracia”). O ponto de partida é, como se referiu, a recusa da cidade em que vivemos – a cidade capitalista da mercadoria e do espetáculo – e a necessidade de identificar a cidade que queremos. Que cidade é esta? Nas palavras do autor, é a cidade em que a produção do espaço se dá através da verdadeira democracia. Esta é a convergência essencial que estrutura toda a argumentação que será desenvolvida: a luta pelo direito à cidade, pelo direito à produção do espaço, como horizonte utópico; a democracia como condição de realização do direito à produção do espaço. E quem é o sujeito do plural “queremos”? Essa é uma questão em aberto, que vai sendo desvelada ao longo das várias secções do livro. Da resposta fará parte o autor e todos os que com ele compartilham o essencial das ideias expostas. Mas não se trata apenas do recurso tático ao plural majestático, através do uso da primeira pessoa do plural em vez da primeira pessoa do singular, ou de uma estratégia que visa incluir subliminarmente um leque mais vasto de pessoas numa visão que é pessoal. O plural implícito na palavra “queremos” indicia uma vontade coletiva coerente com a perspetiva que o autor adota nas análises que efetua e nas propostas que sugere.

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A CIDADE QUE QUEREMOS

O debate sobre a produção do espaço, em que a obra de Henri Lefebvre se destaca como referência fundadora, é um dos mais profícuos entre académicos brasileiros, tendo dado origem a um domínio original e diversificado de reflexão crítica, controvérsia científica e propostas de ação que Alvaro Ferreira mobiliza de forma certeira a partir de dois conceitos-chave: metropolização do espaço (que engloba aglomerações urbanas de diferentes dimensões e áreas periurbanas e rurais) e mercadificação das cidades (isto é, uma mercantilização acompanhada pela construção de imagens e representações que visam aumentar a sua distinção competitiva). O debate sobre democracia, por sua vez, tem como referência a ideia de verdadeira democracia suscitada por Karl Marx em várias das suas obras; é a partir desta ideia que o autor identifica as limitações da democracia representativa e sublinha o papel da democracia participativa e da democracia comunitária na realização do direito à produção do espaço como horizonte utópico. O livro nasce do cruzamento destes dois debates, que são postos em diálogo e, por esta via, não só se enriquecem reciprocamente como dão lugar a um novo debate, mais alargado e integrador. O livro transmite uma ambição clara (contribuir para a construção de uma outra cidade) e parte de uma hipótese explícita (a realização de uma verdadeira democracia é condição da realização do direito à produção do espaço, e esta, por sua vez, é condição da construção dessa outra cidade). Essa ambição e essa hipótese inscrevem-se, assim, numa ideia de projeto de futuro, de realização de um futuro mais solidário e autogestionado, através de um processo de projeção assente na transformação da cidade atual, produzida pelo mercado e pelo Estado, numa outra cidade, produzida pelas pessoas no cotidiano. É neste contexto que ganha sentido a expressão “radicalização da democracia”, isto é, uma democracia exercida através da generalização de práticas participativas e comunitárias, e não exclusivamente dependente da qualificação e do aprofundamento dos procedimentos da democracia representativa. Esta ideia arrojada de projeto de futuro, vista como necessária pelo autor, parte de um diagnóstico crítico das cidades atuais, ou seja, dos agentes e processos que as configuram, das racionalidades e intencionalidades que comandam as decisões que sobre elas são tomadas, das relações de poder e disputas em presença, dos imaginários sociais que vão sendo construídos, das consequências vividas no cotidiano pelos seus residentes. Financeirização imobiliária, economia de crédito, propriedade

Prefácio

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e privatização de recursos comuns, processos de acumulação por espoliação, militarização da questão urbana são exemplos de processos identificados e analisados. Desigualdades, segregação, exclusão, precarização do trabalho e da vida, gentrificação, alienação e banalização do espaço são exemplos de dinâmicas inerentes a esses processos, porque condição e resultado da sua existência. O autor explica longamente o modo como estes processos operam, os valores, interesses e comportamentos que garantem o seu êxito, bem como os custos sociais, ambientais e políticos decorrentes desta crescente “mercadificação” e securitização das cidades. Esta é, segundo Alvaro Ferreira, a cidade em que vivemos e que não queremos. E, no entanto, nesta cidade encontramos espaços de encontro e debate, práticas de cidadania, modos de gestão da vida coletiva e processos deliberativos de planejamento urbano que são fonte de esperança e de inspiração. O autor relembra múltiplos exemplos de vários países dos continentes americano e europeu que, sendo bastante diversos em termos de génese, domínios de intervenção e processos de desenvolvimento, compartilham uma mesma característica essencial: a importância da ação coletiva, baseada nos princípios da autonomia, da cooperação, do cuidado pelo outro e da entreajuda solidária, e centrada na autogestão e apropriação democrática de recursos naturais, espaços, bens ou atividades. Os exemplos apresentados são muito ricos pela sua diversidade, pelas potencialidades que permitem evidenciar, mas também pelas limitações e fragilidades que revelam. Deter em comum, fazer em comum, viver em comum, viver em plenitude e não apenas sobreviver em casa, no local de trabalho, nos espaços públicos, nas áreas de lazer: estes são os traços-chave destas experiências, umas espontâneas, outras associadas a grupos informais de cidadãos ou a organizações não governamentais; umas efémeras, outras relativamente duradouras; umas de resistência e resposta imediata a problemas concretos, outras procurando induzir transformações sociais de natureza estrutural. Para o autor, o mapeamento de mobilizações, formas de participação e ações colaborativas e solidárias e os ensinamentos que é possível daí retirar são decisivos para imaginar como produzir o espaço a partir de intencionalidades e racionalidades guiadas por valores de justiça social, preocupadas com os mais frágeis e necessitados, e empenhadas no desenvolvimento de uma capacidade coletiva para pensar e atuar para além de lutas de microrresistência em contextos marcados por relações de poder

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A CIDADE QUE QUEREMOS

assimétricas, disputas ideológicas, conflitos entre distintos grupos e práticas sociais contraditórias. E, no entanto… No entanto, salienta Alvaro Ferreira, o que está em causa não é apenas dar escala, durabilidade e organização em rede a esse tipo de ações, embora essa seja uma via fundamental para a consolidação de uma democracia participada e comunitária. O que está em causa é uma transformação política bem mais profunda, associada às ideias fundadoras de “verdadeira democracia” e de “radicalização da democracia” intuídas e enunciadas por Marx em várias das suas obras: o desvanecimento do Estado a favor da comunidade como nova forma de organização política da sociedade. Caminhar para a “verdadeira democracia” implica a dissolução gradual do Estado a favor de um sistema comunal assente na partilha, na solidariedade, no fazer-com e na vida em comum, e constituído por comunidades autogovernadas com base em funções sociais e administrativas públicas, mas não estatais. O horizonte é, pois, o da construção de um comunismo, não como modelo predefinido e imposto a todos em nome do interesse geral, mas como um processo aberto, em permanente construção coletiva, assente no conceito de comum e gerido não pelo Estado, mas pela e para a comunidade. O desvanecimento do Estado pressupõe, por isso, a valorização de práticas e a constituição de instituições sociais que contribuam para o reforço da capacidade de autodeterminação, auto-organização, autogestão e autogoverno das comunidades e da sociedade. A democratização das instituições e do planejamento através da valorização da participação da sociedade civil nas atividades públicas, em geral, e na definição e gestão de políticas públicas, em particular, bem como a constituição de conselhos populares e de conselhos temáticos com um projeto de futuro, e não apenas de reivindicação (isto é, que se desmobilizam quando o problema é resolvido), constituem exemplos de ações prioritárias no sentido do desvanecimento do Estado como condição de emergência da nova organização política desejada. É, pois, um ideal utópico que nos é proposto. Mas o autor não se ilude, nem procura iludir quem o lê. A radicalidade da ambição do sonhador vem acompanhada pelo comedimento pragmático do estratega. Alvaro Ferreira não oculta – pelo contrário, sublinha – o facto de o caminho em direção à utopia que propõe ser duro, longo, imprevisível, demasiado estreito à luz do que hoje temos, conhecemos e sabemos. E, por isso, procura conciliar aparentes opostos: o tempo rápido das respostas imediatas a situações urgentes

Prefácio

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e o tempo lento da realização das utopias; as lutas de microrresistência e os combates por transformações socais de natureza estrutural; o objetivo de desvanecimento do Estado e a urgência de políticas públicas de geração de emprego e renda, de seguridade social (saúde, previdência e assistência social) e de educação; o reforço da capacidade de os atores sociais constituírem a própria democracia sem mediações e a necessidade de construir diálogos e interações mais intensos e profundos entre o Estado, os partidos políticos, a academia e os movimentos sociais etc. Situações híbridas que não correspondem a contradições do autor, antes traduzem a natureza inevitavelmente contraditória da construção de um caminho complexo, extenso e que não obedece a qualquer guião rigidamente preestabelecido. Trata-se, pois, de um livro polémico e provocador, como muitos dos que o autor cita ao longo da obra. Um livro que contém muitos debates dentro de um grande debate: o da construção da verdadeira democracia como condição de uma nova racionalidade de produção do espaço em direção à cidade desejada. Um livro em relação ao qual é difícil estar de acordo com todos os comentários, argumentos e nexos apresentados pelo autor, mas é fácil encontrar múltiplos pontos de interesse, de convergência de posições e, mesmo, de cumplicidade. Um livro lúcido e corajoso, ousado nos propósitos que prossegue e honesto na identificação das barreiras e dificuldades inerentes a esses propósitos. A escrita de um livro pode resultar de motivações muito distintas. Mas, à exceção de posições niilistas extremas, todos os autores visam uma mesma finalidade quando publicam uma obra: que ela seja lida. Este livro de Alvaro Ferreira, para além da relevância dos seus objetivos e da originalidade da abordagem que nos é proposta, tem a vantagem de não ter de ser lido de forma sequencial. Os devoradores de livros seguirão, por certo, o cânon tradicional, lendo-o do princípio ao fim. Mas aos mais céticos e reticentes recomenda-se que iniciem a leitura pela última secção do Capítulo 3, intitulada “Possibilidade de mudança: experiências que geram esperança”. Os amantes de polémica e da controvérsia talvez possam começar a leitura do livro pelo Capítulo 4. Por último, aos mais apressados não se levará a mal que se encaminhem diretamente para o Epílogo. Independentemente do ponto de entrada, todos encontrarão motivos e pistas de reflexão e de ação interessantes, úteis, refrescantes e inspiradores. É isso que dá sentido ao livro e que justifica a sua existência. E é a sua leitura que lhe confere o valor e o reconhecimento que ele merece.

APRESENTAÇÃO

Algumas palavras sobre “aquele momento inicial” e para situar a redação do livro

Em geral, não costumo escrever uma “apresentação” de um livro; começo sempre pela “introdução”. Entretanto, julguei importante, desta vez, iniciar esclarecendo o leitor acerca do momento em que comecei a redigir esta obra e como a disseminação da Covid-19 impactou a redação. Na primeira semana de janeiro de 2020, viajei para a Espanha, onde passaria seis meses como Professor Visitante Sênior na Universidad Autónoma de Madrid. Nesse período, além de ministrar um curso naquela instituição, dedicar-me-ia também à redação desta obra que agora o leitor tem em mãos. Eu tinha desenvolvido várias pesquisas acerca do tema e havia sistematizado minhas ideias e inquietações em um projeto de redação, inclusive com o sumário preliminar já definido. A discussão aqui desenvolvida nasceu do conjunto de projetos de investigação ligados à bolsa de Pesquisador do CNPq, mas também a partir dos profícuos debates durante a realização das quatro edições do Simpósio Internacional Metropolização do Espaço, Gestão Territorial e Relações Urbano-Rurais (SIMEGER) realizadas na PUC-Rio e, também, dos debates realizados junto ao Núcleo de Estudos e Pesquisa em Espaço e Metropolização (NEPEM), o qual dirijo. Comecei, pois, a trabalhar na universidade em Madri e a dividir também o meu tempo na redação deste livro. Em março, dirigi-me a Portugal; pus-me a trabalhar no Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa com o geógrafo João Ferrão. Foi uma excelente oportunidade de ter um contato mais prolongado com esse amigo e profissional que tanto admiro.

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A CIDADE QUE QUEREMOS

Ao aproximar-se o momento de retornar a Madri, o surto de Covid-19 já impactava fortemente a China, a Itália e a Espanha. Fui, então, informado de que não deveria retornar a Madri, pois o número de pessoas contaminadas já era altíssimo e as universidades haviam sido fechadas. Ou seja, o curso que ministraria em Madri não mais aconteceria. Mantive-me trabalhando no ICS da Universidade de Lisboa durante mais três semanas, pois em Portugal a chegada do coronavírus demorou um pouco mais. Todavia, com o aparecimento crescente de casos em Portugal, as universidades também foram fechadas (inicialmente apenas para os discentes, posteriormente também para os investigadores). Nesse momento, restou a possibilidade de trabalhar em casa. Durante esse período, as conversas que mantive com João Ferrão foram sempre muito proveitosas e provocativas. Além disso, havia uma cumplicidade no desejo de ambos de trabalhar pela produção de cidades menos desiguais e com maior participação da população na idealização e gestão de projetos para a cidade. Ao final de março, a pandemia já havia alcançado um patamar de tragédia. Minha família encontrava-se sozinha no Brasil nesse momento delicado; e a situação era ainda mais complicada, já que minha esposa é médica e estaria vivendo o caos em meio a esse furacão. Isso para não mencionar os descalabros de um governo federal inoperante e incapaz, que em muito contribuiu para a situação ganhar dimensões ainda mais calamitosas. Decidi, então, que deveria retornar ao Brasil para junto de minha família. Evidentemente, em um momento como aquele não foi fácil conseguir comprar a passagem aérea; não apenas pelo preço que estava elevadíssimo, mas pela incerteza de que conseguiria embarcar, pois inúmeros voos estavam sendo cancelados. Todavia, arrisquei e consegui retornar ao Brasil. Se por um lado foi excelente estar junto à minha família em um momento como esse, por outro lado foi terrível presenciar in loco as decisões impressionantemente estapafúrdias do governo brasileiro! Equívocos e mais equívocos no trato da pandemia, além de um negacionismo que somente prejudicou a população do país. Um ano após o meu retorno ao Brasil, ultrapassávamos os 350 mil mortos por Covid-19 (e esse número é bem maior, visto que há alto índice de subnotificações); uma verdadeira tragédia! Além disso, tenho a triste certeza de que esse número crescerá muito mais... Evidentemente, o meu projeto de redação deste livro não passou incólume à pandemia. Minha programação previa a finalização desta obra

Apresentação

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para julho de 2020; ou seja, a realização acontece agora com cerca de um ano de atraso. Mas, com certeza, não havia como ser diferente. Vimo-nos envolvidos em uma situação que exigiu da sociedade um olhar para dentro de si; uma autoanálise de sua condição de ser humano. Além disso, a retomada das atividades acadêmicas através das tecnologias de informação e comunicação tomaram-nos muito tempo. Ademais, vivemos um turbilhão de lives que minou nossas energias. Mencionei o fato da necessidade da autoanálise de nossa condição de seres humanos, e houve atitudes e mobilizações que mostraram o lado mais bonito de nossa humanidade: jovens se oferecendo para realizar as compras para as pessoas idosas não precisarem estar expostas ao risco de contaminação, criação de ações de auxílio à população carente e desempregada, doação de máscaras de proteção, criação de coletivos solidários etc. Por outro lado, presenciamos pessoas que se recusavam a permanecer em casa (e não me refiro ao trabalhador pobre, que tinha que sair para sobreviver), que não utilizavam máscaras de proteção, que negavam a existência da doença, que não respeitavam o distanciamento social, que falavam que as restrições propagadas afetavam a sua liberdade etc. Impressionante como o discurso da liberdade foi e é utilizado para justificar o individualismo, o pouco cuidado com o outro e, em última instância, a falta de humanidade. Tais fatos apontam para uma espécie de realidade delirante. Apesar disso, muitas foram as ações solidárias que se disseminaram mundo afora. Para incentivar novas ações através da divulgação dessas iniciativas, foi criada uma rede de pesquisadores que se organizou através do projeto SOLIVID1, que é um projeto coletivo para a construção de um mapa colaborativo e um banco de recursos on-line sobre as iniciativas de solidariedade diante da crise do Covid-19. A rede conta com 34 grupos de pesquisa – incluído o grupo NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisa em Espaço e Metropolização), por mim dirigido – de cidades como Barcelona (Espanha), Madri (Espanha), Valência (Espanha), Girona (Espanha), Córdoba (Espanha), Bilbao (Espanha), Santiago de Compostela (Espanha), Pamplona (Espanha), Nápoles (Itália), Veneza (Itália), Lisboa (Portugal), Aveiro (Portugal), Cidade do México (México), Santiago (Chile), Rio de Janeiro (Brasil), Porto Alegre (Brasil), Buenos Aires (Argentina), Medellín (Colômbia), dentre outras. 1 Disponível em: https://www.solivid.org/?lang=pt-br.

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A CIDADE QUE QUEREMOS

Durante todo esse ano (aliás, mais de um ano) de pandemia, temos observado atitudes de todo tipo, mas foi especial percebermos as inúmeras ações solidárias espalhadas mundo afora. A cidade é, por excelência, loco de grandes riscos, mas também de grandes possibilidades de transformação. Portanto, não devemos nos acomodar pensando que em breve tudo voltará ao normal, pois, como bem sabemos, aquele “normal” anterior à Covid-19 era extremamente desigual e cruel. Ou seja, o fim da pandemia não significará que tudo estará bem, pois antes já não estava. Mesmo nesse cenário de pandemia, com mais de três milhões de mortes no mundo, Kerry A. Dolan (editor da Forbes) apontou “um ano recorde para os mais ricos do mundo, com um aumento de US$ 5 trilhões (ou R$ 28 trilhões) em riqueza e um número sem precedentes de novos bilionários. O Brasil também seguiu essa tendência – o número de brasileiros bilionários cresceu de 45, em 2020, para 65 agora”.2 Sendo ainda mais claro, os bilionários brasileiros acumularam um patrimônio de US$ 291,1 bilhões (R$ 1,6 trilhão) contra US$ 127 bilhões (R$ 710 bilhões) no ano de 2019. Ou seja, os 65 brasileiros mais ricos detêm cerca de 20% de toda a riqueza econômica gerada no Brasil; em números significa dizer que, do total do Produto Interno Bruto de R$ 7,4 trilhões, esse pequeno número de pessoas detém R$ 1,6 trilhão! Precisamos criar uma alternativa frente ao capitalismo. Para tanto, é preciso aproximar a academia das associações de bairros e dos movimentos sociais. Mas não apenas isso; é preciso aproximar academia, associações de bairros e movimentos sociais também dos moradores de favelas, dos desempregados e dos sem-teto. Os partidos de esquerda também precisam fazer essa reaproximação (que se perdeu ao longo do tempo), pois, como temos percebido nas eleições da última década, são os grupos de direita e extrema direita que se aproximaram da população mais pobre; e isso sem mencionar certos membros de igrejas e templos, que manipulam os denominados fiéis. Temos que lutar pela construção de um mundo verdadeiramente diferente, mais solidário, autogestionado e que valorize a verdadeira democracia. Rio de Janeiro, 16 de abril de 2021. 2 Lista… (2021).

INTRODUÇÃO...

...ou nada é tão simples quanto parece... A maneira como se apresentam as coisas não é a maneira como são; e se as coisas fossem como se apresentam a ciência inteira não teria sentido. Karl Marx

Partimos de uma hipótese: é um total equívoco acreditar que a cidade que queremos é aquela que tem uma “boa” política de segurança e policiamento, pois a cidade que queremos deve ser aquela em que a produção do espaço se dá através da verdadeira democracia. Como nada é tão simples como parece, isso merece uma explicação, já que a ideia de democracia parece inquestionavelmente óbvia. Em outras palavras, se vivemos em uma democracia, por que começar este livro com uma hipótese como essa? Realmente pode parecer estranho falar em verdadeira democracia em uma época em que, dentre os 193 países existentes no planeta, grande parte deles é considerada democrata. Aliás, como já havia afirmado em 2018,1 mesmo em países em que governos autoritários estão instalados, em geral seus governantes proclamam-se democratas. Em 2013, o índice de democracia elaborado pela Economist Intelligence Unit permitiu avaliar e classificar os Estados-Nações quanto ao exercício da democracia, tendo participado da pesquisa 167 Estados. O índice baseou-se em 60 indicadores agrupados em cinco categorias: pro-

1 Conforme FERREIRA, Alvaro. Pela construção da verdadeira democracia: entre conselhos populares e ciberdemocracia. In: ZAAR, Miriam, CAPEL, Horacio (coord. y ed.). Las ciencias sociales y la edificación de una sociedad post-capitalista. Barcelona: Universidad de Barcelona/Geocrítica, 2018. Disponível em: http://www.ub.edu/geocrit/Sociedad-postcapitalista/Sociedad-postcapitalista.pdf.

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cesso eleitoral e pluralismo, liberdades civis, funcionamento do governo, participação política e cultura política. Os países foram divididos nas categorias Democracias completas (25 países), Democracias imperfeitas (54 países), Regimes híbridos (37 países) e Regimes autoritários (51 países). A Noruega foi considerada o país mais democrático, a Espanha ocupa a faixa classificada como democracias completas e o Brasil encontrava-se na faixa de Democracias imperfeitas, juntamente com, por exemplo, Portugal, França, Itália e Chile. Entretanto, vale lembrar que desde 2019 o Brasil é governado pelo presidente Jair Bolsonaro – que em toda sua história sempre foi filiado a pequenos partidos políticos e sem qualquer expressão –, que tem tomado medidas altamente questionáveis no que se refere à cultura, à educação e à democracia, além de promover uma enorme confusão entre religião e política. Desde sempre tem feito declarações extremamente absurdas, como, por exemplo, a defesa da ditadura militar no Brasil. Se isso já é por si só absurdo, o complemento é ainda mais: “O erro da ditadura foi torturar e não matar”, disse ele em 2008 e reafirmou em 2018. Quanto ao equívoco da confusão entre política e religião, afirmou o atual presidente da república que “somos um país cristão. Não existe essa historinha de Estado laico, não. O Estado é cristão. Vamos fazer o Brasil para as maiorias. As minorias têm que se curvar às maiorias. As minorias se adéquam ou simplesmente desaparecem” (2017). Mas não vamos continuar citando as declarações assustadoras do atual presidente do Brasil, não porque não haja várias outras igualmente assustadoras e condenáveis, mas porque acabaríamos ocupando várias páginas desta obra. O que importa é percebermos que aquilo que acreditamos ser democracia está em questão. Entretanto, antes de darmos sequência ao debate acerca da democracia, é importante mencionarmos a estratégia utilizada pelo grupo que ajudou a viabilizar a eleição de um presidente como Bolsonaro. O empresário Marcos Aurélio Carvalho, um dos donos da empresa AM4 Inteligência Digital de Resultados, foi peça-chave na campanha presidencial de Jair Bolsonaro em 2018. Em artigo publicado2 em junho de 2020, Carvalho demonstrou como a utilização de robôs alterou totalmente a maneira de fazer uma campanha político-eleitoral. O então responsável pelo marketing do candidato à Presidência do Brasil afirmou que, na verdade, 2 O Globo, 8 jun. 2020.

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“os usuários que diariamente emplacam temáticas políticas nos trending topics do Twitter, com uma capacidade quase imediata de mobilização em torno de hashtags perfeitamente bem combinadas, são robôs”. Isso é muito grave, pois esses robôs são usuários irreais que têm o poder de pautar o debate, criando a impressão de que determinado assunto está sendo muito comentado, o que – como em um ciclo vicioso – faz com que seja comentado de fato. Nas palavras de Carvalho (2020), “está feito o sequestro da pauta política de um país”. Essa quantidade falsa de usuários traz uma falsa mobilização em torno de uma ideia, uma causa ou uma pessoa e acaba trazendo mais gente para o debate, dessa vez pessoas de fato. Essas pessoas acreditam estar ligadas a um forte movimento e passam a defender tais causas, ideias ou pessoa. As redes sociais têm sido utilizadas para cumprir esse perigoso papel, e isso significa trabalhar pela fragilização da democracia.  Em outubro de 2017, pesquisa realizada pela ONG chilena Latinobarómetro revelou que o apoio à democracia na América Latina vem caindo há cinco anos e, preocupante, apenas 53% dos cidadãos consultados mostraram-se partidários dessa forma de governo. Entretanto, um olhar mais cuidadoso diante dos resultados da pesquisa mostra-nos que, verdadeiramente, há uma percepção por parte da população de que há um declínio da democracia e que ele se acentua ainda mais nos últimos anos. É nesse sentido que aparece na pesquisa a falta de apoio à democracia realizada nos países latino-americanos. Isso porque há uma percepção de que cada vez mais se governa para uma pequena parcela da população. Outro ponto importante a destacar é que há uma total e direta associação à ideia de democracia associada ao Estado, aos governantes. Outro relatório divulgado no início de 2018, desta vez pela Fundação Bertelsmann, da Alemanha, intitulado Índice de Transformação, afirmava que a avaliação da qualidade da democracia, da economia de mercado e dos governos em nível mundial está no pior nível desde 2006 (ano do primeiro relatório realizado pela fundação). Os resultados da pesquisa alemã têm abrangência global, embora apresente-se na América Latina de forma bastante clara. É possível ler no relatório que haveria uma crescente ameaça à legitimidade da democracia em si, já que vem perdendo apoio da população. Isso é perigoso, pois essa insatisfação com a maneira segundo a qual a democracia vem funcionando ameaça transformar-se em um descontentamento com a democracia como tal.

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Em janeiro de 2019, a Universidade de Cambridge divulgou um relatório intitulado Global satisfaction with democracy, o qual revelou que 57,5% da população do mundo está insatisfeita com o sistema democrático. Segundo o relatório, esse é o nível mais elevado de insatisfação em 25 anos, e entre as razões indicadas aparecem a crise econômica de 2008, a crise dos refugiados, a polarização política e a falta de resposta dos governantes para os problemas socioeconômicos. Se observarmos os dados referentes ao Brasil, percebemos que menos de 20% da população está satisfeita com o regime político. O relatório informa ainda que a própria ascensão de líderes populistas seria mais uma consequência do que uma causa da perda de legitimidade da democracia. Tratou-se de uma pesquisa realizada em 154 países, totalizando uma população de 2,43 bilhões de pessoas. Em matéria publicada sobre esse estudo da Universidade de Cambridge no jornal O Globo (30/1/2020), o periódico salienta que no Brasil houve uma breve exceção “ao mal-estar democrático no governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011). Porém, a crise institucional desencadeada pela Lava Jato, que expôs o clientelismo generalizado e o nepotismo presentes no sistema político brasileiro, levaram à vitória, em 2018, do candidato de direita Jair Bolsonaro, cuja plataforma trazia uma ‘nostalgia dos governos da ditadura militar’, assinala o estudo”. Outro dado que nos parece assustador é que a pesquisa divulgou que, na América dita latina, 37% das pessoas “acreditam que os altos índices de criminalidade e corrupção justificam um golpe militar”! É impressionante acreditar que há um percentual tão elevado da população que é a favor de um golpe militar, principalmente tratando-se da América Latina, que passou por décadas de ditadura militar que levou a mortes, torturas e ao desaparecimento de milhares de pessoas; isso sem mencionar o fato de que há estudos mostrando que durante as ditaduras militares houve, também, corrupção.3 A sensação de insatisfação e desânimo encontra-se associada, segundo os resultados da pesquisa, à crescente discrepância entre as principais demandas dos cidadãos e à falta de capacidade de resolver os problemas por parte das elites políticas. Os escândalos de corrupção divulgados nos

3 Ver, por exemplo, o livro do historiador Pedro Henrique Pedreira Campos intitulado Estranhas Catedrais: as empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar, 1964-1988 (Niterói: Eduff, 2017).

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últimos anos contribuíram para o crescimento da insatisfação e espalham-se mundo afora. É nesse contexto que políticos de caráter populista se aproveitam para galgar novas posições no cenário político. O historiador argentino Federico Finchelstein (2019) promoveu um longo debate acerca da relação entre o fascismo e o populismo ao longo da história, concluindo que o populismo moderno é a tentativa de continuidade do que denomina pós-fascismo através da via democrática. Em seu livro, deixa claro Finchelstein que há um amplo consenso na percepção de que o fascismo emerge como fenômeno transnacional, cultural, ideológico e de caráter religioso em oposição tanto ao liberalismo quanto ao comunismo – embora, historicamente, o discurso anticomunismo tenha sido uma característica do fascismo. Finchelstein (2019) acredita que os populismos de direita e de esquerda orbitam os mesmos elementos: culto quase religioso ao dirigente, construção da identificação entre o líder e o povo, menosprezo pelos opositores e pela imprensa crítica. Aliás, em uma entrevista ao jornal El País, em 27 de junho de 2019, o historiador afirmou preocupar-se com “a emergência de um novo populismo que combina o neoliberalismo com ranço fascista”, e segue afirmando que “estes novos populistas fazem uma tentativa explícita de voltar a elementos centrais da tradição fascista: racismo, violência política e, em casos como o de  Bolsonaro  e Trump, elogios teóricos da ditadura. O presidente brasileiro é um dos populistas mais próximos ao fascismo que já vi”. Esse cenário é assustador, pois nunca devemos esquecer que a América dita latina passou por décadas de governos militares ditatoriais. Passamos, no Brasil, por uma ditadura militar que se iniciou em 1964 e durou até 1985 (apesar dessa eleição para presidente da república ter ocorrido de forma indireta), assim, é difícil falar em democracia. Aliás, apenas em setembro de 2014 as Forças Armadas admitiram oficialmente, pela primeira vez, que possa ter havido tortura e assassinatos (!!!), ou seja, praticamente 30 anos após o fim da ditadura! O que surpreende é o retorno, entre 2010 e 2020, de inúmeros governos de direita e extrema direita na América do Sul. Isto é traumático após termos passado por cerca de uma década e meia de governos que se apresentavam como aqueles que conformariam uma nova integração regional para superar o status de “quintal” dos Estados Unidos da América. A partir desta observação, é preciso fazer certa contextualização.

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No início dos anos 2000, coincidentemente (mas nem tanto), após décadas de governos de direita ou centro-direita, candidatos de partidos classificados como progressistas, de alinhamento mais à esquerda, chegaram ao poder. E, durante um período, o mundo viveu, mais especificamente a partir de 2003, o aumento especulativo dos preços internacionais das commodities; ou seja, o preço das matérias-primas sofreu contínuas elevações de preços no mercado internacional. O que se viu, então, foram inúmeras declarações dos governantes apontando para o forte crescimento do superávit dos países sul-americanos. Houve, nesse sentido, forte popularidade de seus governantes. Entretanto, embora com forte aprovação popular, não promoveram políticas com o objetivo de modificar a estrutura produtiva. Vimos a Venezuela, assim, tornar-se extremamente dependente do petróleo, que representava 95% das exportações durante o período em que o presidente Hugo Chávez esteve à frente do governo. O Brasil, considerado anteriormente o país mais industrializado da região, tem baseado sua economia de exportação em soja e minério de ferro, tendo a China como grande compradora. O petróleo também cumpriu importante papel no período, visto que os royalties abasteciam as cidades com dinheiro que parecia ser infindável. O preço do barril do petróleo havia alcançado um preço que viabilizava a exploração em águas profundas, chegando até o chamado pré-sal. No Peru, grande parcela de suas terras foi cedida em concessão à mineração. Na Argentina viu-se aumentar o número de hectares destinados ao cultivo transgênico de soja, milho e algodão. Estes são alguns exemplos, e, como podemos observar, todos fortemente baseados na dependência das exportações de bens primários; nenhum deles buscou ultrapassar o modelo extrativista (ZIBECHI; MACHADO, 2017). Ao que parece, podemos identificar lógicas comuns no caminho trilhado pelos governantes desses países: o fortalecimento do Estado, a implementação de políticas sociais compensatórias, o modelo extrativo exportador (commodities como base da economia), a realização de grandes obras de infraestrutura e de revitalização urbana. Não resta dúvida de que, entretanto, houve maior preocupação com a população mais necessitada e fragilizada devido a uma longa história de segregação e desigualdade social. Todavia, não houve mudanças na estrutura estatal; aliás, em geral, houve maior fortalecimento e centralização

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do poder do Estado. Pensou-se que o que é possível conseguir é sempre pelo Estado, pelo partido político e pelas instituições existentes, “mas a emancipação não pode deter-se aí”.4 Mais uma vez limitamo-nos a acreditar que a conquista do Estado é a salvação. Sequer pensamos noutra possibilidade, uma possibilidade outra de mundo, em que a referência central vá para além do Estado ou dos partidos políticos da maneira que conhecemos. E mais: para além do capitalismo. A produção do espaço urbano foi sendo realizada sempre entre as lógicas da propriedade privada e do espaço público, que na maioria das vezes acabou por significar propriedade do Estado. Aliás, todas as propostas ditas progressistas e mesmo o estatuto da cidade, que sempre defenderam o planejamento participativo e a justiça social, em nenhum momento colocaram em questão a propriedade privada, o que muito nos impressiona. Ou seja, o direito à propriedade segue inquestionável, embora ninguém mencione o fato de basear-se na negação desse direito à maioria da população. Este livro tem o objetivo de questionar determinadas “certezas estabelecidas”; de buscar as relações, ações e interações que estão por trás daquilo que se apresenta; de lutar, conforme nos desafiou o filósofo francês Henri Lefebvre, pelo “impossível-possível”. Até porque, a cidade que queremos é muito diferente da cidade em que vivemos. Porém, antes de entrarmos propriamente no desenvolvimento de nosso debate, é preciso esclarecer o caminho metodológico que seguiremos. A ciência geográfica, ou melhor, os geógrafos, desde muito tempo, enfrentam intensos debates, internamente à própria ciência, quando se veem questionados quanto ao aporte teórico-metodológico da Geografia. Isso é agravado por seu caráter particular, em outras palavras, pelo que conhecemos como Geografia Física e por Geografia Humana, pois, além das diferenças no que se refere ao método científico – ao método de abordagem –, há também grande diferença em relação aos procedimentos de investigação (procedimentos de pesquisa) ou, como alguns preferem, ao procedimento e método. Embora não seja nosso objetivo aprofundar essa discussão, importa afirmar que a confusão que muitas vezes se faz entre método científico e procedimentos de pesquisa é também muito negativo para o desenvolvimento da ciência. 4 Zibechi e Machado (2017, p. 26).

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Além de toda a dificuldade elencada anteriormente, vivenciamos um momento de forte abandono da construção teórica. Há um forte discurso de parte da academia – e isso se reflete nos pós-graduandos – de que o que importa é ser propositivo; parece-me equivocada tal simplificação. Por outro lado, há grupos que acreditam ser necessário continuar trabalhando apenas dentro do horizonte analítico e da construção teórica. Vemos exageros nas duas posições. É preciso entender que a construção teórico-metodológica deve servir para revelar aquilo que está por trás do que se apresenta. E mais, é preciso compreender para transformar, diria Karl Marx. Ou seja, é preciso passar da interpretação do real para a sua crítica e transformação (LÖWY, 2012). Assim, não devemos separar a dimensão da ação social da dimensão da ciência. Nesse sentido, não devemos esquecer de que importa interpretar o mundo, mas com o objetivo de contribuir para transformá-lo. E aqui não se trata de substituir os movimentos sociais, mas de ajudá-los na construção do “movimento autônomo da imensa maioria em proveito da imensa maioria” (MARX, ENGELS, 1998, p. 19). Ao contrário do que temos visto em vários artigos científicos, que dão grande ênfase à discussão teórica muitas vezes desprendida do real, reafirmamos que o ponto de partida tem que ser o real. Após a identificação do problema em questão, daquilo que nos inquieta, é que devemos nos voltar à teoria, mas sempre preocupados com o movimento entre prática e teoria. Através da dialética é possível aliarmos a contraditória relação que mantém unida teoria e prática. Essa relação contribui para manter em aberto as contradições do processo social e histórico – que agrega as práticas e o imaginário, o concreto e o simbólico –, colaborando, assim, para evitar reducionismos deterministas e idealizações afastadas do real, ambas contribuindo para o fechamento do movimento e do diálogo crítico, quando o que buscamos é a abertura. Lembra-nos o geógrafo Leonardo Brasil Bueno (2008, p. 14) que é preciso “evitar os riscos opostos e complementares. […] De um lado, a aceitação não mediada e não criticada dos dados e fatos brutos da empiria fetichiza a suposta objetividade dos fatos, dos números e das estatísticas, como positividades que se autoexplicariam”; e de outro lado, “a teoria como exercício conceitual abstrato, de todo desligado da empiria, dos fatos e dos dados, das fontes e dos processos reais de trabalho, fazendo com que a pesquisa se esvazie e perca em rigor científico e conceitual”.

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Isso nos obriga a lidar com o fato de as questões teóricas mostrarem-se, inclusive, como problemas práticos. Assim, se acreditamos que o ponto de partida deve ser a realidade, isso também significa considerá-la como um limite à ação. Aliás, a própria teoria pode tornar-se um limite à transformação. É preciso entender que qualquer contraposição ao modelo vigente somente poderá partir de dentro do próprio capitalismo. A reflexão realizada a seguir, nesta breve explicitação do método, foi construída a partir de uma base metodológica que apresentamos pela primeira vez em 2017 (mas que se desdobrou em um artigo publicado em 2019) e está baseada em uma tríade composta pelos processos de materialização, substrução e projeção. A redação deste livro seguiu essa perspectiva metodológica. Ao debruçar-nos sobre o “real”, vemo-nos diante de algo para além do concreto e de sua referida concretude. Assim, aquilo que se apresenta inicialmente está ligado ao perceptível, àquilo que pode ser captado pelos sentidos; ou seja, refere-se à materialização, que se encontra ligada à aparência, àquilo que se apresenta. Nesta fase o pesquisador irá descrever e analisar as formas, o espaço produzido. Entretanto, há elementos que são anteriores ou que estão por trás da concretude observada, mas que são importantes para compreendermos a sua concreção. Referimo-nos a uma espécie de substrato que dá suporte a algo, que serve de base a um fenômeno. A esse processo denominamos substrução. Trata-se, nesse momento, de investigar os elementos anteriores ou que estão por trás da concretude, aquilo que lhe serve de sustentação. Tratam-se também de representações e de jogos de poder, que trazem consigo forças escusas, que trabalham para manterem-se ocultas. Este momento da análise promove uma reflexão acerca dos grupos sociais envolvidos no processo de produção, suas ações, reações e interações (parcerias entre Estado e Capital5 materializadas, por exemplo, em projetos de revitalização; mobilizações sociais etc.). Embora esse enorme jogo de forças, por vezes, encontre-se oculto, noutras vezes, o que se mostra são as representações, que contêm por excelência interditos, interesses escusos, falsidades, poderes ocultos, ambiguidades... As representações são muito importantes para compreen-

5 Para encontrar uma discussão mais aprofundada acerca desse tema, ver Ferreira (2013b).

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dermos o processo de substrução; aliás, quanto a elas, o filósofo francês Henri Lefebvre (2006, p. 58) afirmou que são falsas no que apontam e dizem (porque dissimulam objetivos reais), mas são verdadeiras quanto ao que sustentam. Isso nos obriga a ter em conta que temos a dimensão da apresentação e da representação, de que há a aparência e o que está oculto na aparência. Em sendo o espaço um produto social, podemos afirmar que por trás de sua produção há intencionalidades. A conjugação de substrução e materialização tem nesse jogo um terceiro elemento: a projeção, que se refere à ideia de realização no futuro. Esse processo mira o futuro, mas o que determina o projeto é o passado e o presente vividos. Além disso, é preciso ter em conta que é pensado e levado a cabo a partir de uma construção ideológica, e que para tal, muitas vezes, faz uso de manipulações; até porque a definição do projeto também traz em si um jogo de poder. A projeção caracteriza-se como base para idealização de projetos de mundo, que podem ser reacionários, progressistas ou efetivamente revolucionários. A projeção liga-se diretamente ao ato de projetar, e, em geral, a substrução faz uso de artifícios ligados à mídia e à construção ideológica. Por isso, a relação entre um objeto e a construção de sua imagem (símbolo) é transformada, já que o produto é que passa a representar a imagem, e não o contrário. Vivemos um momento em que a imagem e as representações ganham uma dimensão cada vez maior, em que verdadeiramente não é o consumidor ou a mercadoria consumida o que importa, mas sim a representação do consumidor e do próprio ato de consumir. Tudo isso é amplificado se tivermos em conta que tanto as mercadorias quanto o ato de consumir ganham formas e sentidos de espetacularização. Definitivamente, é por isso que, atualmente, prefiro falar em mercadificação em lugar de mercantilização, sendo que a primeira incorpora a segunda, mas vai além. Assim, ao falarmos de mercadificação6 do espaço (há autores que usam mercadorização), temos em conta agora, mais do que em qualquer momento anterior, que a relação entre determinado espaço e sua imagem construída é modificada. É o espaço, transformado em produto, que passa a representar a imagem, e não o contrário; cada vez mais, o espaço é consumido pelo que ele representa; ou seja, o que representa frequentar e estar em determinado lugar (FERREIRA, 2017). 6 No segundo capítulo desenvolveremos melhor esse debate.

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A materialização nos permite, a partir do momento atual, observar, descrever e analisar as formas, o espaço produzido. Aqui importa também estarmos atentos para o fato de que a produção simbólica se encontra ligada à produção da vida material e às relações de produção. O uso do espaço, a vida que se dá no âmbito do lugar, as tensões entre apropriação e dominação, tudo isso também se encontra nessa dimensão analítica. A substrução nos autoriza a reflexão acerca dos grupos sociais envolvidos no processo de produção, suas ações, reações e interações, pois o espaço é um produto social, modelado e condicionado a intencionalidades, racionalidades. Aqui, como dissemos anteriormente, estarão presentes relações de poder, ideologias, representações. Associações entre Estado e Capital (materializadas, por exemplo, em parcerias público-privadas, em projetos de revitalização ou grandes reformas urbanas), mobilizações sociais em contraposição às políticas estabelecidas, tudo isso é parte desta dimensão analítica. A análise da substrução trará luz àquilo que deu condições para a concretização da realidade atual. Em outras palavras, ajudará a esclarecer o que precedeu e deu suporte à situação atual, ao objeto a ser analisado. A projeção mira o futuro, mas evidentemente o que determina o projeto é a história construída no passado e o presente vivido. Os projetos, que podem ser revolucionários ou que objetivem manter o status quo, são pensados, idealizados pelos grupos sociais que se encontram em tensão. O jogo de forças não é homogêneo e os artifícios usados são variados. A utilização da mídia, da racionalidade ligada à sociedade do consumo, os projetos idealizados pelos movimentos sociais em contraposição às políticas estabelecidas, tudo isso é parte desta dimensão analítica. Convém lembrar, ainda, que no momento em que estamos trabalhando com a materialização, descrevendo e analisando as formas produzidas, devemos considerar que elas são o resultado de um processo de projeção. Ou seja, materialização, substrução e projeção são totalmente imbricadas e interdependentes, além de coexistirem no presente, passado e no projeto de futuro. Quando, anteriormente, mencionamos a construção ideológica, temos de ter em conta que a ideologia pode ser pensada a partir de uma atitude contemplativa que não reconhece a sua intrínseca dependência em relação à realidade social, mas também a partir de um conjunto de crenças voltado à ação. Além disso, pode tratar-se, do mesmo modo, de

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uma construção de ideias falsas, crenças e conceitos que legitimam um poder político dominante. Evidentemente, quando um processo é denunciado como ideológico, podemos ter certeza de que por trás daqueles que denunciam há também um discurso ideológico. Atualmente, cada vez mais mercado e mídia de massa estão interligados; vivemos em uma “sociedade do espetáculo” (DEBORD, 1997) em que a mídia estrutura antecipadamente nossa percepção da realidade e a mistura à sua própria representação. Certamente é possível associarmos esse debate a algo desenvolvido por Lefebvre (1974, 2008) e que trata da associação entre representações e espaço. Fala-nos da produção de um espaço de representações que traz em si objetos concretos, mas também projetos e trajetos. Este espaço de ações (que podem estar em curso ou que podem ser ainda virtuais) encontra-se, embora seja diferente, com as representações do espaço, que trazem consigo lógicas, técnicas e projetos muitas vezes definidos e postos em curso pelos grupos dominantes; é concebido e representado. A experimentação disso se dá no âmbito das práticas espaciais, que são as práticas sociais projetadas no espaço social (que é ao mesmo tempo físico, social e mental); é o espaço da experiência e percepção a partir do prático-sensível. Lefebvre (2006) pretende construir uma teoria que não venha a abolir as representações, mas que nos permita resistir àquelas que fascinam as massas, e também que nos permita escolher as representações que ajudem a explorar o possível... a mudança. Para desenvolver sua teoria acerca do espaço, Lefebvre (1974, 1994, 2008) faz uso de tríades analíticas, dentre as quais podemos mencionar: o percebido, o concebido e o vivido; o físico, o mental e o social; as práticas espaciais, as representações do espaço e os espaços de representação; e o espaço absoluto, o espaço abstrato e o espaço diferencial. Cada elemento de cada uma das tríades está presente nos outros elementos da própria tríade e nas demais. Trata-se de momentos da análise. As tríades são construídas com o objetivo de analisar as diferentes dimensões do espaço e são compostas por elementos que as constituem. Funcionam como uma espécie de lupa, que nos permitiria desvendar melhor cada dimensão analítica. A tríade percebido-concebido-vivido focaria a dimensão da percepção através do corpo, da corporeidade. A tríade práticas espaciais-representações do espaço-espaços de representação tem como foco a espacialidade. As relações sociais são sempre espaciais e existem

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a partir da construção de certas espacialidades. Trata-se de considerar a espacialidade efetivamente vivida e socialmente criada; ou seja, a construção da espacialidade como um produto de processos sociais e rebatimentos materiais, ao mesmo tempo concreta e abstrata. Assim, estaremos percebendo-a como parte do espaço socialmente construído. Nesse sentido, não é possível ignorarmos as diversas lutas simbólicas travadas no espaço urbano, em que está em questão a própria representação de mundo (FERREIRA, 2013a, 2013b, 2014). E, finalmente, a tríade espaço absoluto-espaço abstrato-espaço diferencial traria à luz o tempo, a temporalidade em todas as suas contradições. Ao considerar as representações como fatos da prática social, é possível compreender a consciência e o pensamento sem omitir o real; e é possível escapar da alienação (que, por vezes, se esconde atrás da substrução), orientando-nos em direção ao possível, correndo riscos... buscando, por meio da projeção, construir o objeto virtual, aproximando-nos do impossível; pois, como sabemos, para conseguirmos o possível, é necessário mirar o impossível. Constituímo-nos, em nossa humanidade, das dimensões do ser mental, do ser físico e do ser social, que constituem uma unidade multidimensional. Cotidianamente, internalizamos regras, normas, instituições, valores e representações, que fazem parte de nossa existência social. Quando ouvimos falar em indivíduo, não devemos esquecer que ele se representa na dimensão social, já que somente se realiza concretamente no social. A dimensão social de representação de atores e agentes7 se dá no âmbito do lugar e se revela por meio da materialização. Nesse sentido, as práticas espaciais definem lugares, que se revelam e se constituem através da relação entre o local e o global, que se realiza através de ações, reações e interações entre os diferentes atores e agentes na produção do espaço; além disso, definem a representação dessa relação, dessas ações e interações (aqui encontramo-nos no âmbito da substrução). Tudo isso acaba por constituir-se no cotidiano. É nele que vivenciamos a alienação, mas é também a partir dele que podemos lutar contra ela, insurgir-nos... O filósofo Slavoj Žižek (2011, p. 91) lembra-nos da denominada regra 80/20 da vida social, enunciada por Vilfredo Pareto. A partir daí, afirma

7 Em texto anterior (FERREIRA, 2013a), discuto e apresento a diferença entre as categorias sujeito, ator e agente.

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Žižek que “80% das terras pertencem a 20% das pessoas, […] 80% dos links levam a menos de 20% das páginas da internet...”. Depois de trazer inúmeros exemplos da relação 80/20, inquieta-nos com a afirmação de que “a explosão contemporânea de produtividade econômica nos coloca diante do caso extremo da regra: a futura economia global tenderá a um estado em que apenas 20% da força de trabalho será capaz de fazer todo o trabalho necessário, de modo que 80% das pessoas serão basicamente irrelevantes e inúteis e, portanto, desempregadas”. Como podemos, então, admitir a continuidade de um sistema como esse? Será que continuaremos acreditando que isso é normal? A cidade é para ser vivida em plenitude por todos os cidadãos; assim, é necessário articular arte, cultura, comunicação e direcionamento político para realizar a verdadeira transformação do espaço urbano; em outras palavras, é necessário ultrapassar o momento atual – da cidade como produto, comercializável – e restituir o sentido da cidade como obra, produzida no cotidiano pelas pessoas, pelas diferenças, e não pela mercadoria. Ou seja, estaríamos caminhando para a retomada, pela sociedade, da definição de seu destino, para uma espécie de autogestão. Se, por um lado, os usuários do espaço urbano podem alienar-se pelas representações do espaço, como no projeto de mercadificação da cidade, na produção do espaço voltado ao turismo; por outro lado, podem se apropriar dela de outra maneira, a partir de uma miríade de possibilidades – inclusive como espaço de reivindicações – e vivê-la como o lugar do encontro, da festa, das manifestações culturais espontâneas dos moradores; trata-se aqui de outro projeto, ou seja, estamos caminhando pelo processo de projeção. Entendemos assim por que Lefebvre (1994, p. 349) acreditava que a apropriação e o uso do espaço podem persistir nos espaços de representação, abrindo a possibilidade de pensarmos na construção de um espaço diferencial,8 visto como resistência e como potencialidade, como “uma iniciativa utópica alternativa para o espaço existente atualmente”. Temos consciência de que vivemos cotidianamente uma série de problemas nas cidades, que, embora estejam totalmente imbricados, muitas

8 Embora não seja o mesmo nem possamos fazer uma relação direta, é possível construir uma interlocução entre esse debate e a noção de heterotopia desenvolvida pelo filósofo francês Michel Foucault (1986, 1981).

vezes são tipificados como sociais, econômicos, políticos, ambientais, técnicos e tecnológicos. Evidentemente, os habitantes não passam todos pelas mesmas dificuldades e restrições. Determinados problemas são mais experienciados por determinada parcela da sociedade, que mora em determinados locais da cidade. A desigualdade está impressa, inclusive, na falta de infraestrutura, de áreas verdes e de espaços públicos nos bairros onde vive a população de mais baixa renda; isso é ainda mais grave nas favelas da cidade. O desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação já nos mostrou que grande parte das atividades e das relações de trabalho está sendo transformada. O deslocamento das atividades de trabalho para a residência e o crescimento dos serviços de compra via internet e de entrega em domicílio estão alterando toda a dinâmica de circulação, e o bairro ganha mais importância. Nesse sentido, o deslocamento a pé pelo bairro passa a ser mais relevante, juntamente com o pequeno comércio, o setor de serviços e as áreas de lazer. Presenciaremos possivelmente uma espécie de retorno da cidade aos bairros. Para tanto, é fundamental o debate acerca do espaço privado, do espaço público e do comum. Uma característica fundamental de uma boa cidade é a promoção da integração social e da igualdade de qualidade de vida, em que o bem público prevaleceria sobre o interesse privado, entretanto, infelizmente, não é isso o que ocorre. A segregação espacial, há tempos, tem acompanhado o crescimento das cidades. Inclusive, temos presenciado o surgimento de cada vez mais condomínios fechados e shopping centers. Aliás, shopping centers não podem ser confundidos com espaço público. Se nós produzimos o espaço que nos produz, a maneira segundo a qual as cidades foram construídas reflete exatamente os valores de nossa sociedade, que se mostra extremamente desigual. Todavia, se trabalharmos pela produção do espaço de maneira diferente, estaremos trabalhando simultaneamente pela construção de valores sociais também diferentes. Referimo-nos a opções políticas, que têm de ter em conta os problemas imediatos, mas também o projeto de futuro; um projeto que não é único, que pode ser questionado. Não pretendemos ficar presos àquilo que existe. Estamos mirando o impossível-possível. Que cidade queremos? Para responder a essa pergunta, precisamos saber como queremos viver, pois a cidade é nada mais do que um meio para a realização desse desejo.

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CAPÍTULO 1

A cidade como lugar de diversidade e de desigualdade Existem apenas duas classes sociais, a dos que não comem e a dos que não dormem com medo da revolução dos que não comem. Milton Santos (adaptação de uma frase de Josué de Castro)

As cidades se originaram e continuam se originando em momentos, lugares e circunstâncias tão concretos quanto diversos. Ao que parece, segundo arqueólogos, as primeiras cidades teriam surgido há cerca de 5.500 anos, quando nessa época se alcançou uma determinada técnica que permitiu a passagem de um sistema de simples coleta para o de cultivo de alimentos, sendo possível, inclusive, a obtenção de excedentes de alimentos suficientes para que um certo número da população pudesse dedicar-se a trabalhos distintos do próprio campo. Entretanto, no transcurso dos séculos, foi aumentando cada vez mais o número de trabalhadores nas cidades.1 Como nos lembrou o filósofo espanhol Antonio Tudela Sancho (2017, p. 180), foram ganhando relevância “as tarefas relativas ao governo dos grupos humanos, o serviço às divindades, a gestão da cidade e de seu entorno agrário, a defesa de seus limites, o intercâmbio e a geração de bens e produtos, as relações tanto comerciais quanto diplomáticas com outras cidades etc.”.2 Ou seja, ao pensarmos em cidade, temos de entender que se trata de algo que acompanha a humanidade há muito tempo. Além disso, as cidades sempre foram o lugar em que uma forte diversidade cultural esteve presente, visto que 1 É possível, através de uma leitura fluida e agradável, obter mais informações sobre esse tema por meio da obra do urbanista italiano Leonardo Benevolo intitulada História da cidade. 2 Ao fazer citação direta de autores em obras em língua estrangeira, optei por traduzi-las para a língua portuguesa. Portanto, essa tradução é de minha total responsabilidade.

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concentrava uma variedade muito grande de pessoas, que muitas vezes vinham de lugares distantes, que tinham hábitos e costumes bastante diferentes. Isso verdadeiramente é bom, o que não quer dizer que a desigualdade não estivesse presente no cotidiano das cidades, já que havia claramente uma hierarquia no que tange à localização, à forma, à qualidade da construção e à inserção social no dia a dia das cidades. Ou seja, desigualdade não é sinônimo de diversidade, tampouco são excludentes. Os geógrafos espanhóis Julio Vinuesa Ângulo e María Jesus Vidal Dominguez (1991, p. 39-40) afirmaram que “há concordância geral em situar a aparição das primeiras cidades na região da Mesopotâmia em torno da metade do IV milênio antes de Cristo [ou, como preferem outros, IV milênio Antes da Era Comum]. Cada uma dessas cidades era regida por um monarca […] que administrava os tributos que o povo devia pagar por cultivar terras consideradas de propriedade divina”. Posteriormente é que começaram a surgir cidades no continente europeu. No sentido morfológico, era uma área amuralhada, que se organizava em torno de um palácio-templo, ao redor do qual se dava o crescimento desordenado do casario. Havia uma hierarquia na localização das casas da cidade, visto que nas áreas mais centrais situavam-se os servidores civis e religiosos, ao passo que, quanto mais se afastavam do centro, mais pobres eram as casas. Embora as cidades na Mesopotâmia chegassem a ter entre 5 mil e 20 mil habitantes, apenas 10% deles se dedicavam a trabalhos nos centros urbanos, os outros trabalhavam no campo – até porque era preciso uma produção suficiente para suprir as necessidades de todos os habitantes. Em outras palavras, morar na cidade não significava – como atualmente – que as atividades de trabalho fossem de caráter urbano. Posteriormente, conforme foi crescendo a importância de tarefas relativas à cidade, como já havia afirmado Tudela Sancho (2017, p. 180), observou-se uma alteração na relação de pessoas envolvidas nas atividades de cultivo e nas atividades ditas urbanas. Se pensarmos no continente americano, as primeiras cidades situavam-se na Península de Yucatán (Guatemala e México) com a civilização Maia, tendo seu auge entre 250 d.C. e 900 d.C., com os astecas (século XIV) na área central mexicana e com os incas no século XV, distribuídos

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pelo Peru, Bolívia e Equador. Entretanto, se pensarmos nos povos que antecederam essas civilizações e que já tinham desaparecido, há histórico de cidades alguns séculos antes do começo da Era Cristã (ÂNGULO, DOMINGUEZ, 1991, p. 41). Tratava-se de grandes cidades, por exemplo, a capital do Império Asteca (Tenochtitlán) chegou a ter cerca de 300 mil habitantes. Dentre eles, havia aqueles considerados nobres, que correspondiam a não mais do que 5% da população, e os plebeus. Dentre este segundo grupo, que era a grande maioria da população da cidade, no final do período do Império Asteca, 20% dedicavam-se à agricultura e os demais eram guerreiros, artesãos e comerciantes (NOGUERA, 1974). O Império Inca3 foi outro exemplo importante a mencionar, e tinha um governo monárquico e teocrático. Os incas não eram uma tribo; na verdade, eram uma família, que se tornou muito poderosa por serem considerados deuses, e que a partir de 1.200 d.C. governou um reino que se espalhava por cerca de 4.000 km ao longo da Cordilheira dos Andes e que tinha em Cusco sua capital. Tratava-se de uma sociedade hierárquica e rígida em forma de pirâmide, que se dividia entre a realeza, a nobreza e o povo. Eles desenvolveram formas de trabalho bastante elaboradas, que podiam ser divididas em três tipos: • Mita, que era um sistema de trabalho voltado ao império como um todo e era exercido em turnos na edificação de fortificações, pontes, estradas, templos, canais de irrigação e na própria construção das cidades; • Minca, que era uma espécie de trabalho comunal e exercido, também por turnos, gratuitamente em favor da comunidade; • Ayni, que se tratava de um trabalho familiar e voltava-se à realização de trabalhos agrícolas e à construção das casas da família. Interessante pensar que havia nessa forma inca de organização do trabalho elementos do fazer-comum que podem ser retomados nos debates que atualmente se faz através da revalorização do Comum, en3 Não é nosso objetivo o aprofundamento desse debate, mas o leitor interessado em maiores detalhes acerca da cultura inca pode dedicar-se à leitura de BAUDIN, L. El imperio socialista de los incas. Santiago: Zig-Zag, 1945; GAMBOA, P. S. de. Historia de los incas. Madrid: Miriguano Editores, 1988; e MURRA, J. V. La organización económica del estado inca. 3. ed. Mexico: Siglo XXI, 1983.

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tretanto retomaremos esse debate mais especificamente no Capítulo 4 desta obra. Nestas poucas linhas em que mencionamos alguns povos do continente americano, é possível percebermos que se tratavam de culturas com um grau de desenvolvimento bastante considerável, inclusive tendo desenvolvido importantes conhecimentos acerca da astronomia e da matemática. Os maias, no que tange aos conhecimentos matemáticos e de astronomia, estavam à frente dos povos europeus. Além disso, haviam desenvolvido um sistema completo de escrita. Em várias de suas cidades havia centros astronômicos, que os ajudaram descobrir a duração dos ciclos solar, lunar e até do planeta Vênus; tudo isso com uma precisão impressionante para a época. Se voltarmos nossa atenção para a Europa, é possível identificarmos que apenas a partir do século XVII a astronomia começa a avançar. Os incas desenvolveram pesquisas importantes na Astronomia, mas parece-nos impressionante o desenvolvimento que obtiveram em seus experimentos com espécies vegetais. Há registros e vestígios dessas experiências no sítio arqueológico de Moray, onde é possível encontrarmos dezenas de círculos concêntricos com cerca de 300 metros de profundidade entre as montanhas. Entre um círculo e outro formam-se terraços, que são sustentados por paredes de pedras, e cada um desses terraços cumpria o papel de criar um microclima diferente; a diferença de temperatura média anual entre a parte superior e a inferior das depressões chega a 15  °C. Essa construção contava com canais de irrigação que viabilizavam as experiências realizadas com as espécies vegetais. Foi através dessas pesquisas que desenvolveram um mecanismo de aclimatação das plantas. Há estudos que afirmam que, na época, foram desenvolvidos mais de 4 mil tipos de batatas e centenas de variedades de milho. Esta breve descrição do desenvolvimento desses povos demonstra que não devemos desconsiderar as culturas e o conhecimento estabelecidos no continente americano no passado. Infelizmente o colonialismo sofrido pela América (dita) Latina contribuiu para tentar apagar o conhecimento e a cultura aqui existentes.

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Figura 1. Os terraços de Moray (Peru)

Fonte: Portal Cusco Peru4

Não à toa, o sociólogo peruano Aníbal Quijano (2005) afirmava que, mesmo tendo havido o fim do colonialismo econômico e político na América Latina, manteve-se a colonialidade como relação social, cultural e intelectual. Trata-se de entendermos o processo de dominação como estratégia de destruição das formas de conhecimento do mundo que tinham esses povos, fazendo-os – agora colonizados – adotar o universo cognitivo do colonizador. Quijano desenvolveu inúmeros artigos que procuravam deixar claro que a colonização significou também a colonização do imaginário do povo colonizado, levando à colonização dos padrões de produção do conhecimento e de compreensão do mundo. O sociólogo peruano desenvolveu seu debate a partir da elucidação do que acredita ser uma espécie de mitos fundacionais: o desenvolvimento linear que chega ao ápice com a sociedade europeia; e a definição das diferenças entre a Europa e a não Europa como diferença de natureza, e não de história do poder. Essa construção imagética mascararia a forma de dominação. Nesse sentido, a expressão “giro descolonial” cumpriria o papel de caracterizar uma inflexão epistêmica, social e política nas ciências sociais latino-americanas, que a partir de então passaria a ter o nosso passado colonial como ponto de partida da reflexão acerca de nossa sociedade. Ti-

4 Disponível em: https://www.cuscoperu.com/pt/viagens/vale-sagrado-dos-incas/sitios-arqueologicos/moray.

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veram aí um papel fundamental Aníbal Quijano (como já anteriormente citado), Enrique Dussel e Walter Mignolo, mas também Santiago Castro-Gomez, Edgardo Lander e Arturo Escobar, dentre outros. Essa crítica questiona a “percepção eurocêntrica” de que outras formas de organização social e outras formas de conhecimento sejam caracterizadas como primitivas, atrasadas ou tradicionais (esta última expressão muitas vezes apropriada de forma “romântica” e transformada em mercadoria). Uma percepção como essa, afirma o geógrafo Valter do Carmo Cruz (2017, p. 22), “nega a igualdade de voz, sendo uma maneira de depreciar, negar que somos verdadeiramente coetâneos”. Curiosamente, esse autor utiliza-se de uma geógrafa inglesa, Doreen Massey (2000), para dar mais vigor à sua afirmação ao resgatar dela a ideia de que “a existência de coetâneos de uma multiplicidade é uma propriedade essencial do espaço” – o que, creio, não deve ser encarado como um problema ou contradição. É preciso entender que, mesmo sendo importante ter em conta a origem social do pesquisador, importa identificar que classe ele representa por suas ideias. Ou seja, é possível que o intelectual supere as limitações de sua origem de classe – ou da visão colonial – e consiga construir teorias e fundamentos para uma nova concepção de mundo, que incorpore essa multiplicidade de formas sociais e de conhecimento. Portanto, não devemos simplesmente negar ou abandonar o pensamento crítico construído até então por conta do denominado “giro descolonial”. O pensamento crítico e o pensamento descolonial devem ser vistos como complementares, não como opostos. Marx, no século XIX, não teve como levar em conta muitas questões que atualmente sabemos serem fundamentais, como a destruição ambiental, as opressões de gênero e étnicas, a luta das culturas não europeias contra a “dominação ocidental” de seus pensamentos, conhecimentos e valores etc. – o que não significa que toda a sua construção intelectual não sirva mais. É preciso que tenhamos em mente que uma boa investigação científica não pode se dar de forma dogmática, fato que apenas gera empobrecimento analítico; mas também não se trata de cometermos equívocos metodológicos acreditando que podemos misturar métodos incompatíveis. Todavia, para corrigirmos lacunas, limitações ou insuficiências, precisamos estar abertos à incorporação de perspectivas antes indisponíveis ou desconhecidas por nós. O sociólogo brasileiro Michael Löwy (2012,

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p. 22) dá sustentação à nossa argumentação ao afirmar que precisamos manter “um procedimento aberto, uma disposição para aprender e se enriquecer com as críticas e as contribuições vindas de outras partes – e, acima de tudo, dos movimentos sociais ‘clássicos’, como os movimentos operários e camponeses, ou dos novos, como a ecologia, o feminismo, os movimentos em defesa dos direitos humanos ou pela libertação dos povos oprimidos, o apoio aos índios da América Latina, a Teologia da Libertação”. O geógrafo brasileiro João Rua (2019) procura apresentar a necessidade de construção do diálogo entre a teoria social crítica e o giro descolonial em um texto intitulado “Europocentrismo e decolonialidade: estabelecendo pontes teórico-conceituais ‘perigosas’ e ainda pouco cruzadas”; entretanto, embora não tenha conseguido estabelecer as pontes, o título de seu texto já cumpre, por si só, importante papel. No Capítulo 4 desta obra – ao discutirmos por que falar em comunismo para pensar as cidades – avançaremos mais nesse debate. Após essa longa digressão, e retomando o tema do surgimento das cidades, ressaltamos que não temos o objetivo de descrever detalhadamente o nascimento e a expansão das cidades pelo mundo, porque isso nos levaria a desenvolver um longo debate acerca da proliferação das cidades no Mediterrâneo (fenícios, gregos e romanos), as cidades medievais, as cidades barrocas do século XVI, as cidades industriais etc. Entretanto, não restam dúvidas de que, a partir do século XIX, a nova indústria acelerou e transformou como nunca antes os ritmos de crescimento das cidades, o que trouxe consigo processos de desenvolvimento urbano, concentração de população e multiplicação de atividades que levaram melhorias para o modo de vida do cidadão, mas trouxeram também enormes problemas e miséria.

A transformação da cidade: promoção da diversidade, mas também da miséria A Revolução Industrial teve a Inglaterra do século XVIII como ponto de partida central. Durante bastante tempo a fábrica foi representativa no que concerne à correspondência entre a forma do seu arranjo espacial interno e a produção espacial da cidade. De alguma forma, era possível observar que a hierarquização “no chão da fábrica” era também percebida

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na produção da cidade. Talvez seja importante, aqui, afirmar que não se trata de um fenômeno que nasce na fábrica e se reproduz na cidade, mas um fenômeno que denota a própria hierarquização da sociedade como um todo. Nesse período houve um intenso deslocamento da população em direção às localidades onde se encontravam os centros industriais. E, se estávamos nos referindo à Inglaterra, Londres, entre 1790 e 1840, praticamente duplicou a sua população. Nesse período, também as mulheres e as crianças eram fortemente exploradas e trabalhavam em condições de saúde e segurança bastante precárias nas fábricas. Os salários muito baixos combinados com o elevado preço dos aluguéis faziam com que as famílias tivessem que morar em locais muito pequenos e insalubres. As moradias precárias contrastavam com as “modernas” indústrias da época e em sua maioria não tinham qualquer sistema de esgoto ou coleta de lixo; muitas sequer contavam com alguma espécie de vaso sanitário. O arquiteto italiano Leonardo Benevolo (2001) destacou a situação de penúria em que se encontravam essas famílias, submetendo-se, em um bairro operário de Manchester, a compartilhar duas latrinas para cerca de 250 pessoas. Os casebres eram cortados por vielas sem pavimentação e repletas de lixo e dejetos. É difícil acreditar – atualmente, no século XXI – que em meados do século XIX, em uma cidade como Liverpool, cerca de 40 mil pessoas vivessem e dormissem em porões. Evidentemente, isso explica o surgimento e a disseminação de inúmeras epidemias. A Revolução Industrial trouxe consigo inovações na forma de produzir e gerou posteriormente maior diversidade de produtos, mas trouxe, simultaneamente, desigualdade e miséria. Entretanto, quando se pensa na cidade industrial, é comum lermos e ouvirmos comentários que focam prioritariamente as inovações; ou seja, as inovações trazidas pela indústria acabavam por ressaltar os aspectos positivos das transformações em curso, como, por exemplo, “a tendência ao emprego de uma mão de obra mais qualificada, estável e escolarizada”, não abordando ou dando pouca atenção “aos graves problemas sociais que o atual processo de reconversão produtiva vem provocando mundialmente, como a segmentação do mercado de trabalho, o aumento do desemprego, a concentração da riqueza, o aumento da miséria e o enfraquecimento de importantes formas de organização da sociedade civil, como os sindicatos e comissões

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de empresa” (LEITE; SILVA, 1996, p. 49). Temos aqui um problema, pois esses fenômenos acabam sendo vistos como consequências inevitáveis do avanço tecnológico, ou mesmo efeitos passageiros que o próprio desenvolvimento resolverá. Se atualmente voltarmo-nos para o processo de reestruturação produtiva, perceberemos que as mudanças são cada vez mais velozes e impactantes. Nesse sentido, acreditar no discurso de que o próprio desenvolvimento resolverá os problemas é perigoso, pois denota a percepção do atual processo de reestruturação produtiva como algo determinado pela tecnologia, e não como processo de construção social. Ademais, fica clara, também, uma visão de mundo e de ciência que se colocou na base do positivismo e que concedeu à técnica um papel central na vida humana. Aliás, que procura nos fazer crer que pelo desenvolvimento – uma palavra que carrega consigo uma força imensa – tudo é justificado. Os sociólogos Márcia de Paula Leite e Roque Aparecido da Silva (1996, p. 49) apontam, a partir da consciência desse problema, que isso leva a uma “valorização positiva do crescimento econômico e do desenvolvimento tecnológico, entendidos como sinônimo de desenvolvimento social e humano, de melhoria da qualidade de vida e de progresso”. É preciso ressaltar que crescimento econômico não é sinônimo de desenvolvimento; no Brasil houve várias fases em que tivemos crescimento econômico, entretanto que não representaram desenvolvimento social. A expressão “desenvolvimento” tem muita força, o que acaba justificando qualquer estratégia de ação ou qualquer proposta de política, visto que no imaginário social foi construída uma percepção positiva e até “milagrosa” dessa expressão. Todavia, a noção de uma única forma de desenvolvimento que nos é imposta – e, o que é pior, aceita – faz com que olhemos para o espaço urbano como problema, e não como questão; faz com que o percebamos como atrasado em relação a este ou aquele modelo, e não como objeto de luta e de utopia. Isso é ruim, pois, se há nesse olhar críticas sérias, há também, como salientou a socióloga Ana Clara Torres Ribeiro (2000, p. 242), “projetos de nova modernização mimética e, assim, de rápida imposição de modelos e práticas que impedem a verdadeira modelização de futuros possíveis”. E, nesse sentido, é importante termos em conta que os espaços produzidos contribuem para a reprodução de modelos que atendem a interesses de grupos específicos, e não à sociedade como um todo; o que não é novidade. Essa construção

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teórica acerca do desenvolvimento pode ser concebida como uma forma de reprodução do colonialismo. Estamos criticando com isso também o discurso hegemônico de que determinado projeto será ótimo para a cidade; ou seja, o que envolve determinadas partes é “vendido” como bom para a totalidade. Essa mesma estratégia de construção imagética do “desenvolvimento” também é encontrada na noção de sustentabilidade, que ganha ainda mais força se tornada adjetivo de desenvolvimento; ou seja, constituindo a expressão desenvolvimento sustentável. Muitas vezes a palavra sustentabilidade aparece ligada mais fortemente à dimensão da natureza. Acreditamos ser necessário, ao discutir-se sustentabilidade, acrescentarmos as dimensões social, econômica, espacial e cultural à dimensão ecológica. Isso porque precisamos lutar por maior equidade na distribuição de renda e de bens; temos de trabalhar por um gerenciamento mais cuidadoso dos investimentos públicos e privados, além de buscar romper com o acesso limitado à ciência e à tecnologia; precisamos construir uma relação urbano-rural mais equilibrada, incentivar a agricultura através dos pequenos proprietários e lutar por uma melhor distribuição territorial de imóveis urbanos; precisamos pensar em soluções específicas para o lugar, além de valorizar a cultura e os saberes do lugar; finalmente, temos de criar reservas naturais para proteger a biodiversidade, definir normas para uma adequada proteção ambiental, limitar o consumo de combustíveis fósseis e reduzir o volume de resíduos e de poluição. Temos de entender que muitas vezes reproduzimos o discurso da necessidade de construção de um “novo paradigma” sem uma reflexão mais aprofundada, e não nos damos conta de que quem criou esse e os anteriores paradigmas foi essa mesma sociedade hierarquizada e colonizadora. A luta pela liberdade tem sido, muitas vezes, a luta pela possibilidade de consumir, de consumir massivamente bens e serviços; pela possibilidade de escolher entre uma ou outra marca. Para tanto, estratégias de marketing, de publicidade e de políticas de crédito têm sido fortemente utilizadas. Essa lógica da sociedade do consumo é a negação de todas aquelas cinco dimensões da sustentabilidade5 a que nos referimos. Além disso,

5 Ignacy Sachs (2002, 1993) desenvolveu aprofundados debates acerca da ideia de sustentabilidades.

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as técnicas e tecnologias que vêm sendo desenvolvidas têm contribuído para uma considerável transformação na maneira como vivenciamos a cidade. O desenvolvimento social é influenciado pela técnica, mas esta, com toda certeza, não é o único fator responsável pelo rumo a ser tomado pela humanidade. Não é à toa que um representante da chamada Escola de Frankfurt, o filósofo alemão Jürgen Habermas (1994), procura demonstrar que a razão foi sendo colocada a serviço da dominação e repressão do ser humano, e que a técnica acabou por adquirir um caráter ideológico. Também não devemos esquecer que a técnica deve ser considerada como expressão de determinada relação social; ou seja, como expressão de um projeto que tem sido imposto através de um embate entre atores com distintos projetos de racionalidade. Não é possível compreender a relação sujeito-objeto sem as necessárias mediações para o terreno social e espacial, onde se desenvolvem as relações sujeito-sujeito expressas simbolicamente. Isso porque, como nos lembra o geógrafo João Rua (2003, p. 47), “os lugares são a expressão de relações tanto sociais como espaciais e são formados por conjuntos particulares de relações sociais que se fecham e interagem em localizações específicas”. Prossegue ainda afirmando que “essas relações sociais que constituem os lugares não estão restritas a eles, pois são, também, construídas e operadas além deles, conectando os diferentes lugares e as pessoas que neles vivem”. Eu acrescentaria a esta consideração de Rua (2003) o fato de que, além de conectar, as relações também provocam tensões e hierarquizações entre os diferentes lugares e pessoas. A produção da cidade, desde muito tempo, se faz como instrumento de viabilização do momento histórico da sociedade, fato facilmente explicável, pois o espaço é produzido socialmente. Assim, se não restam dúvidas de que a cidade é um produto social, isso não se dá sem tensões. Há forte jogo de poderes envolvidos, em que os diferentes atores sociais procuram impor o seu modelo. No período em que houve o predomínio da denominada cidade industrial, o espaço externo à fábrica era regulado pelo mercado, e essa regulação simultaneamente o dividia e o integrava. Além disso, percebemos algo definitivamente importante: a cidade não apenas era a responsável pela coordenação e controle da produção, mas pela primeira vez na História – enalteceu o geógrafo estadunidense Edward

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Soja (2000, p. 77) – tornou-se locus da produção. Aqui se faz necessário esclarecer que estamos considerando as duas acepções do termo produção. Segundo Lefebvre (2001, p. 80), os homens em sociedade “produzem ora coisas (produtos), ora obras. As coisas são enumeradas, contadas, apreciadas em dinheiro, trocadas. E as obras? Dificilmente. Produzir, em sentido amplo, é produzir ciência, arte, relações entre seres humanos, tempo e espaço, acontecimentos, história, instituições, a própria sociedade, a cidade, o Estado”. Ou seja, a primeira acepção estaria ligada à produção de bens e mercadorias, enquanto a segunda, à noção de que se produz, também, relações sociais, valores, ideologias e costumes. É a partir dessa consideração que a geógrafa Ana Fani Alessandri Carlos (1999, p. 63) salientou o fato de que “a acumulação produz uma racionalidade homogeneizante inerente ao processo, que não se realiza apenas produzindo objetos-mercadorias, mas também a divisão e organização do trabalho, e modelos de comportamento que induzem ao consumo”. A nova forma de administração e organização utiliza um sistema de terceirização de várias etapas da produção, dividindo-a assim com outras empresas. Assim, podemos observar uma horizontalização das relações entre as empresas, que vai de encontro à anterior verticalização fordista (FERREIRA, 1997, p. 8). Para tanto, a utilização das tecnologias ligadas à informática e às telecomunicações cumprem importante papel. O geógrafo Ruy Moreira (2000, p. 7), referindo-se a tal procedimento, afirmou que ele veio contribuir para a resolução do problema dos estoques, “com sua repercussão nas taxas de custo, produtividade, lucro e vendas, que praticamente desaparece”. Entretanto, é possível observarmos uma acentuação do nível de investimentos e uma centralização em um número ainda menor de empresas, levando a um ainda maior monopólio. A geógrafa Sandra Lencioni (1991, 1994) já havia identificado esse processo ao investigar a desconcentração industrial em São Paulo, quando naquela ocasião procurou esclarecer a relação entre centralização e desconcentração, concluindo que a desconcentração industrial que se dá em São Paulo é fruto de uma maior centralização do capital. Inclusive, enfatizou o fato de que “a decisão e controle do processo de valorização do capital não só continuam concentrados social e espacialmente, como são reiteradamente reforçados apesar da relativa dispersão dos estabelecimentos” (LENCIONI, 1994, p. 57).

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Novas formas espaciais e, ainda mais importante, uma nova lógica espacial emergem como resultado dessas transformações. Percebemos, então, o crescimento do domínio das grandes empresas, a desconcentração de gerenciamento, a subcontratação da produção e de trabalhadores através da utilização de um sem-fim de pequenas e médias empresas e da conexão entre eles via internet. O resultado disso é a formação de uma complexa, hierárquica e diversificada estrutura organizacional, que mantém uma relação horizontalizada entre as empresas subcontratadas, os trabalhadores subcontratados e as unidades da empresa em si. Ou seja, processos que eram sucessivos horizontalizam-se, dando lugar a uma maior sincronicidade dos processos. Logo, as mudanças que ocorrem na estrutura socioeconômica, juntamente com os processos decorrentes de tais mudanças, levam a transformações nas formas do espaço urbano. Outras vezes, por serem por demais custosas, opta-se por refuncionalizar antigas formas já existentes; antigas indústrias transformadas em shopping centers são um exemplo disso. Se esses processos já promovem relações sociais e espacialidades extremamente diferentes, o que parece estar se configurando para um futuro próximo é ainda mais desafiador. Entretanto, antes de entrarmos neste debate, é preciso refletir como foi construído no imaginário social essa nova realidade, que permitirá a exacerbação da racionalidade da sociedade do consumo e de uma nova lógica para lidar com a relação de trabalho. As novas tecnologias produtivas e as novas formas organizacionais permitiram a enorme redução do tempo de circulação do capital – uma das chaves da lucratividade capitalista. Entretanto, de que adiantaria a aceleração do tempo de giro na produção se não houvesse simultaneamente a redução do tempo de giro do consumo? Houve altíssimo investimento em propaganda e marketing, criando um consumidor ávido por ter sempre o último lançamento. A publicidade – transformada em ciência – evoluiu e passou a criar necessidades, inclusive permitindo a efetivação de modas fugazes e de novas formas de indução ao consumo. Atualmente, torna-se impossível não considerar o processo de globalização como produto da exacerbação do capitalismo e da criação e ampliação da sociedade de consumo. Em um mundo que esvazia as pessoas de sua identidade através do mecanismo de homogeneização, o consumo passa a ser uma fábrica de identidades.

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Anteriormente já havia afirmado que, em certo sentido, as imagens se tornaram mercadorias (FERREIRA, 2011, 2013), e, no atual momento do capitalismo, a preocupação maior é com a produção de signos e imagens, muito mais do que com a mercadoria em si. Estamos nos referindo às representações, em que a aquisição de uma imagem, por meio da “compra” de um sistema de signos, como roupas de grife ou o telefone celular da moda, se torna um elemento singularmente importante na autoapresentação nos mercados de trabalho e, por extensão, vem a ser parte integrante da busca de identidade individual e do significado da vida. São apresentadas como mercadorias a própria maneira de encarar o mercado de trabalho e as “novas” formas de trabalho. Assim, a sociedade cada vez mais torna-se objeto de consumo dirigido, através de uma racionalidade em que o próprio consumo passa por um sistema de controle e ordenamento. Acreditamos, então, que resgatar o debate travado pelo filósofo francês Henri Lefebvre (1991) acerca da noção de sociedade burocrática de consumo dirigido seja importante. Entretanto, cabe antes lembrar que atualmente a dimensão burocrática da expressão cunhada por Lefebvre não pode ser tomada ipsis litteris. A sociedade de consumo encontra-se extremamente imbricada às grandes corporações e à própria mídia, quase totalmente por elas absorvida. Estamos nos referindo a uma espécie de manipulação subjetiva do sistema de valores, que contribui para o direcionamento do consumo. Como já vimos afirmando há tempos, a publicidade contribui para a construção de imaginários, e isso não se dá apenas nos antigos meios midiáticos: a propaganda está na tela do computador no trabalho, no laptop, no telefone celular. Há um mapeamento de todas as nossas pesquisas na internet e acabamos tendo nossa vida controlada; isso sem mencionar as redes sociais e as fake news. Há, assim, uma simbiose entre os sistemas de valores e os sistemas comunicativos, que atingem todas as dimensões do cotidiano das pessoas. Assim, modas vêm e vão, determinados bares ou restaurantes passam a ser o lugar mais procurado; entretanto, com a mesma velocidade são também descartados e substituídos por outros “novos” lugares. Tal processo se dá de forma ininterrupta, e, sendo assim, esse “consumo dirigido não objetiva somente o objeto, mas também a satisfação criada pelos objetos e o ambiente que irá se criar a partir do relacionamento homem-objeto. O cotidiano se torna um produto tão

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amorfo, manipulável e manipulador que se torna de alguma forma impossível […] sair dessa situação” (CUNHA et al., 2003). Agora, mais do que antes, podemos afirmar, junto com a socióloga Isleide Fontenelle (2002, p. 17), que, se o valor de uso já se submete ao valor de troca no mecanismo central de reprodução do capitalismo, na fase da sociedade de consumo e da supervalorização das imagens, nós passamos a consumir a construção da representação do produto, antes mesmo de consumi-lo como mercadoria em sua concretude. Estamos referindo-nos a algo como uma dupla fetichização. Ou seja, Marx (1996, p. 79) afirmou que o fetichismo da mercadoria transforma as relações humanas em relações entre coisas. Atualmente, também as coisas são fetichizadas através da construção da imagem da própria coisa (no caso a mercadoria). Isso é muito importante, pois enaltece a tentativa da mídia e das grandes empresas de definir as referências culturais para a sociedade como um todo. É evidente que as transformações não se resumem à produção da mercadoria, mas também estão ligadas à circulação e à formação dos consumidores. Assim, percebemos uma progressiva fragmentação dos mercados de consumo, criando vários nichos de mercado, associados a uma miríade de estilos de vida e a sua hierarquização. A efemeridade da moda encontra eco em um consumidor criado para estar propenso a comprar produtos com um ciclo de vida muito menor. O filósofo e sociólogo francês Jean Baudrillard (1991, p. 71) mostra-se um analista do sistema de dominação, no qual “a relação entre o indivíduo e a sociedade é permanente e complexa. Na sociedade, cotidiano e consumo estão totalmente interligados e a efetivação do poder da mídia exerce forte influência sobre a perda do valor simbólico original do valor-de-uso, que tem ligação direta com a cultura”. Quando se perde esse valor, abre-se a porta à manipulação. Refiro-me ao fato de que, de forma geral, a crítica que se faz da sociedade de consumo é o controle moral do desperdício, e isso é muito pouco! Não entraremos no debate acerca da mudança de uma lógica fordista para a denominada acumulação flexível e seus reflexos nas relações de trabalho, pois já realizamos esse debate em alguns artigos e também no primeiro capítulo do livro A cidade no século XXI: segregação e banalização do espaço. Mas importa lembrar que a flexibilidade das relações de trabalho acaba por enfraquecer os sindicatos, golpeando o “trabalho organizado que sofre mutações e perde parte de seu poder político, de

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representação e de ‘conflitualidade’” (MATTOSO, 1995, p. 69), já que há uma grande parte da mão de obra desempregada ou subempregada. É possível perceber um crescimento do trabalho em tempo parcial, do trabalhador temporário e do processo de terceirização, observado com a subcontratação de serviços de empresas de pequeno e médio porte. Resulta desse processo a falta de cobertura de seguros, de direitos trabalhistas, de direitos de pensão e de segurança no emprego. Uma grande transformação ocorrida no final do século XX é que, ao invés de assalariados, em sua maior parte, protegidos, há cada vez mais trabalhadores fragilizados, ameaçados pelo desemprego. Percebemos que a possibilidade de permanecer no emprego e de construir um futuro garantido está cada vez mais distante, já que deixa de ser uma referência estável e uma garantia de integração à sociedade. Estas preocupações não são vazias de conteúdo real e podemos observar algumas pesquisas recentes que apontam consideráveis mudanças no mercado de trabalho para um futuro muito próximo. E não estou me referindo à atividade do teletrabalho (temática a que me dediquei em meados da década de 1990). Reformas nas leis trabalhistas têm ocorrido intensamente em inúmeros países, e em um mundo globalizado, em que a competição entre empresas é acirrada, nenhum empresário quer se ver em desvantagem. Em outras palavras, há uma forte pressão por reformas que flexibilizem as relações de trabalho, que reduzam encargos para o empregador e direitos adquiridos pelos trabalhadores. Todavia, como convencer os trabalhadores a aceitar essas mudanças de forma pacífica?

A construção de um discurso que enaltece a liberdade, mas que liberdade? É possível lermos em jornais e revistas, assistirmos a matérias jornalísticas em programas televisivos e ouvirmos dos atuais influencers na internet discursos que falam da necessidade de o “profissional moderno” adotar modelos de trabalho diferentes do tradicional – que privilegiava a sensação de segurança e estabilidade. Aliás, o trabalhador que continua valorizando a estabilidade e que deseja manter-se no mesmo emprego por muito tempo é classificado, atualmente, como acomodado.

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Para entendermos melhor esse movimento, apresentaremos um breve debate acerca do que ficou conhecido como gerações X, Y e Z; evidentemente as características sobre as quais discorreremos são tipologias criadas e não necessariamente refletem a realidade de todos os nascidos nesses períodos. Convém, para começar, retornarmos à década de 1950, quando o fotógrafo Robert Capa intitula um ensaio fotográfico sobre jovens homens e mulheres que cresceram imediatamente após a Segunda Grande Guerra Mundial de “Geração X”. A expressão passa a ser utilizada e retrabalhada por diversos autores, que passam a considerá-la aquela geração de pessoas nascidas entre 1965 e o ano de 1981. A Geração X, por ter surgido após as mazelas da Segunda Grande Guerra Mundial, acabou desenvolvendo valores fortemente ligados ao trabalho e à produção e teria como características fortes a ambição e o individualismo. É uma geração que acredita que a melhor maneira de galgar boas posições nas empresas é o aprendizado. Há nesse grupo uma maior luta por direitos e liberdade; liberdade que muitas vezes se confundiu com liberdade para consumir mais. Inclusive, segundo relatórios do Webshopers 2019 (eBit),6 a cada dez compras on-line, sete são realizadas por pessoas com até 40 anos. Essa geração viu surgir os computadores pessoais (e com eles o e-mail e a internet), as impressoras e os telefones celulares; não há dúvidas de que tais inovações contribuíram para alteração de seu cotidiano. Ou seja, construiu-se uma relação direta entre consumo e liberdade, o que levou o sociólogo inglês Don Slater (2002, p. 35) a afirmar que “a soberania do consumidor é uma imagem extremamente sedutora de liberdade”. Isso é grave, pois acaba por misturar e “fundir” categorias que não deveriam ser confundidas. Aliás, o que parece impressionar-nos é o fato de que há grandes investimentos em publicidade, em marketing e na produção de novas necessidades (por vezes verdadeiramente desnecessárias!), o que realmente reduz a quase nada a liberdade das pessoas para as ações de consumo. Sim, porque a liberdade torna-se a escolha entre quais marcas ou modelos comprar. E ainda mais: o que representa ter ou usar determinada marca. Trata-se de representações que denotam e pontuam a hierarquia social, é por isso que o sociólogo 6 Disponível em: https://www.ebit.com.br/webshoppers#ws-free.

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polonês Zigmunt Bauman (2008) alegou que aqueles que não cumprem as determinações do mercado são pessoas desnecessárias à sociedade do consumo. A advogada brasileira Ardala Marta Corso (2019) acrescentou que “a vitória do consumo levou, até mesmo, a um retrocesso quanto às conquistas sociais e políticas, quando educação, moradia, saúde e lazer aparecem como se fossem conquistas pessoais e não direitos sociais”. Essa dimensão é amplificada se observarmos que as noções de bens e serviços públicos e espaços comuns acabam tendo seus sentidos embolados. Corso (2019), a partir de um diálogo com o cientista político estadunidense Benjamin R. Barber (2009), afirma que as pessoas tratam as escolhas como se fossem eminentemente privadas, “apenas como uma questão de enumerar e agregar todos os ‘eu quero’ que mantemos como consumidores privados, sem considerar que escolhas privadas têm consequências sociais e resultados públicos”. No Capítulo 4 aprofundaremos um pouco mais essa discussão. Uma transformação mais intensa de comportamento foi identificada na denominada Geração Y (ou millenials, como preferem denominar alguns). Essa geração, composta por nascidos entre 1982 e 1994, é considerada nativa digital; ou seja, todas as suas atividades passam pelas telas dos computadores ou dos telefones celulares, que se tornaram verdadeiros microcomputadores. Uma matéria publicada na revista Time em 2014, que trazia a participação de psicólogos e cientistas sociais, apresentava essa geração como narcisista, mimada e preguiçosa, classificando-a como a geração do “eu-eu-eu”. Finalmente, chega-se aos denominados pós-millenials ou Geração Z, nascidos entre 1995 e 2010. Este grupo de pessoas vivencia exacerbadamente a internet e passa grande parte do dia envolvido com seus smartphones e tablets. Para essa geração, as redes sociais são parte fundamental de sua sociabilidade e houve, inclusive, uma forte pressão para que as políticas para a educação incorporassem esses valores para o ensino no século XXI. Essa geração caracteriza-se por forte capacidade para exercerem multitarefas, entretanto têm menos capacidade de concentração. Curiosamente, pelo seu envolvimento nas tecnologias, preocupam-se menos com as relações interpessoais, entretanto, estão fortemente envolvidos

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em “postagens” acerca das causas sociais na internet,7 o que é no mínimo bastante curioso. Segundo algumas pesquisas,8 por experimentarem a velocidade da comunicação digital desde muito cedo, acham que têm de ter tudo o que desejam de forma imediata. Afirmam também as pesquisas que essa geração é composta por pessoas criativas e curiosas, que estão propensas a encampar as ideias de empreendedorismo. Além disso, em uma matéria publicada pela Porto Business School9 (Universidade do Porto), afirma-se que os membros da Geração Z “preferem arrendar a comprar casa, privilegiam as experiências à compra de produtos, o emprego já não é para a vida e estão sempre à procura de novas oportunidades”. Outra característica elencada é que são “muito pragmáticos e impressionam-se pouco com títulos, daí até encontrarmos cada vez mais adolescentes a questionar se efetivamente merece a pena frequentar o ensino superior ou ir direto para o mercado de trabalho”. Porém, a descrição das características que mais contribui para o empresariado é, sem dúvida, o fato de que as Gerações Y e Z valorizam mais o equilíbrio e a qualidade de vida; logo, a aceitação da flexibilização do trabalho torna-se mais fácil. Assim, observamos o crescimento dos negócios por conta própria, inclusive dentro da área das startups. Ainda referente à matéria publicada pela Porto Business School, há a afirmação de que essas duas gerações são muito mais empreendedoras, justamente “porque têm uma perspectiva da vida muito mais desprendida, sendo capazes de consumir mais, mas ter menos, viver mais, mas com menos raízes que os prendam a um sítio, isso porque estão predispostos a ter mais empregos ao longo da vida, viver em sítios diferentes e a aceitarem muito mais outras culturas”. Por isso, teriam muito menos aversão ao risco, tendo “muito mais capacidade de se reinventar”, e, se o empreendimento não der certo, “partem para outra”. Aqui cabe uma questão que julgamos muito importante: até que ponto a construção destas caracterizações, feitas em geral pelas escolas de negócios, não contribuem para construir no imaginário social esses valores?

7 Fonte: https://www.iberdrola.com/talentos/geracao-x-y-z. 8 Por exemplo, Novaes (2018), Rech, Viêra, Anschau (2017). 9 Geração… (2017).

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Utiliza-se atualmente um discurso de que ser moderno é “abrir mão do aprisionamento das relações de trabalho”. Obviamente, isso não significa o rompimento da relação de subordinação capital-trabalho. Trata-se, muitas vezes, apenas de uma mudança da dinâmica do ambiente de trabalho; entretanto, alguns defendem mudanças bem mais profundas, que vão além dos home offices e da flexibilização dos horários de trabalho. Acreditam que caminhamos para a formação de uma nova categoria: os nômades digitais, que seriam “pessoas que não possuem um endereço físico; eles vivem com o pé na estrada, e o trabalho é um aspecto complementar desse estilo de vida. Eles podem trabalhar para se manter viajando, ou viajar por causa do seu trabalho”. Assim, a “flexibilização é total: em uma certa semana, eles desenvolvem seu trabalho nos EUA; na outra, estão em Cingapura; na outra, em alguma parte da Rússia. E o que possibilita isso é algo a que todos nós temos acesso, uma simples conexão de internet”.10 Interessante também observar que nesses artigos e matérias, que se encontram em vários sites da internet, há sempre informações semelhantes afirmando que “os nômades digitais não são necessariamente profissionais que ganham um salário altíssimo. De fato, o que eles priorizam é o estilo de vida; então, eles podem trocar a chance de ganhar um bom salário em um emprego tradicional por um salário mais modesto em um trabalho que garante sua liberdade”.11 Isso é mesmo incrível, pois transmite a ideia de que para ter liberdade você deve abrir mão de salários melhores. Além disso, os tais “nômades digitais” não correspondem à maior parcela da população. Em se tratando da maior parcela da população, há razões para preocupação, pois um estudo de 2017 coordenado por Michael Osborne e Carl Benedikt Frey (ROMANZOTI, 2017), da Universidade de Oxford, no Reino Unido, concluiu que 47% dos empregos estão “em risco” de serem extintos nos próximos 20 anos. Ou seja, em um futuro bem próximo, não teremos incremento de mais vagas no mercado de trabalho, mas, ao contrário, os economistas preveem fortes perdas devido à incorporação cada vez maior da inteligência artificial, da robótica e das tecnologias de comunicação e informação. Segundo a pesquisa, desde trabalhos em

10 Futuro… (2018). 11 Futuro… (2018).

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transporte, logística e apoio administrativo até ocupações dentro da denominada indústria de serviços, todos são altamente suscetíveis de serem reduzidos. Os dois pesquisadores afirmaram que no passado a mecanização gerou redução de empregos e com isso a necessidade de troca de profissão, todavia atualmente não será tão fácil mudar de profissão. Acreditam que “até 2034, os trabalhos de nível médio serão, em grande medida, obsoletos”. Isso é gravíssimo, pois, em um mundo extremamente desigual, serão as profissões ligadas aos de menor rendimento que serão mais sacrificadas. Outra pesquisa realizada em 2019 – esta por pesquisadores brasileiros – aponta para o mesmo resultado no Brasil. O grupo de pesquisadores (Albuquerque et al., 2019) concluiu que, até 2026, 54% dos empregos formais do país poderão ser ocupados por robôs e programas de computador, o que representa cerca de 30 milhões de vagas que serão extintas. Dentre muitas das ocupações que desaparecerão, os investigadores afirmam que algumas serão extintas mais rápido; por exemplo, taquígrafo, cobrador de transporte coletivo, ascensorista, recepcionista de hotel e gerente de almoxarifado. Também vale lembrar que o desenvolvimento cada vez mais veloz dos drones contribuirá para viabilizar sua utilização nos serviços de entrega. Além disso, todas as atividades que necessitem de acompanhamento constante de médias distâncias tenderão a ser realizadas também por drones. O estudo avaliou o número de pessoas com contratos de trabalho no fim de 2017 (para tanto utilizaram-se dos dados da Relação Anual de Informações Sociais – Rais – do Ministério do Trabalho) e concluíram que 25 milhões de trabalhadores (57,37%) exerciam atividades com probabilidade muito alta ou alta de automação a partir daquele ano. Ronaldo Nuzzi (2017) acredita que viveremos, em breve, outra grande mudança ligada à indústria com a entrada de impressoras 3D a custo mais baixo, “acessíveis para ter em casa como mais um eletrodoméstico. [Assim], tudo o que puder ser impresso em casa estará na lista de empregos a desaparecerem no futuro. Os equipamentos 3D também vão chegar à construção civil, uma das áreas que mais emprega pessoas no mundo”. Realmente, se pararmos para pensar, já há inúmeras ocupações que têm sido extintas sem que, muitas vezes, nos demos conta. São inúmeros os sinais desse processo em curso: empresas que utilizam telefonista

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automática ou atendentes eletrônicos para o serviço de atendimento aos clientes, garçons em forma de tablets ou check-in em aeroportos (que inclusive podemos fazer de nossa casa com nossos próprios computadores ou telefones celulares) e até mesmo o crescimento de restaurantes self service, por exemplo. Além disso, com a universalização da tecnologia 5G, todas essas transformações exacerbam-se fortemente. A tecnologia 5G promete ampliar a velocidade de conexão de uma forma impressionante, além de tornar mínima a latência; ou seja, tornará irrisório o tempo entre a emissão e a recepção de informação. Sem atrasos na transmissão, a realidade virtual e a realidade aumentada passam a ganhar mais possibilidades de uso; desse modo, as cirurgias podem realizar-se a distância, em modo remoto e em tempo real. Espetáculos também poderão ser transmitidos em tempo real e em 360º, o que poderá alterar fortemente os deslocamentos pelas cidades. Além disso, esse padrão de conexão amplifica muito a chamada Internet das Coisas. Isso significa que a integração dos dispositivos à internet (smartphones, smart TVs, eletrodomésticos, serviços de segurança, automóveis, metrôs, trens, sinais de trânsito etc.) será muito mais ampla. Algumas empresas – como Google, Audi, BMW, Honda, Toyota, Tesla, Nissan, Citroën e outras mais – vêm testando carros autônomos já projetando a utilização da tecnologia 5G. Esses veículos terão a capacidade de se comunicar entre eles e interpretar o ambiente que os rodeia com o objetivo de promover uma circulação mais eficiente e segura. A isso será associado sistemas de monitoramento de trânsito, o que melhoraria a circulação de veículos. O que será daqueles que trabalham como motoristas de táxi ou de caminhão caso a tecnologia de transportes autônomos avance? Além disso, os inúmeros negócios ligados a parques de estacionamento também seriam fortemente afetados. O próprio surgimento de automóveis, motocicletas, bicicletas e patinetes compartilhados (evidentemente na forma de aluguel por tempo de uso) pode alterar fortemente a maneira de circulação pelas cidades. Entretanto, além da possibilidade de alteração da circulação, há também outras possibilidades implícitas ou mesmo ainda não percebidas como de grande importância: não há a necessidade de ter a propriedade – de ser proprietário – para fazer uso dela; isso pode contribuir para que novos valores sejam construídos no imaginário social, embora saibamos que esse seria um “efeito colateral” e não desejado pelos empresários.

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Todas essas inovações contribuiriam para mudanças consideráveis não apenas na circulação nas cidades, mas também poderiam alterar anteriores centralidades constituídas. O geógrafo francês Paul Claval (2000, p. 293) acreditava que a centralidade não era uma propriedade geométrica estável; em outras palavras, ela dependia das condições de deslocamento das pessoas, da circulação de bens e dos meios de comunicação. Esta posição foi reafirmada pela também geógrafa francesa Jacqueline Beaujeu-Garnier (2009), que acrescentava ainda que a centralidade variava em função das mudanças técnicas, econômicas ou políticas, e que em geral tais mudanças estavam ligadas às políticas de planejamento. Muitas cidades têm tido políticas urbanas que incentivaram parcerias público-privadas, que promoveram revitalizações e criações de equipamentos urbanos ligados ao setor de comércio e serviços, entretanto abordaremos esse debate no próximo capítulo. O próprio mercado imobiliário pode ser influenciado pelas transformações que estão por vir. Historicamente as áreas centrais das cidades concentram as atividades terciárias e apresentam uso intensivo do solo. A geógrafa portuguesa Teresa Barata Salgueiro (1992) reafirmava este fato alegando que “o centro é o local onde a cidade se mira e se apresenta, por isso é caracterizado por um grande dinamismo, o solo é muito disputado, os edifícios crescem em altura e as ruas mostram grande movimento, quer de peões, quer de viaturas”. Todavia, se de fato o investimento na tecnologia 5G se concretizar, não restam dúvidas de que haverá modificações nesse cenário. É interessante percebermos que mesmo algumas profissões as quais julgávamos que não seriam afetadas também são elencadas como em situação de risco. Referimo-nos, ainda, ao estudo realizado por Osborne e Frey, em que apontam também contadores, advogados, médicos, professores, burocratas e analistas financeiros como potenciais perdedores de espaço para computadores, que cada vez mais são capazes de analisar e comparar dados para tomar decisões, além de executarem as tarefas com menos chance de fraudes. O economista inglês Daniel Susskind (2020) acredita que caminhamos para o fim gradual do tipo de trabalho pago a que a sociedade moderna está habituada. Anteriormente a ideia de substituição dos seres humanos por máquinas dar-se-ia através da aprendizagem de como uma tarefa era feita pelos humanos e da transformação dessa explicação em

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um conjunto de explicações para a máquina seguir. Isso não era nada simples, já que nos utilizamos muito da intuição e da criatividade, o que inicialmente fez com que as máquinas apenas fossem utilizadas em serviços rotineiros. Entretanto, segundo Susskind (2020), os pesquisadores perceberam que as máquinas não precisam realmente seguir as mesmas regras dos humanos. Na verdade, a tomada de decisões de um sistema informático pode se dar a partir da análise de milhares de informações e imagens para encontrar padrões, ou seja, as máquinas executam tarefas de maneira diferente dos seres humanos. Tudo isso acarretará, segundo o economista inglês, grandes transformações na maneira como vemos, vivemos e desenvolvemos o trabalho. Isso traria ao menos três grandes desafios: o primeiro seria a distribuição, já que, com redução de oferta de trabalho tradicional, seria necessário pensar em novas formas de dividir os bens pela sociedade; o segundo seria o aumento exacerbado do poder das grandes corporações por trás dessas inovações, e não estaria se referindo apenas ao poder econômico, mas ao poder de seu impacto na vida em sociedade em áreas como a liberdade e a democracia; e o terceiro estaria ligado ao sentido da vida das pessoas, quando o trabalho a que haviam se acostumado não existe mais. Dentre os desafios elencados – que são de fato importantes caso o cenário previsto por Susskind se realize –, convém lembrar que o futuro problema da distribuição “apenas” aumentaria, já que a distribuição extremamente desigual de renda é, há tempos, um sério problema da humanidade. Quanto ao crescente poder de empresas ligadas às tecnologias de comunicação e informação, de fato a preocupação é muito procedente, visto que atualmente a manipulação de informações e notícias falsas – as denominadas fake news – têm, inclusive, alterado resultados de eleições mundo afora. Além disso, provocaram também uma mudança relevante no comportamento das pessoas, inclusive criando uma exposição da vida privada nunca antes vista. Isso sem mencionar os tais influencers, que grande parte das vezes falam e têm opinião sobre tudo, mesmo sem saber sobre o que estão falando... Essa situação ganhou um grau tão grande de absurdo que o governo da Dinamarca estuda a criação de um código de conduta e de regulamentação da informação partilhada nas redes sociais. Segundo o site português Visão,12 a ministra da Educação e da Infância, 12 Dinamarca… (2019).

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Pernille Rosenkrantz-Theil, informou à BBC da “intenção do governo dinamarquês de implementar uma ‘responsabilidade editorial’, de acordo com os padrões da ‘velha imprensa’, para os novos ‘influenciadores digitais’”. Afirmou a ministra que, “quando se atinge um certo número de pessoas a seguir uma página, então tem-se a mesma responsabilidade de uma pessoa [que trabalhe] num jornal ou num formato de média tradicional”. Não se trata de censura, mas de cuidado, pois esses influenciadores digitais – também denominados youtubers – são vistos e ouvidos por um número muito grande de pessoas, que passam a acreditar e repassar essas informações e posicionamentos. Dentre os inúmeros absurdos, vale dar o exemplo de apenas dois: um afirmou que Karl Marx ter-se-ia arrependido de suas teses durante a Segunda Grande Guerra Mundial (só que Marx morreu cerca de 60 anos antes!); outro youtuber afirmou que Stálin recebeu dois prêmios Nobel da Paz (o que também não é verdade). Quando pensamos no fim do trabalho, ao menos da maneira como estamos acostumados a vê-lo, convém lembrar que a valorização dessa atividade não foi assim desde sempre. Platão e Sócrates viam o trabalho como uma atividade desvalorizada, que limitava a liberdade do ser humano, aliás, as atividades ligadas à produção e comercialização estavam à cargo dos escravos. Lembremo-nos também de que em Tebas – cidade do Antigo Egito – não se podia concorrer a cargos públicos se houvesse trabalhado ou feito comércio na última década. Ou seja, o trabalho era visto como algo a ser evitado. Se procurarmos pela origem da palavra trabalho, chegaremos ao vocábulo latino tripallium, que significava um instrumento de tortura formado por três pedaços de paus. Dessa forma, trabalhar significava ser torturado no tripallium, e aqueles que eram submetidos à tortura eram os escravos e os pobres. Posteriormente, essa expressão passou a não significar apenas a tortura, o castigo em si, mas também as atividades físicas exercidas pelos trabalhadores em geral. Esse retorno à origem do termo e da própria maneira como era visto na antiguidade é bem diferente da forma como a sociedade encara atualmente o trabalho, a ponto de diversos autores13 registrarem e debaterem a existência de uma sociedade do trabalho. Há uma total aceitação de

13 Por exemplo, André Gorz (2004), Robert Castel (2003), István Mészàros (2006), Richard Senneth (2009), Ricardo Antunes (1995) etc.

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afirmações, como “todos têm que trabalhar”, “o trabalho enobrece o Homem”, “quem não trabalha é vagabundo”, então é difícil para as pessoas ouvirem que as atividades de trabalho que realizam em breve não existirão mais. Parece-me que em pouco tempo – em um mundo com forte redução do número de empregos – será necessário estabelecer algo que venha a resolver a falta de rendimentos. Há algumas reflexões e propostas ainda muito embrionárias, mas o rendimento universal mínimo condicional é algo que tem sido apresentado como possibilidade. O termo “condicional” está ligado ao fato de que, historicamente, mesmo quando alguém se encontra desempregado, espera-se que esteja procurando emprego, esteja estudando ou buscando habilitar-se com novas ferramentas para encontrar trabalho. Sendo assim, as pessoas não receberiam o rendimento universal mínimo condicional fazendo absolutamente nada. Seria necessário envolverem-se em alguma atividade considerada útil. Em entrevista para o jornal português Público,14 Susskind afirmou que as pessoas já fazem contribuições para a sociedade que não são consideradas como emprego, pois não são remuneradas; elencou o voluntariado como um exemplo disso. Inclusive, devemos ter em conta que a população mundial vem envelhecendo – isso é um fato – e há uma necessidade de assistência a essas pessoas, seja fazendo-lhes as compras ou ajudando-as a deslocar-se; os governos podem pensar em remunerar pessoas que ajudem esses idosos; essa seria apenas uma possibilidade. E essa perspectiva também tensiona a lógica da competitividade e da hierarquização da sociedade, mas desenvolveremos melhor essa dimensão do debate no quarto capítulo deste livro. Há escolhas equivocadas ao que se refere à educação. Tem havido um raciocínio simplificador quando se trata do investimento no ensino ou na formação para as “profissões do futuro”. Os governantes acreditam que, com o crescimento das tecnologias de comunicação e informação, da robótica e da inteligência artificial, eles devem investir nos cursos de programação/informática e na engenharia computacional, por exemplo. Todavia, é muito importante entendermos que há disciplinas que são formadoras do ser humano (de um ser que é social), que valorizam a humanidade do ser. Esses valores não devem e não podem se perder. 14 Em 15 de março de 2020.

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Temos de estar atentos para o fato de que um geógrafo, um sociólogo ou um filósofo não precisa trabalhar apenas nas áreas específicas e tradicionalmente destinadas à ocupação desses profissionais. Seus conhecimentos devem ser compartilhados com os dos economistas, dos biólogos, dos médicos, dos arquitetos, dos engenheiros etc. É exatamente essa interação e debate que promoverá a solução de problemas com mais vantagens para a humanidade. As pessoas também têm de entender que precisam estudar para o resto de suas vidas, e não apenas até a sua formação tradicional. Naquela mesma entrevista ao jornal Público, Susskind afirma que, se alguém tem interesse em estudar Medicina, deve fazê-lo porque quer resolver problemas na área da Medicina, e não porque quer fazer carreira como cirurgião. O mesmo pode se dizer da carreira de Direito, devem fazer essa escolha porque querem trabalhar com o sistema legal, e não porque querem ser advogados tradicionais. Isso porque o tipo de capacidades que serão necessárias para se resolver problemas nas distintas áreas de trabalho será diferente no futuro. O economista inglês afirma ainda que os jovens devem escolher áreas que lhes interessem, mas que sejam agnósticos sobre o tipo de tarefas que desenvolverão. Um problema que advém dessas possíveis transformações do cotidiano seria o fato de cada vez mais as empresas começarem a substituir por robôs as atividades desenvolvidas por seres humanos. Assim, como o governo poderia ter recursos para o tal rendimento universal mínimo condicional? Uma das soluções que alguns pesquisadores têm sugerido é o imposto sobre o uso de tecnologia que substitui a mão de obra humana. Esse é um debate importante, já que os chamados “robôs” têm sido utilizados em setores cada vez mais amplos da economia, o que pode levar à eliminação de muitos empregos em um futuro bem próximo. A sugestão de que as empresas paguem uma espécie de compensação monetária para que os governos possam utilizar esses recursos para promover treinamento para os trabalhadores afetados veio, no início de 2017, de Bill Gates (empresário e fundador da poderosa Microsoft). Ao menos em tese, essa sugestão não é nova na teoria tributária, basta lembrar-nos do elevado imposto aos cigarros e às bebidas alcoólicas, que, devido às doenças que causam, geram altos custos para os serviços de saúde pública. O problema que complexifica o debate é que esses robôs são vistos como investimento de capital, que por meio da automação au-

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menta a produtividade e a eficiência econômica. Ou seja, grande parte do empresariado acredita que a criação de um imposto como esse tornar-se-ia um desincentivo ao investimento e à inovação; é o que também afirma o gestor financeiro Carlos Pimenta.15 Perspectiva tosca que desconsidera o fato de que tais inovações podem levar milhões de pessoas a ficar sem receber qualquer forma de rendimento. Se formos avaliar o que se daria com o crescimento da substituição de trabalhadores por tecnologias ligadas à Inteligência Artificial, devemos entender que trabalhadores sem emprego não descontam os impostos que incidem sobre a folha de pagamento. Além disso, há também em vários países uma espécie de auxílio-desemprego, o que gera duplo impacto sobre as contas públicas. Matéria publicada no site da BBC16 em junho de 2019 aponta que 48% da arrecadação federal nos Estados Unidos vem da cobrança sobre a renda e 35% vêm de contribuições sociais; apenas 9% referem-se à tributação de pessoa jurídica. São exatamente esses dados que levam Bill Gates, nessa mesma matéria, a argumentar que “certamente haverá algum tipo de imposto relacionado à automação. Hoje, um trabalhador que receba, digamos, US$ 50 mil em uma fábrica, paga impostos sobre a renda, paga contribuição social. Se um robô começa a desempenhar a mesma função, seria natural se pensar que ele seria tributado em um patamar semelhante”. Outro bilionário da tecnologia, Elon Musk – fundador, CEO e CTO da SpaceX e CEO da Tesla Motors – também defende o imposto sobre os robôs argumentando que os recursos arrecadados poderiam ser utilizados para garantir uma renda mínima para todos e para investimentos nas áreas de saúde e educação. Algo tem que ser feito quanto a isso, pois os investimentos em Inteligência Artificial levam grande vantagem em relação à contratação de trabalhadores, visto que o empresariado economiza um elevado volume de tributos. E se, parece, a automação será cada vez mais inevitável, torna-se necessário encontrar novas formas de ocupação para as pessoas que tiverem suas atividades extintas. É certo que, quando se fala em aumento de impostos, o empresariado sempre procura construir argumentos para escapar disso. Uma das estra-

15 https://blogs.iadb.org/gestion-fiscal/pt-br/page/4/ 16 Por que… (2019).

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tégias para procurar desestimular o discurso do “imposto sobre robôs” foi o estudo encomendado à empresa londrina Metra Martech. O resultado do estudo teria revelado que “a robótica será uma das principais responsáveis pela criação de empregos em indústrias como por exemplo a eletrónica de consumo ou a energia solar e eólica”. Além disso, os resultados apontam também que “a robótica vai progredir nos serviços, em especial nos cuidados de saúde, nos quais as populações em envelhecimento vão precisar de apoio”.17 A Federação Internacional de Robótica (IFR) valoriza a parte da pesquisa que afirma ainda que “não existiriam três a cinco milhões de empregos se a automação não tivesse sido desenvolvida e permitido a redução dos custos de produção de milhões de produtos eletrônicos”. Números poderosos, mas que contêm um intervalo extremamente largo, o que parece – no mínimo – estranho: apontam de três a cinco milhões de empregos! A polêmica é grande, pois envolve grandes corporações e muito dinheiro em investimentos. Uma investigação desenvolvida pelo professor de finanças Sergio Rebelo, da Kellogg School, e por João Guerreiro, da Northwestern University,18 revelou que um imposto sobre robôs poderia fazer parte de uma agenda política para segurar a desigualdade de renda e melhorar a economia em geral. Apontam os investigadores que se o crescimento da substituição de pessoas por robôs continuarem sem qualquer intervenção política, as pessoas que perderam suas colocações sofrerão forte redução de renda, o que aumentará ainda mais a elevada desigualdade já existente. Suas conclusões basearam-se na perspectiva das atividades ligadas ao que os economistas denominam de “trabalho de rotina” (qualquer trabalho com tarefas programáveis e passíveis de automação, por exemplo, trabalhadores de centrais de atendimento e operários de linhas de montagem) ser cada vez mais substituído por robôs. O cenário é assustador quando se leva em conta que há tendência de que as máquinas se tornem cada vez mais baratas, o que obrigará os “trabalhadores de rotina” a aceitar salários cada vez mais baixos para competir com os robôs. Afirmam

17 Robôs… (2017). 18 Rebelo e Guerreiro (2019).

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os pesquisadores que, pelo fato de poderem ser substituídos por máquinas, as suas oportunidades tornam-se cada vez mais degradantes. A pesquisa, que reflete as tendências em curso nos Estados Unidos, revela também que o único grupo cujo salário médio aumentou desde 1979 é o de trabalhadores com ensino superior. Esse grupo de profissionais têm chance muito maior de realizar trabalhos não rotineiros; por outro lado, aqueles de formação inferior viram seu salário real diminuir. Com a utilização de robôs, esse cenário se agrava ainda mais, o que aumentaria profundamente a distância entre ricos e pobres. Podemos identificar uma clara condição de desigualdade na produção do espaço. É possível percebermos bairros em que as infraestruturas são de boa qualidade e beneficiam os cidadãos que ali residem, entretanto há bairros degradados, loteamentos irregulares e favelas que não contam com a infraestrutura mínima necessária para a vida. A condição de desigualdade é visível na produção desigual do espaço urbano. Em cidades como o Rio de Janeiro, devido à morfologia, é possível observarmos favelas situadas em bairros considerados nobres – principalmente na zona sul da cidade –, todavia, embora haja uma certa proximidade espacial, há uma imensa distância social. Essa condição de desigualdade não se refere apenas ao exemplo do Rio de Janeiro, trata-se de uma condição global; o que torna ainda mais assustador imaginar que os salários e ganhos dos trabalhadores menos qualificados podem ser ainda mais reduzidos com a crescente utilização das tecnologias de informação e comunicação. Rebelo e Guerreiro (2019), mesmo tendo em conta a noção de que a tributação de bens intermediários deva ser evitada, conforme pregava o artigo de 1971 de Peter Diamond e James Mirrlees (vencedores do Prêmio Nobel), visto que um imposto como esse tornaria a economia menos eficiente e anularia os benefícios líquidos do imposto, concluíram que em determinadas circunstâncias a tributação de robôs é benéfica. Isso porque, quando se cria impostos para o uso de robôs, seu custo fica mais elevado, o que também contribuiria para uma redução menor dos salários dos denominados “trabalhadores de rotina”. É isso que os leva a afirmar que “um imposto sobre robôs oferece uma maneira indireta de tributar trabalhadores não rotineiros e distribuir a renda de forma mais equitativa na economia como um todo”. Esse cenário – que pode parecer futurista, mas não é – levou o governo sul-coreano a introduzir punições fiscais às empresas que automa-

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tizem empregos, além de ser o primeiro país a implementar o imposto sobre robôs. Apesar de Rebelo e Guerreiro (2019) apoiarem o imposto sobre os robôs, acreditam que apenas essa medida não resolveria o problema. Os pesquisadores apostam em uma ação combinada: o imposto e o pagamento de renda mínima para todos. Dessa forma, todos os trabalhadores beneficiar-se-iam da automação, até porque a eficiência dos robôs é positiva para a economia como um todo. Ou seja, quando os salários dos trabalhadores rotineiros caíssem a um nível abaixo do mínimo, eles não precisariam submeter-se a isso, pois receberiam uma renda mínima. Entretanto, convém perceber que a proposta de renda mínima para todos é diferente da ideia de rendimento universal mínimo condicional aventada por Susskind (2020). Diante de tantas possibilidades de mudança, não resta dúvida de que o cotidiano dos cidadãos será fortemente transformado. A ideia de renda mínima não é nova, entretanto com a pandemia do coronavírus Covid-19 (família de vírus que causam infecções respiratórias graves) parece ter ganho força nos debates travados inclusive por economistas de diferentes posições políticas. Parece ser quase unanimidade o discurso de que a saída da crise passa por aumentar os gastos do governo federal com o objetivo de socorrer pequenas empresas, trabalhadores que perderam renda e até mesmo os estados, postergando o pagamento das dívidas com a União. Em matéria publicada pelo jornal O Globo,19 o ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega argumentou que, “em primeiro lugar, está o objetivo de salvar vidas; em segundo lugar, de pôr o dinheiro nas mãos das pessoas, particularmente as de renda mais baixa, as menos favorecidas. Em terceiro lugar, salvar as empresas de uma quebra. […] O presidente parece dar a impressão de que prefere contar os mortos do que contar os desempregados”. Por sua vez, o sociólogo José Pastore afirmou que o governo brasileiro terá que acudir. Lembrou que “no mundo inteiro estão fazendo isso. Alemanha injetou € 866 bilhões, os EUA mais US$ 2 trilhões”. Ainda na mesma matéria, o economista Raul Velloso disse acreditar que “o país só sairá dessa crise com a liberação de recursos extraordinários para proteção da população em situação de maior vulnerabilidade. O foco agora 19 Sorima Neto, Capetti e Almeida (2020).

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deve ser na expansão da capacidade de gastar, de fazer o dinheiro chegar no bolso de quem precisa”. Na atual crise do  coronavírus, é curioso observar que grande parte das falas de economistas, empresários e investidores passa pela afirmação de que “situações extremas exigem medidas extremas”. Apesar de vários economistas lembrarem do denominado Plano Marshall – iniciativa estadunidense para ajudar na reconstrução da Europa no pós-Segunda Grande Guerra –, especialistas brasileiros acreditam que o nosso receituário “deve ser composto de investimentos públicos em saúde, infraestrutura e um sólido programa de renda mínima”. A economista brasileira Monica de Bolle, da Johns Hopkins University, em Washington (EUA), defende um plano básico de uso dos recursos públicos: “ampliar o SUS em R$ 50 bilhões, colocar R$ 30 bilhões para salvar micro e pequenas empresas, criar renda básica de R$ 500 para 36 milhões de pessoas por um ano, a um custo de R$ 216 bilhões, e ampliar em 50% o Bolsa Família, a um custo de R$ 15 bilhões”.20 Mais adiante, na mesma matéria Paulo Vicente, professor da Fundação Dom Cabral, acredita que “a Covid-19 ‘deixou o rei nu’, ou seja, chegou em um momento de discussão sobre as profundas mudanças tecnológicas que têm transformado a sociedade. […] Essa crise, com desemprego estrutural por causa da tecnologia, deve fazer com que o debate de uma renda universal, que existe desde 1950, ganhe força em todo o mundo”. Esses são apenas cinco exemplos, mas poderíamos citar também outros economistas e analistas econômicos que defendem esse mesmo encaminhamento, como Fábio Klein (Consultoria Tendências), Alexandre Schwartsman (ex-diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central), Marcos Lisboa (ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda no primeiro mandato do governo Lula e atual presidente do Insper), José Roberto Mendonça de Barros (ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda no primeiro mandato do governo de Fernando Henrique Cardoso e cofundador da MB Associados) e Luiz Carlos Prado (professor do Instituto de Economia da UFRJ), dentre outros. Roberto Merrill et al. (2019), do Departamento de Filosofia da Universidade do Minho e investigador no Centro de Ética, Política e Sociedade, defendem a instauração do rendimento básico incondicional, um 20 Batista e Sorima Neto (2020).

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“rendimento cuja quantia deve ser suficiente para garantir condições de vida decentes, pago em dinheiro a todos os cidadãos e de maneira incondicional, ou seja, sem ter em conta a situação financeira, patrimonial ou salarial (no caso de quem seja remunerado pelo trabalho) de todas as pessoas que o recebem”. Defende o professor que esse rendimento deve ser considerado “um direito universal, individual, incondicional, e idealmente seria de uma quantia suficientemente elevada para assegurar a cada cidadão uma existência digna e uma participação na sociedade que esteja livre de constrangimentos econômicos que levem à exclusão”. Em artigo publicado no jornal português Público, em 29 de março de 2020, Merrill afirma que “hoje enfrentamos duas ameaças − uma do vírus e a outra económica. A ameaça do vírus é, de certa forma, algo que podemos controlar: sabemos o que devemos fazer para reduzir ao máximo o risco de contágio, protegendo a nossa saúde e a dos outros cidadãos. No entanto, a ameaça de insegurança económica é no mínimo tão preocupante como a primeira”. O filósofo enfatizou o fato de que a pandemia do coronavírus revelou a fragilidade de nossa sociedade, enaltecendo o fato de que há um número elevadíssimo de trabalhadores precários que, muitas vezes, não entram na contabilidade da necessidade de ajuda dos governos. Enaltece ainda o fato de haver “muito mais milhões de pessoas em situações precárias em todo o mundo do que há uma década atrás, com rendimento incerto e flutuante e vivendo com dívidas insustentáveis, muitas ficarão ainda mais vulneráveis aos efeitos da desaceleração económica como a que estamos a viver”; o que justificaria a instauração do rendimento básico incondicional. Embora opte neste momento por não me alongar mais nesse debate, quando se pensa na instauração de alguma forma de renda mínima, trata-se de um tema bastante polêmico, mas que permeia o cotidiano de todos.

Cotidiano e mudanças cada vez mais rápidas (para não mudar) Cotidianamente, internalizamos regras, normas, instituições, valores e representações, que fazem parte de nossa existência social. Quando falamos em indivíduo, não devemos esquecer que ele se representa na dimensão social, já que somente se realiza concretamente no social. A dimensão

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social de representação de atores e agentes21 se dá no âmbito do lugar, e, nesse sentido, as práticas espaciais definem lugares, que se revelam e se constituem através da relação entre o local e o global; além disso, definem a representação dessa relação, dessas ações e interações. Tudo isso acaba por constituir-se no cotidiano. É nele que vivenciamos a alienação, mas é também a partir dele que podemos lutar contra ela, insurgir-nos. A produção da cidade, desde muito tempo, se faz como instrumento de viabilização do momento histórico da sociedade; fato explicável, pois o espaço é produzido socialmente. Assim, se não restam dúvidas de que a cidade é um produto social, isso não se dá sem tensões. Há forte jogo de poder envolvido, em que os diferentes atores sociais procuram impor o seu modelo. A maneira como são produzidas as cidades traz consigo elementos ocultos, ou que por vezes naturalizamos. Assim, afastamo-nos da Natureza e daquilo que produzimos, que passam a ser coisificados. Nesse sentido, experimentamos uma sensação de estranhamento, de impotência para definir os rumos dos eventos, principalmente porque é construída no cotidiano a ideia de que as coisas são “simplesmente” assim. Aqui, vale lembrar de como Marx e Engels (2007) desenvolveram a noção de ideologia em sua obra denominada A Ideologia Alemã. No livro procuraram deixar claro que ideologia não seria apenas um conjunto de ideias, mas na verdade estaria ligada à naturalização de fatos e posições sociais. Diria respeito a uma espécie de ocultamento da realidade àqueles que não detinham o poder em nossa sociedade de diferentes classes. Tudo isso se realizaria através das relações cotidianas; em outras palavras, as pessoas aprenderiam as regras da sociedade dominante, e elas passariam a parecer naturais. Ou seja, ela é apresentada como se fosse a única maneira de ser da sociedade. Dessa forma, como escreveu Lefebvre (1991, p. 155), devemos lembrar que “toda sociedade de classes (e não se conhece ainda nenhum outro tipo) é uma sociedade repressiva”. Essa repressão pode se dar através da persuasão (ideologia) e da opressão mais diretamente. Por isso, não é possível refletirmos sobre o cotidiano sem pensar na alienação. Ao pensarmos em alienação, múltiplas dimensões podem ser apontadas: a dimensão do trabalho, visto que, sob o regime do Capital, 21 Em texto anterior (FERREIRA, 2013a), discuto e apresento a diferença entre as categorias ator e agente.

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ocorre o estranhamento entre o trabalhador e sua produção, ele é alienado em relação às coisas e seu trabalho passa a ser meio de sobrevivência; a alienação do próprio Homem transformado em mercadoria; a transformação das atividades e relações humanas em coisas; a construção de um conjunto de mitos que fortalecem a consciência privada; e as necessidades artificiais incentivadas e introjetadas pela publicidade. Aqui, compreendemos a ideia da construção do Homem consumidor como razão da felicidade. Há poucas páginas afirmávamos que a liberdade concedida às pessoas muitas vezes restringia-se à escolha entre uma mercadoria ou outra. No Capítulo 2 aprofundaremos mais esse debate e esclareceremos melhor a ideia de mercadificação, que é diferente de mercantilização. A alienação torna-se fundamental para descolar o cotidiano de suas maiores riquezas: a criatividade, a liberdade e o prazer. Talvez seja essa certeza que leve Lefebvre (1991, p. 40) a afirmar que “a alienação social transforma a consciência criadora (incluindo os filões da criação artística latentes na ‘realidade’) numa consciência passiva e infeliz”. Entretanto, em nossas práticas cotidianas é possível, como dissemos anteriormente, insurgir-nos. Cotidianamente exercitamos um ser que age, simultaneamente, no âmbito individual e no âmbito social ao apropriar-nos dos inúmeros elementos da cultura construída. O filósofo e historiador francês Michel de Certeau (2012) mira o mais fraco, os mais simples e procura encontrar em suas ações a capacidade de inventar. Assim, procura perceber as microrresistências, que acabam por cumprir o papel de construção de microliberdades. Talvez seja por isso que o geógrafo Felipe Taumaturgo Rodrigues de Azevedo22 (2020, p. 81) afirme que Certeau traz uma “compreensão verdadeiramente consistente sobre a cultura ‘ordinária’, e para isso valoriza o banal como recurso de método”. Além disso, promove uma boa interlocução entre Michel de Certeau, Agnes Heller, Ana Clara Torres Ribeiro, Milton Santos e José de Souza Martins.23 Essas ações a que nos referimos tornar-se-ão mais claras ao 22 Membro do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Espaço e Metropolização). 23 Azevedo (2020, p. 84) afirma, por exemplo, que “o ‘homem lento’ de Milton Santos (1996), o ‘sujeito corporificado’ de Ana Clara Torres Ribeiro, o ‘homem simples’ de José de Souza Martins (2008) e o ‘homem-genérico’ de Agnes Heller (2011) sem dúvidas compartilham dos mesmos dilemas percebidos na interpretação proposta por Michel de Certeau”.

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apresentarmos, por exemplo, as táticas de resistência à gentrificação no segundo capítulo desta obra. Certeau (2012) analisou as “práticas comuns”, as “artes do fazer” idealizadas por esse herói comum, esse “homem ordinário”, que em suas ações clandestinas podem dar origem a uma espécie de canal de escape. Ou seja, pensando na luta pela produção do espaço, poderíamos pensar nas táticas de resistência que contribuem para a reapropriação do espaço. Para tanto, esse “homem ordinário” caminharia pelos interstícios, pelas frestas que a própria lógica capitalista acaba desapercebidamente deixando transparecer. Esse movimento busca escapar da construção ideológica a que Marx e Engels se referiram, busca escapar da ordem estabelecida; em outras palavras, busca escapar do conformismo e do projeto de mundo idealizado pela classe que se encontra no poder. É preciso perceber e desmontar essa construção de juízos, práticas e normas que têm a função de consolidar e manter a estabilidade e coesão de classes sociais. A filósofa húngara Agnes Heller (2014) lembrou-nos de que os comportamentos, normas e preconceitos são produto das classes dominantes, e é a elas que interessa manter a coesão dessa estrutura social. Para tanto, utilizam-se de um grande arsenal estratégico de que fazem parte também a publicidade e as tecnologias de informação e comunicação, assim conseguem mais facilmente desenvolver uma elaborada construção de discurso, que é introjetado nas camadas sociais antagônicas e que, muitas vezes, acaba mobilizando-as contra os interesses de sua própria classe. Essa introjeção de valores e comportamentos alcança cada vez mais esferas da vida, logo é possível compreendermos Heller (2014, p. 74) quando afirmou que, “quanto maior a alienação produzida pelo modo de produção, tanto mais a vida cotidiana irradia alienação para outras esferas”. A alienação encarcera o ser humano em um conformismo perigoso, pois a consciência tende a se tornar um simples reflexo na sociedade capitalista. Por isso, o filósofo francês Lucien Goldmann (1977) já afirmava que a consciência perdia a função ativa à medida que a reificação se estendia e penetrava em todos os setores não econômicos do pensamento e da afetividade. Enfatizava que religião, moral, arte, literatura, todas tendem a ser esvaziadas por dentro, e isso em virtude da existência de um conjunto econômico autônomo que procura tomar posse de todas as manifestações da vida.

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Ao mencionarmos Goldmann (1977), vale recordar que mais recentemente o filósofo Pierre Dardot e o sociólogo Christian Laval (2016) retomam essa mesma perspectiva ao refletir sobre o neoliberalismo como nova razão do mundo. Os pesquisadores franceses asseveram que o neoliberalismo teria transformado ainda mais profundamente o capitalismo, posto que, mais do que uma ideologia, se tornou um sistema normativo que ampliou sua influência a todo o planeta. Ou seja, significa estender a lógica do capital a todas as esferas da vida, algo que, de alguma maneira, Lefebvre e Goldmann já apontavam desde a década de 1960. Entretanto, o cotidiano não é apenas o lugar da tragédia e da reificação do ser humano, é também, como lembrou-nos Lefebvre (1961), o lugar do impossível possível, da superação da alienação. A crítica da vida cotidiana feita pelo filósofo francês propunha a ideia da necessidade de mudar a vida. O que realmente não é simples, pois o cotidiano envolve os aspectos mais profundos da existência – que não podemos esquecer, são simultaneamente individuais e sociais –, referimo-nos aos desejos, projetos de vida, necessidades, satisfações e frustrações. Inspirados em Lefebvre, é necessário, então, o desenvolvimento de uma crítica radical – no sentido de ir à raiz – ao individualismo, objetivando a valorização da consciência pública em oposição à consciência privada; às mistificações, que têm construído um sem-fim de mitos que fortalecem a consciência privada; e às necessidades, grande parte delas criadas artificialmente, além de que estão fortemente ligadas à necessidade de ter dinheiro. Entretanto, não estamos falando apenas de uma crítica no plano teórico, essa crítica tem de estar conectada ao cotidiano vivido. A moralidade construída, o Estado e a ideologia posta em prática iluminam falsamente a vida cotidiana; aliás, na verdade, obscurecem-na, distanciando-a das possibilidades de mudança. De alguma forma, esse ocultamento não nos deixa perceber que temos, no presente, inúmeras possibilidades de escolha de futuros outros possíveis. Talvez seja essa percepção que tenha levado a socióloga Ana Clara Torres Ribeiro (2006) a apontar a importância de refletir sobre as formas de alienação e cegueira que são inerentes à presentificação. O presente tem sido banalizado e muitas vezes desqualificado como momento de reflexão e construção de projetos de mudança. Como vimos anteriormente, ao apresentarmos a

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construção do imaginário social a respeito das denominadas gerações Y e Z, há uma desvalorização da ideia de projeto de futuro; há que se viver o presente pelo presente mesmo. Uma perspectiva como essa acaba separando passado, presente e futuro, o que gera uma desconexão perigosa se almejamos construir um futuro outro. Como procuramos deixar claro na Introdução desta obra, a projeção mira o futuro, mas evidentemente o que determina o projeto é a história construída no passado e o presente vivido. Mirando a pandemia de coronavírus – Covid-19 – que assolou o mundo desde o início de 2020, observamos analistas políticos e economistas apresentando visões que, por vezes, apontam para uma mudança na forma de ver o mundo, que pode ter contornos bem diferenciados: há a possibilidade do crescimento do individualismo, de um maior fechamento das fronteiras, da exacerbação de movimentos xenófobos etc., mas há também perspectivas que vislumbram mudanças de valores e da possibilidade de maior preocupação com a coletividade. Pesquisadores mundo afora têm procurado mapear ações que valorizam a preocupação com os mais necessitados e com a coletividade de forma geral. Um exemplo importante é o Solivid,24 um projeto coletivo para a construção de um mapa colaborativo e de um banco de recursos on-line sobre as iniciativas solidárias frente à crise da Covid-19, de iniciativa do Institut de Govern i Polítiques Públiques (IGOP) e do Grup de Recerca Energia, Territori i Societat (GURB) da Universitat Autónoma de Barcelona e do IERMB (Institut d’Estudis Regionals i Metropolitans de Barcelona). Esse mapeamento não se resume à Catalunha ou à Espanha, tendo informações de iniciativas em Portugal e no Brasil, por exemplo. O interessante é que algumas dessas ações foram surgindo de maneira espontânea (Figura 2), outras vieram a partir de Organizações Não Governamentais (ONGs).

24 Disponível em: https://www.solivid.org/?lang=es.

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Figura 2. Ação colaborativa espontânea

As duas estudantes de Medicina fixaram esta mensagem dentro do elevador do edifício em que moravam, oferecendo-se para realizarem compras para as pessoas impossibilitadas de ir à rua. Fonte: Alvaro Ferreira (2020)

Chega a ser curioso lermos matérias publicadas no The Economist  e no Financial Times cobrando uma intervenção mais efetiva do Estado, afirmando a necessidade de se pensar seriamente na instituição da política de renda mínima ou na taxação de grandes fortunas. Levantam a necessidade do estabelecimento desse “novo contrato social” pós-pandemia. Talvez devamos, como bem nos ensinou o italiano Antonio Gramsci, ser pessimistas no prognóstico e otimistas na ação, pois do contrário corremos o risco de enganar-nos com a possível estratégia de estarem fazendo algumas poucas concessões, simplesmente para não mudar nada essencialmente. É esta certeza que fez a colunista Eliana Brum (2020b), do El País Brasil, afirmar que “o mundo mudou em menos de três meses em nome da vida. É também em nome da vida que precisamos manter as boas práticas que surgiram neste período e pressionar como nunca antes por outro tipo de sociedade, tecida com outros fios”. Caso contrá-

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rio, é possível que sigamos aqueles que afirmam que depois da pandemia tudo retornará ao que era antes, tudo retornará ao normal... Mas o que é o normal?! Vivemos em uma sociedade extremamente desigual. E como procuramos deixar claro anteriormente, diferença não é sinônimo de desigualdade. Considerar as diferenças é fundamental, inclusive, para não defender políticas geradoras de desigualdade. Pois vejamos, segundo o último relatório divulgado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), no final de 2019, o Brasil é o sétimo país mais desigual do planeta, ficando atrás apenas da África do Sul, Namíbia, Zâmbia, República Centro-Africana, Lesoto e Moçambique. Na pesquisa divulgada – com base no coeficiente Gini (que mede desigualdade e distribuição de renda) –, é possível observar que a parcela dos 10% mais ricos do Brasil concentra 41,9% da renda total do país, e a parcela do 1% mais rico concentra 28,3% da renda. E aqui não estamos trazendo os dados de rendimentos diferenciados entre homens e mulheres e entre negros e brancos. E, se cruzarmos os dados de rendimentos de mulheres e negras em relação aos demais rendimentos, a desigualdade é ainda maior! A nossa história foi construída a partir de uma sociedade escravocrata, em que determinadas pessoas valiam mais do que outras, e parece que isso perdura até hoje. A desigualdade passa também pelo enorme número de sem-tetos que habitam as ruas das cidades, de trabalhadores desempregados e de pessoas que precisam se submeter a viver em condições precárias nas favelas. São pessoas com a maior necessidade de auxílio, principalmente quando se enfrenta uma pandemia como a da Covid-19. Mas houve uma mobilização solidária, e ela não deve ser desprezada. Nem aquelas espontâneas (que surgiram entre moradores do mesmo prédio ou de bairros), nem aquelas ligadas às ONGs. Um exemplo no Rio de Janeiro é a ONG Rio da Paz, que vem incentivando a doação de comida para suprir a necessidade de moradores das favelas do Jacarezinho, Mandela e Complexo da Maré. Outro exemplo é a Central Única das Favelas (CUFA), que mobilizou grandes empresas e conseguiu distribuir 600 toneladas de mantimentos entre várias favelas. Mas as ações colaborativas e solidárias vão mais além. Através de mobilização nas redes sociais, foi possível ajudar trabalhadores ambulantes que, com o fechamento de empresas, colégios e universidades, perderam sua fonte de renda. O caso do “Zé Pipoqueiro”, na cidade de Salvador,

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acabou ganhando notoriedade nas redes sociais e inspirou o auxílio a outros trabalhadores ambulantes. A partir daí surgiu o projeto Semeando Amor, que em um mês conseguiu arrecadar R$ 180 mil e distribuiu a cada ambulante cerca de R$ 1.000. O Sindicato dos Músicos de Belo Horizonte, em parceria com o movimento Nos Bares da Vida (FIGUEIREDO; MENEZES, 2020),25 está recolhendo doações para comprar cestas básicas e distribuir para os filiados e não filiados que estejam passando por dificuldades nesse período de pandemia. Claro que todas essas ações se encontram no âmbito de táticas de sobrevivência, mas isso também faz parte da luta. É no vivenciar da vida cotidiana que podemos perceber que, mais do que sobreviver, precisamos nos tornar conscientes do sentido de nossa sobrevivência; assim sendo, já não falaríamos em sobreviver, mas em viver em plenitude. É no cotidiano que as pessoas experimentam prazer, sofrimento, desespero e esperança; aqui e agora. Trata-se de considerar a produção do ser humano por si mesmo através do tempo. Referimo-nos à produção de relações sociais; ou seja, o termo produção ganha uma maior complexidade, já que envolve também a reprodução. Mas não se trata apenas da reprodução biológica, mas inclusive da reprodução das formas necessárias à produção e também das relações sociais. A vida cotidiana é o resíduo e o produto do conjunto social e, assim sendo, é também o lugar onde se manifestam os desequilíbrios e as tensões. É nesse cadinho de tensões que são edificadas as representações no imaginário social. Como procuramos deixar claro, as formas de gestão nas empresas, o desemprego, o crescimento do trabalho informal e sua precarização, o endividamento e o sistema de ranking são poderosas alavancas de concorrência interindividual. Referimo-nos à construção de um jogo imaginário entre vencedores e perdedores, entre os bem-sucedidos e aqueles que desistiram da luta; o que tem por objetivo a destruição da ideia de solidariedade e de cidadania. Isso é muito perigoso, pois o abandono da solidariedade e da noção da necessidade de se pensar na redistribuição pode levar – aliás tem levado – a movimentos reacionários. No quarto capítulo avançaremos no debate acerca da construção de uma outra possibilidade, da luta pelo desenvolvimento de uma capacidade co-

25 Matéria “O vírus da solidariedade. A reação à Covid-19 que não depende do governo”, no Jornal O Globo de 12/04/2020.

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letiva para pensar e trabalhar para a construção de uma outra imaginação política. O geógrafo Pedro Ricardo da Cunha Nóbrega (2017), ao pensar no espaço da ação, acredita que a vida cotidiana apresenta-se como “como caminho criativo, e no limite da sua definição, apresenta-se como lugar de resistência; como zona de materialização das táticas em resposta às estratégias impostas; a vida cotidiana só se enxerga de perto e de dentro”. A resistência e a luta pela mudança passam pela percepção de que o direito à cidade é mais do que um habitat, é o direito a habitar. O habitat liga-se à morfologia urbana, mas o habitar é uma atividade; referimo-nos à apropriação. Habitar é apropriar-se de algo, o que é bastante diferente de tê-lo como propriedade. Significa fazer do espaço sua obra, modelá-lo, apropriar-se dele. Mas ele é também o lugar dos conflitos, porque o espaço é um produto social. É também “produtor”, já que as formas construídas interferem no cotidiano da sociedade. Em outras palavras, a produção do espaço traz consigo uma intencionalidade, por isso é o lugar dos conflitos. É preciso questionar a forma como ele é produzido e buscar fazê-lo de outra maneira, com outros objetivos que não priorizem a especulação e a dominação do espaço. Em outras palavras: para mudar a vida é preciso mudar o espaço, é preciso questionar a propriedade privada do solo, é preciso valorizar o espaço público e lutar por ele e contra o movimento dos condomínios fechados, das ruas fechadas. Porque, como afirma Lefebvre (2008), “excluir do urbano grupos, classes, indivíduos implica também excluí-los da civilização, até mesmo da sociedade”. Talvez seja o momento de falarmos, inclusive, em espaço comum, porque, se a propriedade privada aparece como resultado de processos de acumulação e alienação típicos do capitalismo, historicamente os espaços públicos aparecem como uma forma de propriedade privada do Estado. O habitar transcende a moradia, pois significa viver a cidade em toda sua intensidade e complexidade. Assim, não podemos nos satisfazer apenas com o discurso abstrato da negação da propriedade (que é importantíssimo!), porque há uma quantidade enorme de pessoas que não têm o mínimo sequer para sobreviver. É preciso trabalhar em todas as frentes para minimizar as desigualdades e construir um ambiente de resistência e participação. Para tanto, é certo que se faz necessário

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o acesso à educação, à saúde, ao lazer e a todas as possibilidades que o espaço urbano de uma grande metrópole pode oferecer. É fundamental que haja um sistema de transporte coletivo digno e eficiente, que permita a locomoção da população sem ter que se sujeitar a viagens de mais de duas horas, sem um sistema sério de bilhete único e refém de empresas de ônibus que prestam serviços precários principalmente para a população mais pobre. Significa investir em um sistema de transporte que permita tirar da rua um volume cada vez maior de automóveis, que contribuem para o aumento dos engarrafamentos e para a poluição do ar. É preciso que os moradores que vivem em condições de moradia precária, muitas vezes em favelas em áreas de risco, tenham melhores condições de moradia. Não podemos prescindir dos pequenos comércios, pois são eles que dão possibilidade de fixação aos moradores, além de, evidentemente, postos de saúde, escolas e serviços de modo geral. Em outras palavras, é preciso entender que temos problemas que precisam ser resolvidos no curto prazo, pois são eles que são percebidos pela população de forma direta. Por isso pareceu-me tão importante uma afirmação feita pela geógrafa Ana Fani Alessandri Carlos durante o IV Simpósio Internacional Metropolização do Espaço, Gestão Territorial e Relações Urbano-Rurais, em 2018, no Rio de Janeiro: “é preciso levarmos em conta as urgências e a utopia”. A cidade é para ser vivida em plenitude por todos os cidadãos; assim, é necessário articular arte, cultura, comunicação e direcionamento político para realizar a verdadeira transformação do espaço urbano; em outras palavras, é necessário ultrapassar o momento atual – da cidade como produto, comercializável – e restituir o sentido da cidade como obra, produzida no cotidiano pelas pessoas, pelas diferenças, e não pela mercadoria. Ou seja, estaríamos caminhando para a retomada, pela sociedade, da definição de seu destino, para uma espécie de autogestão. Se por um lado os usadores do espaço urbano podem alienar-se pelas representações do espaço através, por exemplo, dos discursos construídos nos projetos de “renovação urbana” ou de “revitalizações” e na produção do espaço voltado ao turismo; por outro lado, podem se apropriar dela de outra maneira, a partir de uma miríade de possibilidades – inclusive como espaço de reivindicações –, e vivê-la como o lugar do encontro, da festa, das manifestações culturais espontâneas dos moradores. Entendemos, assim, por que Lefebvre (1994, p. 349) acreditava

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que a apropriação e o uso do espaço podem persistir nos espaços de representação, abrindo a possibilidade de pensarmos na construção de um espaço diferencial,26 visto como resistência e como potencialidade, como “uma iniciativa utópica alternativa para o espaço existente atualmente”. Indicar o que é possível exige que se entre no terreno das opções políticas, mas importa não perder o compromisso com a esfera que ultrapassa as escolhas imediatas. A utopia envolve, simultaneamente, as limitadas escolhas do imediato e as possibilidades ilimitadas do futuro. É a partir da vinculação entre o passado – com toda nossa historicidade – e o futuro – com o projeto utópico que almejamos – que poderemos construir as mudanças. Estamos, então, certos de que as espacialidades e temporalidades do cotidiano não se separam da dimensão do concreto e, nesse sentido, como afirmamos anteriormente, devemos fugir do risco das reificações. De outra forma, estaremos caminhando na direção da naturalização das fraturas sociais, passando a ver como normais a segregação espacial27 e as enormes desigualdades na apropriação da cidade. É preciso lutar pelo direito à cidade em sentido amplo, que incorpora o direito à diferença e à informação, que incorpora o direito a pensar em um outro modelo para além do que existe. Se escaparmos dessa naturalização, a percepção das fraturas sociais – que são também espaciais – podem contribuir para formação de movimentos de luta.28 Estamos falando da luta pela apropriação do espaço a partir da busca de racionalidades alternativas. É preciso escapar dessa armadilha; então, se falamos de uma produção da cidade e das relações sociais na cidade, estamos falando de uma produção e reprodução de seres humanos por seres humanos, mais do que de uma produção de objetos. 26 É possível construir um diálogo entre esse debate e a noção de heterotopia desenvolvida pelo filósofo francês Michel Foucault (1986, 1981). 27 O espaço é um produto social e é produzido com intencionalidades, logo a dimensão social está contida na dimensão espacial. Por isso, não utilizaremos expressões como “socioespacial” ou “sócio-espacial” para reafirmar aquilo que já está dado na própria maneira de como conceituamos o espaço. Até porque parece-nos inadequado e fora de propósito refletir sobre o espaço sem considerar as relações sociais que o produziram, que agem, reagem e interagem no espaço a partir de interesses políticos, econômicos e culturais. 28 A socióloga Ana Clara Torres Ribeiro desenvolveu importantes trabalhos ligados à teoria da ação em que desenvolve bastante esta temática em inúmeros artigos e capítulos de livros, como os aqui referenciados.

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A luta pelo direito à cidade tem implícita em si a participação, entretanto não deve ter como objetivo tão somente a participação, porque isso esvaziaria de conteúdo esse direito, tornando-o apenas um cumprimento formal. A participação é um meio para conseguirmos determinado objetivo e deve partir da própria população, mas o que temos visto é a utilização do discurso acerca da participação significando apenas a legitimação de determinações dos órgãos de governo. Participar não se limita a opinar sobre um determinado projeto, supõe também a vontade de intervir na produção do espaço. A participação cidadã, como já vimos afirmando há mais de uma década, conecta a pessoa com a coisa pública, e isso não deve acontecer apenas nos marcos institucionais do Estado, deve partir da sociedade organizada. Se tivermos em conta o que um dia disse Karl Marx acerca da participação, entenderíamos que todas as atividades individuais passariam a ter um sentido público, já que diriam respeito à gestão coletiva da comunidade. É preciso romper com o cotidiano a que somos submetidos. Precisamos escapar de uma racionalidade construída e que cumpre o objetivo de obscurecer o processo de mercadificação da vida, porque dentro dessa lógica tudo se transformou em mercadoria. Se tudo é mercadoria, tudo é factível de hierarquização – o que fortalece o processo de dominação. Essa lógica hierarquizante criadora de rankings alcança múltiplas dimensões que não se referem apenas a empresas ou cidades, mas até mesmo a comunidade científica acaba incorporando esses mesmos valores e colocando-se em competição: revistas científicas, programas de pós-graduação, pesquisadores, tudo é pontuado e classificado em forma de ranking. Esse é o mecanismo do poder instituído, que transforma tudo em mercadoria. No próximo capítulo focaremos a própria cidade como mercadoria e as consequências disso para a população.

CAPÍTULO 2

A mercadificação das cidades A propriedade privada tornou-nos tão estúpidos e limitados, que um objeto só é nosso quando o possuímos. Karl Marx

A ideia da cidade ligada à indústria habitava a vida e o imaginário social há tempos. Assim sendo, também no cinema é possível identificarmos filmes que apresentam certas agruras da sociedade industrial. Fritz Lang, com o filme Metropolis (1927), apresentou-nos uma metrópole “futurista” do ano de 2026, em que a população se dividia em duas classes: a elite dominante e a classe operária. É possível percebermos que a desigualdade ganha contornos distópicos, em que a classe operária era condenada desde seu nascimento a habitar os subsolos e eram escravos das máquinas que controlavam a Metropolis. Outro filme que também aborda tal tema é Blade Runner (1982), filme dirigido por Ridley Scott, que se passaria no ano de 2019 em Los Angeles. Tratava-se de uma cidade marcada pela poluição, por problemas climáticos, pelo consumismo, pela superpopulação e por profunda desigualdade social. São filmes de ficção, entretanto muitos dos elementos presentes nas películas encontravam-se no imaginário social e, atualmente, têm profunda conexão com a realidade vivenciada nas cidades. A distopia que se apresentava no filme de Fritz Lang hoje ganha contornos de realidade ao pensarmos que um número elevado de pessoas é obrigado a viver em favelas sem condições mínimas de higiene, sem infraestrutura básica e muitas vezes em áreas de risco. Em geral, ao falarmos em área de risco, nos remetemos à ocupação de encostas ou às áreas sujeitas a alagamento, mas, além disso, a grande maioria das favelas brasileiras encontra-se dominada e controlada por traficantes de drogas ou milicianos. Aliás, diferentemente de antes, agora há locais em que observamos uma associa

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ção entre traficantes e milicianos (no Brasil, infelizmente, as experiências ruins ganham sempre maior complexidade, dificultando ainda mais as soluções); ou seja, esse fato também deve ser considerado risco! Não é algo menor ter seu acesso à moradia controlado por traficantes e milicianos ou ter que pagar mais caro pelos botijões de gás ou pelo transporte dentro das favelas, porque uma parte do dinheiro tem que ser destinada a esses grupos que controlam e exploram esses moradores. Poderíamos acrescentar, ainda, a falta de liberdade de ir e vir, já que em locais controlados por determinadas facções a entrada de pessoas que habitem localidades dominadas por facções rivais é proibida, mas não desenvolveremos essa discussão sobre o tráfico de drogas e as milícias neste momento.1 Outro exemplo de distopia poderia ser o crescente problema do déficit habitacional para a população de baixa remuneração. Se lembrarmos dos projetos de reformas urbanas promovidas pelos governantes ensejados pelos empresários ligados aos setores da construção civil e dos mercados imobiliário e financeiro, cada vez mais os inquilinos vivenciam maiores dificuldades para arcar com os aumentos dos aluguéis. Não é à toa que a palavra “gentrificação” passou a aparecer não só na produção acadêmica, mas também nos jornais e nos debates cotidianos travados pelos movimentos sociais. Já tenho me debruçado sobre essa temática em outras publicações (FERREIRA, 2019a, 2019b, 2018, 2017, 2013; FERREIRA;2 PIZZOLANTE;3 SINISCALCHI,4 2020). Mas, antes de aprofundarmo-nos nesse debate, cumpre retomar a ideia de que a cidade foi transformada em mercadoria. Não nos resta dúvida de que o espaço é produzido a partir de determinadas intencionalidades. Sendo assim, há um conjunto de forças em disputa, já que o espaço não é neutro, estando permeado por ideologias e relações de poder. Foi tendo isso em conta que Lefebvre desenvolveu a noção do espaço como produto-produtor das práticas sociais. Diante disso, o espaço não é apenas o resultado das práticas humanas interagindo 1 A quem desejar aprofundar o estudo nessa temática sugerimos, por exemplo: Pontes (2009), Cipriani (2017), Souza (1996, 1998), Machado (s.d.), Zaluar e Barcellos (2013). 2 Coordenador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Espaço e Metropolização). 3 Membro do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Espaço e Metropolização). 4 Membro do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Espaço e Metropolização).

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com a natureza, mas se faz determinante desde o princípio desta relação, interferindo de forma direta nos mais variados níveis da vida social, seja na disposição material das trocas da sociedade, seja na elaboração de suas mentalidades, leis e identidades (FERREIRA; PIZZOLANTE; SINISCALCHI, 2020). O processo de produção do espaço se realiza incorporando elementos no âmbito da materialidade e da imaterialidade. Em outras palavras, referimo-nos às formas materialmente construídas, mas também à construção das subjetividades, do imaginário, das normas e dos comportamentos. Isso porque o espaço traz em si simbolismos e representações que influenciam fortemente as percepções de mundo e, consequentemente, as ações dos atores sociais em sua produção. Ou seja, não se trata de pensar, como anteriormente, na organização do espaço – e consequentemente no espaço como depositário de coisas e pessoas –, mas sim na produção do espaço. Isso, de alguma maneira, contribuiu para que a geógrafa Ana Fani Alessandri Carlos (1994, 2011, 2015a, 2015b, 2018) visse a produção do espaço como condição, meio e produto de realização do ciclo do capital. Ao refletir sobre o entendimento do espaço como condição, a geógrafa afirmou que envolveria e superaria a ideia de materialidade, visto que as atividades humanas “envolvem um conjunto de ações, bem como uma dialética espaço-tempo, […] pois o espaço como materialidade envolve necessidades/representações e desejos, bem como relações de classe e poder, que percorrem todo o processo” (CARLOS, 2018, p. 24). Ao referir-se ao entendimento do espaço como meio, apresenta-o como “mediação da ação que produz a vida, descortinando a sociedade em ato”. E, finalmente, afirma que o entendimento do espaço como produto “revela o mundo e a própria realidade social em suas contradições, limites e possibilidades” (CARLOS, 2018, p. 25). O resultado dessa produção desigual traz consigo a segregação espacial,5 por exemplo.

5 Relembrando: o espaço é um produto social e é produzido com intencionalidades, logo a dimensão social está contida na dimensão espacial. Por isso, não utilizaremos expressões como “socioespacial” ou “sócio-espacial” para reafirmar aquilo que já está dado na própria maneira de como conceituamos o espaço. Até porque parece-nos inadequado e fora de propósito refletir sobre o espaço sem considerar as relações sociais que o produziram, que agem, reagem e interagem no espaço a partir de interesses políticos, econômicos e culturais.

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Quando pensamos na ideia de produção do espaço da maneira como foi desenvolvida por Lefebvre, em geral remetemo-nos ao seu livro intitulado A produção do espaço; entretanto, convém lembrarmo-nos também de uma obra anterior, de 1970, cujo título é A revolução urbana. Ali, Lefebvre afirmou que “a produção do espaço, em si, não é nova. Os grupos dominantes sempre produziram este ou aquele espaço particular. […] O novo é a produção global e total do espaço social” (p. 142-143). Trata-se, então, de considerarmos três níveis da produção do espaço: o imediato, o global e o total. No primeiro identificamos tanto o monopólio da produção quanto o monopólio da propriedade, e por isso o sociólogo Paulo Cesar Xavier Pereira e o arquiteto Guilherme Moreira Petrella (2018, p. 8) afirmam que, “na produção imediata, diferentemente do capital na produção fabril em geral, parte de sua reprodução se realiza como valorização real e parte como valorização fictícia pela capitalização da renda”. Em nível global, tornam-se perceptíveis as formas predominantes da acumulação capitalista mundial, dentre as quais a exploração da força de trabalho e a espoliação, que ganha múltiplas dimensões. Seja a forma mais direta, como na retomada de imóveis com atraso de pagamento junto aos bancos, ou outras de percepção mais difícil, como a lógica do endividamento através do crédito para produção e para o consumo de unidades imobiliárias, ou como a lógica de apropriação da natureza – e aqui o sentido é de dominação mesmo –, reduzida aos limites da propriedade. E, finalmente, no nível total, que se refere ao nível da reprodução social; ou seja, “a produção total do espaço, portanto, figura-se como momento essencial de reflexão e de prática” (PEREIRA; PETRELLA, 2018, p. 9-10). É também o momento da possibilidade de construção de práticas de luta e de resistência. O desenvolvimento da noção de produção do espaço trouxe à tona as contradições que estão em jogo no processo da produção social capitalista, que se expandiu para todas as dimensões da vida. Assim, o mundo da mercadoria incorporou a tudo e a todos; passamos a experimentar e vivenciar, como definimos há tempos, a mercadificação6 da vida. Esclarecendo melhor, a alienação segue se realizando a partir da

6 O geógrafo David Harvey vem utilizando a expressão “mercadorização”, tendo, basicamente, o mesmo sentido da expressão “mercadificação” (utilizada por mim desde 2007).

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construção de um mundo em que a imagem e as representações ganham uma dimensão cada vez maior, em que verdadeiramente não é o consumidor ou a mercadoria consumida que importa, mas a representação do consumidor e do próprio ato de consumir. Tudo isso é amplificado se tivermos em conta que tanto as mercadorias quanto o ato de consumir ganham formas e sentidos de espetacularização. Por tudo isso é que, atualmente, preferimos falar em mercadificação em lugar de mercantilização, sendo que a primeira incorpora a segunda – mas vai além. Ao falarmos de mercadificação do espaço e mercadificação da cidade, temos em conta que agora, mais do que em qualquer momento anterior, a relação entre determinado espaço e a sua imagem construída é modificada, pois é o espaço – transformado em produto – que passa a representar a imagem, e não o contrário. Trata-se de entender que o espaço é consumido pelo que ele representa, ou seja, o que representa frequentar determinado lugar. Em outras palavras, mercadificação do espaço significa dizer que ele é mercantilizado, mas que essa mercadoria que estamos comprando é cada vez mais um estilo de vida, uma experiência cotidiana diferenciada: compramos antes o que representa ter aquilo, fazer parte daquilo.7 O século XXI trouxe com ele fatos novos, mas também permanências; processos novos, outros revisitados, e ainda outros que se constituem e se realizam a partir de processos anteriores. A metropolização do espaço faz parte desse momento e contribui para a realização de profundas transformações das formas, da estrutura e das dinâmicas urbanas. Este processo não exclui aquilo que o filósofo francês Henri Lefebvre denominou, no início da década de 1970, de urbanização completa da sociedade. Aliás, o processo de metropolização do espaço está para o momento atual assim como a urbanização da sociedade esteve para aquele momento.

7 Como dissemos, o mundo da mercadoria incorporou a tudo e a todos; com a explosão da utilização das redes sociais, surge com mais força um grupo de pessoas que consegue ganhar muito dinheiro: os influencers. São pessoas que têm o poder de interferir fortemente na decisão de compra do outro através de seu conhecimento, autoridade ou por sua posição de respeito frente ao público. É impressionante como as empresas têm investido nesse tipo de publicidade para seus produtos. Tudo é vendido, desde a roupa usada ou indicada pelo influencer até os lugares frequentados ou indicados por ele.

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Ao falarmos em metropolização do espaço, devemos, de início, remeter-nos a alguns fatos que darão sentido à análise a ser efetuada. O primeiro é a consideração de que o fenômeno urbano, ligado à industrialização e à aglomeração (complexos urbano-industriais), marca de décadas anteriores, vem dando lugar ao fenômeno metropolitano, ligado à desindustrialização, à desconcentração e à “explosão” da metrópole; isto é, à difusão dos códigos metropolitanos, num sentido amplo dessa imagem, em um espaço muito além dos limites das regiões metropolitanas oficialmente delimitadas. O segundo fato refere-se à consideração de que diversos outros processos espaciais estarão afetados por essa transformação de urbano para urbano-metropolitano ou, simplesmente, metropolitano. A própria gestão territorial e as relações urbano-rurais são processos percebidos como fortemente marcados pela metropolização do espaço.

Metropolização do espaço: profundas alterações na lógica e na dinâmica de produção do espaço A metropolização marca o momento atual da produção do espaço e das práticas espaciais que nele se realizam, como já dito. Contribui, assim, para a realização de profundas transformações das formas, estrutura e dinâmicas espaciais da urbanização vivenciada até então. A metropolização incorpora algumas características anteriores e desenvolve outras. Trata-se, por exemplo, como nos lembrou a geógrafa Sandra Lencioni, da grande intensidade de fluxos de pessoas, mercadorias e capitais, do crescimento das atividades de serviços e de cada vez maior demanda do trabalho imaterial, da concentração de atividades de gestão e administração, da cada vez maior utilização de tecnologias de informação e comunicação, de grande variedade de atividades econômicas com maior concentração de serviços de ordem superior, da exacerbação da associação entre o capital financeiro, promotores imobiliários e da indústria da construção, da produção de um modo de viver e de consumo que se espelha no perfil da metrópole (LENCIONI, 2013, 2006; FERREIRA, 2014, 2013a, 2011; RUA, 2013). A metropolização do espaço não se restringe, pois, às regiões metropolitanas, já que incorpora as cidades médias, as pequenas e

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o chamado “mundo” rural, hoje muito transformado e incorporando urbanidades. O processo de metropolização imprime características metropolitanas ao espaço, trata-se da alteração das estruturas preexistentes, sendo esses espaços metrópoles ou não; ou seja, trata-se da transcendência das características metropolitanas a todo o espaço. Se o fenômeno urbano tomou o planeta, se se vive uma sociedade urbana (e não nos referimos aqui apenas ao domínio edificado), atualmente experimentamos um processo de metropolização do espaço (FERREIRA, 2014, 2011). Não devemos esquecer que ocorre a incorporação de uma dimensão cultural. A esfera do consumo ganha proporções antes desconhecidas, provocando uma alteração profunda da cultura mercantil, que atinge todas as esferas da vida. Os hábitos culturais e os valores urbanos típicos da metrópole se difundem para além dela, chegando a todo o espaço, em um processo de mercadificação generalizada. A intensificação da capitalização do campo e a diversificação das atividades que lá se realizam, associadas ao desenvolvimento das tecnologias de comunicação e à informação, e também dos transportes aproximaram ainda mais as relações urbano-rurais. Assim, o processo de metropolização do espaço chega a áreas cada vez mais distantes, difundindo a cultura urbana, os valores urbanos, as normas e práticas sociais dominantes da metrópole. Como afirmamos anteriormente, experimentamos um momento do urbano que já não é mais tão marcado pelas lógicas espaciais da indústria, algo que provoca transformações nas cidades e no campo, pois o predomínio de uma economia baseada nesse setor produtivo abriu lugar àquela mais ligada aos serviços. Se cada vez mais é comum ouvirmos falar em desindustrialização, isso não significa dizer que a indústria se afasta daquilo que chamamos de urbano, que, nos dias atuais, não pode ser tratado como sinônimo de cidade. O urbano está ligado à condição geral do processo de reprodução do capital, sendo simultaneamente produto desse processo. O processo de metropolização contribui para importante elevação dos preços do solo urbano. Tal fato leva as construtoras à procura de áreas cada vez mais distantes para construção. Para falar desse espraiamento exacerbado da malha urbana, inúmeros autores passaram a se referir à

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cidade difusa,8 cidade dispersa,9 cidade-região,10 cidade ilimitada,11 mega-cidade,12 hiper-cidade13 etc. A dispersão a que nos referimos tem evidentemente elementos de continuidade, que têm várias raízes, dentre elas, como afirma Capel (2003, p. 212), os processos de descentralização que se iniciaram no século XIX, reforçados por inovações técnicas (ferrovia, telégrafo, telefone, bondes, ônibus), que permitiam a localização periférica de atividades que antes se situavam no centro urbano. Outro fator que contribuiu para o espraiamento da malha urbana, como mencionado anteriormente, foi o aumento do preço do solo e da habitação nas áreas consolidadas. As construtoras, associadas aos promotores imobiliários, investem na compra de terras em áreas mais afastadas, consolidando uma espécie de carteira ou um banco de terra. Isso dá aos seus proprietários o monopólio da área de expansão da cidade. As áreas de expansão e de investimento nas cidades (e, já agora, também em algumas áreas do campo) acabam sendo definidas pelos proprietários fundiários, pelas construtoras e pelos promotores imobiliários. O processo de metropolização tem, simultaneamente, levado ao adensamento de determinadas áreas, ao espraiamento da metrópole e às operações urbanas de renovação ou de revitalizações (como preferem alguns), que acabam por gerar forte gentrificação – processo sobre o qual nos debruçaremos mais à frente. Vivenciamos uma transformação que incorpora as dimensões econômica e social, em que grandes investimentos da esfera pública viabilizam a expansão das áreas centrais, articuladas à reprodução do capital financeiro, que produz segregação e apropriação desigual do espaço urbano. Grande parte dos projetos de revitalização, que alteram as características do lugar criando novas fronteiras urbanas, acaba levando a processos de gentrificação (FERREIRA, 2013b).

8 Indovina (1990), Capel (2002, 2003). 9 Monclús (1998). 10 Lencioni (1996, 2006, 2013), Téran (1999), dentre outros. 11 Nel.lo (1998). 12 Amplamente abordada por Sandra Lencioni na conferência de abertura do II Simpósio Internacional sobre Metropolização do Espaço, Gestão Territorial e Relações Urbano-Rurais. 13 Corboz (1995).

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No início do século XXI, percebemos que cada vez mais os governantes procuram construir uma marca para suas cidades; contudo, o “sucesso” de uma determinada cidade acaba provocando um movimento que objetiva copiar aquilo que teria dado certo, levando à homogeneização das formas-conteúdo, pois acreditam que assim atrairiam investidores. Tal contradição aponta para uma espécie de urbanização banalizada e, consequentemente, para a banalização do espaço (FERREIRA, 2013b). Há, simultaneamente, um discurso que defende a manutenção dos centros históricos – vislumbrando o potencial de exploração turística dessas áreas – e o crescimento do número de condomínios fechados e shopping centers. Os velhos centros não são vistos como opção de moradia para os habitantes da cidade, mas como possibilidade para o crescimento de atividades comerciais e turísticas. Muitas cidades têm seguido as definições de uma política empreendedorista, investindo em infraestrutura ligada às atividades turísticas, muitas vezes aproveitando-se de eventos internacionais, como o fizeram Barcelona (Jogos Olímpicos, em 1992, e Fórum de las Culturas, em 2004), Lisboa (Expo’98) ou Sevilha (Expo’92); o Rio de Janeiro seguiu o mesmo caminho: Jogos Pan-Americanos 2007, Copa do Mundo de Futebol 2014, Olimpíadas 2016. Assim, agências multilaterais – BID, Banco Mundial, PNUD, Agência Habitat, dentre outras – e consultores internacionais acabam construindo ideários e modelos que afirmam que as cidades devem se comportar como empresas e adotar uma postura vencedora em um mundo que é visto como um mercado no qual cidades competem entre si (VAINER, 2000). Dessa forma, esse ideário defende que grandes projetos urbanos, recuperação de centros históricos, parcerias público-privadas e revitalizações fomentam a produtividade e a competitividade da cidade, assegurando – graças à atração de investimentos, turistas e grandes eventos – uma inserção de sucesso no mundo globalizado. Além disso, surgem também como opção a criação de parques associados a grandes projetos imobiliários de condomínios de alto poder aquisitivo. A parte do tecido urbano avaliada pelos empreendedores como degradada ou habitada por grupos sociais de baixo poder aquisitivo, como velhas áreas fabris e armazéns em antigas zonas portuárias, tornam-se áreas potenciais para passarem por refuncionalizações e para se transformarem em novos complexos de consumo. Nesse sentido, todo lugar acaba tornando-se uma

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cópia, em que surgem paisagens urbanas cada vez mais repetitivas que se descolam da própria realidade e história do lugar. Isso se caracteriza como uma espécie de urbanização banalizada. A espetacularização na administração pública e a pura valorização da imagem, e não da essência dos problemas sociais e econômicos, acabam sendo extremamente prejudiciais em longo prazo, ainda que, muitas vezes, no curto prazo possam ser obtidos benefícios políticos pelos governantes. Diferentemente do ideário dos grandes projetos, o denominado urbanismo tático tem como objetivo equacionar problemas pontuais das grandes cidades. Seguindo essa perspectiva, inicialmente como teste, a prefeitura de Nova York fechou a área da Times Square aos automóveis nos finais de semana. Além disso, dispôs inúmeras cadeiras e bancos espalhados por toda a área. A experiência foi um sucesso e desde 2014 o fechamento foi definitivo, criando um amplo espaço de lazer. Essas ações, ao contrário dos grandes projetos, caracterizam-se por ser iniciativas de pequeno porte e baixo custo. São, muitas vezes, propostas simples como o alargamento de calçadas, que tomam espaço dos automóveis e o transferem aos pedestres. Essas ideias, na maioria das vezes, vêm de laboratórios de pesquisa ligados às universidades ou a organizações não governamentais (ONGs), mas outras vezes esses laboratórios são acionados pelos próprios moradores do bairro, que gostariam de melhorar a qualidade de vida do lugar. Várias cidades mundo afora estão fazendo uso do urbanismo tático. Até mesmo Barcelona, que exportou o denominado “Modelo Barcelona” para inúmeras cidades, tem se utilizado desse modelo. A prefeitura do Rio de Janeiro incorporou a ideia através do Programa Paradas Cariocas, que permite a implantação de decks no passeio público em locais destinados a vagas para estacionamento. Essas áreas podem ser equipadas com elementos de mobiliário urbano, com função recreativa, cultural, informativa ou educacional. Trata-se de uma outra perspectiva de intervenção nas cidades, e sabemos que a cidade foi transformada em mercadoria. A cidade é a materialização de um momento histórico. O espaço torna-se cada vez mais o meio de reprodução das relações sociais; sendo hierarquizado, objeto de investimentos públicos e privados, e também reserva de valor. Talvez a grande batalha deva centrar-se na necessidade de romper com a ocultação e buscar desvelar essa dominação do espaço.

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No atual momento do capitalismo mundial, o movimento da reprodução aponta para a superação da hegemonia do capital industrial pelo capital financeiro, levando ao acirramento do processo de produção desigual do espaço (FERREIRA, 2014). Vivemos, agora, um momento marcado pela desconcentração do setor produtivo tradicional, pelo desenvolvimento de novos ramos da economia e pela centralização do capital na metrópole (LENCIONI, 1991). O capitalismo se expressa na metrópole contemporânea a partir da associação entre capital imobiliário e capital financeiro. Percebemos a passagem do âmago da acumulação capitalista – anteriormente centrado no setor fabril – para a própria produção do espaço urbano. Ao refletir sobre essa transição, Sandra Lencioni (2017, p. 61) afirma que “a financeirização invadiu a vida cotidiana, e as finanças se transformaram no deus dos tempos atuais. As rendas nesse regime de acumulação patrimonial, sempre acompanhadas de especulações, se expressam com esplendor nas metrópoles, praças financeiras por excelência e expressão magnífica das atividades do setor imobiliário”. Baseado nessa afirmação, o geógrafo Felipe Rangel Tavares14 (2020) acredita que a lógica imobiliário-financeira que determina a reprodução do capital traduz-se no crescimento da participação do setor de serviços, na expansão da produção imobiliária para abrigar esses serviços (principalmente através dos edifícios corporativos e torres de escritórios), nos projetos de renovação de bairros (que acabam por gerar gentrificação) e na criação de edifícios como reserva de valor. Inclusive, o geógrafo Daniel Sanfelici (2013) aponta um crescimento exacerbado de investimentos no mercado imobiliário, tendo observado também que “o volume de unidades habitacionais financiadas no Brasil saltou de uma média de 250 mil por ano, entre 2000 e 2005, para mais de 1 milhão em 2010”. É possível afirmarmos que, desde a última década do século XX, experimentamos a exacerbação de uma espécie de razão neoliberal. Assim, percebemos a mercadificação de todas as dimensões da vida.15 Apesar do discurso da importância do livre mercado e da não interferência do Estado, temos percebido que o papel do Estado tem sido fundamental

14 Membro do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Espaço e Metropolização). 15 Dardot e Laval (2016), Goldman (1977), Lefebvre (1991).

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para a realização do projeto neoliberal – não nos referimos apenas aos projetos de privatização das empresas estatais, mas também à ampliação e à definição das regras, normas e leis de atuação das empresas –, além de cumprir o papel de gestor das consequências e tensões geradas por essa lógica de mercadificação.. A lógica dinâmica do capitalismo contribuiu para a criação de instrumentos financeiros que permitissem ao investidor – inclusive em ações, muitas vezes, altamente especulativas – a obtenção de parcelas dos rendimentos produzidos através dos negócios imobiliários. Para tanto, o Estado tem sempre colaborado intensamente, e a criação de instrumentos como os Fundos de Investimento Imobiliários e os Certificados de Recebíveis Imobiliários cumprem importante papel. A produção do espaço urbano encontra-se atrelada a um movimento que intensificou a aproximação entre a financeirização do setor imobiliário, que apresenta cada vez mais acesso a recursos mediante emissão de papéis no mercado de capitais, e a oferta de megaempreendimentos, sejam eles prédios corporativos ou residenciais. Evidentemente, essa poderosa associação – que tem por trás grandes investidores – faz uso massivo de toda forma de propaganda, que procura vender não apenas uma planta corporativa ou um apartamento, mas a vanguarda empresarial ou um incrível e moderno modo de vida. O resultado, ao contrário do mundo maravilhoso que é vendido pela publicidade, tem exposto cada vez mais a segregação espacial e o crescimento da gentrificação. Não à toa, Sanfelici (2013) acredita que “a escalada de preços de imóveis, a crescente fragmentação do espaço urbano, a truculência das remoções de favelas e o endividamento ascendente de parcelas da população indicam que o crédito imobiliário e o estímulo à aquisição da casa própria mediante o endividamento estão longe de constituírem soluções viáveis para o problema habitacional”. Para pôr em prática a reprodução do capital ancorada, atualmente, na lógica imobiliário-financeira, o Estado teve um papel muito importante. Assim, parece adequado dedicarmos algumas breves palavras acerca desse jogo de poder, que tem sido investigado, principalmente, através de autores que se utilizam da categoria analítica território e seu desdobramento: a gestão territorial.

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Gestão territorial: reunindo olhares aparentemente contraditórios Quando nos voltamos para o debate acerca da categoria território, lidamos com pelo menos duas dimensões analíticas ainda bastante separadas. A primeira, bastante formal, e tradicional na Geografia, refere-se mais à dimensão político-administrativa e aos distintos níveis do poder oficial; a segunda, mais simbólica, relaciona-se com outras formas de exercício do poder, não oficial (muitas vezes a ele se contrapondo) e se realizando nos interstícios daquele primeiro. O geógrafo Rogério Haesbaert (1997, p. 42), para conceituar território, escreveu que o território envolve sempre, simultaneamente, “mas em diferentes graus de correspondência e intensidade, uma dimensão simbólica, cultural, através de uma identidade territorial atribuída pelos grupos sociais, como forma de ‘controle simbólico’ sobre o espaço onde vivem (sendo também, portanto, uma forma de apropriação), e uma dimensão mais concreta, de caráter político-disciplinar: a apropriação e ordenação do espaço como forma de domínio e disciplinarização dos indivíduos”. Haesbaert, assim, remete-nos às dimensões variadas que compõem esse conceito. A dimensão simbólico-cultural, em que o território é visto, sobretudo, como produto da apropriação e valorização simbólica de um grupo sobre seu espaço, tem sido pouco capturada pelos atores hegemônicos na elaboração de políticas de gestão; mesmo que se fale de “participação popular”, ela é pouco definidora das ações encetadas. A segunda dimensão, a jurídico-política, é a mais difundida entre os gestores e planejadores. Nela, o território é visto como um espaço delimitado e controlado, através do qual se exerce um determinado poder, na maioria das vezes visto como o poder político do Estado. Assumimos essa clássica definição do autor supracitado como base para as breves discussões sobre gestão, porque ela vai iluminar as argumentações que vão contrapor e complementar visões que, até o momento, parecem antagônicas. Muito marcado pelo pensamento de Lefebvre, em Haesbaert (1997, 2004, 2005), podemos ver o destaque da interação entre dominação (de caráter mais funcional-instrumental) e apropriação (de caráter mais simbólico), em que o primeiro refere-se a um processo mais concreto, funcional e vinculado ao valor de troca, enquanto o segundo seria muito mais simbólico, carregado das marcas do “vivido”, do valor de uso.

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O que se apresenta como pressuposto básico é que há uma dimensão territorial oficial, afetada pelas diversas crises que marcam o momento atual do estado capitalista do neoliberalismo, incluindo as crises de governança, que convive com outras dimensões simbólico-culturais do território, ora a elas se opondo, como na repressão a diversas manifestações dos movimentos sociais, ora reconhecendo-as, como em algumas reivindicações quilombolas, das seringueiras, do MST, ou, mais recentemente, do movimento Vidas Negras Importam. Seguindo Haesbaert (2001), é preciso considerar, nesse papel des-re-territorializador do Estado, diversos elementos, como, por exemplo, os atores sociais em jogo e seus objetivos políticos, desde os grupos hegemônicos (político-militares e econômicos), em suas reestruturações conservadoras, até os movimentos sociais de resistência. O Estado participa ativamente das decisões locacionais das empresas, por exemplo na esfera municipal ou estadual, ao oferecer vantagens competitivas para investimentos privados, ou a eles se associando em parcerias público-privadas. Incluem-se aí as escalas internas e externas da ação oficial. As repercussões diferenciadas têm relação direta com a capacidade de influência dos atores e agentes sociais nas esferas de governo. Nessas repercussões deve ser incluída até mesmo uma certa perda de poder em termos de controle territorial ao legitimar a proliferação interna de territórios de segurança privada e a atuação de milícias. Tanto uma forma como a outra podem servir ao Estado-Nação, a empresas privadas ou aos seus próprios interesses, muitas vezes se apropriando de espaços públicos. Além das colocações de Rogério Haesbaert a respeito do território como base para a discussão de gestão territorial, vale lembrar também da contribuição do geógrafo Marcelo Lopes de Souza, que em diversas obras (1995 e 2013, por exemplo) apresentou significativas contribuições à importância do território no estudo das relações de poder. Para esse autor, território é, “fundamentalmente, um espaço definido e delimitado por e a partir das relações de poder” (SOUZA, 1995, p. 78). Para que não se torne uma definição memorizável e vazia em si mesma, ele retoma essa reflexão (2013, p. 79) para discutir o poder à luz de autores como Foucault, Arendt e Castoriadis. Acrescenta, ainda, que “também o poder só se exerce com referência a um território e, muito frequentemente, por meio de um território” (SOUZA, 2013, p. 87). Podem ser vagos ou pouco perceptíveis,

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mas sempre haverá algum tipo de limite espacial na concretização desse poder. Assim, falar de gestão territorial deve implicar lidar com múltiplos atores e agentes, múltiplas escalas de ação política e múltiplos papéis por eles representados. A seguir, sem maior aprofundamento, procuraremos apenas apontar o movimento trilhado na execução das formas de planejamento e gestão territorial. O planejamento foi pensado, há tempos, a partir de uma ótica tecnocrática. Do final do século XIX até, aproximadamente, 1940 foi possível identificar um plano, executado por sucessivos governos, de melhoramento e embelezamento das cidades. Tendo em mente as duas maiores cidades do Brasil, no Rio de Janeiro o Plano Pereira Passos foi totalmente cumprido, já os Planos Agache (Rio) e Prestes Maia (São Paulo), em torno dos anos 1930, foram parcialmente cumpridos, mais especificamente apenas em suas propostas viárias. A partir de então, os problemas urbanos vão ganhando maior dimensão, e a elite econômica já não é capaz de impor seus objetivos como anteriormente. A questão habitacional cada vez mais se mostrava como problema fundamental. Foi durante o regime militar que a atividade de planejamento urbano mais se desenvolveu no Brasil, justamente com o lançamento do II PND (Plano Nacional e Desenvolvimento) no governo Geisel, em 1973, SERFHAU – Serviço Federal de Habitação e Urbanismo e CNPU (Com. Nacional de Política Urbana, em 1974), por exemplo. De 1964 a 1986, a atuação do BNH (Banco Nacional de Habitação) procurou trabalhar com dois grandes objetivos da política habitacional: alavancar o crescimento econômico através de efeitos multiplicadores gerados pela construção civil e atender à demanda habitacional da população de baixa renda. Entretanto, apesar de ter havido um boom imobiliário, ele não contemplou a população de baixa renda. Pôde-se observar o crescimento das favelas, dos loteamentos irregulares e de uma periferia em condições bastante precárias. Tal como pudemos observar, também, durante o mais recente programa habitacional – Minha Casa, Minha Vida16 –, a especulação no que

16 Programa lançado em março de 2009 pelo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

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tange ao preço do solo urbano dificultou ainda mais o êxito dos programas habitacionais. A partir de 1970, convive-se com o chamado “crescimento desordenado” e com a criação de programas alternativos que se baseavam na autoconstrução. Para dar conta do “caos urbano”, o planejamento foi tomado como solução, entretanto os planos foram criados por especialistas distantes e pouco engajados na realidade social do lugar. Segundo Maricato (2000), essas ideias dissimulavam os conflitos e os verdadeiros motores desse “caos”. Naquele período – e hoje não mudou muito –, as obras de infraestrutura urbana alimentaram a especulação fundiária, e não a democratização do acesso à terra visando à moradia. Houve um maior controle nas áreas mais nobres da cidade, inclusive tendo havido políticas de remoção de favelas, mas, nas áreas desvalorizadas para o mercado, a lei por vezes pôde ser transgredida. Assim, a gestão urbana, juntamente com os investimentos públicos, de certa maneira aprofundou a concentração de renda e a desigualdade. Os investimentos são feitos prioritariamente nas áreas nobres das cidades; nesse sentido, a cidade da elite definitivamente representa a cidade real (MARICATO, 2000). Além de ocultar privilégios, isso possui um papel econômico ligado à geração da renda imobiliária. No final da década de 1980, já livres do regime ditatorial militar, presenciou-se forte mobilização popular, que acabou por promover o encontro entre as organizações dos movimentos populares, partidos políticos, entidades profissionais, sindicatos, ONGs e pesquisadores universitários, o que posteriormente contribuiu para a construção do debate acerca da necessidade de uma reforma urbana. Embora esse debate tenha sido intenso, resultou em apenas um capítulo com dois parágrafos em nossa nova constituição. Fato é que nos anos 2000 esse capítulo torna-se fortalecido pelo Estatuto da Cidade, que tem no Plano Diretor elemento fundamental. Na década de 1990, ainda sobre a recente onda de mobilização, duras críticas são feitas às formas anteriores de planejamento e gestão, inclusive muitos defendiam o fim do planejamento urbano e regional. Atacou-se o planejamento por ser rígido, burocrático, muitas vezes excessivamente ambicioso e incapaz de organizar verdadeiramente a estrutura urbana, já que o fazia privilegiando os interesses da elite.

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Alguns autores propõem o que denominaram “planejamento urbano alternativo”, que, ancorado na possibilidade de participação popular na produção do Plano Diretor, poderia mudar a maneira de planejar a cidade. Evidentemente, a margem de manobra não era radical, pois falava da necessidade de priorizar a função social da propriedade, e não em sua negação. Ou seja, em nenhum momento se colocou em questão a propriedade privada e como ela é geradora de condições desiguais. O planejamento urbano alternativo baseia-se na busca da justiça social, dessa maneira, preocupa-se com a melhor distribuição de investimentos públicos em infraestrutura, objetivando minimizar a segregação residencial. Mas a verdade é que, da confecção da Nova Constituição Brasileira até a criação da lei que regulamenta os dois artigos acerca da reforma urbana (conhecida como Estatuto da Cidade), se passou muito tempo, algo em torno de 13 anos, e isso acabou, de alguma forma, desmobilizando a população. Durante esse período, ganhou força uma forma de gestão que nega toda a lógica do planejamento urbano alternativo: o planejamento estratégico. Não é por acaso que essa forma de planejamento ganha mais força, a partir da última década do século XX, com o fortalecimento da política neoliberal. Através da elaboração de um Plano Estratégico, que tem origem na lógica empresarial e visa ao lucro (e, nesse sentido, nada melhor do que convocar os empresários para fazê-lo!) – as empresas têm planos estratégicos –, procura-se definir objetivos e políticas para conseguir acordos, coordenar as concessionárias privadas, dinamizar a economia e tornar as cidades competitivas em escala internacional. As parcerias público-privadas (PPP) são altamente utilizadas, com o discurso de que com isso haveria economia de dinheiro público, além de transmitir a ideia de que as empresas privadas são sempre mais eficientes do que as empresas públicas, o que não é necessariamente verdade. Embora não tenhamos o objetivo de nos aprofundarmos neste debate, convém lembrar de uma afirmação do geógrafo inglês David Harvey (2020) de que na política de utilização das parcerias público-privadas, o governo arca com os custos e os empresários ficam com os lucros17. As cidades passam a competir entre si para atrair investimentos, e muitas vezes isso resulta em isenções de impostos e na criação de leis que fragilizam ain17 Para maior aprofundamento sobre esse debate, ver Ferreira (2013b, 2011).

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da mais a condição dos trabalhadores. Contudo, essa lógica de planejamento e gestão não é facilmente desvelada, pois, devido à propaganda e toda uma produção de city marketing, essa política é traduzida como algo benéfico para os cidadãos. Planos como esses têm produzido mundo afora projetos, revitalizações e obras espetaculares que se espelham (muitas vezes são cópias fiéis) em “modelos de sucesso”, o que tem produzido, como mencionamos anteriormente, mais do mesmo, ou seja, uma espécie de urbanização banalizada, e, mais do que isso, uma banalização do espaço (FERREIRA, 2013b). Portanto, não é de admirar-nos que em várias cidades do mundo se vivencie o processo denominado gentrificação.

Gentrificação: a complexificação de um conceito A dinâmica do processo de metropolização tem contribuído para a transformação do mercado do solo urbano, que passa por uma valorização assustadora, elevando os preços a números nunca antes imaginados. Torna-se clara, então, a importância da propriedade privada do solo como “condição indispensável à produção imobiliária formal” (LENCIONI, 2013). Tal elevação de preços faz com que as construtoras busquem áreas mais distantes para construção, incorporando novas áreas à lógica de mercado da metrópole, o que acaba por estender a área urbana indefinidamente – fato que obriga os moradores a realizarem grandes deslocamentos diariamente. As áreas de expansão e de investimentos nas cidades acabam sendo definidas pelos proprietários fundiários, pelas construtoras e pelos promotores imobiliários. Esse movimento fez a geógrafa Sandra Lencioni (2013) afirmar que as centralidades “são produzidas muito menos pelas necessidades da cidade desempenhar as funções de comércio e de serviços, e, muito mais, devido às necessidades da reprodução do capital do setor imobiliário. Em suma, a multicentralidade não é um produto das funções urbanas, mas dos investimentos imobiliários”. Como afirmamos anteriormente, o processo de metropolização tem, simultaneamente, levado ao adensamento de determinadas áreas, ao espraiamento da metrópole e às operações urbanas de renovação urbana ou de revitalizações, que acabam por gerar forte gentrificação. Contudo,

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antes de entrarmos no debate propriamente dito acerca da gentrificação, é preciso ainda fazermos algumas considerações. Atualmente o circuito de realização do capital redefine o sentido do espaço, visto que passa a assumir a condição de produto imobiliário (CARLOS, 2013). Vivenciamos uma transformação que incorpora as dimensões econômica e social, em que grandes investimentos da esfera pública viabilizam a criação e expansão das áreas centrais, articuladas à reprodução do capital financeiro, que produz segregação e apropriação desigual do espaço urbano. A melhor compreensão do atual momento da produção imobiliária e da reconfiguração das cidades contemporâneas passa por dois importantes pressupostos: o processo de produção, no capitalismo, transformou o espaço em mercadoria; e o espaço deve ser entendido como produto e produtor. Evidentemente, tais pressupostos estão interligados. Em se tratando do primeiro, o solo urbano permite a realização do valor, e esse processo se dá quando da negociação do proprietário no mercado imobiliário, seja com a venda ou com o aluguel do imóvel. Quando falamos em renda no âmbito do solo urbano, é preciso termos em mente que se trata de uma forma específica, que guarda maior complexidade em relação à renda da terra. Sabemos, a partir de Marx, que a propriedade da terra é tratada como categoria histórica e que sua existência é pressuposto da própria existência da renda da terra. Há inúmeros elementos envolvidos e que, por isso, agregam à renda uma valorização para além do montante que seria cobrado pelo proprietário da terra pelo seu arrendamento. Estamos falando da “diferença entre a renda da terra propriamente dita e o juro do capital fixo incorporado ao solo, que pode constituir um agregado da renda da terra” (CARLOS, 2011, p. 97). Trata-se, por exemplo, de levar em conta a infraestrutura que o governo (nas esferas federal, estadual e municipal) introduz em determinadas localidades da cidade e que acaba por valorizá-las, independentemente de qualquer intervenção dos proprietários. Além disso, a própria divulgação pela imprensa de um grande projeto do governo para determinada área gera uma especulação, que acaba por interferir bastante na realização da renda do solo urbano. Acreditamos ser por isso que a geógrafa Ana Fani A. Carlos (2011, p. 97) afirma que, “junto com a terra, o capital alheio incorporado a ela cai em mãos do dono da terra e o juro de dito capital engrossa a renda”; havendo, assim, “uma diferença substantiva entre ren-

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da e juro que podem aparecer sob a mesma quantidade de dinheiro paga ao dono da terra, mas com origens diferenciadas, auferidas pela condição de monopólio da terra”. Quanto ao segundo pressuposto, o espaço é um produto social, estando sempre em construção. Cada momento histórico contribuirá para a produção do espaço, por isso, esse produto é sempre condição para uma nova produção. Nesse sentido, os processos de produção e reprodução encontram-se imbricados, sendo empobrecedor – no que tange à análise – pensá-los de forma separada. Significa pensar em duas dimensões da reprodução do espaço: primeiro o espaço produzido como mercadoria, que traz elementos como propriedade privada do solo urbano, homogeneização, fragmentação e hierarquização; mas também é preciso ter em conta aquela dimensão em que a cidade é produzida como condição para a realização do ciclo de acumulação do capital. Em outras palavras, o espaço urbano (e mais concretamente a cidade) se reproduz continuamente como condição geral do processo de valorização gerado no capitalismo (CARLOS, 2011, 1994). O objetivo disso é a viabilização atual dos processos de produção, circulação, distribuição, troca e consumo. Isso permite o desenvolvimento do ciclo do capital, possibilitando a continuidade da produção, sendo assim sua reprodução (CARLOS, 2011). Tendo clareza disso, podemos agora debruçar-nos acerca da gentrificação com mais cuidado e vagar. Cabe, aqui, fazer um breve esclarecimento acerca da expressão gentrificação, que nasce do termo inglês gentrification, cunhado por Ruth Glass (1963), para esclarecer o repovoamento, por famílias de classe média, que vinha acontecendo em bairros desvalorizados de Londres na década de 1960, levando à transformação do perfil dos moradores. Atualmente, usa-se a expressão gentrificação como resultado dos projetos de “revitalização”, de “renovação”, de “recuperação” ou de “requalificação” (seja lá qual for a expressão utilizada) de locais degradados a partir de iniciativas públicas e privadas. Trata-se de um fenômeno de natureza multidimensional, que reúne modernização e deslocamento; ou seja, referimo-nos à modernização e à melhoria de antigos prédios associada ao desenvolvimento de atividades culturais em determinadas áreas residenciais, levando ao deslocamento dos antigos moradores. A questão é que, após o investimento em infraestrutura, há uma maior valorização do lugar; assim, observamos que os antigos moradores não resistem ao encare-

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cimento do local, tendo que buscar outra área com custo de vida mais baixo. Se, inicialmente, a gentrificação ligava-se ao mercado residencial, o enobrecimento dos lugares acabou incorporando áreas de lazer com complexos culturais voltados também para o turismo. Assim, o geógrafo belga Mathieu Van Criekingen (2007) define dois tipos de gentrificação – residencial e de consumo – que levam à produção glamourizada do espaço através da maior sofisticação dos ambientes. Evidentemente, há formas de gentrificação que mesclam as dimensões residencial e de consumo, como, por exemplo, Barcelona. A mídia exerce importante papel ao promover esses locais, ajudando a criar um discurso hegemônico acerca do lugar, que contribui cada vez mais para a atração de consumidores. Os profissionais de publicidade contratados têm importante papel, visto que elaboram discursos que dão sustentação aos projetos propostos. Procuram incutir no imaginário social, inclusive até no dos mais despossuídos e excluídos do seu usufruto, que esses projetos trarão mais “qualidade de vida” aos habitantes. Inicialmente, quando se falava em gentrificação, tratava-se de referir-se a antigas áreas centrais degradadas que receberam investimentos públicos e privados, criando novos nichos de mercado para os negócios e para habitação. Entretanto, o conceito de gentrificação tem se tornado muito mais complexo e muito mais amplo. É importante afirmarmos que as conceituações são construídas a partir do surgimento do processo em questão, mas os fenômenos não são estáticos no tempo. O pesquisador deve interpretar o que está acontecendo e incorporar as mudanças observadas à anterior conceituação; caso contrário, o conceito torna-se uma espécie de camisa de força, que contribui antes para ocultar do que revelar, ou passa a ter uma validade muito curta. Alguns autores seguem limitando o conceito de gentrificação à construção original. A antropóloga de Barcelona Irene Sabaté Muriel (2019, p. 234), por exemplo, acredita que a utilização do conceito de maneira pouco delimitada acaba fazendo com que se trate como gentrificação algo que não guarda a característica de retorno das classes médias do subúrbio em direção às áreas centrais das cidades anglo-saxônicas. Parece-nos exageradamente limitadora tal perspectiva, pois desse modo seria muito difícil trabalhar com o processo de gentrificação em outros lugares, inclusive nas cidades do sul da Europa, que não se caracterizaram pelo

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movimento da classe média para bairros periurbanos. Também é possível observarmos a utilização de outras expressões, como, por exemplo: especulação e expulsão de inquilinos; extração das rendas do trabalho mediante à imposição de aluguéis abusivos. Ou seja, não se trata de outra expressão para gentrificação, mas são basicamente frases explicativas... O sociólogo Paulo Cesar Xavier Pereira (2020, p. 2) também pontua o esvaziamento do sentido da expressão gentrificação. Acredita ele que a sua associação, em âmbito global, a expressões como revitalização, remodelação, restauração ou renovação urbana acaba por retirar da categoria gentrificação a ideia de conflito social e de contradição. Reforça ainda que, desconectado da noção de rent gap,18 esse processo se torna ainda mais esvaziado. Não nos resta dúvida de que Pereira (2020) apresenta elementos importantes em sua análise; por exemplo, quando apresenta a fundamental relação entre gentrificação, rent gap e a teoria do valor. Contudo o autor expõe conclusões com as quais não concordamos. Afirma Pereira (2020, p. 3) que “a palavra gentrificação ganhou atributos de positividade ao descrever os melhoramentos urbanos como resultado de intervenção público-privada capaz de escolher os melhores usos e distinguir essas áreas na cidade, por isso essa noção perde força de contestação e seu caráter de denúncia se esvazia ao prevalecer como resultado os efeitos práticos e materiais da reurbanização”. Aqui temos um problema, pois não é novidade a apropriação (e distorção) pelos atores sociais – sejam os empreendedores imobiliários e os empresários do setor construtivo, sejam os governantes – de construções teóricas feitas pela academia para explicar os processos em curso. Recentemente, na cidade do Rio de Janeiro, presenciamos uma espécie de “rapto ideológico” da expressão “legado olímpico”. Esse termo foi cunhado pela academia para criticar a proposta do projeto olímpico para a cidade do Rio de Janeiro, que não estaria trazendo benefícios para os moradores da cidade. A equipe da prefeitura, alguns deputados e alguns vereadores passaram a utilizar a expressão para justificar as obras pelas quais passava a cidade. Nem por isso precisamos criar outra expressão para continuar fazendo a crítica; ao contrário, continuamos inquerindo qual seria o “legado olímpico” (termo que passou a ser de conhecimento do grande público) para mostrar como os governantes estavam ludibriando os cidadãos. Passamos a questionar o legado 18 Em breve esclareceremos o significado dessa expressão.

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proposto pelo projeto olímpico e, mais do que isso, a inquerir à população sobre seu legado sonhado. Nas próximas páginas esperamos deixar ainda mais claro por que acreditamos que a expressão gentrificação não deve ser abandonada; e mais do que isso, por que sua definição precisa ser complexificada, além de aproveitarmos, também, o fato de o termo já ser de conhecimento e uso pelo cidadão comum e pelos movimentos sociais. Defendemos firmemente a ideia de que os processos estão em movimento e que cabe aos pesquisadores analisar aquilo que está de fato acontecendo. A construção teórica deve servir para nos ajudar a compreender o que está sendo investigado; por isso defendemos a ideia de que é preciso continuar retrabalhando os conceitos, emprestando-lhes maior complexidade para que sigam nos ajudando a compreender as mudanças pelas quais estamos passando nas cidades. Essa perspectiva do fazer científico não é nova, temos vários exemplos de categorias analíticas que tiveram suas definições alteradas e bastante complexificadas, como, por exemplo: território, espaço, movimento social etc. Ademais, como nos lembra Lencioni (2006, p. 42), “os conceitos são concebidos e devem revelar universalidade, por assim dizer, expressar abrangência sem ter que expressar todas as particularidades do que está sendo considerado”. Até porque, de outra maneira, acabariam servindo apenas para explicar algo extremamente específico e único em suas características. Por isso, “a pertinência de um conceito não é medida porque ele contém todas as propriedades, aspectos, características ou movimento do que está sendo considerado, mas porque ele exprime sua essência” (LENCIONI, 2006, p. 42). Em se tratando da gentrificação, acreditamos que está em sua essência o caráter espoliativo, já que – como afirmamos anteriormente –, após o investimento em infraestrutura em novas construções ou a divulgação de um grande projeto de renovação urbana, há uma maior valorização de determinado lugar; assim, os antigos moradores não resistem ao encarecimento do local, tendo que buscar outra área com custo de vida mais baixo. Posto isso, debruçar-nos-emos sobre o processo de gentrificação e suas possíveis variações. Dependendo do país, da região e do lugar na cidade, o processo ganha determinadas características, mas sempre tendo como resultado – em menor ou maior grau – a expulsão dos antigos moradores e frequentadores. Esta certeza é que levou o sociólogo alemão Andrej Holm (2010, p. 320) a afirmar que “a gentrificação é qualquer

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processo de revalorização de uma parte da cidade, ligado a estratégias imobiliárias e econômicas que elevam o valor e/ou a estratégias políticas de revalorização, que requerem uma substituição de população para ter êxito. A expulsão é a essência da gentrificação, não um efeito colateral indesejado”. Desenvolveremos mais à frente essa ideia de não se tratar de um efeito colateral, posto que é estrategicamente planejada. Há vários fatores que colaboram para o processo de gentrificação, entretanto cumpre importante papel a emergência do denominado rent gap em bairros históricos do centro da cidade (mas também para além dessas áreas) – conforme desenvolvido pelo geógrafo estadunidense Neil Smith (1979, 1987) –, em que a disparidade entre o nível de renda da terra potencial, tendo em vista sua localização e a possibilidade de retorno econômico de um projeto futuro, e a real renda da terra capitalizada sob o seu uso atual são fundamentais para a implementação de programas de revitalização ou renovação urbana. A expectativa da possibilidade de conseguir um uso mais rentável acaba gerando já uma especulação. Esse fenômeno vem se repetindo nas cidades mundo afora. Em certos bairros de Lisboa e de Barcelona (mas não apenas nessas duas cidades), por exemplo, observamos que a expulsão dos moradores não se dá através da substituição populacional. Na verdade, os moradores estão sendo substituídos por uma espécie de população flutuante de turistas; ou seja, há a expulsão, mas não por novos moradores fixos. Em se tratando de Lisboa, esse perfil de gentrificação turística afetou fortemente determinados bairros, como Alfama, Mouraria, Castelo, Baixa, Chiado, Madragoa e Bairro Alto. Estas localidades, com característica de bairros históricos e com habitação e comércio tradicionais, estão sendo fortemente transformadas; percebemos a expansão de funções de lazer, recreação e de toda forma de alojamentos turísticos. Aliás, houve uma expansão desregulada do alojamento local, uma implementação de programas de atração de investimento estrangeiro e da financeirização da habitação. O geógrafo português Luís Mendes19 demonstrou preocupação com o que vem testemunhando em Lisboa e afirmou que “a gentrificação tornou-se madura e afigura-se com contornos mais agressivos, o que implica desalojamento dos pobres e uma perspectiva da habitação esvaziada da 19 Sampaio (2018).

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noção de direito, para ganhar o estatuto de mero ativo financeiro para atração de investimento estrangeiro”. Os preços dos imóveis em Lisboa e arredores seguem em ascensão – mesmo durante a pandemia que assolou a humanidade em 2020 –, fato que tem contribuído para a expulsão de moradores da capital portuguesa. Se observarmos a variação da média do preço do m2 em Lisboa de dezembro de 2018 a junho de 2020, percebemos que em um ano e meio passou de €4.161 para €4.66420; uma variação de 10,78%, mas em alguns bairros das áreas centrais a variação chegou a mais de 22%. Parece que a combinação dos fluxos de capital no mercado imobiliário com a mudança econômica e política para o turismo explica melhor a gentrificação que vem ocorrendo em Lisboa. Não à toa, Mendes (2017, p. 490) enaltece o fato de que o “aumento galopante do preço da habitação para uso permanente ou temporário (arrendamento ou aluguel) tem empurrado para fora as pessoas pobres e os imigrantes, de modo que atrações turísticas, restaurantes, bares de entretenimento e lojas para visitantes e turistas dominam agora grande parte dos distritos centrais”. A cidade do Porto, em Portugal, também passa por semelhante processo, entretanto a velha área central já experimentava um processo de relativo esvaziamento de seu conjunto arquitetônico devido à degradação dos imóveis. A opção pela denominada “economia de serviços” demonstrou a cada vez maior dependência da atividade turística. Essa escolha tem provocado a saída de famílias inteiras, além de contribuir para a destruição da antiga economia de bairro através do fechamento de mercearias, barbearias, associações culturais, tabacarias, ateliês de jovens artistas, pequenas padarias e açougues. Observamos uma intensa mudança no perfil dos moradores, do comércio e dos serviços. Torna-se comum ouvir diariamente pessoas falando outras línguas, que passam dois ou três dias na cidade e logo vão embora. O barulho das malas de rodinhas tornou-se algo normal no dia a dia daqueles habitantes que insistem em permanecer ali. Tudo isso é acompanhado pelo crescimento do número dos alojamentos locais alugados por curto prazo. A verdade é que o turismo tem tido forte impacto na cidade do Porto, levando à substituição de boa parte da população 20 Fonte: https://www.idealista.pt/media/relatorios-preco-habitacao/venda/lisboa/lisboa/.

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local. O arquiteto português Pedro Levi Bismarck,21 do Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo, afirma que se trata de um processo claro e que “basta ver os despejos que têm ocorrido um pouco por todo o lado, sobretudo nas ‘ilhas’, mas também a subida generalizada e incomportável dos arrendamentos que impossibilita um acesso qualificado à habitação”. De 2001 a 2011, por exemplo, o Centro Histórico do Porto perdeu cerca de 30% da população residente.22 O pesquisador acredita que a cidade, cada vez mais gentrificada e turistificada, “é produto de uma economia que recusa qualquer planificação ou intervenção do Estado, que aceita a lógica do mercado como sendo única e natural, assim como a conversão da habitação num ativo financeiro a ser rentabilizado e não num direito de todos”. Dá-se a produção do espaço em um momento em que a racionalidade neoliberal induz à produção da cidade através da exacerbação da dimensão econômica em detrimento das outras dimensões da vida. Essa racionalidade colabora com a expropriação dos bens comuns e com o desmantelamento das instituições públicas. Em Barcelona, o setor turístico gera mais de 20 milhões de euros por dia, isto equivale a cerca de 12% do seu PIB, ou mais de 20% se contarmos com o impacto indireto23. Os bairros do distrito da Ciutat Vella em Barcelona, que é composto pelos bairros El Raval, El Barri Gotic, La Barceloneta e Sant Pere, Santa Caterina i la Ribera, também passou por forte processo de gentrificação turística. Aproximadamente 52% dos imóveis são ocupados por turistas ou por moradores de curta duração. Em termos numéricos, no final de 2015 existiam na cidade aproximadamente 15 mil apartamentos inscritos no Airbnb (ou seja, 2,5% dos domicílios). O problema torna-se mais evidente se mirarmos as áreas centrais da cidade, já que na Ciutat Vella esse número sobe para cerca de 10%. No Barri Gotic, por exemplo e assustadoramente, a proporção é de aproximadamente 17% de apartamentos registrados no Airbnb e mais da metade dos edifícios desse bairro – o equivalente a 52% – contém andares turísticos. Os antigos inquilinos viram-se em meio à não renovação dos contratos de aluguel e à degradação proposital das habitações, estratégias que têm sido usadas para forçar os moradores a sair. Os pesquisadores espa-

21 Sampaio (2018). 22 Alves (2017). 23 Barcelona… (2016).

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nhóis Agustín Cócola Gant e Antonio López Gay calcularam que 17,6% da população abandonou o bairro entre 2006 e 2016.24 Os problemas no Barri Gotic vão além da questão da moradia, pois o comércio e a vida cotidiana são bastante afetados. O comércio de bairro, como a farmácia, a padaria e o açougue, é substituído por negócios voltados ao turismo, o que também dificulta a permanência dos antigos moradores. A cidade do Rio de Janeiro experimenta processo semelhante principalmente e de maneira mais intensa, a partir dos anos 1990; no entanto, por diversas razões, as propostas de revitalização acabaram não se concretizando plenamente. Contudo, um alinhamento dos governos federal, estadual e municipal, a partir da primeira década do século XXI, pôs em prática a transformação da zona portuária e arredores. Para tanto é utilizada uma estratégia agressiva de marketing, em que o que está sendo vendido – como procuramos ter deixado claro anteriormente – é a cidade. As administrações municipais propuseram ao longo desses anos vários projetos, alguns não se concretizaram, outros concretizaram-se em parte. Houve uma proposta, que chegou a ter um projeto apresentado por um arquiteto francês, de construção de uma filial do Museu Guggenheim, que se localizaria na baía de Guanabara (seria um museu flutuante). Houve a demolição do viaduto da Perimetral (eixo de circulação importante na área central da cidade) para devolver a vista para o mar, tão marcante na história inicial da cidade. Um dos objetivos desse projeto era a construção de habitações para as classes média e média alta da sociedade, além de shoppings e restaurantes na parte mais nobre desse litoral. Havia a proposta de construção de casas de espetáculo, museus de design, edifícios de escritórios e lojas de grifes internacionais. Todavia, vale acrescentar que a cidade do Rio de Janeiro, com sua frente marítima belíssima e com forte apelo turístico – lembremos de Copacabana, Ipanema, Leblon e, mais recentemente, Barra da Tijuca –, pode ter deixado em dúvidas o empresariado no que se refere à possibilidade de investir na velha zona portuária, que se tornou obsoleta há algum tempo. Ou talvez tenha mesmo sido uma estratégia de rent gap – em outras palavras, uma estratégia para gerar uma considerável redução do preço do m2 da área. Assim, houve pouca pressão dos promotores imobiliários junto aos governos anteriores para a implementação de obras naquela área. 24 Barcelona… (2016).

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Fato é que, ao final da primeira década do século XXI, o alinhamento das três esferas de governo em associação com os interesses das grandes construtoras, do setor financeiro e dos promotores imobiliários voltou os olhos para a zona portuária da cidade. Não foi coincidência o fato de termos vários eventos internacionais sediados na cidade nesse período: Rock in Rio de 2011; Terceira Cúpula da Terra (a Rio+20) (2012) – nesse ano a cidade tornou-se também patrimônio da humanidade da UNESCO na categoria “Paisagem cultural” –; Jornada Mundial da Juventude (2013); Copa do Mundo de Futebol (2014) e Olimpíadas de 2016. A prefeitura colocou em ação um projeto de “revitalização da zona portuária” – chamado pela prefeitura de Projeto de Revitalização Porto Maravilha (Figura 3). A ação teve como objetivo a atração de empresas, a melhoria da infraestrutura turística do porto e a edificação de inúmeros prédios corporativos (Figura 4). Durante o lançamento do projeto, falou-se que a revitalização beneficiaria algo em torno de 400 mil turistas, que anualmente chegam ao porto do Rio, e também os cerca de 25 mil moradores, que poderiam aproveitar as transformações para lazer e entretenimento (fato que obviamente não ocorreu – até porque estamos apontando para a ocorrência da gentrificação). Figura 3. Área demarcada do Projeto Porto Maravilha

Fonte: Grupo CCR (2011)

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Outra localidade, bem próxima do Píer Mauá, que também recebeu investimentos foi o Morro da Conceição. Situado no centro antigo da cidade, com o casario em arquitetura colonial portuguesa, é visto como grande potencial para o turismo e sofreu intervenções em sua rede elétrica (que passou a ser subterrânea), suas ruas (que foram reformadas) e o casario histórico, que foi em parte restaurado. Inclusive, constava do projeto a construção de um teleférico que ligaria o Museu de Arte do Rio (MAR) ao Morro da Conceição; as gôndolas partiriam do terraço e iriam direto ao morro, entretanto esta parte do projeto (ainda) não foi realizada. A história do Rio de Janeiro está representada em exposição permanente, e o teleférico faria com que a visitação saísse das salas da Pinacoteca e chegasse a pontos históricos – então transformados em pontos turísticos prontos para serem “vendidos” – como a Pedra do Sal, a Fortaleza da Conceição, a Igreja de São Francisco da Prainha e o Observatório do Valongo. Contudo, perguntamo-nos se aqueles que lá moram, em um bairro tranquilo no coração da cidade, gostariam de ter seu cotidiano invadido por inúmeros turistas, ou se ocorrerá ali o que já ocorreu em outros centros históricos, que, depois de valorizados, têm impossibilitado a permanência de seus antigos moradores no local. Figura 4. Prédios corporativos na zona portuária da cidade do Rio de Janeiro

Fonte: Fonte: https://diariodoporto.com.br/porto-maravilha-em-crise-o-futuro-nas-maos-da-caixa/

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A parceria público-privada foi utilizada para a implementação do Museu do Amanhã (Figura 5), destinando-se a exposições interativas, com enfoque no tema da relação do ser humano com o planeta. Uma estratégia econômica que se aproveitou de um momento em que se fala cada vez mais em aquecimento global, efeito estufa, sustentabilidades etc. Seguindo o caminho trilhado por outros prefeitos, ou seja, a utilização da denominada arquitetura de assinatura, o Museu do Amanhã foi projetado pelo arquiteto espanhol Santiago Calatrava. O prefeito carioca foi ao encontro da máxima que vê esses grandes projetos arquitetônicos de grande monumentalidade como alavancadores de investimentos para as cidades. Figura 5. Museu do Amanhã: projeto de Santiago Calatrava para a zona portuária carioca

Fonte: Belisário (2016)

Não temos o objetivo de aprofundar-nos com mais pormenores sobre as características da gentrificação ocorrida nessas cidades a que nos referimos até agora. Utilizamo-las como exemplo apenas para começar a deixar claro que – ao contrário do que muitos defendem – o processo de gentrificação não é algo natural, mas planejado.

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A gentrificação não é um efeito colateral indesejado Ao contrário do que possa parecer, nem todos os discursos veem a gentrificação como um problema. Ao debruçar-nos sobre o debate público acerca da gentrificação, é possível observar inúmeros discursos, como, por exemplo, o negador, o minimizador, o positivador e o criminalizador.25 O primeiro simplesmente nega a existência da gentrificação atualmente, afirmando que esse processo aconteceu em determinada localidade de Londres na década de 1960. O segundo exemplo – como seu próprio nome deixa transparecer – minimiza uma característica importante da gentrificação, que é a expulsão dos antigos moradores. Aqui se enaltece a revalorização do bairro, um renascimento, logo vê o fenômeno como algo bom, já que foca nas reformas dos prédios e praças deteriorados. O terceiro não nega a ocorrência da gentrificação, mas a vê como algo extremamente positivo, visto que o investimento nos bairros “problemáticos” melhora as condições do local, e, se para isso os antigos “moradores problemáticos” tiverem que sair, isso ocorre para um bem maior (?!). Finalmente, o quarto discurso chega a ser ainda mais absurdo e muitas vezes vem associado aos outros três: “a gentrificação não existe e é apenas um termo inventado pela extrema esquerda, pelos comunistas”. É impressionante ouvir uma afirmação como essa, embora no Brasil, desde 2019, estejamos diante de um governo para o qual qualquer posição contrária àquela defendida por eles “é coisa de comunista”. Tempos sombrios... Mas por que será que esse processo gera tanto debate? Contra ou favor? Bom ou ruim? Traz benefícios ou malefícios? Talvez possamos entender melhor tudo isso se percebermos que a gentrificação é um processo que se materializa no lugar, mas há inúmeros atores e agentes por trás desse processo e há, inclusive, um projeto de cidade. Por isso, na Introdução desta obra enaltecemos a importância de trabalharmos com a tríade analítica materialização-substrução-projeção. Partimos do que se apresenta a nós como formas construídas, mas é preciso investigar o que está por trás dessas formas e que projetos de mundo lhes dão sustentação. Não é à toa que, para Smith (1979), a gentrificação é um movimento de 25 Para um maior aprofundamento desse debate, sugerimos ver VOLMER, Lisa. Strategien gegen Gentrifizierung. Berlin: Schmetterling Verlag GmbH, 2018.

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retorno à cidade, todavia não um retorno das pessoas, mas do capital. Aliás, o próprio movimento de suburbanização nas cidades estadunidenses foi fruto de um projeto dos atores sociais que viram esse processo como um grande negócio; e claro, a mídia cumpriu um importante papel na construção desse imaginário social. O mesmo se dá hoje com o discurso de retorno ao centro. É como dizem os investidores e especuladores: business is business! Como afirmamos anteriormente, vivemos uma intensa mercadificação do espaço, e esse processo ocorre a partir de relações de poder bastante desiguais, como, por exemplo, entre a indústria da construção associada aos promotores imobiliários e as classes mais pobres de inquilinos. É importante que tenhamos isso em conta, pois de outra maneira corremos o risco de criarmos “culpados” de uma forma simplificadora. Lembremos que é preciso ir além das formas e discursos que se apresentam na “superfície”; temos de desvelar aquilo e aqueles que se encontram por trás do que se apresenta. Em outras palavras, não é o caso de culparmos a abertura da nova cafeteria ou da nova butique, que são vistas como responsáveis pela mudança nos estilos e hábitos de consumo dos lugares. Além disso, como nos lembra a pesquisadora alemã de História Urbana Lisa Vollmer (2019, p. 32), se entendermos a gentrificação apenas como embelezamento dos bairros, então a solução contra a gentrificação seria a luta contra essas melhorias, o que seria um absurdo. Analisando a partir dessa lógica simplificadora, acabamos cegados ou, parafraseando Marx (2007, 2005), passamos a ver um mundo encantado, invertido e de cabeça para baixo. Acabamos percebendo o que nos cerca de forma fetichizada; não vemos o jogo de relações sociais, mas apenas coisas: a cafeteria, a butique, a praça, o novo calçamento etc. Se desejamos realmente lutar contra a gentrificação, é necessário entendê-la como estratégia imobiliária e, inclusive, de governo. Isso se dá pois, na sociedade capitalista, a moradia não é pensada com o objetivo de atender às necessidades habitacionais de quem precisa, já que a moradia é vista como uma mercadoria e, como tal, deve gerar retorno econômico. Assim, quando uma empresa faz um investimento na compra de um terreno ou na construção de um empreendimento imobiliário, o faz apostando que, com a futura venda ou com o futuro aluguel, conseguirá um retorno econômico vantajoso. Como, em geral, se trata de um alto investimento, cada vez mais observamos a associação das empresas

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construtoras e dos promotores imobiliários com empresas do mercado financeiro. Aliás, tem sido cada vez mais comum que grandes corporações se envolvam no mercado imobiliário como forma de realização do capital. Além disso, as grandes corporações têm cada vez mais diversificado suas atividades e se tornado mais poderosas e influentes sobre as políticas de governo, visto que muitas delas têm mais volume de capital do que o PIB de inúmeros países. A Vanguard Group (o maior fundo de investimentos dos EUA) controla algumas das empresas mais poderosas do mundo, como Bank of America, Citigroup, JP Morgan Chase & Co, Santander, Deutsche Bank, HSBC, Google, Microsoft, Apple, Facebook, Amazon, Johnson & Johnson, GSK - Glacso Smith Kline, Siemens, Bayer, Unilever, Basf, Du Pont, Monsanto, Exxon Mobil, Shell, General Electric, Boeing, General Motors, Volkswagen, Rolls Royce, Coca Cola, Pepsico, Nestlé etc. Retornando ao debate anterior, sobre investimentos na compra de um terreno ou na construção de um empreendimento imobiliário, outros investimentos importantes dizem respeito ao entorno desses imóveis; nesse caso, os governos locais cumprem um importante papel, seja na reforma ou construção de parques e praças, seja na melhoria do sistema de transportes. Em outras palavras, a implementação de melhorias na infraestrutura é fundamental para o “sucesso” dos projetos de revitalização ou de renovação urbana. Não é novidade o fato de que os investimentos se distribuem espacialmente de forma desigual na cidade. Mas é preciso que nosso olhar investigativo nos permita enxergar aquilo que não está explícito, que se mantém oculto. É preciso perceber que a degradação de determinados bairros, o abandono de prédios, de antigos armazéns ou galpões e até o aumento da criminalidade são também parte estratégica do sistema capitalista de produção do espaço. É preciso ter em conta que possa ter estado em curso uma estratégia para gerar uma considerável redução do preço do m2 dessas áreas. Referimo-nos ao conceito de rent gap, já mencionado anteriormente. Ao provocar a desvalorização de determinado bairro ou área da cidade, simultaneamente se produz a possibilidade de – com um investimento menor do empresariado – conseguir um retorno econômico bem maior através da implementação de projetos de revitalização. Isso porque os custos para aquisição de imóveis pelos empresários no local em questão tornam-se muito mais baixos.

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Para que o movimento de revalorização econômica se ponha em curso, são utilizadas estratégias de revalorização simbólica, estética e cultural. Nesse sentido, a criação de espaços de consumo cumpre um importante papel para a revalorização desses lugares. Tudo isso é muito bem planejado, pois os investidores precisam ter certeza de que a mudança de imagem do bairro atrairá a classe média para lá viver ou para frequentar os novos bares, cafés, restaurantes e lojas. Para que a gentrificação aconteça, ocorre a mobilização de vários atores e agentes, e alguns acabam envolvidos na realização do processo sem a menor intenção de que ele ocorra. Poderíamos afirmar que a “forma clássica” do desenvolvimento da gentrificação passaria por três fases, embora a implementação da gentrificação não necessariamente obedeça esse caminho. Na primeira fase dessa “forma clássica”, jovens que não têm como pagar aluguéis mais elevados procuram localidades com imóveis em pior estado de conservação ou com perfil de rendimento mais baixo. Muitas vezes esses locais são menos visados e possibilitam o surgimento de empreendimentos “ditos criativos”, como a criação de ateliês, a organização de festas informais, a abertura de um bar com características diferenciadas etc. Essas mudanças pelas quais passa o bairro ou o local levam-nos à segunda fase: a alteração da percepção do bairro. Esse tipo de mudança é apresentado por Vollmer (2019, p. 79) como a transformação da percepção do bairro como pobre e perigoso para a de um local jovem e interessante. Os jornais e revistas passam a fazer reportagens sobre os eventos e atrativos do bairro e isso cada vez atrai mais atenção dos novos frequentadores. Aqui parece importante acrescentar uma observação advinda de Andrej Holm (2010), que afirma que “os bairros que vivem dinâmicas de revalorização deixam de ser recipientes da atividade cultural e passam a ser um objeto cultural em si mesmos”. Como já viemos deixando claro anteriormente, o Estado cumpre também um papel importante em todo esse processo. O fato é que há uma associação entre o setor financeiro, a indústria da construção, os promotores imobiliários e a própria classe política (seja representando o interesse desses atores, seja investindo pessoalmente naqueles bairros com o objetivo de receber elevado retorno a seus investimentos).

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As obras de infraestrutura e de embelezamento promovidas pelos representantes do governo também são fundamentais; aliás, são elas que cumprem o papel de incentivar os empresários e transmitir a eles a certeza de que não haverá riscos para seus investimentos. O Projeto Porto Maravilha no Rio de Janeiro é um bom exemplo disso, e obviamente não é o único. A terceira fase corresponde à passagem do que se denomina capital cultural (ligado ao espaço) para capital econômico. Nesta fase é fácil imaginar o que acontece: os promotores imobiliários utilizam a mídia para “vender” a nova imagem do local, e os proprietários dos imóveis aumentam os preços dos aluguéis. Evidentemente toda essa transformação acaba por levar à expulsão da população antiga do bairro, que não consegue mais arcar com o custo de permanência ali. Eis aqui uma realidade cruel: a população que ali vivia acaba por não se beneficiar da melhoria das condições de vida do lugar, justamente porque não poderá continuar morando lá.

A gentrificação para além da “forma clássica” Como procuramos deixar claro anteriormente, a definição de gentrificação ganhou muito mais complexidade, então o seu desenvolvimento “clássico” também ganhou novas configurações. O processo de gentrificação vai depender de múltiplos fatores, que estão ligados aos distintos contextos locais; em outras palavras, depende do alinhamento político entre as esferas de governo, do nível de implementação da racionalidade neoliberal na gestão pública e, por sua vez, do grau de organização e mobilização da população contra as injustiças sociais. Retomando o debate acerca de como a gentrificação ganha características diferenciadas dependendo da estratégia traçada e da cidade envolvida, podemos afirmar que o processo pode envolver antigas áreas industriais e portuárias ou áreas residenciais. Além disso, múltiplos atores podem estar envolvidos; ou seja, referimo-nos aos investimentos governamentais, às empresas ligadas ao setor da construção, ao mercado financeiro e ao mercado imobiliário propriamente dito. Mesmo sabendo que as cidades são diferentes, vimos escrevendo há tempos sobre aquilo que denominamos banalização do espaço, situação

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em que os projetos de cidades se repetem mundo afora. Aquilo que teria dado certo em determinada cidade é copiado e reproduzido em outros locais, compondo uma espécie de urbanização banalizada. Esses projetos trazem em seu cerne propostas de renovação urbana que exacerbam a gentrificação, que se espalha por várias cidades, gerando insatisfação aos antigos moradores (Figuras 6, 7, 8, 9, 10). Figura 6. Barcelona: passeata nas Ramblas

Fonte: OIT (2018) Figura 7. Barcelona: movimento contra o Airbnb

Fonte: Del Castillo (2017)

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Figura 8. Madrid: manifestação no bairro de Lavapiés

Fonte: Panadero (2018)

Figura 9. Madrid: manifestação contra a gentrificação no bairro de Lavapiés

Fonte: Panadero (2018)

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Figura 10. Pichação na Cidade do México

Fonte: Batallas… (s.d.)

Atualmente, a expressão gentrificação circula não apenas na academia, mas também nas reuniões dos movimentos sociais, na mídia e, por consequência, em órgãos de governo (que, em geral, procuram sempre negar o sentido negativo do processo). Não é mais possível pensar a gentrificação apenas restrita ao velho centro urbano das grandes metrópoles, pois ela se estende para outros bairros da cidade. Além disso, em cidades menores também é possível observar esse fenômeno. Trata-se de um processo que, como afirmamos anteriormente, se estende por cidades mundo afora. A gentrificação tem se expandido por cidades de todos os continentes, e isso levou o urbanista Rowland Atkinson e o geógrafo Gary Bridge (2005) a afirmarem tratar-se do novo colonialismo urbano (Figura 11). Ao que parece, a racionalidade capitalista, buscando escapar das consequências de suas próprias crises de sobreacumulação, percebeu que os investimentos imobiliários servem muito bem à reprodução do capital; em outras palavras, o mercado imobiliário tornou-se um porto seguro e acabou por exacerbar ainda mais fortemente a gentrificação.

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Figura 11. Lisboa: gentrificação é o novo colonialismo

Fonte: Mendes (2016)

Entretanto muitos governantes, e mesmo integrantes da academia, fazem certa distinção quando se trata de uma construção nova. Defendem eles que, ao se construir novas moradias, não está havendo expulsão de quem quer que seja. Nesse caso, não haveria gentrificação. Parece-nos uma posição estreita ou, em certos casos, até mesmo mal-intencionada, pois simplifica o processo e oculta o seu desdobramento. Dependendo do perfil da construção que está sendo edificada, podemos identificar um futuro aumento do preço médio do m² do bairro e, consequentemente, o aumento dos aluguéis. Além disso, os novos residentes – com rendimentos mais elevados – demandarão novos serviços e terão perfil de consumo diferente dos antigos moradores. Ou seja, surgirão novas lojas comerciais e de serviços, que tomarão o lugar do antigo comércio local, para atender à nova demanda. Esses novos negócios servem de incentivo aos investidores que projetam uma maior valorização daquela área no futuro próximo. Soma-se também o fato de que o aumento dos preços fomentado pelas novas construções acaba por gerar o aumento dos aluguéis dos antigos imóveis – muitas vezes reformados e transformados em apartamentos para aluguel de curta duração. Tudo isso acaba por, indire-

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tamente, contribuir para a expulsão dos antigos moradores. Em outras palavras, está claro para nós que o investimento em novas construções – se não estiver acompanhado de uma política de criação de condições de permanência da população original – pode, sim, promover a gentrificação. Temos, então, a construção de um ciclo vicioso em que o surgimento de construções novas promove a abertura de restaurantes mais caros, cafeterias e pequenas butiques, que por sua vez sinalizam aos investidores que vale a pena investir naquele local. Esse movimento dificulta cada vez mais a permanência dos antigos moradores. O crescimento do número de apartamentos para aluguel de curta duração, que tem no Airbnb sua expressão máxima, colabora para a modificação do espaço público e da estrutura comercial dos bairros. Em outras palavras, as alterações são realizadas não para suprir as necessidades dos moradores originais, mas para atender aos hábitos de consumo dos turistas. Evidentemente, como vimos afirmando, isso tem gerado a insatisfação dos antigos residentes em várias cidades, gerando toda forma de protestos (Figuras 12, 13, 14 e 15). Figura 12. Barcelona: “Turista: sua viagem de luxo, minha miséria diária”

Fonte: Galloso (2017)

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Figura 13. Granada: “@tourist: go away!”

Fonte: Caballero (2019)

Figura 14. Barcelona: “Você está destruindo Barcelona. Turista vá embora!”

Fonte: http://www.turismologia.paulamarchesan.com/2018/08/14/turismofobia/

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Figura 15. Manifestação em Lisboa

Fonte: Centenas… (2018)

Não é possível dissociar a gentrificação do atual processo de turistificação. Como procuramos deixar claro anteriormente, trata-se de uma característica diferente que assume a gentrificação. A substituição dos antigos moradores não se dá pela chegada de novos residentes com um perfil de rendimentos mais elevado, mas por visitantes temporários, que demandam serviços e comércios diferentes da anterior necessidade dos moradores. Além disso, inúmeros imóveis passam a ser destinados ao uso turístico, o que reduz a oferta de apartamentos para moradia fixa e acaba encarecendo os aluguéis. Há outro ponto importante a indicar quando as políticas públicas priorizam a atração de turistas como estratégia de captação de recursos, já que o turista não está interessado no cuidado com o bairro, não reivindica melhorias de equipamentos públicos e, em geral, não está preocupado com a preservação do ambiente.26 O caminho da turistificação é ele mesmo paradoxal; esclareço: ao tornar-se objeto de um turismo massivo, a cidade configurou-se ainda mais como mercadoria. Já deixamos claro anteriormente o conceito de merca26 Alguns autores associam a crítica dos moradores das cidades que têm recebido elevado número de turistas à xenofobia, todavia as investigações por mim realizadas identificam que a xenofobia encontra-se mais ligada aos imigrantes e menos aos turistas.

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dificação do espaço, é a partir desse sentido que afirmamos que as cidades são mercadificadas. Seguindo essa racionalidade, os empreendedores procuram “vender” as cidades e, para isso, acabam copiando aquilo que “deu certo” em outros lugares. Com isso, vivenciamos uma homogeneização das paisagens turísticas das cidades, o que se mostra um paradoxo, visto que isso acaba por destruir as especificidades dos lugares; ou seja, aquilo que era o motivo da atração dos turistas – o diferente – acaba sendo transformado e homogeneizado. De alguma forma, trata-se daquilo que denominei banalização do espaço,27 ou, em outras palavras, na produção de uma espécie de urbanização banalizada. Acreditam os arquitetos espanhóis Josep María Montaner e Zaida Muxí (2011, p. 148) que a desculpa do incentivo ao turismo e às obras para os grandes eventos servem para mascarar a especulação. Afirmam eles que “uma cidade posta à disposição do turismo massivo serve para isso: para ser consumida”. Acrescentam ainda que serve “para que os visitantes façam dela o que quiserem, até mesmo esquecendo as rígidas normas de conduta de seus países de origem, sujando-a, usando-a como lixeira e banheiro público, um lugar para gritar e fazer todo barulho que quiserem” (MONTANER; MUXÍ, 2011, p. 152). Tudo isso contribui também para a saída de parte dos antigos residentes. No Brasil, mais explicitamente no Rio de Janeiro, incentivados pelo boom do mercado imobiliário e a promessa do aumento da sensação de segurança oferecida pela criação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP),28 empresários adquiriram imóveis em favelas cariocas para transformá-los em pousadas para turistas. Isso aconteceu de forma geral nas favelas da Zona Sul da cidade, mas na Favela do Vidigal o crescimento foi muito mais intenso. Seguindo a posição de que é preciso complexificar os conceitos, há tempos já se afirma que a Favela do Vidigal passou por um processo de gentrificação. Entretanto, ali não foi necessário a ocorrência de investimentos em melhoria da infraestrutura física, a instalação de uma UPP em 2012 cumpriu importante papel. O discurso era o de que a “ocupação”

27 Esse debate foi realizado no livro A cidade no século XXI: segregação e banalização do espaço (2011), tendo havido, em 2013, uma nova edição ampliada. 28 No Capítulo 3 desenvolveremos um debate acerca da política de segurança.

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permanente das favelas pela polícia diminuiria o controle territorial das facções ligadas ao tráfico de drogas e consequentemente a violência. A mídia deu ampla divulgação ao projeto das UPPs. Associado a isso, o Rio de Janeiro passava por um momento de inúmeros eventos internacionais, como a Copa do Mundo de Futebol (2014) e os Jogos Olímpicos (2016). Observou-se então, com o aumento da sensação de segurança, um aumento da procura por imóveis na Favela do Vidigal. Houve um forte aumento no preço dos imóveis em toda a cidade, principalmente na Zona Sul, e na Favela do Vidigal não foi diferente. O preço dos aluguéis e dos imóveis aumentou bastante, mas houve também forte elevação sobre os preços de bens e serviços dentro da favela. Além disso, novos moradores com um padrão de rendimentos mais elevado demandam bens e serviços de outro nível. Os moradores do Vidigal comungam de uma vista deslumbrante da costa da cidade, o que contribuiu também para o investimento estrangeiro no local. Foram construídas várias pousadas e até um luxuoso hotel – Mirante do Arvrão (Figuras 16, 17 e 18) – no alto do morro com diárias ao custo de R$ 330. No site do hotel é possível descobrir que foi projetado pelo artista plástico brasileiro Hélio Pellegrino, além de construírem um discurso de sua importância para a economia local, mesmo sem deixar claro como. Figura 16. Pousada luxuosa na Favela do Vidigal

Fonte: Booking

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Figura 17. A propaganda da vista deslumbrante

Fonte: Booking Figura 18. Varanda com vista panorâmica

Fonte: Booking

Apesar de haver relatos dos moradores afirmando que são proibidos de construir qualquer coisa no local, houve expansão de imóveis adicionando novos andares para alugar por temporada a turistas.

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Caminhando pelo Vidigal e ouvindo os moradores, há inúmeras histórias de vizinhos que tiveram de se mudar, pois não conseguiam mais arcar com os custos de permanência no local devido ao aumento dos aluguéis. Em outros casos, houve aqueles que eram proprietários e receberam “tão boas ofertas” pelos seus terrenos ou casas que acabaram vendendo-os. Nos dois casos os antigos moradores não conseguiram permanecer na Favela do Vidigal e acabaram se mudando para locais mais distantes. As histórias da inviabilidade de permanência dos antigos moradores têm se repetido com tanta frequência que as associações de moradores têm realizado reuniões com a comunidade para falar da gentrificação. Isso é importante e interessante, já que aqueles que estão vivenciando o problema o identificam como gentrificação (Figuras 19 e 20). E mais, apontam os malefícios trazidos pelo processo, elencando o que percebem como a característica fundamental da gentrificação: a espoliação.29 Portanto, não devemos abrir mão da utilização dessa expressão, que já foi incorporada ao discurso e à luta dos movimentos sociais. Figura 19. A própria população identifica o processo como gentrificação

Fonte: Spira-Cohen (2018)

29 Evidentemente, é possível associar a gentrificação ao discurso acerca da acumulação por espoliação desenvolvido por Harvey (2004, p. 124) a partir da descrição da acumulação primitiva, conforme desenvolvida por Karl Marx.

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Figura 20. “Expulsão branca”

Fonte: A gentrificação… (2018)

Se afirmamos que a expressão turistificação é uma forma característica de gentrificação, o mesmo poderíamos afirmar acerca da expressão estudantificação (studentification). Esta palavra – menos utilizada no Brasil – identificaria uma forma característica de gentrificação associada à abertura de universidades em determinados bairros das cidades. Tal expressão foi cunhada pelo geógrafo inglês Darren Smith (2005, 2006) para caracterizar uma forma específica de gentrificação em que os estudantes se tornam um fator determinante para as mudanças do tecido urbano. Outros autores (por exemplo, HUBBARD, 2008; NAKAZAWA, 2017; SMITH; HOLT, 2007) têm utilizado a partir de então essa denominação, afirmando que, quando o entorno de uma instituição de ensino superior é ocupado por alunos e ocorrem mudanças nos âmbitos sociais, econômicos, físicos e culturais, esse processo deve ser entendido como estudantificação. Como viemos defendendo neste capítulo, preferimos apontar para uma maior abrangência e complexificação do conceito de gentrificação, visto que, em sua essência, o caráter espoliativo é o ponto e o resultado fundamental do processo. Como afirmamos anteriormente, após o investimento em infraestrutura, em novas construções ou em um grande projeto de renovação urbana, há uma maior valorização de determinado lugar, fazendo com que os antigos moradores não consigam se manter ali devido ao encarecimento do custo de vida no local.

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Como tentamos deixar claro, a demanda por novos moradores, com poder aquisitivo mais elevado e com ar mais jovem e moderno, trata-se de uma demanda criada e claramente planejada. Justamente por isso, autores como Vollmer (2018, p. 108) apontam para uma estratégia de política demográfica e, nesse caso, “a promoção da classe média como política demográfica se converte no eixo central da política urbana e da gentrificação promovida pelas administrações públicas”. Em outras palavras, a autora acredita que o que denomina estratégia demográfica é uma política de população que pretende influenciar no tamanho e na estrutura da população. Todavia essa política demográfica encontra-se oculta por trás, inclusive, de discursos de incentivo ao mix social. Ou seja, valorizando a ideia de mistura entre os diferentes estratos sociais nos bairros da cidade. Curiosamente tal discurso esconde a gentrificação, visto que defende o mix social apenas nos bairros que estão sendo afetados por esse processo. Os promotores imobiliários e os governantes em nenhum momento defendem ou promovem o mix social em bairros nobres ou de classe média alta. Ao fim e ao cabo, não nos resta dúvida: o discurso da importância do mix social é uma estratégia clara para ocultar a expulsão da população mais pobre dos bairros que passam por gentrificação. A gentrificação não é um efeito colateral indesejado ou um fenômeno natural, é fruto de políticas públicas, de ações e omissões dos governos instituídos; e, obviamente, de sua associação aos interesses imobiliários e financeiros.30 Como pudemos perceber, inúmeros elementos são fundamentais para a ocorrência da gentrificação, dentre eles, a construção do discurso da (in)segurança, sobre o qual nos debruçaremos no próximo capítulo.

30 No Capítulo 4 e em nossas Considerações Finais retomaremos esse debate com o intuito de apontar caminhos para escaparmos desse processo que representa tão forte injustiça espacial.

CAPÍTULO 3

Da luta por segurança à luta por democracia A força da alienação vem dessa fragilidade dos indivíduos, quando apenas conseguem identificar o que os separa e não o que os une. Milton Santos

Câmeras de vigilância, cercas elétricas, ruas fechadas por guaritas, seguranças armados... situações “comuns” do dia a dia das metrópoles – principalmente das metrópoles, mas nada incomum nas cidades de forma geral. Firmas de equipamentos de segurança surgem a cada dia, aproveitando-se do sentimento de medo e insegurança da população, que, assustada, permite cada vez mais ter sua vida controlada com a desculpa de tornar seu cotidiano mais seguro. As câmeras de segurança não estão apenas nas ruas e lojas comerciais, estão também nos condomínios residenciais e dentro dos apartamentos. O cinema – muitas vezes premonitório – traz-nos exemplos da exacerbação da preocupação com a insegurança. De forma mais direta, o filme RoboCop (1987), de Paul Verhoeven, retrata a cidade de Detroit no ano de 2028. Nessa Detroit do futuro, dominada por criminosos, a polícia havia sido privatizada e não conseguia deter a alta criminalidade. A multinacional OCP pretendia substituir os policiais humanos por ciborgues – um misto de máquina e homem a serviço da justiça. Esses ciborgues tinham um alto poder destrutivo e visavam passar aos citadinos a sensação de segurança através do combate violento à criminalidade. Por sua vez, outra película que tratou da incorporação de uma sociedade do controle foi Matrix (1999), criada e dirigida pelas irmãs Wachowski. Trata-se de um filme cheio de efeitos especiais que revolucionou o cinema na virada dos anos 2000. Matrix é uma realidade construída pelo sistema de computadores que domina o mundo, no qual o personagem

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Neo é o messias capaz de salvar os seres humanos do domínio da Matrix. Com base em fontes filosóficas, como Platão e Jean Baudrillard, o filme das Wachowski questiona o estado de dominação em que vivemos e como estamos submetidos a realidades construídas pela perspectiva do status quo, sobretudo em relação aos valores. É uma obra que requer atenção e que vai muito além das cenas de ação, proporcionando reflexões pontuais sob o estado de dominação e condicionamento em que nos encontramos. O filme trata do aprisionamento, mas não apenas do aprisionamento na dimensão física, e isso fica claro na fala do personagem Morpheus: “assim como todo mundo, você nasceu em um cativeiro, preso em uma cela que você não pode sentir, provar ou tocar. Uma prisão para sua mente […]. Você precisa entender, a maioria destas pessoas não está preparada para despertar. E muitas delas estão tão inertes, tão desesperadamente dependentes do sistema, que irão lutar para protegê-lo”. Trata-se também de formas de violência, contudo em dimensões outras. Uma violência que se dirige a uma espécie de sociedade do controle. Há inúmeras formas de violência, entretanto algumas são mais rapidamente perceptíveis do que outras. Aliás, as formas mais óbvias servem para ocultar as outras. Em geral, saltam-nos aos olhos os crimes de assassinato, confrontos civis, bombardeios, os denominados “atos terroristas” etc. Esses atos de violência mais diretos têm seus responsáveis facilmente identificáveis, todavia há de se investigar que formas de violência estão por trás desses atos e que atores sociais produzem as condições para que isso aconteça. Mais uma vez tenho por base a tríade de processos a que me referi na Introdução desta obra: materialização, substrução e projeção. O filósofo esloveno Slavoj Žižek (2014, p. 17) também entende que precisamos caminhar para trás, pois “o passo para trás nos permite identificar uma violência que subjaz aos nossos próprios esforços que visam combater a violência e promover a tolerância”. Nesse caso, é necessário considerar também a violência simbólica e a violência estrutural ou – como prefere Žižek – sistêmica, que está ligada aos nossos sistemas econômico e político. Esses tipos de violência se encontram no pseudoestado normal das coisas, o que é grave, pois muitas vezes acabam invisibilizadas. Porém, são elas que muitas vezes estão por trás da situação de violência mais direta e mais perceptível pela população em geral. Referimo-nos, por exemplo, ao racismo, ao machismo, ao colonialismo, à colonialidade,

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à segregação espacial (que é também social), à desigualdade social e econômica etc. Em 2001, após o atentado que pôs abaixo as torres do World Trade Center, o jornalista Fritz Utzeri escreveu um artigo no Jornal do Brasil – em 17/9/2001 – em que afirmava de forma incisiva que nós não somos todos iguais, pois “uma bomba em Nova York, em Londres ou em Paris desperta a dor do mundo. Mas quando tutsis e utus se trucidam em Ruanda, e morrem um milhão de africanos numa guerra, o assunto é pé de página dos jornais e os negócios das indústrias de armas continuam de vento em popa”. Posteriormente, Utzeri seguiu inquirindo: “que tal fazer cadeia mundial da CNN para mostrar as freiras e padres negros mandando homens, mulheres e crianças entrarem em igrejas e depois darem gasolina para que soldados de etnia inimiga toquem fogo e assem todos vivos? Quem sabe aí o sangue de um negro, de um afegão ou de palestino possa se aproximar um pouco do valor do sangue ‘civilizado’?”. Palavras duras, mas que expressam uma triste realidade. Na América dita Latina também vivemos nossas mazelas; dentre elas, décadas de ditaduras sangrentas em que milhares de pessoas foram torturadas e mortas durante, aproximadamente, duas décadas. Pessoas eram perseguidas, presas e muitas delas simplesmente desapareciam sem explicações do governo. Nada pode justificar isso. Nada! Como não considerar tudo isso como violência? O discurso dos governantes de que tudo isso era para “proteger a população de bem” não pode servir para esconder atos violentos e ditatoriais. Como vimos afirmando, a violência direta é divulgada e então percebida mais facilmente, entretanto serve para ocultar outras formas de violência. Não é violência a falta de perspectivas das crianças e jovens que nascem e crescem em loteamentos irregulares, favelas e mesmo em lixões? Alguém gastar algumas centenas de milhares de reais na compra de um automóvel esportivo, quando milhões de pessoas não têm sequer o que comer, isso não é também uma violência? A desigualdade na infraestrutura entre as escolas públicas e as caríssimas escolas privadas, que acabam inclusive com o sentido de meritocracia, não é uma violência? Viver em locais sem água e esgotamento sanitário não é violência? Ter de enfrentar diariamente trens e ônibus lotados, que muitas vezes não respeitam os horários previstos e estão em péssimo estado de conservação; isso tudo não é uma violência?

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Curiosamente, quando em um surto de indignação pessoas depredam o trem ou um ônibus, são acusados de vandalismo e de estarem cometendo atos de violência. Quando alguém faz uma pichação em um muro reivindicando algo justo, são acusados de estarem cometendo violência contra a cidade. Não existe violência contra o trem, o ônibus ou o muro; a violência ocorre, verdadeiramente, contra os seres vivos. Esses sim são vítimas da violência, eles é que precisam ser protegidos, eles é que precisam estar seguros. Aliás, essa reflexão nos remete a uma peça de Bertolt Brecht, “A ópera dos três vinténs”, na qual se faz o seguinte questionamento: “o que é roubar um banco comparado com fundá-lo?”. Com isso, estamos mais uma vez apontando para a invisibilidade planejada de determinadas violências. Esta breve reflexão acerca da violência foi feita porque a ideia de violência encontra-se fortemente associada ao discurso da necessidade de investimentos em segurança; assim, outro elemento aparece para compor esse cenário: o controle. Como afirmamos anteriormente, estamos vivenciando uma sociedade do controle. É impressionante o retorno dessa expressão, pois, se nos voltarmos a 1968, veremos um exemplo de grande mobilização contra o controle que imperava na sociedade. Paris e arredores foi berço de inúmeras manifestações que uniram trabalhadores da indústria, estudantes, professores, intelectuais, artistas, feministas etc. em uma luta que unia a todos contra a sociedade do controle em suas múltiplas dimensões. Atualmente faz-se necessário a retomada dessa expressão, que ampliou ainda mais suas dimensões de ação. Não que aquelas citadas no parágrafo anterior tenham se resolvido; elas permanecem, e agora de maneira ainda mais violenta. Quando, nas duas primeiras décadas do século XXI, tivemos uma série de governos de esquerda na América dita Latina, houve políticas públicas que retiraram muitas pessoas da extrema pobreza, mas não foram políticas para produzir cidadãos; apenas incluíram-nos mais fortemente na sociedade de consumo. Como temos tentado deixar claro, a introjeção da necessidade ininterrupta do consumo no imaginário social é também uma estratégia de controle social. Vivemos um momento sombrio, em que defender uma causa dita politicamente incorreta – para dizer o mínimo – ganha ecos de autoridades do próprio governo. Para tanto, as tecnologias de comunicação e informação têm cumprido importante papel. As denominadas redes sociais

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cada vez mais se transformam em verdadeiros cabos de guerra eletrônicos forjados, por exemplo, a partir de informações falsas – as tais fake news –, que tomaram conta da sociedade. A internet era vista por muitos como “o lugar” em que a informação poderia circular livremente, dando voz àqueles que eram invisibilizados pela grande mídia ou pelo próprio governo. Entretanto, estamos assistindo ao controle das redes sociais por determinados atores sociais para manipular informações e pessoas. E, como cada vez mais as pessoas se utilizam desses canais para se informar – ou desinformar –, estamos presenciando a exacerbação de posições preconceituosas contra determinadas instituições religiosas, além do preconceito dito racial e de gênero. Há tempos, o sociólogo porto-riquenho Ramón Grosfoguel (2008, p. 118) afirmou que ninguém escapava “às hierarquias de classe, sexuais, de gênero, espirituais, linguísticas, geográficas e raciais do ‘sistema-mundo patriarcal/capitalista/colonial/moderno’”; atualmente isso vem ocorrendo de maneira ainda mais intensa. Preocupações com os denominados direitos humanos passaram a ser taxados como “coisa da esquerda” ou “de comunistas”. Estranha percepção! A defesa dos direitos humanos deveria ser bandeira de todos. As redes sociais cresceram, em pouco tempo, de maneira impressionante. O Facebook, até o primeiro trimestre de 2020, contava com aproximadamente 2,6 bilhões de perfis (sendo 130 milhões no Brasil); o YouTube, do grupo Google, conta com mais de 2 bilhões de usuários mensais; o WhatsApp – que pertence ao Facebook – também ultrapassou a casa de 2 bilhões de usuários no início de 2020; e o Instagram – também pertencente ao Facebook – conta com mais de 1 bilhão de inscritos. Com esses números, não é difícil imaginar o poder que essas empresas conseguiram. Esses empresários aproveitaram-se do discurso da insegurança e da própria ansiedade das pessoas e tornaram-nas dependentes das redes sociais. Ao postarem comentários, fotos e dados pessoais, os usuários transferiram às empresas um banco de dados de grandes proporções, que é usado para impulsionar as vendas dos anunciantes dos aplicativos. O sucesso dessa estratégia cresce proporcionalmente ao tempo de permanência do usuário, já que, quanto mais tempo conectado, maiores as possibilidades de exposição a estratégias de manipulação de desejos. Assim sendo, essas empresas responsáveis pelas redes sociais usam todos os artifícios para manter os usuários presos a esses programas durante o

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maior tempo possível. Desenvolvem aplicativos cada vez mais intuitivos e fáceis de manusear, além de utilizarem o artifício das “notificações” para atrair a atenção dos usuários. Chega a ser assustador ouvir Tristan Harris, ex-designer ético do Google, afirmando que, se você não está pagando pelo produto, então você é o produto. Além das informações e comentários que os próprios usuários colocam na rede, há também um mapeamento dos sites e produtos que cada pessoa acessa na internet, assim, em pouco tempo, uma espécie de inteligência artificial tem o perfil de interesses e de comportamentos de cada usuário; o que também explica as propagandas que recebemos. Isso tem um potencial enorme, pois sabem em que fase da vida nos encontramos – tristes, alegres, deprimidos – e o que esse estado nos leva a fazer. Em 2020, a Netflix – um serviço de streaming por assinatura – lançou um documentário intitulado O dilema das redes (The social dilemma); nesse filme são entrevistados inúmeros ex-funcionários de várias empresas ligadas à internet, como Tristan Harris, ex-designer ético do Google; Tim Kendal, ex-presidente do Pinterest; Justin Rosenstein, ex-engenheiro do Facebook; Roger McNamee, investidor em tecnologia; além de Jaron Lanier, cientista da computação e autor de Dez argumentos para você deletar agora suas redes sociais. O documentário deixa claro que todos esses ex-funcionários contratados para desenvolver essas redes sociais viam-nas como ferramentas para ampliar o conhecimento coletivo, aumentar a solidariedade e unir amigos e familiares, entretanto, com o passar do tempo, deram-se conta de outra realidade. Essas plataformas viabilizaram uma forma impressionantemente eficaz de gerar dinheiro; segundo o documentário, os criadores dessas redes sociais partiram da premissa de que na humanidade há uma necessidade biológica básica de nos conectarmos. Segundo pesquisas, isso afeta diretamente a liberação de dopamina e, obviamente, seus criadores se aproveitam desse potencial viciante para moldar os comportamentos dos usuários conforme lhes seja mais útil. O controle exercido por essas plataformas vai além da manipulação de nossos desejos de consumo, pois têm sido utilizadas também para manipulação de comportamentos a partir de informações falsas. Inclusive temos visto importantes interferências em processos eleitorais. É fato que a TV também teve, historicamente, influência no comportamento da sociedade e nos padrões de consumo, entretanto, no mundo

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da internet, as redes sociais fazem esse trabalho de maneira “personalizada”, e isso é uma forma de controle muito mais poderosa. É possível direcionar matérias e reportagens, inclusive falsas, para determinados grupos sociais e, assim, manipular a percepção dos problemas que vivemos nas cidades. O crescimento do discurso da necessidade de investimentos na área de segurança é um exemplo. O debate acerca da militarização da questão urbana tem circulado não apenas nas universidades e nas agências de governo, mas também nos círculos do cidadão comum. Todavia, a construção da ideia de que vivemos uma total insegurança, amparada no que se denomina “aumento da violência”, abre brechas para a construção de estratégias de controle espacial. A política de contenção alcança também a população mais pobre e desamparada, majoritariamente negra no caso brasileiro, e os manifestantes em atos reivindicatórios. Presenciamos algo como um urbanismo militarizado, em que as ações implementadas pelos governantes se utilizam da expressão “guerra” para lidar com as questões ligadas ao crime: guerra contra as drogas, guerra contra a insegurança. Determinadas palavras não são utilizadas sem uma preliminar reflexão. A expressão “guerra” tem muita força e transmite a impressão de que se trata de algo muito grave e que deve ser combatido com todas as forças possíveis, incluindo aí ações violentas por parte dos governos. A denominada “guerra contra as drogas” trouxe com ela o crescimento do tráfico de armas, que gerou e gera inúmeras mortes, principalmente de pessoas que residem nas áreas mais pobres das cidades. As mortes por homicídio, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), concentram-se principalmente entre jovens do sexo masculino (entre 15 e 29 anos) – cerca de 92% – e, além disso, 76% são negros. Parte dessas mortes é promovida pela própria polícia. O relatório do IPEA aponta também para a necessidade de mudar o foco político de atuação em segurança pública, que se encontra voltado à coerção policial, ao policiamento ostensivo e à repressão ao varejo das drogas. Deveriam ser priorizados os investimentos no acesso à educação, cultura e esportes nessas áreas mais vulneráveis; inúmeros estudos já indicaram ser muito mais barato investir no desenvolvimento infantojuvenil do que em recursos em ações de repressão bélica e no posterior encarceramento da população. Ainda retomaremos esse debate adiante.

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O advogado criminalista Marcelo Sarsur (2020) acredita ser um equívoco a forma como tem sido posta a cabo a política de combate às drogas, visto que tem provocado a perda de inumeráveis vidas. Acredita ele que o governo tem que adotar “uma visão racional do problema, sem preconceitos, sem apostar nas velhas fórmulas falidas para os mesmos problemas de sempre”. Para tanto, afirma ser preciso considerar que “nem todo uso de droga (ilícita) implica dependência; que a dependência química deve ser considerada como questão de saúde pública, e não de política criminal; que o tráfico só se torna lucrativo porque a criminalização demanda a sua clandestinidade; e que a melhor abordagem ao traficante eventual é lhe estender a chance de escapar da sobrevida no crime, dando-lhe oportunidades reais de ressocialização”. Observações interessantes que nos remetem a mudanças de perspectivas realizadas em várias cidades e países mundo afora. Houve a legalização do uso recreativo da maconha no Uruguai e no Canadá, na Espanha é legal apenas em áreas privadas (é ilegal em áreas públicas e o infrator está sujeito à multa), e nos Estados Unidos – onde a decisão se faz por estado – o uso é permitido no Alasca, Califórnia, Colorado, Distrito de Columbia, Idaho, Illinois, Kansas, Maine, Massachusetts, Michigan, Nevada, Oregon, Vermont e Washington. Além disso, houve descriminalização em vários países em que o uso recreativo é ilegal; isso sem mencionar o uso medicinal, que tem sido permitido em cada vez mais países. A legalização tem sido vista em vários estados estadunidenses como possibilidade de forte incremento nos negócios ligados ao mercado de fabricação e de comercialização da maconha, seja medicinal ou recreativa. Evidentemente, trata-se de um debate intenso e que mobiliza inúmeros pesquisadores.1 Entretanto, neste momento, o que nos levou a essa breve abordagem sobre o assunto foi a utilização da expressão “guerra às drogas” como importante elemento para a utilização de políticas violentas no denominado combate aos criminosos envolvidos nessa atividade, incorporando aí os usuários. E, dependendo do perfil das pessoas, até mesmo direitos legais são deixados de lado. O geógrafo britânico Stephen Graham (2016, p. 28) salienta que são deixados de lado os direitos legais, humanos e de sistemas jurídicos “ba-

1 Valois (2019), Timm e Neves (2016), Carvalho (2013), D’Elia Filho (2007), Fernandes e Fuzinatto (2012), dentre muitos outros.

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seados na cidadania universal”, e são postas em prática políticas de segurança que “se fundamentam na elaboração de perfis de indivíduos, locais, comportamentos, associações e grupos. Tais práticas atribuem a esses sujeitos categorias de risco baseadas em suas supostas associações com violência, desordem ou resistência contra as ordens […] que sustentam o capitalismo neoliberal global”. No caso brasileiro, a tal elaboração de perfis e locais “perigosos” está ligada prioritariamente aos pobres, negros e moradores de favelas. Aliás, não é novidade alguma afirmarmos que os direitos do cidadão têm pouco ou nenhum valor quando há alguma operação policial em favelas. É assustador pensar que as cidades – percebidas anteriormente como o espaço do encontro, do debate e do convívio com as diferenças – têm sido vistas, principalmente pelos políticos e governantes de direita e extrema direita, como espaço da “anomia social”, da concentração de atos subversivos, do dissenso, da resistência e das mobilizações sociais, que devem ser controlados a qualquer custo. É possível perceber, então, como a construção da ideia de (in)segurança tem um papel importante em nosso cotidiano e, a partir disso, como o controle passa a ser “autorizado” pela sociedade, já que serviria para protegê-la. Entretanto, como afirmamos, foi introjetada na sociedade uma total associação da (in)segurança àquilo que denominei de violência direta. É justamente por isso que a crescente militarização da questão urbana tem sido justificada e posta em prática a partir do discurso do combate à criminalidade violenta, que se encontra fortemente associada ao tráfico de drogas nas grandes metrópoles (mas não apenas nelas). De fato, é mesmo assustador acordar, ligar a TV para assistir ao telejornal e acompanhar uma sequência de notícias acerca da violência instaurada na cidade. Tudo isso acaba por gerar uma espécie de medo coletivo na população, e o geógrafo Marcelo Lopes de Souza (2008, p. 37) afirmou – em uma forma de síntese – que experimentamos a “fobópole”, ou seja, “uma cidade dominada pelo medo da criminalidade violenta”. Desdobrando um pouco mais, o autor acredita que essa expressão reflete a situação das cidades em que o medo e a sensação de insegurança e risco, no âmbito da segurança pública, assumem cada vez maior preponderância na vida cotidiana. Todavia, a criminalidade no Brasil é também um subproduto da desigualdade social e de uma longa dívida social, que insistimos em não resolver.

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Desigualdade e precarização Já abordamos o tema da desigualdade social e da própria precarização no Capítulo 1, entretanto parece necessário retomar ainda alguns aspectos que cercam esse debate. Há inúmeros processos que se mantêm ininterruptamente em funcionamento dentro da lógica de crescimento econômico há tempos: a gentrificação, a privatização da terra e expulsão violenta da população camponesa; a negação e destruição de formas de direito de uso comum em direitos exclusivos de propriedade privada; o ataque e supressão às formas alternativas de produção e consumo (em outras vezes, cooptação dessas formas alternativas); o sistema de crédito como meio de acumulação e todas as dimensões da colonialidade, que continuam muito vivas em nossa sociedade. Esses processos têm contribuído para o crescimento do número de trabalhadores sem-terra no campo, para a prioridade das políticas públicas no incentivo ao agronegócio em detrimento da agropecuária familiar e para o discurso da necessidade da privatização dos recursos comuns (inclusive da água) com o objetivo de preservá-los – o que chega a ser absurdo! Todo o debate realizado anteriormente no Capítulo 2 deixou claro que os empresários, auxiliados pelos governantes, utilizam-se de projetos de renovação urbana, reabilitação ou revitalização para realizar o capital. Para tanto, o governo cumpre papel importante ao realizar obras de infraestrutura e ao modificar as leis e normas de zoneamento, gabarito e de edificações. Esses projetos trouxeram consigo a gentrificação, servindo para desapropriar a população de mais baixa renda que vivia nesses locais. O geógrafo inglês David Harvey (2004) afirmou que por trás do discurso da necessidade do crescimento econômico encontra-se um processo de acumulação por espoliação. O discurso acerca da necessidade de privatização de universidades públicas, a reforma da previdência, a precarização dos serviços de saúde pública, a reforma trabalhista e a precarização do trabalho são exemplos de acumulação por espoliação. O que parece curioso é que todas essas formas de espoliação vêm travestidas do discurso de que é necessário criar um ambiente favorável para os negócios; e mais, que isso é dever do Estado. Não é novidade que as

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práticas neoliberais sempre estiveram voltadas para o apoio ao capital financeiro e para as elites capitalistas. Além disso, historicamente não se comprovou a afirmação de que o crescimento econômico traz benefícios para toda a população, até porque – como sabemos – crescimento econômico não é sinônimo de desenvolvimento; portanto, não é verdade que o crescimento seja pré-requisito para a redução da pobreza e da desigualdade. No Brasil, a história nos lembra diariamente de que isso se trata de uma falsa afirmação. Em entrevista para o documentário Dedo na ferida, de Silvio Tendler, o economista Guilherme Mello apontou para o fato de que a lógica anterior ao atual momento em que impera a financeirização tinha como objetivo a ampliação da produção e do mercado, pois acreditavam que assim obteriam mais lucro e gerariam maiores salários. Logo, anteriormente, se trabalhava com a lógica dos fluxos de lucros e de salários. O economista afirmou que, “quando o mercado financeiro se associa a uma indústria, a lógica muda: o foco passa a ser a maximização do valor do acionista; significa produzir mais resultados não para a empresa crescer, mas para valorizar as ações da empresa”. Acrescentou ainda que, muitas vezes, “quanto menos investimentos houver, mais dividendos são distribuídos. A hegemonia das finanças muda a lógica das empresas produtivas”. A financeirização que vivenciamos tem se configurado como o predomínio do setor financeiro sobre o capital industrial, comercial e de serviços; nesse sentido, temos observado que as questões financeiras têm permeado toda a vida cotidiana e, assim, também a própria governança. Remetendo-nos, ainda, à lógica de crescimento econômico, é possível afirmarmos que a financeirização da cidade encontra-se totalmente ligada à economia contemporânea de hegemonia da dimensão do financeiro. Tal dimensão encontra-se fortemente vinculada aos negócios imobiliários e – como nos lembraram Pereira e Petrella (2018) – tem havido um crescimento muito considerável do financiamento de obras de infraestrutura. O capital financeiro – fortemente especulativo – gera ainda menos empregos do que o setor produtivo. Vivenciamos uma economia voltada aos setores ditos de alta tecnologia e que, inclusive, estão sendo cada vez mais utilizados na gestão urbana, construindo no imaginário social a ideia da necessidade de criação de “cidades inteligentes” e “cidades se-

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guras”.2 De maneira rasteira, as tais cidades inteligentes seriam aquelas que utilizariam a tecnologia para gerar o bem-estar dos moradores: gerenciamento computadorizado da mobilidade urbana, da coleta de lixo, do controle da poluição etc. Entretanto, as cidades não têm ideias, não são inteligentes, não sofrem ou ficam desempregadas; os cidadãos, sim. Quem tem as ideias, a inteligência e idealiza os projetos são pessoas. Inclusive, grandes projetos para as cidades muitas vezes têm gerado a piora de vida dos moradores mais pobres. Ou seja, as escolhas são ideológicas. O setor bancário tem sido o mais lucrativo entre as empresas de capital aberto no Brasil. Segundo a Economática, das 10 empresas que mais lucraram no Brasil em 2019, quatro delas são instituições bancárias; sendo que Itaú e Bradesco estão entre as três primeiras posições, Banco do Brasil está na quarta posição e Santander na quinta. Segundo a Confederação Nacional do Comércio Banco Central, mais de metade da população brasileira encontra-se endividada; 72,2% no cartão de crédito. O sistema de crédito, lembra-nos Harvey (2011, p. 198), “tornou-se a grande alavanca moderna para a extração de riqueza pelo capital financeiro do resto da população”. Nesse sentido, é possível observarmos, por exemplo, as taxas de juros abusivas sobre os cartões de crédito e os cheques especiais; mas isso não importa, o importante é acelerar o consumo. Para viabilizar essa aceleração, a obsolescência programada, que se encontra em curso há tempos, tem cumprido função crucial, mas a propaganda na mídia tradicional e nas redes sociais têm sido também fundamentais. Por tudo isso é que Harvey (2018, p. 204) acaba por afirmar que “essa é a loucura que vivenciamos repetidas vezes nos últimos quarenta anos. Capital excedente e uma massa cada vez maior de mão de obra excedente e descartável repousam lado a lado, sem que haja nenhuma maneira de uni-los para produzir os valores de uso tão urgentemente necessários”, e isso tudo somente acelera a precarização e a desigualdade. Torna-se claro que “o papel imediato da intervenção do crédito é ressuscitar o capital-dinheiro entesourado, portanto ‘morto’, e tornar a pô-lo em movimento” (HARVEY, 2018, p. 86). Entretanto, as dívidas acumuladas através do sistema de crédito não afetam igualmente as pessoas, 2 Rogério Haesbaert (2014) desenvolveu importante debate acerca do que denominou “cidade vigiada”.

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visto que os pobres veem-se ainda mais empobrecidos pela necessidade de pagar as suas dívidas. Isso é grave, pois as liberdades futuras daqueles que tomaram empréstimos ou se endividaram através do cartão de crédito tornam-se seriamente afetadas. Em outras palavras, os trabalhadores tornam-se cada vez mais aprisionados ao trabalho, a ter de trabalhar mais e mais tempo. A expansão do crédito não se refere apenas ao âmbito individual; se os lucros diminuem, as empresas recorrem aos empréstimos. Os próprios governos – seja em qualquer de suas esferas – também recorrem a empréstimos quando se veem em dificuldades econômicas. Assim, o capitalismo transita por uma dimensão ainda mais fictícia, o que levou o cientista político irlandês John Holloway (2003, p. 287) a afirmar que “os trabalhadores fazem crer que suas rendas são maiores do que são na realidade, os capitalistas fazem crer que seus negócios são rentáveis, os bancos fazem crer que seus devedores são financeiramente estáveis”. Mas isso não é simples e tem desdobramentos perigosos para a própria sobrevivência do capitalismo, porque cada vez de forma mais intensa o crédito se alimenta do crédito. Cada vez que há risco de não pagamento do montante dos financiamentos recebidos ou dos juros desses empréstimos, os devedores acabam por buscar mais empréstimos. Em outras palavras, se concede crédito para pagar os próprios empréstimos ou os juros do empréstimo anterior. Ao analisar esse fenômeno, Holloway (2003, p. 288) acrescenta que, “quanto mais elaborada se torna a estrutura do crédito, mais difícil se torna mantê-la, mas também mais difícil de desarmar”. Isso porque reduzir ou eliminar o crédito levaria a um caos social e significaria uma “quebradeira” dos bancos, ameaçando inclusive a existência do sistema bancário e da própria estrutura atual do capitalismo.3 Voltando a abordar a precarização da vida, observamos o crescimento exacerbado do número de desempregados, e, se formos mais rigorosos e diferenciarmos pessoas empregadas de pessoas que exercem alguma atividade que gere alguma forma de remuneração, a situação se agrava ainda mais. Referimo-nos ao fato de que há uma confusão entre empre3 Não temos o objetivo de aprofundar esse debate, mas a obra anteriormente citada de John Holloway (2003) – Mudar o mundo sem tomar o poder – e o livro de David Harvey (2018) intitulado A loucura da razão econômica: Marx e o capital no século XXI podem ajudar no aprofundamento dessa discussão.

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go e trabalho informal. Em várias informações estatísticas vemos que, se o trabalhador recebe alguma forma de remuneração, não é considerado desempregado, mas ter alguma atividade de trabalho informal (sem qualquer direito trabalhista) não é o mesmo que estar empregado e ter um contrato formal de trabalho. Transformando isso em números, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil fechou o ano de 2019 – antes de enfrentarmos a pandemia de Covid-19, portanto – com 41,1% de sua população economicamente ativa na informalidade. Em 21 estados brasileiros, o trabalho informal ultrapassou os 40%; apenas em Santa Catarina e Distrito Federal o percentual foi inferior a 30%, respectivamente 27,3% e 29,6%. Os trabalhadores informais no Brasil representam, em números absolutos, aproximadamente 38,4 milhões de pessoas. Em se tratando do índice de desemprego no país, encontrávamo-nos, ao final de 2019, com cerca de 12% de desempregados, ou seja, aproximadamente 12,6 milhões de pessoas. Tendo ainda os dados produzidos pelo IBGE em nosso horizonte, no início de 2018, era possível afirmar que metade da população brasileira vivia com menos de um salário mínimo por mês. O curioso é que, nos critérios definidos da pesquisa, quem recebesse aproximadamente 3,5 salários mínimos se enquadrava no grupo dos 10% mais ricos, o que, convenhamos, é uma distorção! Todavia, analisando os dados da pesquisa, foi possível perceber que o rendimento do grupo dos 10% mais ricos apresentava enorme discrepância, visto que variava de 3,5 a mais de 320 salários mínimos. No final de 2019, baseado no coeficiente Gini – que mede desigualdade e distribuição de renda –, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) divulgou um relatório em que o Brasil aparece como o sétimo país mais desigual do mundo, tendo atrás de si apenas África do Sul, Namíbia, Zâmbia, República Centro-Africana, Lesoto e Moçambique. Em relação ao 1% mais rico da população, apenas o Catar apresenta maior concentração de renda do que o Brasil. Como já afirmamos anteriormente, os números são realmente impressionantes em nosso país: os 10% mais ricos detêm 41,9% da renda total do Brasil, e a parcela do 1% mais rico concentra 28,3% da renda nacional (no Catar a concentração é de 29%).

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Em entrevista4 no início de 2020, Katia Maia, diretora da Oxfam Brasil, apontou três motivos determinantes para essa terrível situação de desigualdade que assola nosso país: o racismo, a questão de gênero e a tributação de impostos. Acrescenta ela que o racismo ocorre de maneira estrutural e institucionalizada, e afirma ainda que “o Brasil vem de uma construção escravocrata, onde algumas pessoas valiam mais que as outras. Isso se reflete até hoje”. Se observarmos a taxa de desemprego, a desigualdade ligada à questão de gênero mostra-se claramente, visto que entre mulheres negras é de 16,6%, enquanto entre homens brancos é de 8,3% e entre mulheres brancas é de 11%. Além disso, inúmeras pesquisas já confirmaram que mulheres que exercem as mesmas funções que o homem inúmeras vezes recebem salários menores e têm menos acesso a cargos de chefia do que os homens. No Brasil, a tributação é fortemente baseada no consumo. Ou seja, ao comprarmos uma mercadoria, há um imposto embutido no preço e todos pagam exatamente o mesmo. Essa tributação é muito pouco justa, até porque, salienta a diretora da Oxfam, “para uma pessoa que recebe R$ 100 do Bolsa Família e paga R$ 45 só de imposto, a carga tributária é alta”. O menos injusto seria basearmos a maior parte da tributação na taxação sobre o patrimônio e sobre a renda, inclusive sobre a taxação das grandes fortunas e das heranças. Parece-nos claro que a precarizante reprodução das relações capitalistas de produção, consumo e especulação têm levado um número muito grande de pessoas à pobreza, gerando condições excludentes. O sociólogo José de Souza Martins (1997, p. 14), entretanto, lembra-nos que rigorosamente não existe exclusão, o que existe são as “vítimas de processos sociais, políticos e econômicos excludentes”. Por isso, prefere utilizar a expressão “inclusão precária” ao referir-se a esse grupo de pessoas. Em diálogo com Martins, o geógrafo Rogério Haesbaert (2014, p. 185) salienta que “o debate sobre a exclusão acaba deixando de lado a análise, fundamental, dos processos ‘pobres e até indecentes’ de inclusão, ou, nos termos aqui trabalhados, de precarização. Sem esquecer que eles envolvem a própria ‘reinserção ideológica na sociedade de consumo’”. Mesmo os trabalhadores extremamente mal remunerados são bombardeados 4 Forte (2020).

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diariamente pela publicidade nos mais diferentes meios de comunicação; trata-se da sociedade do consumo em sua máxima expressão. Todavia, há cada vez mais pessoas que são deixadas de lado, que são desnecessárias ao funcionamento do capitalismo. Nesse grupo encontramos uma parcela da população que, depois de muito tempo à procura de emprego, simplesmente desistiu de procurar, portanto nem entram mais nas estatísticas do número de desempregados; há também uma parcela que nunca esteve nem estará inserida no mercado de trabalho; e há aqueles que sobrevivem com alguma espécie de auxílio governamental. O fato é que a desigualdade é cada vez mais visível, seja no crescimento das favelas, seja no crescimento do número de moradores de rua. Simultaneamente, vai-se construindo no imaginário social a ideia de que isso gera insegurança, de que isso é perigoso.

Políticas de segurança mais duras como discurso É comum nas conversas cotidianas ouvirmos que o governo tem que investir em segurança. E isso significa contratar mais policiais, armar mais fortemente a polícia, comprar novos carros para os policiais, construir mais presídios, criar leis com penas mais rígidas; em outras palavras, afirmam a necessidade do endurecimento de políticas repressivas de segurança pública. Infelizmente, no Brasil – mas não apenas aqui – as políticas públicas de segurança são criadas e executadas sem que se tenha em conta as causas a serem atacadas. Observamos diariamente atitudes repressivas explícitas e implícitas que quase sempre estão voltadas contra a população mais pobre e fragilizada. Em geral, defende-se a repressão policial e a concreção das penas. Essa percepção simplificadora e equivocada tem sido defendida por políticos de perfil reacionário e também por conservadores, tendo ganhado grande repercussão propostas que trazem o “excludente de ilicitude” como ponto central. A possibilidade de isentar de pena policiais que, porventura, matassem durante o seu trabalho foi uma das bandeiras de campanha do atual presidente brasileiro Jair Bolsonaro. A criminalidade não pode ser vista de maneira tão simplificadora, pois se trata de um fenômeno multicausal. O Brasil, como afirmamos anteriormente, é um país de extrema desigualdade social, que tem pro-

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blemas estruturais de pobreza, desemprego, tráfico de drogas, milícias etc. Assim, não é possível acreditar que apenas o emprego de políticas repressivas revolveria todos os problemas, é preciso promover investimentos em políticas públicas nas áreas de educação, infraestrutura, saúde, geração de empregos e de habitação. O sociólogo francês Loïc Wacquant (2001), ao refletir sobre os equívocos das políticas de segurança, apontou para a existência do paradoxo entre o discurso de menos Estado nos âmbitos econômico e social e de mais Estado nos âmbitos policial e penitenciário – fato que acaba por concretizar a insegurança social generalizada da qual somos, ao mesmo tempo, vítimas e algozes. Isto porque, lembra-nos Wacquant, ao concordarmos com o discurso simplificador, que nos é cotidianamente introjetado pela mídia e pelas redes sociais, defendendo maior punição para os delitos – em boa parte cometidos por pobres –, nos esquecemos que o Estado e o mercado são os grandes promotores da violência estrutural de nossa vida cotidiana. As localidades mais pobres da cidade sofrem com o abandono do governo, o que abre caminho para o crescimento do poder dos traficantes de drogas e das milícias. E pior: a população, em geral, acaba por banalizar a violência ocorrida em favelas, loteamentos irregulares e nos bairros mais pobres das cidades. Achar normal que haja tiroteios, mortes e grupos que se aproveitam da ausência do Estado para extorquir moradores, comerciantes e prestadores de serviços, além de exercer controle de circulação e criar normas e leis paralelas, é a total banalização do absurdo. É possível percebermos uma espécie de presença ausente e uma ausência presente do Estado nessas localidades. Referimo-nos ao fato de que a presença do Estado encontra-se totalmente na percepção de sua ausência, ao passo que sua ausência encontra-se presente nas condições deletérias e no abandono. A presença da polícia, infelizmente na grande maioria das vezes, agindo de forma violenta e sem qualquer respeito aos moradores é o maior exemplo da presença ausente do Estado. Por sua vez, a falta de investimento em saneamento, em construção de habitações populares, em abertura de creches e unidades de saúde, em atividades esportivas e culturais é que nos permite apontar a ausência presente do Estado. E, evidentemente, não basta construir as escolas, creches e unidades de saúde; é preciso que sejam de qualidade e prestem um bom atendimento à população, porque tratar os moradores das favelas e bair-

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ros pobres como cidadãos menos importantes contribui para reproduzir condições desiguais. Embora não seja algo novo, a favela – e por conseguinte seus moradores – carrega seus estigmas. Desde seu nascimento, o olhar para a favela foi carregado de preconceito, e já no início do século XX era estigmatizada como lugar insalubre e socialmente degradante. Com o passar do tempo, foram sendo adicionados outros elementos, passando assim a ter o estigma de lugar da malandragem, lugar violento e habitado por criminosos. Se buscarmos o significado da palavra estigma no dicionário Houaiss, obteremos os seguintes resultados: marca ou cicatriz perdurante; sinal infamante outrora aplicado, com ferro em brasa, nos ombros ou braços de criminosos e escravos; aquilo que é considerado indigno, desonroso. Etimologicamente falando, essa expressão é de origem grega e se referia a marcas corporais que procuravam evidenciar algo negativo naqueles que as apresentavam. Caracterizavam-se por sinais que eram feitos com cortes ou fogo no corpo de alguém para identificá-lo como escravo, criminoso ou traidor. Ou seja, desde o início é possível identificarmos uma espécie de criação de um tipo de “desonra” e de submissão. A criação de estigmas carrega consigo relações desiguais de poder, já que grupos sociais hierarquicamente posicionados em posição dominante conseguem introduzir um estigma em grupos mais fragilizados. Estigma que, muitas vezes, acaba sendo introjetado pelo próprio grupo fragilizado e pela população em geral (ELIAS; SCOTSON, 2000). Assim, é construída no imaginário social a ideia de que esses locais são aberrações, são anomias que devem ser abandonados, que as pessoas que ali vivem são “uma ameaça ao cidadão de bem” – esta foi uma das muitas afirmações absurdas do presidente Bolsonaro, mas também de outros políticos (como, por exemplo, o governador do Rio de Janeiro Wilson Witzel – 1 de janeiro de 2019 até seu impeachment em 30 de abril de 2021 por corrupção). Não à toa, lembra-nos Haesbaert (2014, p. 195) que “a passagem de uma sociedade disciplinar para uma sociedade de segurança, biopolítica ou de controle” é fato e se arrasta há tempos. Embora não tenhamos o objetivo de aprofundar o debate acerca da biopolítica e do biopoder, convém ao menos esclarecer que o filósofo Michel Foucault (2014, 2012, 2008a, 2008b) desenvolveu a noção de biopolítica como um estilo de go-

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vernar que normatiza e regulamenta a população através daquilo que denominou biopoder; ou seja, a aplicação do poder político sobre todos os aspectos da vida humana. Assim, o foco deixa de ser a disciplina voltada para o corpo individual, que objetivava a docilidade dos corpos de maneira a ajustá-los ao sistema de produção capitalista; o objetivo agora é a normalização e o controle da população como um todo, e assim torná-la mais facilmente controlada e produtiva. Para que tudo isso aconteça, o Estado permanece tendo grande importância. A ele cabe construir um “clima favorável” aos negócios e investimentos, mesmo que muitas vezes o bem-estar de significativa parcela da população seja prejudicada. A partir desta perspectiva, o geógrafo Felipe Rangel Tavares (2020, p. 66-67) identifica “um crescente aumento das parcerias público-privadas (PPP), um conjunto complexo de forças mobilizado por diversos atores sociais, onde está o poder real da organização urbana, denominado ‘governança urbana’ por Harvey (2005)”. Tal governança seria, então, “constituída por empreiteiras e construtoras, agentes e incorporações imobiliários, bancos, indústria cultural (mídia), instituições e organizações não governamentais (ONG), e, finalmente, o governo e a administração urbana, que desempenham apenas o papel de facilitador e coordenador”. Experimentamos uma forma de regime urbano em que as instituições estão cada vez mais trabalhando e pondo-se a serviço dos interesses privados de grandes empresas e corporações. Tal comportamento é que levou o economista e sociólogo Carlos Vainer (2011) a asseverar que isso produz e reproduz situações e práticas de exceção, em que importantes poderes são transferidos a grupos empresariais. Obviamente, os objetivos desses grupos é o lucro, o que muitas vezes significa implementação de projetos denominados de “revitalização”, que provocam remoções e podem levar – como vimos no Capítulo 2 – à gentrificação. Tal perfil de governança, como procuramos deixar claro até aqui, tem gerado forte precarização das relações de trabalho, empobrecimento de grande parcela da população, segregação espacial,5 construção de estigmas e crescimento do discurso da insegurança. 5 Relembrando uma vez mais: o espaço é um produto social e é produzido com intencionalidades, logo a dimensão social está contida na dimensão espacial. Por isso, não utilizaremos expressões como “socioespacial” ou “sócio-espacial” para reafirmar aquilo que já está dado na própria maneira de como conceituamos o espaço. Até porque parece-nos

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Esse caminho político faz com que se promovam escolhas de vida e morte. Em outras palavras, trata-se de definir aqueles que são descartáveis, que não colaboram para o desenvolvimento capitalista e que são vistos como ameaça. Isso acaba por se realizar em uma espécie de tanatopolítica, ou seja, uma política da morte. A psicóloga Cristiane Oliveira (2016) afirma que “sua base jurídica é a ‘custódia protetiva’, estratégia de controlar o perigo que determinados indivíduos possam representar ainda que não estejam enquadrados em nenhum crime”, e acrescenta ainda que “uma forte razão ético-política para estabelecer uma atualização da biopolítica pela especificação de uma tanatopolítica é a política de extermínio vigente no Brasil, responsável pelo genocídio de jovens negros e das classes populares”. É possível acrescentar aqui a observação feita por Tavares (2020, p. 92) ao afirmar que, “quando Foucault aborda a questão do ‘deixar morrer’ através do racismo, a exposição à morte e a multiplicação do risco de morte para determinados grupos da população é uma das formas em que se opera o assassínio indireto, o poder de tirar a vida. O racismo instaura uma clivagem entre a população e faz funcionar a ‘relação guerreira’ – para viver, é preciso matar –, deste modo, atua como condição de aceitabilidade para poder tirar a vida de alguém/outros. O racismo assegura a função de morte na economia do biopoder”. Observando os dados de fevereiro de 2020, referentes ao ranking de países com maior número de pessoas presas no mundo, o Brasil encontra-se na terceira posição,6 totalizando 773.151 detentos. Os primeiros colocados nesse vergonhoso ranking são respectivamente Estados Unidos e China, com 2,1 milhões e 1,7 milhão de prisioneiros.7 No Brasil, essa política prisional, além de promover violações de direitos, atinge primordialmente jovens negros e já demonstrou a sua incapacidade em promover a reintegração social dessas pessoas. Aliás, temos em nosso país um dos maiores percentuais de presidiários sem condenação, ou seja, 34,7% dos encarcerados; isso equivale a 268.438 pessoas

inadequado e fora de propósito refletir sobre o espaço sem considerar as relações sociais que o produziram, que agem, reagem e interagem no espaço a partir de interesses políticos, econômicos e culturais. 6 Segundo dados do Infopen, sistema de informações estatísticas do Depen (Departamento Penitenciário Nacional), divulgados em fevereiro de 2020. 7 Segundo dados do Institute for Crime & Justice Research e da Birkbeck University of London.

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em prisão provisória. Fato assustador é que pesquisa feita em parceria entre Depen (Departamento Penitenciário Nacional) e IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) apontou que, em 37,2% dos casos em que há aplicação de prisão provisória, os réus não são condenados à prisão ao final do processo ou recebem penas inferiores ao seu período de encarceramento inicial. Outro dado importante refere-se à superlotação das prisões. Segundo dados do próprio Infopen, o sistema de informações estatísticas do Departamento Penitenciário Nacional, são 461.026 vagas para 758.676 presidiários. Em outras palavras, o número de pessoas presas excede em 38,4% o total de vagas disponíveis no sistema penitenciário. Isso sem contar as outras 14.475 pessoas que estão detidas em delegacias de polícia. Ademais, lembra-nos Haesbaert (2014, p. 197), quase metade das consultas médicas nos presídios “não se realiza por simples ausência de médicos e a inexistência de escolta policial impede a remoção para hospitais”. Por isso, não é exagero falar em uma espécie de tanatopolítica ou, como prefere Haesbaert, uma biotanatopolítica. Além disso, é preciso trazer uma importante informação: 2/3 dos detentos são negros, isto representa 66,7% do total. A pesquisadora Amanda Pimentel, ao comentar o resultado do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020, afirmou que “as prisões dos negros acontecem em razão das condições sociais, não apenas das condições de pobreza, mas das dificuldades de acesso aos direitos e a vivência em territórios de vulnerabilidade”. Afirmou ainda que “essas pessoas também são tratadas diferencialmente dentro do sistema de justiça. Réus negros sempre dependem mais de órgãos como a Defensoria Pública, sempre têm números muito menores de testemunhas”. Por tudo isso é que cada vez mais temos visto pesquisas que versam sobre a necropolítica.8 Esse conceito foi desenvolvido, em 2003, pelo filósofo, cientista político e historiador camaronês Achille Mbembe ao ques-

8 Recentes pesquisas realizadas por dois geógrafos do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisa em Espaço e Metropolização) desenvolvem importante debate sobre o tema. A pesquisa de Felipe Taumaturgo Rodrigues de Azevedo intitula-se “Entre labirintos e bifurcações: escombros, cartografias e a produção do espaço na área central do Rio de Janeiro”, e a de Felipe Rangel Tavares intitula-se “Metropolização do espaço e enredamentos de rebeldia e resistência: da biopolítica espacial de negação do ser político às tramas políticas de ação rebelde”.

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tionar os limites da soberania quando o Estado escolhe quem deve viver e quem deve morrer. Trata-se de uma obra forte em que afirma que, ao se negar a humanidade do outro, toda forma de violência é possível, desde agressões, mutilações e até a morte. Mbembe parte da ideia de biopolítica desenvolvida por Foucault, mas vai além. A pesquisadora da Escola de Comunicação da USP, Rosane Borges, afirmou em uma entrevista9 que “a necropolítica é a política da morte adaptada pelo Estado. Ela não é um episódio, não é um fenômeno que foge a uma regra. Ela é a regra. E Achille Mbembe elabora esse conceito à luz do estado de exceção, do estado de terror, do terrorismo”. De forma contundente afirmou ainda que “a necropolítica adota tipografias da crueldade. São os lugares em que se tem licença para matar. Lugares subalternizados, com uma densidade negra. Então, quando a gente junta necropolítica com raça e com racismo, a gente vai ver que essa política da morte tem um endereço”. De fato, a realidade que se vê no Brasil confirma, infelizmente, tudo isso. Além disso, todo discurso feito reforça a ideia de que é preciso aumentar os investimentos em segurança pública. Entretanto, não se deveria falar de segurança pública desvinculada de políticas de educação, de saúde, de saneamento, de geração de emprego e de cultura. É preciso entendermos que a educação é fundamental para a construção de um futuro melhor, além de ajudar na prevenção da violência. É fundamental investir na saúde, inclusive de cunho educativo; além disso, não é possível dissociar saúde de saneamento. Dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), a partir de uma pesquisa realizada em 2016, revelam que mais de 51,9% da população brasileira não tem acesso à coleta de esgoto. Imagens veiculadas diariamente das favelas do Rio de Janeiro mostram esgotos a céu aberto, que contaminam os moradores e geram problemas graves de saúde. Atualmente estamos vivendo a celeuma da pandemia de Covid-19, mas, se nos voltarmos para os números da tuberculose, os resultados são assustadores! A média de incidência de tuberculose no Brasil é de 33,8 casos por 100.000 e no município do Rio de Janeiro é de 89,7 por 100.000. A favela da Rocinha, na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, tem mais de 100.000 moradores e é apontada como um dos principais focos de tuberculose do Brasil. A partir dos dados registrados pela Se9 Ferrari (2019).

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cretaria Municipal de Saúde, a Rocinha possui uma taxa de incidência de 372 casos por 100.000 habitantes; ou seja, 11 vezes mais alta do que a média nacional! Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil está na lista dos 22 países que concentram 80% dos casos de tuberculose no mundo. Referimo-nos a pessoas que vivem em condições sanitárias degradantes e que moram em locais que são verdadeiros cubículos. Os casebres que ficam no térreo, embaixo de outros casebres e espremidos em ruas estreitas, não recebem sequer luz solar. Os moradores convivem com o cheiro de esgoto e de lixo (muitas vezes deixado nas vielas) associado ao cheiro de mofo de suas moradias. Essas casas, que não recebem luz solar, muitas vezes têm apenas uma pequena janela, o que contribui para a falta de circulação de ar. A tuberculose se dissemina mais facilmente nessas áreas de grande aglomeração de pessoas, sem entrada de luz solar e baixa circulação de ar. Demos o exemplo da Rocinha, mas isso se repete em outras favelas. Ao referir-nos à tanatopolítica e à necropolítica, procuramos deixar claro que se trata do uso do poder social e político para decidir como algumas pessoas podem viver e como outras devem morrer; trata-se de métodos de gestão da população mais pobre a partir da produção da morte, que se apresenta a essa população através do abandono, da exposição a riscos ou do próprio extermínio. De alguma forma, o que se viu na maneira de lidar com a pandemia de Covid-19 no Brasil – principalmente por parte do governo federal – foi exatamente essa política de produção de morte, majoritariamente da população mais fragilizada.

E a pandemia de Covid-19 chegou ao Brasil A Covid-19 chegou ao Brasil através de pessoas de estratos de renda alta e média-alta. No Rio de Janeiro, através de moradores de bairros da Zona Sul e da Zona Oeste litorânea (a Barra da Tijuca). Essas pessoas, que estavam viajando e vieram contaminadas, começaram a transmissão na cidade. Ou seja, o contágio no Rio de Janeiro seguiu o mesmo perfil das tendências observadas nas grandes metrópoles do mundo. A dinâmica de contágio é essencialmente urbana e se dá a partir da intensa circulação e tráfego aéreo entre as grandes cidades do mundo.

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A partir daí passamos para a fase de “transmissão local” e em seguida de “transmissão comunitária”. Ou seja, quem trouxe o vírus de fora transmite para pessoas que não viajaram; e pessoas que não viajaram e foram contaminadas começam a transmitir para outras pessoas à sua volta. Foi assim que a Covid-19 chegou aos bairros populares e às favelas do Rio de Janeiro. Uma interessante matéria no site do Observatório das Favelas traz um mapeamento muito representativo dessa desigualdade a que estamos nos referindo. Consultando o site podemos ver que A taxa de letalidade de cada zona da cidade, que acompanha em maior ou menor grau as condições socioeconômicas médias, são reveladoras das desigualdades sociais no Rio de Janeiro. A Zona Sul e o Centro da Cidade apresentam uma taxa de letalidade com 8% e 7,5% dos casos confirmados (ou seja, dos casos com sintomas graves que receberam testes). Esses números apontam não só para a concentração de equipamentos de saúde nessas localidades, mas também para a concentração média de renda familiar. Se considerarmos o baixo número de testagem como um todo, é uma taxa de letalidade relativamente baixa. Por outro lado, a Zona Norte da cidade apresenta uma taxa de letalidade de 19%, mais que o dobro da Zona Sul. A Zona Oeste chega a quase três vezes esses valores, atingindo a marca de 20,5%. (BARBOSA; TEIXEIRA; BRAGA, 2020).

A distância expressiva entre as taxas de letalidade de cada zona são forte indicador de como a Covid-19 reflete as condições espaciais e sociais da cidade, e, segundo Barbosa, Teixeira, Braga (2020), acabam revelando “o abismo no acesso a serviços de saúde e assistência como um todo”. Essas informações tornam-se ainda mais claras se observarmos o mapeamento realizado pelo Observatório das Favelas. Na sequência, reproduzimos esses mapas; neles é possível observarmos o movimento de expansão da Covid-19 no município do Rio de Janeiro em relação ao contágio e à letalidade de 17 de março a 3 de maio de 2020 (Mapas 1, 2, 3 e 4). Referimo-nos aqui apenas à fase inicial da pandemia no Rio de Janeiro. No Mapa 4 é possível observarmos a informação sobre a taxa de letalidade por zona. Fica claro que, apesar do elevado número de casos confirmados na Zona Sul da cidade – a área que abriga a população de mais alta renda –, as zonas Oeste e Norte registraram mais do dobro de taxa de letalidade.

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Mapa 1. Contaminação Covid-19 até 17/3/2020

Fonte: Barbosa, Teixeira e Braga (2020)

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Mapa 2. Contaminação Covid-19 até 10/4/2020

Fonte: Barbosa, Teixeira e Braga (2020)

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Mapa 3. Contaminação Covid-19 até 3/5/2020

Fonte: Barbosa, Teixeira e Braga (2020)

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Mapa 4. Contágio e letalidade Covid-19 até 4/5/2020

Fonte: Barbosa, Teixeira e Braga (2020)

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A partir de dados coletados pelo Projeto S.O.S. Favela, podemos perceber que a situação é gravíssima nas favelas do Rio de Janeiro, onde, do total de vítimas fatais do novo coronavírus nessas áreas, 20% das pessoas morreram em suas próprias casas. Dentre os casos que não resultaram em morte, 75,5% dos contaminados não buscaram atendimento em unidades de saúde pública. Isso dá-nos uma ideia do tamanho das subnotificações nas favelas. Ao falarmos em subnotificações, não estamos fazendo meras suposições infundadas. Baseamo-nos em fatos, por exemplo: o número total de mortes em São Paulo em março de 2020 ficou 168% acima do registro oficial; internações por síndromes respiratórias aumentaram quase 10 vezes em 2020 no Brasil em relação ao histórico dos números anteriores; cartórios registraram aumento de 1.035% nas mortes por síndrome respiratória no Brasil em março e abril de 2020; o número diário de enterros em cemitérios públicos de Manaus aumentou 161% entre 9 e 25 de abril; mortes de brasileiros em casa cresceram 11% nos meses de março e abril de 2020 em comparação com o mesmo período do ano de 2019; na contagem da Fiocruz, até 4 de abril de 2020, o Brasil teve 33,5 mil internações por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), muito acima da média desde 2010, de 3,9 mil casos. Mesmo em 2016, em meio ao surto de H1N1, foram registrados 10,4 mil casos no mesmo período do ano. Ou seja, o que estamos observando no Brasil é algo muito mais grave do que estamos lendo nos dados oficiais e na própria mídia.

Para onde estamos indo na pandemia... para onde poderíamos ir... Temos ouvido várias pessoas dizendo que o vírus não faz escolhas em sua trilha de infecções; não tem preconceito de classe, gênero ou cor. Todos são vulneráveis diante de sua ameaça; “estaríamos todos no mesmo barco”... Isso é mesmo muito relativo, pois, como li outro dia em alguma mensagem que circulava nas redes sociais, “não estamos todos no mesmo barco; estamos todos no mesmo mar, mas uns em iates e outros agarrados a um tronco!”. Se é verdade que o vírus não escolhe a quem infectar, é verdade também que os infectados têm capacidade de lidar com ele de maneira bem diferente. Se pensarmos nessa população mais pobre, que vive em con-

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dições precaríssimas, em casebres sem saneamento básico e água limpa, como temos coragem de dizer a eles que têm que se manter em quarentena? Que têm que lavar as mãos com sabonete líquido? Que têm que usar álcool em gel? Como dizer “fique em casa”? Em que condições? Dez pessoas morando em dois cômodos? Que isolamento? Como ficar em casa se o governo criou toda espécie de dificuldade para lhes conceder os míseros R$ 600? Essas pessoas não estão realizando suas atividades através do teletrabalho (ou do home office, como preferem alguns); nem sabem o que é isso... Teletrabalho é coisa de uma pequeníssima parcela da sociedade. A filósofa Judith Butler (2020) escreveu há pouco tempo que A desigualdade social e econômica garantirá a discriminação do vírus. O vírus por si só não discrimina, mas nós humanos certamente o fazemos, moldados e movidos como somos pelos poderes casados do nacionalismo, do racismo, da xenofobia e do capitalismo. Parece provável que passaremos a ver no próximo ano um cenário doloroso no qual algumas criaturas humanas afirmam seu direito de viver ao custo de outras, reinscrevendo a distinção espúria entre vidas passíveis e não passíveis de luto, isto é, entre aqueles que devem ser protegidos contra a morte a qualquer custo e aqueles cujas vidas não valem o bastante para serem salvaguardadas contra a doença e a morte.

Temos visto em propagandas e em programas jornalísticos que precisamos ter calma, pois em breve tudo voltará ao normal. Precisamos ter cuidado com essa afirmação, nos lembrou Eliane Brum (2020a) em um artigo no El País, porque nos faz crer que o mundo antes da pandemia era bom. Não era bom. Era e continua sendo extremamente desigual e cruel! Aliás, de fato, o mundo não será o mesmo depois da pandemia, ele pode se tornar pior. Até um tipo de atividade que está sendo altamente utilizada em tempos de pandemia está correndo riscos. Estou me referindo àqueles que trabalham como entregadores, que durante a pandemia estão expostos ao risco de contágio para proteger aqueles que podem ficar em casa, comprar e encomendar suas entregas. Já há empresas que desenvolveram veículos autônomos (uma espécie de van-robô) para realizar entregas. Isso está acontecendo em cidades como Irvine na Califórnia

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e em Fairfax na Virgínia. Na China, a empresa Neolix também começou a utilizar vans autônomas para realizar entregas. A política de geração de emprego e renda – como procuramos deixar claro no primeiro capítulo desta obra – ganha grande importância, visto que o futuro imaginado a partir das inovações tecnológicas promoverá forte redução de ocupações no mercado de trabalho, o que aponta para o risco de uma realidade distópica. Isso é muito importante, visto que o debate, em geral, encontra-se ligado à questão da segurança e não da seguridade social. Etimologicamente, a palavra seguridade tem origem na expressão latina securĭtas, ātis, que significa sossego, paz de espírito. Entretanto, é impossível termos sossego e paz de espírito sabendo que a parcela dos 10% mais ricos do Brasil concentra 41,9% da renda total do país, e que a parcela do 1% mais rico concentra 28,3% da renda! Ou ainda que cerca de 52% da população brasileira não tem coleta de esgoto e que 18,4 milhões de brasileiros não recebem água encanada diariamente! A seguridade social diz respeito ao conjunto de ações dos poderes públicos e da sociedade que, integradas, asseguram a saúde, a previdência e a assistência social. Nesse sentido, tratar-se-ia de um sistema de proteção público que zelaria pelos cidadãos em caso de desemprego, doença, velhice, invalidez etc. Essa mesma percepção tem o advogado Fábio Zambitte Ibrahim (2009, p. 37), especialista em Direito Público, que, ao remeter-se à seguridade social, a compreende como uma “rede protetiva formada pelo Estado e sociedade, com contribuições de todos, […] no sentido de estabelecer ações positivas no sustento de pessoas carentes, trabalhadores em geral e seus dependentes, providenciando a manutenção de um padrão mínimo de vida”. Apesar de tudo isso, como já procuramos deixar claro anteriormente, e apropriando-nos neste momento do filósofo francês Pierre Dardot e do sociólogo Christian Laval (2016, p. 17), vivemos exatamente a negação da seguridade, já que “o neoliberalismo pode ser definido como o conjunto de discursos, práticas e dispositivos que determinam um novo modo de governo dos homens segundo o princípio universal da concorrência”. Além disso, trata-se de um sistema de normas extremamente ligadas às práticas governamentais, nas políticas institucionais e nas formas de gerenciamento. Inclusive estendendo “a lógica do mercado muito além das fronteiras estritas do mercado, em especial produzindo uma subjetivida-

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de ‘contábil’ pela criação de concorrência sistemática entre os indivíduos” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 30). Essa estratégia de ação levou a que cada pessoa conduzisse a si mesma como uma empresa, e assim a tratar os outros a partir da lógica da concorrência. Vivenciamos uma mudança radical, visto que, na busca de valorização, um volume muito grande de capitais encontra-se fora do capital industrial. Em outras palavras, presenciamos uma fase do capitalismo em que, como afirma o economista francês François Chesnais (2005, p. 38), “a reconstituição de uma massa de capitais procura se valorizar fora da produção, como capital de empréstimos e de aplicação financeira”, e isso se deu devido à “baixa rentabilidade dos investimentos industriais (fato visível nas estatísticas)”. Se apontamos a importância da manutenção de um padrão mínimo de vida – e tenhamos em mente que a ideia de “um padrão mínimo” já é extremamente relativa –, o momento de hegemonia do capital financeiro torna-se impeditivo dessa necessidade. Isso porque a acumulação via capital financeiro, de certa maneira, independe do processo de valorização fundado no trabalho. O que estamos defendendo é a importância de deslocarmos as nossas preocupações acerca da necessidade de investimentos em segurança para a de investimentos em seguridade social. Ao enfatizar a insegurança, o discurso político obscurece a total precariedade das condições de vida da população mais pobre, que não vive, apenas sobrevive. Torna-se cada vez mais fundamental investir em projetos sociais, em saneamento, em equipamentos urbanos, em saúde e educação públicas. É necessária a criação de espaços públicos de prática da cidadania, assim estaríamos construindo espaços de convivência e de solidariedade, o que contribuiria para o movimento em direção à redução da violência e também em direção à radicalização da democracia.

Produção do espaço e a radicalização da democracia A maneira como exercitamos a democracia influencia fortemente a produção do espaço. Se acreditamos, junto com o filósofo francês Henri Lefebvre (1969), que o direito à cidade é “o direito à vida urbana, condição de um humanismo e de uma democracia renovados”, não nos restam dúvidas de que nos referimos ao direito à produção do espaço. Entretanto,

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estão em jogo relações desiguais de poder, que se materializam cada vez mais através de lógicas de direção e comando ligadas à dimensão política do processo de metropolização. Essa construção política procura afastar o cidadão do seu reconhecimento como ser político, alienando-o de si mesmo. Grande parte desse processo se dá através do apagamento do ser político através da ideia de que o exercício da democracia se dá apenas através dos entes políticos institucionais. Há tempos observamos a utilização da ideia de que vivemos uma situação de insegurança generalizada para impor um modo de gestão da vida coletiva através da gestão dos riscos e das ameaças; e, para tanto, a partir da associação do Estado e dos grupos hegemônicos que se mantêm no poder (mesmo não estando no governo), e das técnicas de segurança,10 que ao viabilizarem a transformação do espaço, conseguem propiciar a manutenção do status quo. Tendo isso em conta, o geógrafo Felipe Rangel Tavares (2020, p. 14) afirma que a coerção na metrópole se dá através “do domínio do controle, da repressão e da imposição no e pelo espaço”. Reitera ainda que “a garantia da ‘normalidade’ e da ordem no território ocorre por meio de procedimentos espaciais cujas normas estão inscritas nas formas geográficas, predefinindo ritmos, usos e práticas preestabelecidas pelo Estado, seja a partir de ordenamentos jurídicos, seja a partir do uso da força e de seu braço repressor, neste caso, a polícia e suas tecnologias”. A construção da ideia de “normalidade” caracteriza-se, cada vez mais, pelo enfraquecimento do direito público em relação ao direito privado. Esse encaminhamento encontra eco na assertiva de Dardot e Laval (2016, p. 379) ao apontarem para uma “conformação da ação pública aos critérios da rentabilidade e da produtividade, depreciação simbólica da lei como ato próprio do Legislativo, fortalecimento do Executivo, […] tendência dos poderes de polícia a isentar-se de todo controle judicial, promoção do cidadão-consumidor”. Não são poucos os casos de excesso de violência por parte da polícia ao executar toda forma de ações de repressão. Todavia, os governantes têm afirmado a todo momento que as decisões e o modus operandi são condutas técnicas. Os idealizadores desse tipo de discurso afirmam ser esse um ponto altamente positivo e

10 O geógrafo Rogério Haesbaert (2014, p. 156-163) desenvolve interessante debate acerca da relação entre (in)segurança e implementação de técnicas de segurança na modificação do território.

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que deve ser enaltecido, entretanto sabemos que se trata da criação de uma forma de alienação. Há por trás desse discurso o objetivo de desqualificar o sentido do agir político; não nos restam dúvidas de que as escolhas da administração pública são políticas e têm reflexos sociais. Aliás, ao introjetar no imaginário social a perspectiva de que as decisões têm um caráter meramente técnico, são suprimidas outras possibilidades de escolhas. Vemos constantemente discursos enaltecedores do empreendedorismo que transmitem a ideia de que esse é o caminho; ser moderno e atual é ser empreendedor. Dardot e Laval (2016, p. 381) preocupam-se com o fato de que, assim, “a figura do cidadão investido de uma responsabilidade coletiva desaparece pouco a pouco e dá lugar ao homem empreendedor”. Ou seja, a referência da ação pública é o empreendedor, e não mais o sujeito de direitos. Como tentamos deixar claro anteriormente, essas transformações, pelo grupo hegemônico, na racionalidade da administração pública, são viabilizadas através da associação entre os interesses privados e o Estado. O economista e sociólogo Carlos Vainer (2011) desenvolve a noção de “cidade de exceção”, que acabou sendo viabilizada através da edificação do que denominou “democracia direta do capital”. Nesse novo cenário, a anterior perspectiva de planejamento urbano cedeu espaço para a competitividade das cidades, a flexibilidade e a orientação para o mercado. Trata-se de uma estratégia para minar o agir político, posto que viabiliza a despolitização da gestão e a desqualificação da política. Inclusive, ao discurso acerca da necessidade de união da sociedade para escapar do momento de crise juntam-se outros, como a necessidade de contar com gestores modernos e capazes que saibam aproveitar as “janelas de oportunidades”. Entendem-se como oportunidades a redução dos servidores públicos, a privatização de empresas, a criação de organizações sociais (OS) para gestão da saúde e da educação públicas, a organização de megaeventos para atração de capital etc. Aliás, há tempos escrevemos sobre a urbanização segregadora e a banalização do espaço através da cópia de “modelos de sucesso” desenvolvidos em outras cidades.11 Resta-nos inquirir: sucesso para quem? Recentemente vivenciamos na cidade do Rio de Janeiro a experiência de sediar grandes eventos (Copa do Mundo de

11 Ferreira, Alvaro. A cidade no século XXI: segregação e banalização do espaço. 2. ed. ampliada. Rio de Janeiro: Consequência, 2013b.

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Futebol 2014 e Jogos Olímpicos 2016, por exemplo) e podemos afirmar que não houve – como prometido – grandes legados à sociedade. A razão neoliberal a que se referem Dardot e Laval (2016, p. 383) rompeu inclusive com os princípios morais e jurídicos da dita democracia liberal. O que se vê “é a tradução de uma propensão acentuada da nova lógica normativa a apagar as diferenças entre regimes políticos, a ponto de relegá-los a uma relativa indiferenciação, a qual in fine ameaça até mesmo a pertinência da noção de ‘regime político’ herdada da tradição clássica”. Não à toa temos visto frequentemente – evidentemente a partir da teoria social crítica – expressões como “desdemocratização” e “antidemocratismo”, visto que o neoliberalismo corrói a democracia ao reduzi-la a mero modo de designação de representantes e governantes. No século XXI, mas poderíamos afirmar que desde o último quartel do século XX, no cenário de produção do espaço, independentemente do município ou do país, é possível percebermos uma adequação das administrações públicas (em que os governantes preferem se designar como gestores) ao discurso de empresariamento, competitividade e planejamento estratégico. Ou seja, como procuramos deixar claro, a lógica empresarial tomou conta dos governantes, o que acaba por fazer com que todos acreditem que as cidades estariam submetidas ao mesmo mundo competitivo das empresas (VAINER, 2016). Dessa maneira, a produção do espaço aproxima-se mais da competição pela atração de investimentos de capital estrangeiros do que das necessidades dos cidadãos. Regras de uso do solo, zoneamento e normas construtivas são alteradas em acordos diretos entre os poderes executivo e legislativo para viabilizar projetos, muitas vezes, definidos pelas grandes empresas da construção ou por grandes corporações. Para colocar em curso a lógica do planejamento estratégico, esses atores sociais constroem estratégias para viabilizar a eliminação da política, do conflito e do exercício da cidadania; logo, trabalham para enfraquecer a democracia. O curioso é que, anteriormente, o projeto de planejamento urbano tinha outro caráter e preocupação. Aquilo que se discutiu no Brasil na década de 1980 (e que teve desdobramento na própria Constituição de 1988) trouxe a defesa do planejamento urbano alternativo, que apontava para a ideia de justiça social. Nesse sentido, defendia-se a melhor distribuição de investimentos públicos pelo espaço da cidade com o objetivo

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de reduzir a segregação. Tivemos a partir daí a criação dos Planos Diretores e do Estatuto da Cidade. O instrumento básico da política de desenvolvimento do município passou a ser o Plano Diretor, que tem como finalidade a regulação da ocupação, além de tentar assegurar melhores condições de vida à população. Nele encontramos as diretrizes que deverão guiar a atuação dos atores públicos e privados sobre as ações no território do município. Outro ponto fundamental é que o Estatuto da Cidade apresenta os preceitos para a concretização da participação popular na elaboração e fiscalização da implementação do Plano Diretor, o que apontaria para um planejamento participativo. Essa participação se daria através da promoção de audiências públicas e debates com a participação da população e de associações representativas. Assim sendo, o cidadão poderia influenciar diretamente no processo de elaboração do Plano Diretor. Apesar de em nenhum momento questionar a propriedade privada, o Estatuto da Cidade exigia que ela desempenhasse uma “função social”, o que contribuiria para a redução da especulação imobiliária. Para isso, foram criados alguns instrumentos punitivos, como o IPTU progressivo no tempo, a contribuição de melhorias e a concessão onerosa do direito de construir (“solo criado”). Outro instrumento importante seriam as ZEIS (Zonas Especiais de Interesse Social), que deveriam assegurar áreas bem localizadas e providas de infraestrutura para o uso dos mais pobres. Se olharmos para as áreas centrais, as ZEIS teriam importante papel na utilização de prédios abandonados e terrenos vazios para habitação popular. Como é possível percebermos, passamos de uma proposta que pensava em alguma forma de participação no planejamento e produção do espaço para outra em que o caminho passa a ser a lógica do mercado. Isso se deu por meio da utilização de uma democracia de baixa intensidade, diria Boaventura de Souza Santos (2007). O que também não significa dizer que o Estatuto da Cidade e o Plano Diretor sejam exemplos perfeitos de participação social e de transformação da sociedade. Aliás, não devemos acreditar que o Estatuto da Cidade e o Plano Diretor tenham por si só contribuído para fortalecer a democracia, não é possível acreditar cegamente na opinião de que tenham implementado a participação popular no planejamento e gestão das cidades. Ainda que seus idealizadores pudessem ter tido ótimas intenções, a participação instaurada não se cons-

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tituiu de forma deliberativa, restringindo-se a uma forma meramente consultiva. Em grande parte das vezes, a sociedade era apenas informada dos projetos a serem implantados; ou seja, funcionava como simples propaganda das ações do governo. Isso significa afirmar que, mesmo naquele momento, não nos aproximamos nem um pouco de uma radicalização da democracia, ou da verdadeira democracia – debate que será efetivamente retomado no quarto capítulo desta obra. Parece-nos crescentemente claro que há uma forte tensão entre capitalismo e democracia, entretanto temos percebido que desde o último quartel do século XX essa tensão foi escamoteada, visto que o debate acerca da redistribuição social foi esquecido. Esta certeza fez com que o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos (2007, p. 88) afirmasse que “vivemos em sociedades politicamente democráticas mas socialmente fascistas. Ou seja, está emergindo uma nova forma de fascismo que não é um regime político, mas um regime social. É a situação de gente muito poderosa que tem poder de veto sobre setores mais fracos da população”. Como acreditar que vivemos em uma democracia, se basicamente não há limites à propriedade privada nem sequer se questiona a propriedade privada? Presenciamos o crescimento exacerbado da desigualdade que ocorre no mundo como um todo, mas que ganha status de calamidade nos países mais pobres, cuja desigualdade acaba por excluir um número cada vez maior da população das condições mínimas de vida. E o mais incrível é observarmos que toda essa desgraça é banalizada; trata-se da total naturalização do absurdo! Como, então, acreditar que vivemos em um Estado democrático? Não é possível acreditarmos que esse seja o “caminho natural” até chegarmos ao patamar dos ditos países de capitalismo avançado. A construção da concepção de que há países de capitalismo avançado – países ditos desenvolvidos – e países ainda atrasados remete à noção de etapismo, de um exemplo final único a ser alcançado. Obviamente esse olhar carrega em si uma visão colonialista, que contribuiu para silenciar muitas culturas. Não nos referimos ao colonialismo político, mas ao colonialismo do saber, cultural. Algo que há tempos o sociólogo peruano Aníbal Quijano (2005) já denominava como colonialidade do poder. O caso brasileiro ganha ainda mais complexidade, visto que a luta pela independência – além de se realizar através dos descendentes dos colonos – teve como vitorioso o filho do próprio rei de Portugal, que se tornou imperador do

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Brasil. Assim, a história da constituição da sociedade brasileira carrega consigo uma espécie de colonialismo interno. Tendo isso no horizonte, Sousa Santos (2007, p. 62) aponta para seis formas fundamentais de poder: patriarcado, exploração, fetichismo das mercadorias, diferenciação desigual, dominação e intercâmbio desigual. Não avançaremos muito mais nesse debate, embora já o tenhamos apresentado brevemente no primeiro capítulo desta obra. Radicalizar a democracia significa também trabalhar pela construção da emancipação, que traz consigo o respeito à igualdade e o reconhecimento das diferenças sem criar qualquer forma de hierarquização. É impressionante e infeliz, em pleno século XXI, ainda termos de falar em desigualdade e exclusão. Há um número enorme de pessoas que são invisibilizadas na sociedade, seja no que se refere à opinião, seja no que tange aos direitos básicos à vida. O racismo estrutural é também uma realidade brasileira, que embora possa ser facilmente notado, a sociedade insiste em negá-lo. Referimo-nos a um conjunto de hábitos, práticas históricas e culturais que colocam os negros em posição inferior, levando a disparidades sociais graves que permanecem ininterruptamente através do tempo, acirrando direta ou indiretamente a segregação e o próprio preconceito racial.12 Ao apontarmos para a necessidade de radicalização da democracia, procuramos deixar em evidência que vivemos, equivocadamente, um consenso em torno do procedimento eleitoral como sinônimo de democracia. Curiosamente, ao votarmos estamos simultaneamente transferindo a nossa participação e decisão a um representante; em outras palavras, estamos autorizando o representante eleito a decidir por nós. A democracia representativa traz consigo dois braços: autorização e prestação de contas, entretanto o cumprimento da prestação de contas não se realiza de maneira clara. Talvez isso explique o discurso de que a população não se sente representada por seus representantes eleitos. Esse sentimento levou a manifestações nas redes sociais e também nas ruas através de afirmações como: “os políticos não me representam”; “os políticos são todos corruptos”; “os partidos são todos iguais”; e “meu par-

12 Já nos debruçamos sobre o tema da desigualdade e do preconceito racial neste capítulo e no primeiro capítulo desta obra.

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tido é o meu país”. Outra consequência observada tem sido o aumento da abstenção e dos votos brancos ou nulos nas eleições. Mirando o Brasil – onde o voto é obrigatório –, houve uma abstenção de 23,15% dos eleitores nas eleições de 2020. Houve, evidentemente, o fator da pandemia de Covid-19, entretanto esse número já se mostrava em uma curva crescente desde as eleições municipais de 2000. Nos pleitos anteriores as abstenções totalizaram 21,60% em 2016, 19,12% em 2012, 18,09% em 2008, 17,30% em 2004 e 16,20% em 2000. Observando os dados referentes às duas maiores cidades do país, a situação impressiona ainda mais. No segundo turno das eleições para prefeito do Rio de Janeiro, tivemos 35,45% de abstenções (1.720.154 de pessoas), e, além disso, 431.104 eleitores anularam o voto e 157.610 votaram em branco. A soma das abstenções e dos votos nulos e brancos chegaram a 2.308.868 eleitores. Para termos uma ideia do que isso representa, o prefeito eleito teve 1.629.319 votos e o candidato derrotado obteve 913.700 votos; somando os votos dados aos dois candidatos no segundo turno, o resultado é de 2.543.019 votos, apenas 234.151 votos a mais que a soma de abstenções, brancos e nulos.13 Na cidade de São Paulo a situação não é muito diferente; dos cerca de 9 milhões de eleitores, apenas 6.217.508 compareceram às urnas. O candidato a prefeito eleito obteve menos votos do que a soma das abstenções e de votos brancos e nulos; ou seja, o número de votos em branco foi de 273.216 e de votos nulos foi de 607.062, enquanto a abstenção foi de 2.769.179 eleitores. Esses números somados totalizam 3.649.457; por sua vez, o prefeito eleito obteve 3.169.121 votos.14 Esses números vêm confirmar a crise atravessada pela denominada democracia representativa. Entretanto, é também importante refletirmos se essa “crise” não é parte de uma estratégia muito bem planejada para desencorajar a participação e mobilização social. Ao repetirmos incessantemente o mantra “não adianta votar, não adianta reclamar, não adianta lutar pois nada muda”, estamos colaborando para a manutenção do status quo; acabamos deixando tudo como está. Nesse cenário, temos inúmeros atores sociais envolvidos, que algumas vezes se dão suporte e em outras se colocam em tensão. De certa

13 Barreira (2020). 14 Motomura (2020).

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maneira, essas interações, ações e reações já estavam apontadas anteriormente neste texto e dizem respeito aos interesses dos grandes incorporadores, dos proprietários do solo urbano, dos empresários da construção civil (principalmente as grandes empresas), do grupo ligado ao capital financeiro, do Estado e da grande mídia (que cumpre também importante papel). Nesse jogo de poder, importa introjetar no imaginário social que as escolhas são sempre técnicas, e que os governantes são gestores e não estão fazendo escolhas políticas. Isso contribui para a separação entre economia e política, o que é um erro, mas esses atores o fazem propositalmente. Entretanto, também se encontram nesse jogo o cidadão comum que percebe essas relações de poder e procura encontrar formas de escapar da alienação, os movimentos sociais tradicionais (cada vez mais fragilizados) e aquilo que acabamos por denominar de atores e agentes ligados às mobilizações sociais. Esse último grupo é muito diversificado e volátil e pode reunir um número muito grande de pessoas em uma mobilização, mas com posições ideológicas totalmente antagônicas (as mobilizações de 2013 no Brasil são um bom exemplo). As mobilizações sociais de 2013 levaram às ruas milhões de pessoas, que em boa parte orgulhava-se em afirmar que não se tratava de política; além disso, insistiam para que os partidos políticos se mantivessem fora das manifestações (afirmavam que eram, inclusive, contra os partidos políticos). Em outras palavras, entendiam que a política era coisa dos partidos e dos políticos institucionalmente eleitos. Grande equívoco. Aliás, é possível afirmarmos que a política (vista dessa maneira) contribuiu para a destituição do ser político que somos todos nós.15 Se realmente acreditamos na democracia como caminho para a construção de uma sociedade mais justa, é preciso radicalizá-la. Isso significa dar voz e visibilidade àqueles que nunca tiveram chance de se manifestar, de falar sobre os seus desejos e sonhos; significa trabalhar para a produção do espaço com justiça social. Aqui vale lembrar do filósofo Jean-Jacques Rousseau, o qual afirmou que “uma sociedade só é democrática quando ninguém for tão rico que possa comprar alguém e ninguém seja tão pobre que tenha de se vender a alguém”. Evidentemente, no século XXI, as formas de submissão e de exercício do poder são ainda mais 15 Voltaremos ainda a esse debate no próximo capítulo.

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complexas, mas o sentido da reflexão de Rousseau mostra-se totalmente válido. Sousa Santos (2016, p. 18), ao refletir sobre uma concepção contra-hegemônica de democracia, acrescenta ainda que “temos o direito a ser iguais quando a diferença nos inferioriza; temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza”. A defesa de que é premente a necessidade de radicalização da democracia não significa que devemos descartar totalmente a democracia representativa, mas sim que ela é apenas uma parte possível. Como já apontamos anteriormente, a dimensão participativa é também fundamental, e no Brasil, no final da década de 1980, surgiram interessantes experiências de democracia participativa através da criação dos orçamentos participativos (prática iniciada na cidade de Porto Alegre durante o governo do Partido dos Trabalhadores). Em outras obras já discutimos as fragilidades dessa prática, mas não restam dúvidas de que foi um avanço em termos do exercício da democracia. Há ainda outros mecanismos importantes para pensarmos no caminho em direção da radicalização da democracia. Referimo-nos à criação de conselhos municipais e estaduais (agregando funções consultivas e deliberativas), consultas populares e referendos. Esses conselhos ou comitês podem também ser organizados de forma temática, dividindo-se em comitês de saúde, educação, mobilidade urbana, infraestrutura etc. Além disso, lembra-nos Sousa Santos (2016, p. 126) que a importância “dos movimentos indígenas na América Latina, com especial destaque para a Bolívia e o Equador, veio a traduzir-se no reconhecimento de um terceiro tipo de democracia, a comunitária, constituída pelos processos de discussão e deliberação ancestrais das comunidades indígenas”. Referindo-se à democracia comunitária, o teólogo Leonardo Boff (2010) afirmou tratar-se de algo “singular dos povos originários da América Latina e pouco conhecida e reconhecida pelos analistas. Ela nasce da estruturação comunitária das culturas originárias, do norte até o sul de Abya Yala, nome indígena para a América Latina”. Acrescenta ainda que tal prática democrática “busca realizar o ‘bem viver’ que não é o nosso ‘viver melhor’, que implica que muitos vivam pior. O ‘bem viver’ é a busca permanente do equilíbrio mediante a participação de todos, equilíbrio entre homem e mulher, entre ser humano e natureza, equilíbrio entre a produção e o consumo”. Portanto, o movimento em direção à radicalização da democracia é, obviamente, um movimento de contraposição ao capitalismo.

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A produção do espaço a partir da associação de práticas comunitárias, participativas e representativas é o caminho para o exercício de uma democracia radical, visto que demanda a criação de espaços políticos a partir de relações de poder totalmente diferentes. Aqui vemos um tensionamento entre o “poder-sobre” (o que realmente há) e o “poder-fazer” compartilhado.16 E não basta – como alguns defendem – que as decisões partam “de baixo para cima, e não de cima para baixo”. É necessário escapar da racionalidade existente, importa escapar de toda lógica de pensamento idealizada por aqueles “de cima”; pois, do contrário, em nossas escolhas, táticas e estratégias, continuaremos presos a formas autoritárias, segregadoras e desigualizadoras. Há tempos viemos – equivocadamente – acreditando que para escapar da dominação temos de tomar o poder, entretanto tal perspectiva leva apenas à mudança do grupo opressor. Como afirmamos, é necessário escapar da racionalidade existente. Algumas ações em direção àquilo que estamos denominando radicalização da democracia (e aqui importa entendê-la como processo), como o próprio orçamento participativo, a criação de comitês populares e as formas de participação de origem indígena, foram postas em prática apenas em nível local. Todavia, esse parece ser o ponto de partida, já que os problemas são percebidos no cotidiano vivido no âmbito do lugar; partir daí não é o problema, temos é que encontrar nexos aglutinadores para as lutas particulares. Não é difícil perceber o que nos difere; mas o que nos une? Não à toa iniciamos este capítulo com uma epígrafe do geógrafo brasileiro Milton Santos: “a força da alienação vem dessa fragilidade dos indivíduos, quando apenas conseguem identificar o que os separa e não o que os une”. Quando mencionamos a democracia participativa, temos de ter em mente que há nela também formas de representação; não há como pensar que sua característica será horizontal em sua totalidade. Por sua vez, o voto é uma forma de participação na democracia representativa; evidentemente, um sistema com a dimensão da participação apenas através do voto caracterizaria uma democracia de baixa intensidade. O desafio, e

16 O cientista político irlandês John Holloway (2003) desenvolve interessante debate acerca dessa tensão. No próximo capítulo retomaremos essa discussão e ampliaremos o diálogo com esse autor.

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simultaneamente a solução, é misturarmos cada vez mais essas tipologias, agregando ainda a elas a democracia comunitária. Se afirmamos anteriormente que a radicalização da democracia tem de ser entendida como processo, convém apontarmos, também, que nesse caminhar é preciso construir diálogos e interações muito mais intensos e profundos entre o Estado, os partidos políticos, a academia e os movimentos sociais (e, inclusive, dos diferentes movimentos sociais entre si). É preciso investir nesse diálogo, pois até mesmo os partidos ditos de esquerda têm estado muito afastados dos movimentos sociais. A própria academia também se encontra afastada dos movimentos sociais e dos cidadãos comuns. Vale lembrar a provocação do geógrafo português João Ferrão (2019, p. 66), que nos desafiava a “praticar com persistência a desobediência epistemológica” ao destacar “a necessidade de romper sistematicamente barreiras internas à ciência […], mas também barreiras ao diálogo ciência-sociedade”. Acredita esse autor que é necessário assegurar a “cocriação de conhecimento com atores externos à academia, sobretudo em lugares e com comunidades onde essa cocriação constitui uma condição de visibilidade, capacidade, empoderamento, autonomia e emancipação dos mais vulneráveis e dos mais esquecidos”. Isso é parte do caminho em direção à radicalização da democracia. A pressão e a cobrança por publicações de artigos científicos acabaram por reduzir ainda mais a dimensão da denominada extensão; ou seja, o tripé da universidade – ensino, pesquisa e extensão – cada vez mais tem se reduzido a apenas duas pernas. A academia precisa refletir e fazer um mea culpa, pois manter-se na zona de conforto da pesquisa e ensino é menos difícil do que a exposição exigida quando do direcionamento à interlocução com os atores sociais envolvidos na ação junto aos movimentos sociais, ao próprio governo e à sociedade comum de maneira geral. Por toda a história da constituição da sociedade brasileira, que – como afirmamos – traz consigo uma espécie de colonialismo interno e externo, há um desconforto de boa parte dos pesquisadores de pensamento crítico ligados às ciências sociais em participar de projetos em parceria com os governos locais. Evidentemente, a maioria dos governantes têm privilegiado a manutenção do status quo, então, para esses cientistas, a “associação” com o governo significaria estar apoiando tal tipo de procedimento. Inclusive, o ativista mexicano Gustavo Esteva (2008) chegou a afirmar que os partidos políticos não representam mais as energias progressistas

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e transformadoras, mas, ao contrário, transformaram-se em obstáculos à transformação social. Isso explicaria, embora não justifique, o distanciamento entre esses pesquisadores e os governantes. Frente a isso, poderíamos travar infinitos debates acerca da validade ou não da tentativa de construção de diálogo com governantes ligados a ideologias políticas de centro ou de direita. Alguns afirmariam que os pressupostos são tão díspares que seria totalmente impossível qualquer diálogo; afirmariam ainda que o papel mais importante dos cientistas, nessa situação, seria a construção da crítica às ações do governo. São afirmações que têm bastante sentido, contudo há outras maneiras para tentar influenciar nas políticas públicas a serem postas em prática. A Constituição Brasileira sustenta que as emendas parlamentares são o instrumento que o Congresso Nacional tem a seu dispor para participar da definição do orçamento anual. Isso significa que novas propostas orçamentárias podem ser acrescidas ao orçamento pelos deputados para o atendimento das demandas das comunidades que representam. Em outras palavras, senadores ou deputados federais podem propor emendas individuais para o orçamento definido pelo governo federal. Além disso, é importante ter em conta que, desde 2013, a sua execução é impositiva; em outras palavras, o Poder Executivo, por lei, é obrigado a repassar os recursos que os parlamentares destinam em suas propostas de emendas individuais. Cada parlamentar pode apresentar até 25 projetos de emendas individuais; isso equivale a afirmar que, “em 2020, serão R$ 15,9 milhões por parlamentar, o que significa que o destino de R$ 9,5 bilhões será decidido pelos 513 deputados e 81 senadores da federação”.17 Ou seja, através do diálogo com políticos ligados a partidos “progressistas” torna-se possível influenciar na forma segundo a qual o orçamento estará sendo destinado. Na esfera municipal há também margem para articulação entre os movimentos sociais e os membros da academia com os vereadores, pois a Emenda Constitucional nº 86/2015 abre caminho para que as Câmaras Municipais possam auxiliar na organização orçamentária do município. Isso abre possibilidades interessantes de intervenção, já que se trata de uma emenda impositiva que permite aos vereadores a apresentação de emendas à Lei Orçamentária Anual, permitindo a destinação de recursos do município para obras, projetos ou instituições. No que se refere 17 Junqueira (2020).

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ao volume de capital envolvido, as “emendas devem ter o limite de 1,2% da receita corrente líquida do ano anterior, sendo que metade desse percentual, 0,6%, deve ser empregado em ações e serviços de Saúde, exceto despesas com pessoal e encargos”.18 Essas emendas propiciam maior participação popular através de debates junto aos vereadores; além disso, trazem mais transparência nas escolhas e no planejamento das prioridades. Isso não significa acreditar que esta seja a única forma de participação – através das emendas e da mediação direta dos senadores, deputados e vereadores –, até porque muito da energia democratizante que temos visto ultimamente não advém da dimensão institucional, seja do Legislativo ou do Executivo. Porém, acreditamos que não devemos abrir mão de qualquer instrumento ou mecanismo para intervir nas decisões. Há inúmeras experiências que apontam para práticas em direção da radicalização da democracia. Algumas muito embrionárias, outras mais efetivas; algumas mais ligadas à democracia participativa, outras à democracia comunitária. A partir deste momento, traremos alguns exemplos que podem indicar caminhos importantes na direção dessa radicalização a que nos referimos.

Possibilidades de mudança: experiências que geram esperança Há algumas experiências que nos animam a acreditar que é possível trabalhar pela transformação da lógica capitalista e que o verdadeiro exercício da democracia é realmente viável. São experiências espalhadas por vários locais, em diversas cidades mundo afora. Todas guardam suas especificidades, mas acreditamos que possam ser exemplos para outras cidades do mundo. O movimento zapatista, na região de Chiapas, no México, mais fortemente identificado em meados da década de 1990, traz alguma esperança ao que se refere à radicalização da democracia e ao movimento para a criação de algo para além do capitalismo. Segundo os participantes do movimento, o motor de tudo são os trabalhos coletivos. Trata-se da construção de novas relações sociais. Inclusive, devido aos trabalhos coletivos, as comunidades podem investir em educação e saúde. 18 Ribeirão do Pinhal (s.d.).

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O uso da terra é dividido em terrenos para uso coletivo e para uso das famílias. O cultivo comunitário e a criação de gado são realizados nos terrenos de uso coletivo, e o cultivo para autoconsumo é realizado nos terrenos familiares. Se em princípio pode parecer que a parte da terra que se destina à produção para autoconsumo trata-se de uma forma de propriedade privada, isso não é verdade. A terra não é propriedade de quem quer que seja, não existe a propriedade da terra. Ela tem valor de uso, entretanto não se herda nem é permitido vender a terra, que é vista como bem coletivo. As terras são de quem as usa, “mas quando deixam de usá-las, porque já não pertencem ao movimento, porque faleceram ou por qualquer outra razão, a comunidade decide que uso lhes darão” (ZIBECHI; MACHADO, 2017, p. 30). Aqui, o ponto que parece fundamental é a dissolução da diferença entre propriedade e gestão. É a comunidade que decide as terras que serão ocupadas, quantos dias serão trabalhados para a família e para os trabalhos coletivos. Ademais, o trabalho coletivo não precisa ser apenas na terra, pode ser na negociação e venda da colheita, no apoio à construção de bens coletivos (escolas, hospitais e comércio) etc. Não há comando central, pois cada instância da comunidade é autônoma na tomada de decisões. O trabalho coletivo inclui toda a dinâmica da vida da comunidade, inclusive as assembleias, tomadas de decisão e de representação. Nesse sentido, a gestão é parte do trabalho coletivo, seus membros são alternados constantemente e a própria comunidade avalia o trabalho executado pelo coletivo. Algo muito semelhante acontece na pequena comunidade peruana de Maras, localizada 40 km ao norte de Cusco. A produção de sal mineral é compartilhada pelos moradores da vila e cada família tem direito a um pequeno quinhão para exploração de sal (Figura 21). Ao final de cada período, a coletividade negocia a produção e divide entre as famílias que trabalharam na extração. Somente os moradores de Maras têm direito de explorar a produção de sal, e, se alguém morre ou parte da cidade para outro local, a parcela de terra é redistribuída para outros membros da comunidade que ainda não têm seu quinhão. Não há proprietários, apenas pessoas que compartilham a produção do sal enquanto ali vivem e trabalham. Em Maras, o costume é que, quando duas pessoas constituem uma família, passam a ter direito ao uso de um quinhão de terra para exploração do sal, e tudo é decidido pela própria comunidade na forma de

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autogestão, desde a produção, o armazenamento, a negociação e a venda. Outro ponto interessante a ser mencionado é que, se os membros de uma família adoecem ou ficam muito idosos, os outros moradores de Maras se revezam na exploração de sal no terraço sob responsabilidade dessas famílias. Figura 21. Maras: produção de sal, autogestão e negação da propriedade privada

Fonte: Ferreira (2017)

Mas, voltando ao México, outro importante exemplo de práticas ligadas à radicalização da democracia é encontrado na comunidade de Cherán, município localizado no estado mexicano de Michoacán, situado na parte centro-oeste do México. Essa localidade sofria com a derrubada e o saque de sua floresta, o aumento da insegurança e da violência, e a cooptação da autoridade municipal pelo crime organizado. A população indignada, em abril de 2011, entrou em confronto com os madeireiros, tendo tido as mulheres da comunidade importância fundamental, já que foram elas as que estiveram à frente no início do confronto. Temendo vingança dos madeireiros, a comunidade se organizou contra a ação do crime organizado com a instalação de barricadas em todas as entradas da localidade. As fogueiras (fogatas) que foram erguidas nas esquinas de cada quarteirão, mais tarde, tornaram-se a base da retomada dos espaços de debates e de decisão política das assembleias de bairro e da assembleia

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geral. Através dessas assembleias foram nomeados quatro moradores de Cherán para compor uma primeira comissão, que era composta por um morador de cada um dos quatro bairros da comunidade. O advogado, antropólogo e ativista Orlando Aragón Andrade (2018, p. 389) informa-nos que “esta comissão, conhecida como a Coordenação-Geral, foi a que acabou por liderar todo o movimento social e o processo judicial, como uma espécie de governo popular que funcionou até ao momento do reconhecimento, eleição e instalação de um novo governo municipal regido pelos ‘usos e costumes’, e que teve lugar a 5 de fevereiro de 2012”. Embora houvesse essa Coordenação-Geral, foram formadas outras comissões que tinham a responsabilidade de responder às necessidades da comunidade. No total havia catorze comissões: de honra e justiça; das fogatas, de imprensa e propaganda; de alimentos; de finanças; de educação e cultura; da saúde; florestal; da água; da limpeza; dos jovens; de agricultura e criação de gado; de comércio; e da identidade.19 Convém esclarecer ainda que a composição dessas comissões era sempre equitativa entre os quatro bairros, que os membros eram escolhidos nas assembleias e que para esse trabalho exercido não havia qualquer remuneração econômica. Um ponto importantíssimo é que “a autoridade máxima desde o princípio foram as assembleias” (ANDRADE, 2018, p. 394). Nelas toda a comunidade participava dos assuntos políticos mais importantes para o povoado; além disso, nas assembleias são definidas as designações e as destituições dos membros dos conselhos. Cabe também aos membros das comissões prestar contas das suas ações durante essas reuniões. Essa autonomia territorial conquistada pela população de Cherán, como aponta o geógrafo Rogério Haesbaert (2020, p. 147), resultou de “um complexo processo de negociação em múltiplas escalas (incluindo a ONU), até seu reconhecimento pelo Estado mexicano”. Embora se possa afirmar que esse tipo de práticas políticas de Cherán somente funcione em pequenos povoados ou em comunidades indígenas, lembra-nos Esteva (2008) que, em 2007, a Asamblea Popular de los Pueblos de Oaxaca implantou por cinco meses um “sistema de governo indígena-popular” na cidade de Oaxaca, que contava com 600 mil habitantes. 19 Andrade (2018, p. 389).

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Em um conjunto habitacional em Grenoble, na França, os próprios moradores organizaram um espaço em que são realizadas reuniões para pensar e discutir as suas necessidades e as estratégias de ação. São os próprios moradores que decidem o que e como realizar modificações que melhorem sua condição de vida; inclusive fizeram modificações para interligar os vários prédios do conjunto habitacional através de passagens em diversos andares, o que facilita a comunicação interna. Nas reuniões realizadas no espaço de debates foi levantada a necessidade da criação de uma escola para atender às crianças do conjunto habitacional. Assim, foi construída uma escola no térreo do edifício, o que permitiu, inclusive, que as crianças pudessem ir comer em casa no intervalo das aulas. Não apenas a escola, mas também foram criados uma farmácia, um pequeno mercado e uma lavanderia, que foram distribuídos pelos prédios do conjunto habitacional. Tudo isso decidido pelos próprios moradores e idealizado dentro de uma lógica que valorizava a ideia do “breve deslocamento a pé”. Nas áreas comuns são desenvolvidas atividades esportivas, e o próprio convívio social é valorizado através da conservação dos jardins. Na Espanha é possível vermos alguns exemplos interessantes. Temos o Campo de Cebada – situado no bairro de La Latina, no centro de Madri –, que surgiu depois que uma antiga piscina pública foi demolida, em 2009, e que, ao contrário do prometido pelo governo, nada foi feito no local. O enorme espaço abandonado, cercado e fechado ao público, foi encampado pelos moradores e, depois de diversas reuniões com associações locais e com a prefeitura, acabou destinado à gestão dos moradores, e é agora uma praça pública gerida por vizinhos, usuários e amigos, que acreditam que seja fundamental construir espaços urbanos públicos diferentes, projetados por e para os usuários. O modelo aberto e a gestão em assembleias cotidianas geraram uma infraestrutura cidadã, que incorporou um conteúdo social e cultural. Ali é possível observar projetos de hortas urbanas, campos esportivos, peças de teatro, cinemas de verão e universidades populares. O Campo de Cebada foi transformado em um espaço para o debate, o encontro e o conflito de opiniões. Um espaço projetado para favorecer as trocas cotidianas e o exercício do ser político (ZULOARK, 2016). Trata-se de um espaço aberto em que os coletivos e os articuladores iniciais basearam-se no que se convencionou chamar de DIFO (Do It For Others); ou seja, são produzidos para que outras pessoas

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desfrutem do lugar. Há sempre algo acontecendo, assembleias, eventos culturais, festivais, aulas abertas, eventos esportivos etc. Outro exemplo em Madri é La Tabacalera, uma antiga fábrica de tabaco que abriga inúmeros eventos e festivais. Essa antiga instalação também é organizada e administrada através da autogestão. Bernardo Gutierrez (2016) afirma que o projeto Los Madriles – Atlas de Iniciativas Vecinales já tem mapeados 112 espaços da cidade que são administrados a partir da autogestão. Trata-se de uma espécie de cartografia do comum20 em Madri e inclui diversas atividades, como hortas urbanas, cooperativas culturais, centros sociais (Centros Sociales), bancos de tempo (Banco del Tiempo), espaços de ensino e aprendizado (como, por exemplo, o Do It Yourself), cinemas comunitários (Cinema Usera), centrais térmicas autogestionadas (Central Térmica de Orcasitas), mídia livre autônoma etc. São iniciativas criativas e que apontam para novas possibilidades. O Banco del Tiempo, por exemplo, é um sistema de troca de serviços, conhecimentos e cuidados por tempo. A unidade de valor é a hora, independente do serviço que esteja sendo oferecido ou que esteja sendo recebido. O objetivo do projeto é ajudar as pessoas a solucionar pequenos problemas da vida cotidiana e, consequentemente, criar redes sociais baseadas na ajuda mútua e na solidariedade. Inúmeras atividades são oferecidas, tais como o transporte de crianças ao colégio, acompanhamento de pessoas idosas, massagens corporais, maquiagem, tratamentos capilares, tarefas domésticas (cozinhar, pequenos reparos elétricos, de persianas etc.), cuidado de animais e plantas, assessoria na área de informática, aulas de navegação na internet, aulas de língua estrangeira, auxílio nos trabalhos da escola, aulas de música, de pintura ou de decoração etc. Em Barcelona, na Espanha, temos vários exemplos de experiências que apontam para a ideia de espaços comuns. Na localidade conhecida como Germanetes funcionava o Convento das Irmãs dos Pobres, uma construção do século XIX de cerca de 5.500 m2, localizada no distrito de L’Esquerra de l’Eixample de Barcelona, entre as ruas Consell de Cent, Comte Borrell e Viladomat. Em 2001 o convento encerrou suas atividades, mas desde 2014 o Solar foi reativado no Eixample e é autogerido coletivamente, transformando-se em ponto de encontro para a transforma20 No próximo capítulo abordaremos um pouco mais a noção de “comum”.

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ção social e ambiental do bairro. No momento, diferentes atividades são promovidas no espaço, que agrega vários coletivos do bairro. É aberto a todas as entidades, grupos e pessoas que querem e precisam de um espaço para usar, criar atividades, desfrutar etc. O espaço permite e promove a “participação no espaço público” sempre sob a perspectiva de atividades abertas a todos (não excludentes ou discriminatórias de etnia, gênero, poder aquisitivo etc.) e ausentes de atividades comerciais que promovam um lucro privado. Can Batlló é um antigo edifício fabril do final de 1880, localizado entre a Carrer Constituició e a Gran Vía, no distrito de La Bordeta, que ocupa cerca de nove hectares. Entretanto sua função e fisionomia mudaram drasticamente a partir de 11 de junho de 2011. A antiga fábrica deu origem a um novo espaço social e comunitário para o bairro. O espaço de propriedade privada, depois de mais de 35 anos de demanda popular e através de uma transferência da Câmara Municipal, tornou-se uma instalação coletiva de uso e gerenciamento, aberta e gerenciada diretamente pelos vizinhos. Atualmente envolve mais de 300 pessoas e dezenas de projetos e atividades. Lá é possível encontrar a Biblioteca Popular Josep Pons, um auditório, uma oficina de carpintaria, paredes de escalada e um grupo de circo. Há também uma Creche Cooperativa, a Sala de Informática, uma fábrica de cerveja artesanal, um espaço audiovisual, uma oficina para autorreparo de motos e uma escola de formação profissional. A Ciutat Invisible (cidade invisível) é uma cooperativa ativista autogestionada e localizada no bairro de Sants, que nasceu em 2005 e cuja atividade diária é estruturada em torno de quatro eixos e seus respectivos projetos, quais sejam: comercial com loja e livraria crítica; design gráfico e comunicação; pesquisa, treinamento e edição em assuntos de economia cooperativa; e intervenção sociopolítica e assessoria técnica para acompanhar novas cooperativas. O Ateneu Popular Flor de Maig é um espaço comunitário, autogerido por diferentes grupos, organizações e associações de moradores de bairro, onde são realizados todos os tipos de atividades socioculturais, de protestos e educativas. É principalmente um ponto de encontro para a comunidade. No bairro El Raval há uma ocupação denominada Ágora Juan Andrés Benitez (Figura 22), em memória ao jovem morto em uma ação realizada pelos Mossos d’Esquadra (polícia da Catalunha). A ocupação do terreno

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ocorreu em 5 de outubro de 2014, um ano após o incidente. A autogestão da Ágora é feita por meio de assembleias abertas e o espaço é usado para reuniões, debates, conferências e apresentações de livros, teatro e cinema. Não são permitidos atos partidários ou religiosos ou uso comercial do espaço. Miquel, de 81 anos, morador de El Raval e frequentador dos eventos na ocupação, afirmou que, para eles, a Ágora Juan Andrés Benitez “tem um significado anticapitalista, quer dizer, não é um lugar onde se defenda a acumulação de dinheiro, concentração de capital nem especulação”.21 Figura 22. Ágora Juan Andrés Benitez

Fonte: Molina (2015).

Na cidade do Rio de Janeiro (Brasil) é possível observar projetos de hortas urbanas. Existem pelo menos 66 espalhadas pela cidade, segundo dados da Secretaria Municipal de Conservação e Meio Ambiente. Podemos citar a Horta Comunitária do Cosme Velho, que foi iniciada em 2012 por um grupo de amigos e moradores do bairro, através de ações comunitárias e de caráter voluntário. Além disso, utiliza práticas de horticultura urbana para estimular o convívio social em uma área urbana antes 21 Kohatsu (2019).

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abandonada: um antigo terreno baldio ao lado da estação de bondes para o Cristo Redentor. Os produtos são distribuídos através de doações à comunidade. A Horta Comunitária do Cosme Velho promove piqueniques com a comunidade em eventos para troca de mudas, palestras, visitadas guiadas, oferecem chás de ervas, temperos e mudas de plantas. Dentre as palestras e cursos promovidos, podemos citar o uso correto da água, produção de adubo orgânico, horticultura agroecológica e respeito à natureza. Iniciada em junho de 2015, em um bairro da Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro, a Horta Comunitária do Grajaú tem tido ótimos resultados. O bairro com ar de cidade do interior teve dois canteiros de sua praça central ocupados por um grupo de frequentadores do bairro para cultivar uma horta e um pomar. O geógrafo Mateus Viriato de Medeiros Siniscalchi22 (2019, p. 129) vem pesquisando experiências de hortas comunitárias urbanas e atesta que, em se tratando da organização política e das práticas espaciais, essas iniciativas, “que parecem pequenas e locais num primeiro momento, ultrapassam a prática do cultivo agrícola e criam representações para uma nova mentalidade na relação com o espaço público”. Acrescenta ainda que “não se trata apenas de cultivar árvores e hortaliças, mas sim de cultivar outros tipos de relações sociais, semeando novas formas de resistência e maneiras de se apropriar da cidade”. As hortas comunitárias urbanas viabilizaram o encontro de vizinhos que não se conheciam e que passam a exercitar a cooperação, “construindo juntos uma conexão de pertencimento com espaço público e uma nova relação política com a cidade. Estas pessoas se sentem, de alguma maneira, representadas por meio destas hortas, por perceber que tais obras coletivas são, em certa fração, produtos do seu trabalho” (SINISCALCHI, 2019, p. 130). Dessa maneira, corroboramos a afirmação de que as hortas comunitárias “se constituem como obras coletivas que subvertem as limitações impostas pela normatização estatal e pela lógica da propriedade privada. Pois, frente à governança corporativa da cidade, na qual os atores hegemônicos elaboram estratégias de controle privativo dos lugares, os projetos de hortas comunitárias se erguem através de um conjunto variado de táticas, astúcias, técnicas e travessuras associadas a 22 Membro do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Espaço e Metropolização).

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outras ‘maneiras de pensar’ o espaço público (CERTEAU, 2012). Maneiras que promovem a abertura (física e simbólica) deste espaço à apropriação espontânea e democrática da sociedade” (SINISCALCHI, 2019, p. 130). Através dessa perspectiva, Siniscalchi (2019, p. 154) acredita que estaríamos caminhando para além das definições de público ou de privado, aproximando-nos da ideia de comum.23 Propõe, além disso, “pensar o comum como raiz e fruto das hortas urbanas comunitárias da cidade do Rio de Janeiro. O comum, como princípio político, se apresenta como matriz das práticas espaciais que produzem as hortas urbanas comunitárias”. A pesquisa realizada – além de cuidadosamente redigida nos termos científicos, apresenta um veio poético que traz leveza à sua leitura – acrescenta ainda que tais práticas dão um fruto “que brota no desenvolvimento cotidiano das hortas. Entretanto, cabe enfatizar que o comum produzido nas hortas comunitárias não é apenas um produto material (um recurso físico), referimo-nos principalmente às singulares maneiras de fazer-com que são elaboradas pelos grupos de participantes e que se fortalecem cotidianamente. Trata-se da vida em comum que é gestada dia após dia”. Interessante acrescentar que os grupos ligados à produção e gestão das hortas comunitárias urbanas não são totalmente homogêneos; há diferenças e tensões na gestão coletiva das hortas, entretanto os participantes “descobriram o poder da colaboração e da troca recíproca (de informações, experiências e materiais), engendrando uma série de demandas e perspectivas que dialogam umas com as outras no movimento de produção […] do espaço” (SINISCALCHI, 2019, p. 155). Assim, podemos perceber a importância do “fazer-com”, que se edifica a partir das práticas compartilhadas de gestão do espaço. Na organização e gestão das hortas comunitárias são criados eventos que aproximam e expressam a relevância da construção coletiva: mutirões de manejo, reuniões deliberativas, assembleias, oficinas pedagógicas etc. Há também outros exemplos de conselhos comunais, que inicialmente pareceram bastante importantes, mas que com o decorrer do tempo mostraram sérios problemas na Venezuela. Apesar de o discurso do governo ser de que os conselhos eram totalmente autônomos, todas as

23 No quarto capítulo desenvolveremos com mais vagar a ideia do comum e do fazer-comum.

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instâncias do “poder popular venezuelano” estão submetidas ao poder público, então “não se trata de um contrapoder, mas de uma engrenagem a mais dos poderes existentes” (ZIBECHI; MACHADO, 2017, p. 15). Se fizermos uma reflexão breve sobre um poder autônomo, perceberíamos que um poder assim não teria limite e se autolimitaria quando achasse conveniente. Todavia, no caso venezuelano, conselhos populares “foram criações desde cima, o que significa que estão submetidos a esse de cima que os criou” (ZIBECHI; MACHADO, 2017, p. 16). O que não quer dizer que a ideia de conselhos populares não seja importante. Em Lisboa, Portugal, um projeto conhecido por BIP/ZIP (Bairros e Zonas de Intervenção Prioritária) obteve bons resultados já em um curto prazo. Entretanto, este projeto partiu também de instâncias governamentais, mas contribui para transferir a responsabilidade da definição do que a comunidade deseja, da fiscalização e da própria gestão dos recursos e atividades para a própria comunidade. Isso cumpre um papel importante no médio/longo prazo, pois constrói no imaginário social a percepção de que a autogestão é fundamental para que a vida no âmbito do lugar melhore. O programa visa dinamizar parcerias e pequenas intervenções locais de melhoria de condições de vida da população residente. É destinado a parcerias entre as juntas de freguesia (menor instância administrativa), associações locais, coletividades e organizações não governamentais, e tem como um de seus objetivos reforçar a coesão social e espacial no município. Além disso, objetiva também fomentar a cidadania ativa, a capacidade de auto-organização e a procura coletiva de soluções através da participação da comunidade para a busca de melhoria das suas condições de vida. Isso traria maior harmonia na cidade e contribuiria para melhor acesso aos bens e serviços por parte da população. As intervenções incluem limpeza do espaço público, organização de exposições, eventos comunitários, criação de espaços de Internet, áreas destinadas ao lazer de crianças, jovens e idosos, bibliotecas, midiatecas, edição de publicações informativas para/da comunidade, sistemas de trocas locais, hortas urbanas, recuperação de instalações para novos serviços à comunidade etc. Trata-se de possibilidades do exercício da democracia de forma intensa. Os projetos devem promover sempre a participação dos moradores na identificação e resolução de seus próprios problemas. Tudo isso promove

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no cidadão a percepção de sua corresponsabilidade na qualidade de vida do bairro, e, dessa maneira, vão surgindo as denominadas “Lojas Solidárias e Sociais”, que promovem a troca de tempos e de bens (assim como ocorre em determinadas localidades da Espanha). Em várias localidades que implementaram o BIP/ZIP foi observado o desenvolvimento, por moradores, de projetos que promovem a economia local e que promovem, também, a troca de saberes com o objetivo de criar novas competências. Também foi observado que os projetos têm melhorado a imagem do bairro, desde o aspecto visual até a superação de preconceitos sociais, seja por parte dos moradores do local ou pelo restante da sociedade. Embora, como dissemos, o ponto de partida tenha sido de determinada instância de governo, acreditamos que o desenvolvimento do projeto construa e incentive a participação mais intensa dos cidadãos. O grande desafio é fazer com que a duração dos processos de mobilização e participação não se restrinja ao período de vigência do projeto de intervenção. É importante salientar também que o projeto BIP/ZIP, que acaba cumprindo um papel de melhoria da imagem dos bairros, contribui também indiretamente para a especulação imobiliária e para a “expulsão” dos moradores mais pobres – problemas que têm sido recorrentes quando da implementação de melhorias e que se constituem em grande desafio para os pesquisadores. Finalmente, nosso último exemplo do movimento em direção à radicalização da democracia – embora, evidentemente, haja inúmeras outras práticas mundo afora – aponta para a criação de mercados autogestionados em Atenas e nos arredores de Paris, em que os próprios produtores negociam seus produtos sem a presença de intermediários. Embora tenhamos apresentado alguns exemplos interessantes e até mesmo promissores, ainda são muito poucos e por vezes de curta duração. Em geral, o papel da ação coletiva tem sido marginal ou pouco valorizado, salvo quando se manifestam de forma mais intensa e por vezes violenta, em que a grande mídia os publiciza visando ao aumento da audiência. Entretanto, logo outro evento toma seu lugar no noticiário televisivo. Todavia, como nos lembra o geógrafo português João Ferrão (2015, p. 217), é impossível negar “a existência de dinâmicas quase sub-reptícias de mobilização, participação e transformação que […] alteram pedaços

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da cidade – ruas, bairros, frentes marítimas, áreas verdes – através da introdução não programada de novas lógicas de produção e apropriação da cidade”. E isso traz esperança, pois nessa prática podem ser criadas as condições de transformação. Há outras expressões criadas para descrever esse movimento em direção à radicalização da democracia. O geógrafo colombiano Jeffer Chaparro Mendivelso (2019, p. 76) utiliza o neologismo “territocracia”, que significaria o poder exercido a partir do território. Defende a posição de que o local deve ser o núcleo central da tomada de decisões e que posteriormente devem ser buscadas as interações com outras áreas contíguas sucessivamente. Aponta também o diálogo dessa proposta com outro neologismo, a “holocracia”, que se define como o poder de todos. Segundo Chaparro (2019, p. 85), o exercício dessas práticas se daria em “sessões e reuniões extensas, em que a finalidade consistiria em argumentações e tentativas de convencimento frente a determinado assunto, buscando chegar a consensos e acordos que beneficiem a comunidade e que respondam ao projeto social e territorial conjunto e coletivo, não a uma elite minoritária”. Karl Marx (2005), há tempos, introduziu a ideia de “verdadeira democracia” – principalmente em sua obra intitulada Crítica à filosofia do direito de Hegel. Afirmou à época que havia uma contradição entre o Estado e a sociedade civil, e que a “verdadeira democracia” se realizaria através da superação dessa contradição. Para tanto, seria necessária a criação de um novo lugar para a política; seria necessária uma outra produção do espaço, em que a comunidade seja fundada através de uma livre associação de seres humanos igualmente livres. Acreditava Marx que seria necessária a concepção de uma outra forma de organização política; é sobre esse tema que nos debruçaremos no próximo capítulo.

CAPÍTULO 4

Por que falar em comunismo para pensar as cidades? Horrorizai-vos porque queremos abolir a propriedade privada. Mas em vossa sociedade a propriedade privada já está abolida para nove décimos de seus membros. Karl Marx

No documentário de Sílvio Tendler intitulado Dedo na ferida, Yanis Varoufakis (ex-ministro de Finanças da Grécia) faz uma afirmação estarrecedoramente real: “quando eu estive no Euro Group, disseram-me expressamente que ‘a democracia não pode ser autorizada a mudar a política econômica’. Então o que é democracia? Há décadas, há um processo político em progresso no coração da Europa. É um processo de despolitizar decisões políticas. O que acontece quando você despolitiza decisões políticas? Claro que há uma dimensão econômica, mas as decisões são sempre políticas! Se você decide taxar mais os ricos do que os pobres, essa é uma decisão política, não é algo que se pode decidir por meio de modelos matemáticos. Mas, se você acaba despolitizando isso, por fazer os tecnocratas tomarem essas decisões, o que você está fazendo é criar uma zona sem democracia. Então tem-se um processo político, que se diz apolítico, e que assim acaba sendo antidemocrático”. Ele conclui afirmando ainda que, “quando você tem um processo político antidemocrático tomando decisões políticas, você termina com decisões realmente ruins. E uma economia ruim. Então você termina com políticas tóxicas, políticas antidemocráticas e uma economia antidemocrática, isso é irracional”. Outro projeto de mundo não é possível sem pensarmos em uma radicalização profunda daquilo a que chamamos democracia. Atualmente, a ideia de democracia encontra-se totalmente ligada ao Estado, que é visto, inclusive, como solução, e a sociedade como problema. Inclusive o projeto em curso, exemplificado na utilização do planejamento estratégico na

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gestão das cidades, obscurece o conflito entre democracia e capitalismo, até porque, ao fazer o cidadão acreditar no discurso da competição entre cidades e no discurso que vende parte da cidade como o todo, foi introjetado no imaginário social uma desconexão entre redistribuição social e democracia. Está claro que a produção do espaço urbano tem se realizado através de um plano em que a democracia de baixa intensidade cumpre importante papel. Então precisamos mudar a nossa perspectiva de democracia para pensar em outra forma de produção do espaço. Mas, para tanto, temos que trabalhar na solução de alguns gargalos que dificultam o exercício e a construção de uma “democracia de alta intensidade” (para utilizar a expressão de SANTOS, 2007), quais sejam: pessoas são submetidas a enfrentar um sistema de transportes coletivos de má qualidade, que as obriga a gastar muitas horas em seu deslocamento casa-trabalho-casa; grande parte da população está submetida a remunerações muito baixas, comprometendo inclusive as condições mínimas para sua reprodução; nas grandes cidades brasileiras, onde inúmeras áreas estão submetidas ao controle de traficantes de drogas e/ou milicianos, há forte redução da liberdade de manifestação por medo de sofrer retaliação ou mesmo de ameaça à vida; e a falta de bom acesso à informação. A radicalização da democracia exige que defendamos algo maior em se tratando de democracia. E aqui não estamos falando de um encaminhamento totalmente direto, visto que as cidades cresceram muito e concentram um enorme número de habitantes. Apontamos para a necessidade da valorização e do empenho na participação, que se daria, como procuramos deixar claro no capítulo anterior, através de conselhos populares e de conselhos temáticos; o que não exclui elementos de representação, todavia a dimensão direta estaria muito mais presente. Além disso, é muito importante – diria fundamental – que a participação não se dê apenas no âmbito de reivindicações específicas, que, quando atendidas, resultem na dissolução dos debates e gerem total desmobilização. É preciso que as reuniões dos conselhos sejam permanentes. Vivemos atualmente a hegemonia do capital financeiro sobre as outras formas do capital. A produção do espaço que se manifesta na cidade é simultaneamente a realização e a reprodução da condição desigual. É isso

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que devemos combater. É preciso trabalharmos pela “verdadeira democracia”, e aqui nos referimos à obra de Karl Marx.

Marx e a ideia da verdadeira democracia: primeiras aproximações Durante muito tempo convivemos com problemas relativos à pouca oferta das obras do, por alguns, denominado “jovem Marx” e por uma fixação em sua obra de maior fôlego, O Capital. Além disso, muitos leitores viram-se influenciados por um discurso que apresentava a “existência de dois Marx”, já que, para Althusser (1969), teria havido o “humanista e ideológico” da juventude e o “Marx marxista e científico da maturidade”. E pior: afirmava que seria apenas na “fase científica”, em sua análise do capitalismo, que Marx se tornaria imprescindível e que sua “primeira fase” poderia ser abandonada. Estas afirmações construíram, inclusive, a ideia de que a produção intelectual inicial de Marx era desconectada da obra da maturidade, o que não é verdade. O estudo do Estado e da política estava nos planos de Marx, até porque o planejado era retomar a filosofia política a partir de suas investidas na economia política. Aliás, no prefácio dos Manuscritos Econômico-Filosóficos (2004, p. 19), escrito em 1844, Marx – apenas com 26 anos – já apontava para o plano de sua obra ao afirmar que faria “sucessivamente, em diversas brochuras independentes, a crítica do direito, da moral, da política etc., e por último, num trabalho específico, a conexão do todo, a relação entre as distintas partes, demarcando a crítica da elaboração especulativa deste mesmo material. Assim, será encontrado o fundamento, no presente escrito, da conexão entre a economia nacional e o Estado, o direito, a moral, a vida civil (bürgerliches Leben) etc.”. Evidentemente, sabemos que Marx não conseguiu realizar seu plano de trabalho, então estamos falando de uma obra inacabada. O próprio autor chegou a afirmar que pretendia escrever um livro em seis volumes, em que O Capital era apenas o primeiro (e, como sabemos, este também ficou incompleto). Esses seis volumes seriam: O capital; A propriedade da terra; O trabalho assalariado; O Estado; O comércio exterior; e O mercado mundial. Embora o projeto tenha sido inacabado, Marx deixou escritos alguns fragmentos de textos que nos permitem ao menos elaborar algu-

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mas provocações acerca da alienação, do desvanecimento do Estado, da autogestão, da verdadeira democracia e da própria noção de comunidade. O resgate dessa reflexão realizada por Karl Marx na primeira metade do século XIX e retomada por ele em 1871, na obra intitulada A guerra civil na França, não deve nem pode ser retomada sem a devida contextualização com o momento atual. Tal falta de cuidado seria “engessar” o tempo e esquecer que Marx falava como pensador de seu tempo e refletia sobre a realidade europeia; aliás, sobre determinada parcela da realidade do continente, mais especificamente, Inglaterra, França, Bélgica e parte do que viria a ser a Alemanha. Ou seja, retomar Marx não significa tomar seus escritos de forma dogmática, mas avançar a partir dele e tentar contribuir para a projeção de outra possibilidade de mundo. Tendo a certeza de que refletimos sobre o mundo a partir da nossa história e influenciados pelos acontecimentos que estão em curso, é preciso entender que Marx e Engels, quando se puseram a pensar sobre como a política e o Estado eram instâncias supremas da alienação, idealizaram um caminho para escapar dessa dominação. Sendo um homem do seu tempo, Marx foi muito impactado pela Revolução Francesa e pelos desdobramentos da industrialização inglesa no século XIX e acabou acreditando que a completa destruição do antigo regime e a superação daquelas situações de trabalho e de vida urbana poderiam ser rapidamente alcançadas. Talvez isso ajude a explicar por que o tema do movimento em direção da superação do capitalismo não tenha sido mais pormenorizado. A despeito de que haja uma cobrança acerca da falta de uma teoria marxista de Estado, é interessante acompanhar a reflexão do cientista político argentino Atilio Boron (2006, p. 312) quando afirma que “a teoria marxista de Estado é, na realidade, uma teoria da ‘extinção do Estado’, uma teoria da reabsorção do Estado pela sociedade civil plasmada na fórmula do ‘autogoverno dos produtores’”. Portanto, parece ao menos questionável o discurso que afirma ter sido Marx um defensor de um Estado autoritário e centralizador. Acreditava ele que “o Estado era, e é, uma entidade parasitária cuja permanência depende da sobrevivência de uma sociedade de classes” (BORON, 2006, p. 313). Importa esclarecer que o desvanecimento do Estado não significa o fim da administração pública, e acreditamos que isto ficará mais claro adiante. Para Marx (2005, p. 21), o Estado político representa a separação do povo em relação à sua própria essência; ou seja, “o povo é o ‘Estado real’, a

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base da constituição. Ele é o ‘todo’, o poder constituinte; a constituição é a ‘parte’, o poder constituído”. Portanto, quando o povo torna-se submetido àquilo que ele próprio criou, ele perde seu estatuto fundante e as posições são totalmente invertidas. Presenciamos assim a separação e a oposição entre Estado e sociedade civil, entre Estado político e Estado não político; eis aí a alienação política. Na luta pela verdadeira democracia, Marx (2005) acreditava que era necessário opor à burocracia a alternativa da autogestão. Chegar à verdadeira democracia, para Marx, significava caminhar para o desvanecimento do Estado (e nesse caso, necessariamente, para o fim do seu contraponto: a sociedade civil), o que levaria à constituição da comunidade. Encaminhar-se-ia em direção a uma espécie de autogoverno, já que cada indivíduo governaria a si mesmo, assim, a comunidade como um todo se autogovernaria. Haveria funções sociais e administrativas que continuariam a ser exercidas, mas não mais como funções estatais. Marx (2012) referir-se-ia a elas como funções sociais análogas àquelas do Estado, mas não idênticas (nem coercitivas ou opressoras), pois se tornariam funções públicas. Nesse sentido, sendo funções públicas, as funções governamentais transformar-se-iam em funções administrativas. Para Marx, assim, a autoridade estatal cederia lugar à autonomia, isso porque a divisão das funções gerais transformar-se-ia em algo tão natural e rotineiro, que não concederia qualquer autoridade. O geógrafo Marcelo Lopes de Souza (2006) utiliza-se da categoria autonomia (conforme elaborada por Cornelius Castoriadis) em sua potência revolucionária. Afirma ele que “ser autônomo significa, assim, ‘dar-se a sua própria lei’, em vez de recebê-la por imposição. […] A autonomia é o contrário de tutela” (SOUZA, 2006, p. 69). Por sua vez, a heteronomia diria respeito a uma imposição da lei de cima para baixo, que pode ser: por determinado grupo (opressão interna); por imposição externa (por exemplo, através da ocupação ou conquista por determinado grupo social); ou divina (origem religiosa de normas). Lembra-nos Souza (2006, p. 70) de que “a heteronomia é, sempre, alienação política de uma parte da população, consentida ou arrancada à força”. Ao contrário do que possa parecer, quando se defende a ideia de autonomia, é preciso compreender que há uma total interconexão entre as dimensões individual e coletiva. Isso fica ainda mais claro quando Souza (2006, p. 70) afirma que não existiriam indivíduos autônomos sem que houvesse, simultaneamente, uma

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sociedade autônoma. A perspectiva da autonomia coletiva encontra-se ligada à “presença de instituições sociais que garantam igualdade efetiva […] de oportunidades aos indivíduos para a satisfação de suas necessidades e […] para participação em processos decisórios relevantes para a regulação da vida coletiva”. Embora não construa sua argumentação a partir das ideias de Karl Marx, ao afirmar que “a autonomia coletiva pode ser entendida, igualmente, como um sinônimo de democracia radical, também expressável como autogestão”, não nos resta dúvida de que há uma aproximação possível. A associação entre autonomia individual e coletiva encontra-se também na construção teórica de Marx. A certeza de que as dimensões individual, social e política encontram-se reunidas comprova-se através da afirmação de que “toda atividade individual é também uma atividade social com efeitos políticos” (POGREBINSCHI, 2007, p. 64); assim, pensar que as atividades pessoais e profissionais dos indivíduos tornam-se totalmente interligadas com as tarefas e gestão da coisa pública leva-nos ao ponto em que podemos afirmar que a democracia é realmente constitutiva da comunidade e dos seres humanos que ali vivem. A proposta de Marx, verdadeiramente, talvez até por não ter sido totalmente elaborada, nunca foi posta em prática, mas não nos resta dúvida de que é bastante inquietadora. Pensar que os cidadãos passam a ter várias atividades para vivenciar o ser político em plenitude e também que a atividade dos homens, à semelhança do que ocorre com a autodeterminação e o autogoverno (de si mesmo e, então, de todos), é que explica a autogestão é no mínimo um convite à ação. Com isso se alcançaria a possibilidade de conciliar as duas principais perspectivas na análise territorial: a mais funcional (que tem servido mais aos aparatos de controle) e a mais simbólica, que, se levada em consideração, oferece alternativas para formas de gestão mais democráticas e mais justas socialmente. As duas escalas têm de ser conectadas em novas formas de (auto)gestão territorial, isto é, ligadas à vida no lugar. Marx (2005), na obra Crítica à Filosofia do Direito de Hegel, deixa inúmeras pistas e encaminhamentos sobre o que denominou de desvanecimento do Estado. Acreditava ele que o Estado desapareceria porque em seu lugar surgiria a verdadeira democracia, em que uma nova forma de organização política tomaria lugar. Marx falava-nos de um movimento simultâneo em que a sociedade civil ganharia força e aumentaria sua

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participação, e o Estado, por sua vez, desvaneceria. Esse processo aconteceria justamente porque haveria um movimento de aproximação entre essas duas esferas, o que contribuiria para a dissolução de ambos: Estado e sociedade civil. Marx acreditava que somente existiria sociedade civil em contraposição ao Estado e este em contraposição àquela; assim, a dissolução de um leva sistematicamente à dissolução do outro, já que suas existências individuais são sustentadas pela sua relação de oposição. Acreditava ele, também, que a própria emancipação política dar-se-ia pela dissolução da antiga sociedade sob a qual repousa o Estado, porque se tratava da superação do Estado. O fim do Estado, para Marx, não significava que não haveria governo ou que não haveria uma administração pública. Podemos encontrar na obra A guerra civil na França (2011) afirmações muito fortes indicando que a revolução emancipadora somente poderia ser “um governo do povo pelo povo” e que teria que ser “a retomada pelo povo e para o povo de sua própria vida pessoal”. Marx mirava o desvanecimento do Estado e de toda a sua maquinaria, com a criação de instituições adequadas ao autogoverno popular. Entretanto, isso se daria paulatinamente a partir do crescimento sistemático da participação da população na definição e gestão de políticas públicas. Apesar disso, é curioso observar que o geógrafo Marcelo Lopes de Souza promove críticas, constantemente, utilizando de forma genérica o que denomina de marxismo e de marxistas. Por diversas vezes afirma que os marxistas defendem isso ou aquilo... Ou que o marxismo se encontra em crise de morte... Não nos parece correto afirmações de caráter tão genérico, até porque aquilo que acabou sendo denominado de marxismo agrega uma multiplicidade de encaminhamentos e desenvolvimentos teórico-metodológicos que diferem bastante entre si (o que de maneira alguma pode ser classificado como necessariamente ruim). Seria mais adequado expor efetivamente a quem suas críticas são destinadas. Também por vezes Souza faz críticas ou afirma que Marx defendia determinadas posições, mas não menciona em que obra nem cita diretamente o autor criticado. Um exemplo disso é sua afirmação (2017, p. 129) de que “a análise da Comuna de Paris por Reclus é muito mais instrutiva sobre o quanto ele compreendia aquilo que, de um ponto de vista libertário, era essencial: diferentemente de Marx, que nela viu um ‘modelo’ (embora não tenha sido sempre fiel a essa visão), Reclus não

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deixou de ver na Comuna certas fraquezas, derivadas da permanência da ideia de Estado”. Entretanto, isso não parece verdade, pois Marx deixou bastante claro em sua obra intitulada Guerra civil na França (2011) e em algumas cartas por ele escritas1 que tinha muitas críticas à maneira segundo a qual a Comuna foi conduzida, e de forma alguma a via como modelo. Souza (2017, p. 15), ao abordar a importância do anarquismo – que estaria ligado à linhagem libertária –, chega a afirmar que seria necessário “escapar das armadilhas de um marxismo que, embora em crise, não sucumbiu, e busca reciclar-se, em parte, às custas da absorção seletiva de ideias, princípios e métodos libertários, como a autogestão”. Parece estranha tal afirmação, pois autogestão, autogoverno, autodeterminação, autoemancipação e a verdadeira democracia já estavam colocadas na obra de Marx desde 1843 (por exemplo, na obra Crítica à filosofia do direito de Hegel) e são posteriormente retomadas em alguns escritos do final de sua vida. Além disso, não acreditamos ser positivo reeditar uma espécie de luta entre anarquistas e marxistas, até porque há muitas aproximações entre aquilo que defendiam os anarquistas e o que defendia Marx. Apesar dos inumeráveis discursos que afirmam que o comunismo defendido por Marx é antiquado e fracassado (principalmente porque se basearam em experiências ditas socialistas, que efetivamente não representaram os ideais de Marx), a sua construção teórica acerca da revolução ainda é muito valiosa e nos mostra a importância de seu sentido antiautoritário e verdadeiramente democrático, além de valorizar e reafirmar as potencialidades emancipadoras no interior da sociedade. A ideia de revolução é parte integrante desta estrutura de pensamento, pois é um ato político com fim social, já que procura dissolver a velha ordem da sociedade e também o velho poder governante. Vamos assim ao encontro do sociólogo Michael Löwy (2012, p. 20), que acredita que a teoria marxiana da revolução como autoemancipação dos explorados “continua a ser uma bússola preciosa para o pensamento e a ação”. A autoemancipação era, para Marx, um aspecto intrínseco do movimento ao comunismo. Assim, é possível percebermos por que tentativas de “‘construção do socialismo’ sem o povo (ou contra ele), ‘emancipação’ do trabalho de cima para baixo, imposição de uma nova sociedade pelos decretos 1 Por exemplo, a carta de Marx a Ludwig Kugelmann de 12/4/1871.

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de um poder burocrático e autoritário estava[m] inevitavelmente destinada[s] ao fracasso” (LÖWY, 2012, p. 21). Marx acreditava que o ser político somente teria autonomia e viveria seu sentido público naquilo que denominou comunidade (um lugar que não é nem o do Estado nem o da sociedade civil). E aqui, não se trata de pensar que após o fim da antiga sociedade haveria uma nova dominação de classe culminando em um novo poder político; seria outra coisa. Muitas vezes, partidos de esquerda pensam em estar no poder, em assumir a maquinaria estatal, outras vezes preconizam o retorno do keynesianismo ou do compromisso social-democrata; não foi esse o caminho idealizado por Marx. Estamos falando através de uma perspectiva de algo realmente novo, e o que Marx afirmava era que a verdadeira ideia de abolição do Estado não poderia se apoiar no próprio Estado; o que haveria de surgir com o desvanecimento do Estado teria de ser algo novo. Dessa maneira, não se trata de mudar quem está no poder, ou, remetendo-nos ao século XIX, à conquista do Estado pelo proletariado, e isso parece claro e cristalino quando Marx (2006) afirma que o problema dos levantes revolucionários tem sido o fato de não entender que, para o Estado ter fim, é preciso que ele realmente deixe de existir. Isso se exemplifica pelos próprios partidos de esquerda, que, ao chegarem ao poder, utilizaram-se do próprio aparato do Estado como a principal recompensa pela vitória. Acreditamos, a partir de Marx, que o fracasso das revoluções ocorreu exatamente porque, ao invés de caminhar em direção do desvanecimento do Estado, elas acabaram reforçando o Estado, mesmo que, muitas vezes, tivessem o objetivo de melhorá-lo. Talvez porque “o como fazer isso” não tenha sido totalmente desenvolvido por Marx é que Engels tenha desenvolvido uma construção mais instrumental, que não condiz com a proposta original de Marx, tornando-se, talvez, o primeiro vulgarizador de suas ideias, mas isso ficará mais claro à frente. Aqui é preciso fazer uma observação importante: quando falamos em retorno a Marx, devemos fazê-lo sem a ilusão de encontrar nele todas as respostas; e mais, precisamos nos permitir criticar determinadas posições e avançar a partir de seus escritos. Marx foi um grande pensador, mas tinha também em seu horizonte a dimensão da ação (lembremo-nos da expressão “compreender para transformar”) e, por vezes, contradições que são naturais do ser humano também nele transparecem. Além disso, Marx foi repensando e reconstruindo algumas de suas posições e cons-

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truções teóricas através do tempo. Talvez a mais questionada e contestada das expressões utilizadas seja a de “ditadura do proletariado”.2

A necessária desmistificação da expressão “ditadura do proletariado” A palavra ditadura tem sua raiz etimológica no particípio latino dictus, que significa dizer, ditar ou indicar, e pelo sufixo ura, que se refere à atividade ou ao resultado concreto de algo. Dessa forma, a palavra ditadura significaria “o resultado do que uma pessoa diz ou indica”. Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, ditador era o título de um magistrado romano escolhido pelo senado de Roma para governar o Estado em tempo de emergências. O período no poder não podia ser maior do que seis meses. A ditadura não era algo a quem alguém se arrogasse, era uma função extraordinária e totalmente legal. Por outro lado, em sentido figurado, a palavra ditadura serve também para designar uma excessiva influência que alguém ou algo exerce sobre a população, e que possui uma espécie de autoridade absoluta. Além disso, no século XX, caracterizou os governos autoritários em países da América Latina e também em Portugal e Espanha, por exemplo. É preciso ter em conta o contexto histórico em que Marx e Engels trazem à tona a expressão “ditadura do proletariado”. A expressão surge como contraposição àquilo que denominaram ditadura da burguesia ou ditadura do Capital. Ademais, Marx afirmava que toda forma de poder estatal é uma forma de ditadura de classe. Nesse sentido, foi possível afirmar que a democracia burguesa era ela própria uma ditadura de classe. Assim, percebemos de fato algum exagero naqueles que supervalorizam a expressão “ditadura do proletariado” e outras assemelhadas, como, por exemplo, a “ditadura democrática do proletariado”. Isto porque, em certo sentido, para Marx, ditadura era a primazia de uma classe no controle; 2 É possível encontrar também esse debate sobre “ditadura do proletariado”, Marx e marxismo em um trabalho intitulado A luta pela ‘verdadeira democracia’ na produção do espaço: por outro projeto de sociedade (FERREIRA, 2019c), no artigo “Produção do espaço, autogestão, comunidade e estado: provocações a partir de Karl Marx” (FERREIRA, 2019b), e de forma mais ligeira no artigo “Pela construção da verdadeira democracia: entre conselhos populares e ciberdemocracia” (FERREIRA, 2018).

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ditadura não era necessariamente o arbítrio ou a excepcionalidade. Por isso, quando Marx falava da ditadura burguesa, fazia referência ao caráter de classe burguesa do Estado; ou seja, Marx usou a palavra ditadura para caracterizar a ideia de conteúdo político do Estado (aliás, nesse sentido, não à toa, Marx utiliza a expressão “ditadura democrática do proletariado”, o que sinaliza que não se tratava de uma forma autoritária). Por isso, de alguma maneira, poderíamos dizer que a instauração da experiência socialista no século XX fez muito mal à ideia do que seria o comunismo. Não é possível continuarmos a acreditar que o socialismo é uma fase que antecederia ao comunismo, isso porque, na verdade, é sua maior ameaça, já que acaba fazendo o papel de seu concorrente. Tentando ser mais claro, e recorrendo ao filósofo esloveno Slavoj Zizek (2011, p. 86), podemos afirmar que “a única maneira de o sistema capitalista global sobreviver a seu antagonismo de longo prazo e, ao mesmo tempo, evitar a solução comunista é reinventando algum tipo de socialismo – sob o disfarce de comunitarismo, populismo, capitalismo de valores asiáticos ou alguma outra configuração”. Ao contrário do que se possa pensar, a expressão ditadura do proletariado não surge no Manifesto Comunista; aliás, essa expressão nem é utilizada no Manifesto. O fato é que Marx utiliza poucas vezes essa expressão e sequer trata de conceituá-la com precisão. Em geral, a utilização da expressão ditadura do proletariado, por Marx, foi realizada em cartas ou documentos não previstos para publicação (com exceção de As lutas de classes na França de 1848 a 1850 e Crítica do Programa de Gotha, de 1875). Na verdade, Marx não explica muito bem o conceito de ditadura do proletariado. Ele chega a afirmar que “entre a sociedade capitalista e a comunista, situa-se o período da transformação revolucionária de uma na outra. A ele corresponde também um período político de transição, cujo Estado não pode ser senão a ditadura revolucionária do proletariado” (2012, p. 43). Em 1871, Marx havia escrito uma espécie de panfleto intitulado “Guerra civil na França”, onde também apresentava a ideia de ditadura do proletariado. Ali afirmara que o aspecto mais relevante da Comuna de Paris, ao contrário de todas as revoluções anteriores, estava no fato de ter iniciado o desmonte do aparelho de Estado através da transferência do poder para o povo. Ele percebeu a instituição da Comuna como uma tentativa de criação de um regime o mais próximo possível de uma democracia direta. Marx aproximava a noção de ditadura

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do proletariado de uma forma de governo em que a classe trabalhadora realmente governaria e se incumbiria de muitas das atividades até então executadas pelo Estado. Ou seja, o proletariado estaria exercendo a hegemonia que a burguesia exercia até então, mas revolucionando a forma de participação e engajamento. Uma percepção como esta encontra-se, também, claramente em uma carta do anarquista italiano Errico Malatesta, relativa à ideia de ditadura do proletariado, enviada a Luigi Fabbri em 30 de julho de 1919. Nessa carta, em que se referia aos bolcheviques, afirmou Malatesta (2014, p. 122) que a expressão ditadura do proletariado significa “simplesmente o fato, revolucionário para os trabalhadores, […] de construir uma sociedade, organizar um modo de vida em que não haja lugar para uma classe que explora e oprime os produtores”. Em seguida, afirmou ainda que “ditadura do proletariado significa dizer ditadura de todos, o que é o mesmo que dizer que não seria uma ditadura, assim como o governo de todos não é mais um governo, no sentido autoritário, histórico e prático do termo”. Malatesta (2014, p. 122) acrescenta que a divergência com os marxistas não seria mais do que uma questão de palavras no que se refere ao resultado da luta, já que para os anarquistas “a ditadura do proletariado seria o poder efetivo de todos os trabalhadores visando derrubar a sociedade capitalista, e tornar-se-ia a anarquia desde que a resistência reacionária tivesse cessado e que ninguém pudesse mais pretender obrigar a massa, pela força, a obedecer-lhe e a trabalhar para ele”. Entretanto, mais tarde, o que se viu foi a ditadura de um partido, ou melhor, dos chefes de um partido; e isso definitivamente não é o comunismo. Em nenhum momento a ideia de ditadura do proletariado é conceituada por Marx como uma forma de manutenção do Estado, até porque ele defendia o seu desaparecimento, sua dissolução gradual. Para Marx, o conceito de desvanecimento do Estado é incompatível com a ideia de ditadura. A mesma incompatibilidade se dá com a expressão Estado proletário. Aliás, a posição de Marx parece bastante clara em dois textos escritos por ele em 1873 e em 1874; “Indiferença em matéria política” e “Comentários de Marx a Estatismo e Anarquia de Bakunin”, respectivamente. Nesta segunda obra, Marx define verdadeiramente aquilo a que se está referindo como “proletariado organizado como classe governante”, e que, equivocadamente, acaba equiparada a uma ditadura em sentido autoritário.

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Afirma Marx, na mesma obra, que a ideia de proletariado organizado como classe governante “significa que o proletariado, em vez de lutar seccionalmente contra a classe economicamente privilegiada, alcançou força e organização suficientes para empregar meios gerais de coerção nessa luta”. Mas acrescenta ainda que, “no entanto, ele só pode usar tais meios econômicos conquanto abole seu próprio caráter como assalariado, portanto, como classe. Com sua vitória completa, seu próprio governo também acaba, já que seu próprio caráter de classe desaparece”. Importante acrescentar que na sequência de suas afirmações Marx aproxima aquilo que denominou de “meios gerais de coerção” à ideia de “função administrativa”. A participação tornar-se-ia totalmente natural para o ser político, o que contribuiria para não o tornar superior aos demais. Assim, desmontando as bases materiais que conformam a sociabilidade burguesa, desmontam também as suas formas jurídico-políticas. Esse processo levaria a uma hegemonia de formas não capitalistas e de desalienação progressiva da sociedade, além de caminhar em direção da ideia de emancipação humana, o que traria à tona a dimensão do ser político. Para a realização da emancipação humana seria necessária a implantação da noção de comunidade e da verdadeira democracia, que contribuiriam para a desalienação. Embora essa posição seja bem clara em Marx, o discurso de Engels era mais ambíguo e mesmo diferente da concepção defendida por Marx. Engels apresentava a ideia de abolição gradativa do Estado pelo proletariado; assim, defendia a ideia de que o Estado poderia ser usado como meio de sua própria abolição. É possível perceber, então, diferenças importantes na posição defendida por esses autores. Aliás, nesse sentido, o caminho trilhado por Lenin aproximou-se muito mais de Engels do que de Marx. Inclusive, Marx não falava em partido político, e a apropriação da expressão “ditadura do proletariado” feita na Rússia acabou distorcendo ainda mais essa expressão, chegando inclusive a um despotismo ilimitado. De fato, houve uma considerável diferença entre o que Marx considerou “ditadura democrática do proletariado” e o que Lenin acabou instituindo na Rússia: a ditadura do proletariado sob a direção do partido. Nesse sentido, é difícil acreditar que tenha efetivamente sido posto em prática, de fato, o comunismo em algum país, até porque, sem a instituição da verdadeira democracia, a alegação de que o povo era possuidor dos meios de produção é claramente falsa.

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A ideia de comunismo: mais do que possível, necessária Há autores que defendem o abandono da palavra comunismo, já que ela teria ficado muito marcada pelas experiências postas em prática, no século XX, por governantes de países como Rússia (posteriormente o conjunto de países que compunham a URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), China, Coreia do Norte, Cuba e outras experiências mais curtas em países da África e da América Latina. Defendem a utilização de outra palavra e indicam a expressão pós-capitalismo como possibilidade. Não compartilho dessa posição. As experiências realizadas nesses países não representaram efetivamente práticas comunistas. Defendo a posição segundo a qual devemos explicitar o que vem a ser o comunismo, que bases podem sustentá-lo. Ademais, o caminho em direção à ideia de comunismo é um processo que carrega em si ideais utópicos, o que de maneira alguma é ruim. Trata-se de um caminho a perseguir, algo que vai sendo construído a partir da valorização da participação da sociedade civil nas atividades públicas. E, além disso, manter a palavra “comunismo” é uma atitude respeitosa àqueles que, ao refletir e idealizar a possibilidade da construção de um mundo melhor e mais justo, criaram essa expressão. Portanto, esperamos que este capítulo possa esclarecer um pouco a importância da ideia de comunismo para pensar as cidades. Considerar a ideia de comunismo produz uma abertura para uma nova possibilidade, para algo diferente do que temos. Trata-se de trabalhar pela realização de um acontecimento outro; somente assim viabilizaremos a materialização das consequências dessa nova possibilidade. Portanto, precisaremos refletir sobre a palavra “comunista” e, assim, tentar colocar tudo em seu devido lugar. Trata-se de um movimento em direção a novos acontecimentos que contribuirão para a realização de outra forma de produção do espaço. O filósofo francês Alain Badiou (2010, p. 22) fala-nos da importância da necessidade de compreender que a palavra “comunista” não pode se tornar um adjetivo que qualifica determinada política; até porque, trata-se de total incongruência expressões como “partido comunista” e “Estado comunista”. Essa afirmação contém em si uma crítica àqueles que instauraram regimes muitas vezes nomeados de comunistas (noutras vezes de socialistas), mas que em realidade negavam os pressupostos

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do próprio comunismo. Contém também uma crítica àqueles que, por desconhecimento, equivocadamente classificaram os regimes soviético, chinês, cubano ou norte-coreano como comunismo. Finalmente, contém também uma crítica àqueles que propositalmente classificam esses regimes como comunismo, mesmo sabendo que não o são (e não o foram), com o objetivo de introjetar na sociedade uma perspectiva equivocada do que seria o comunismo. Ou seja, “a forma partido, assim como a de Estado, é inadequada para garantir a sustentação real da Ideia [de comunismo]” (BADIOU, 212, p. 146). É importante perceber que a própria construção do Estado como tal contribui para a definição do que é possível e do que é impossível. Portanto, dando sustentação ao próprio capitalismo, o Estado contribui para a implementação da percepção no imaginário social de que a ideia de comunismo é impossível. Sendo assim, com o objetivo de tornarmos o impossível possível, é preciso lutar para reduzir o poder do Estado. Dito de outra maneira, precisamos criar e valorizar práticas que contribuam para o desvanecimento do Estado. A partir de posição semelhante, o filólogo belga Bruno Bosteels (2010, p. 70) acredita que algo fundamental para o caminho em direção ao comunismo é a mobilização contra uma série de elementos claros e incontestáveis contra os quais é preciso lutar: os privilégios de propriedade, a hierarquia e a autoridade. Como já apontamos nos dois primeiros capítulos desta obra, esses elementos têm efeitos diretos no cotidiano da população. A partir de intensa interlocução com Badiou, Bosteels (2010) defende também a posição segundo a qual a articulação dos cidadãos não precisa passar pelos partidos políticos, embora não dê tanta importância a esse debate. Parece-nos realmente importante enfatizar que os atores sociais envolvidos na luta pela transformação encontram-se para além da figura clássica do proletariado modelada a partir dos trabalhadores das grandes fábricas; trata-se de uma enorme parcela da sociedade que se vê expropriada, explorada, oprimida e submetida a sobreviver ao invés de viver; quando fazemos menção a essa “enorme parcela”, não nos referimos apenas à população mais pobre. O cientista político boliviano Álvaro García Linera (2008), que foi vice-presidente da Bolívia de 2006 até 2019 (eleito ao lado do presidente Evo Morales), procurando superar a figura clássica do proletariado,

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preferiu utilizar a expressão potência plebeia.3 Aliás, Bosteels (2010, p. 74) menciona uma entrevista concedida por García Linera quando já havia assumido a Vice-Presidência da Bolívia, na qual afirmou que “o horizonte geral de nossa época é comunista. E este comunismo terá que ser construído sobre a base das capacidades auto-organizativas da sociedade, de processos de geração e distribuição da riqueza comunitários e autogestionados. […] E aqui é onde surgiram as lutas com vários companheiros sobre o que é possível fazer. Quando entro no governo, o que faço é validar esta interpretação do momento atual e começar a operar no nível do Estado em função dela”. Em seguida, formula duas questões que ele mesmo procura responder: “então, onde está o comunismo? Que fazer a partir do Estado em função desse horizonte comunista? Apoiar tanto quanto possível o deslocamento das capacidades de organização autônomas da sociedade. Chega até aí a possibilidade do que pode fazer um Estado de esquerda. Ampliar a base trabalhadora e a autonomia do mundo do trabalho, potencializar formas de economia comunitária onde haja redes, articulações e projetos mais comunitários”. São declarações importantes e provocadoras, mesmo que possamos até inquirir-nos se o governo boliviano realizou o que afirmou García Linera. Temos afirmado diversas vezes, em várias outras publicações, que os partidos de esquerda muitas vezes, quando conseguem chegar ao poder, acabam centralizando as decisões ao invés de compartilhá-las e transferi-las para a sociedade civil. Este é um caminho contrário ao movimento de desvanecimento do Estado. É fundamental que os partidos de esquerda reforcem e criem condições para o deslocamento das capacidades de organização e da autonomia em direção da sociedade civil. Acreditamos já ter deixado claro até aqui que a proposta de Marx imaginava a possibilidade de chegada ao comunismo como um processo que se realizaria através do desvanecimento do Estado. Isso em nenhum momento significava, para Marx, a manutenção do Estado pelo proletariado. Ao contrário, acreditava ele na necessidade de destruição da maquinaria do Estado. Voltamos a afirmar que não se tratava da mera mudança daqueles que estariam à frente do governo. Era necessário construir outra 3 Outros autores têm utilizado também outros nomes ao tentar transmitir um movimento para além da figura clássica do proletariado, referindo-se muitas vezes a massas sem forma ou ainda não formadas: hordas (Deleuze), plebe (Rancière), lumpen (Laclau), por exemplo.

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coisa, algo novo que possibilitasse o nascimento da verdadeira democracia e com ela a ideia de comunidade. As anotações realizadas por Marx em 1844, intituladas de Manuscritos Econômico-Filosóficos, deixam transparecer a construção teórica acerca da ideia de comunismo como tendo por base a abolição da propriedade privada e da alienação humana, valorizando a verdadeira apropriação da natureza humana através do e para o ser humano (MARX, 2004, p. 103). Marx defendia a ideia de que o comunismo seria “a verdadeira dissolução (Auflösung) do antagonismo do homem com a natureza e com o homem; a verdadeira resolução do conflito entre existência e essência, entre objetivação e autoconfirmação (Selbstbestätingung), entre liberdade e necessidade (Notwendigkeit), entre indivíduo e gênero. É o enigma resolvido da história e se sabe como esta solução” (MARX, 2004, p. 105). A realização da verdadeira democracia é um processo, que é parte integrante do processo de desvanecimento do Estado. Assim, é fundamental apoiar e incentivar a criação de assembleias e debates populares. Para tanto, colaboraria muitíssimo a criação de conselhos populares e temáticos permanentes. No capítulo anterior foi possível vermos alguns exemplos de caminhos possíveis nessa direção. O que aparece aqui como uma espécie de utopia do processo de transformação demanda a criação de espaços de diálogo que possibilitem a visibilidade das inúmeras e distintas demandas populares. Para alcançarmos a justiça social, é preciso escapar da ideia da ditadura da maioria, é preciso pensar em uma democracia que tenha em conta o respeito às minorias. Parece que algo fundamental para não reproduzirmos o estado de coisas atual seria escaparmos da separação entre gestão e propriedade. É necessário, inclusive, retrabalhar a noção de propriedade. Caso repensemos a necessidade de conviver com a propriedade da maneira segundo a qual estamos acostumados, outras possibilidades de convivência podem tomar forma. Poderíamos pensar em terrenos para usos coletivos e das famílias, poderíamos pensar na prioridade do valor de uso ou em como a ideia de herança pode ser descartada.4

4 O exemplo de Marais no Peru, conforme apresentado no Capítulo 3, aponta nessa direção.

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Por que não pensar na possibilidade da gestão como parte do trabalho coletivo? Por que não pensar na rotatividade daqueles que estão à frente da gestão para não “eternizar” determinados sujeitos dando-lhes excessivo poder de decisão? É preciso pensar em conselhos populares que se debrucem sobre questões que afligem a população mais diretamente. Não se trata de acreditar que tudo se resolve no âmbito local, mas é fato que é na escala do lugar que a população sente mais fortemente os efeitos da desigualdade na produção do espaço, e que se refletem na diferença de infraestrutura dos bairros, na falta de transportes coletivos de boa qualidade, nas péssimas condições de trabalho de determinadas parcelas da sociedade, na valorização diferenciada do espaço urbano, na criação de territórios em que o poder do tráfico de drogas e das milícias controlam e apavoram a população que está submetida ao seu controle etc. Em outras palavras, é preciso ter em conta a questão da proximidade. Seja no que tange à escala da ação, seja no que se refere à instância administrativa. A ideia de vivermos em uma cidade como o Rio de Janeiro, com cerca de 6,5 milhões de habitantes, em que o responsável por todos os problemas é o prefeito nos coloca uma impossibilidade de acesso muito grande. É preciso termos outras instâncias de acesso, que estejam mais próximas da população. E isso não se resolve com os subprefeitos (que não são eleitos pela população) ou com os vereadores da cidade, que tem cargos no âmbito do poder legislativo. Por que não pensar, ao menos, em subprefeitos eleitos? Assim, na pior das hipóteses, caminharíamos ao encontro da dimensão da proximidade. A ideia do fim do Estado em Marx está intimamente ligada à autonomia, que se encontra ligada à autodeterminação e ao autogoverno. Marx não trata a noção de autonomia como simples oposição à autoridade, pois acreditava que a luta deveria ser pelo fim do Estado e, consequentemente, sua autoridade. A cientista política Thamy Pogrebinschi (2009, p. 75), procurando desenvolver tal debate, afirma que a “ideia de autoridade esvazia-se, deixa de ter sentido, pois não há espaço para ela quando o que se tem é um estado de coisas no qual a comunidade em si se autogoverna porque cada uma de suas partes componentes, os homens, também se governam”. A partir disso é possível entender por que a autora afirma que “o autogoverno das comunidades que Marx vislumbra como aquilo que sucederá ao fim do Estado consiste, assim, em uma espécie de autogoverno do autogoverno dos homens”. Nesta perspectiva é possível compreen-

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der por que não há como pensar separadamente autonomia individual e autonomia coletiva5 a partir de Marx. Não há como pensar em transformação da forma de gestão sem pensar em mudanças sociais e econômicas, e também na construção de novos espaços de debates. Isto porque Marx acreditava que a superação do Estado e da sociedade civil se daria através da constituição da comunidade, que traz em si tanto o Estado como a sociedade civil, mas simultaneamente elimina ambos. A comunidade em seu conteúdo não é nenhum deles, embora em sua forma ela possa ser os dois. A comunidade seria uma nova forma de organização da sociedade, dos seres políticos. Marx colocava o ser político em contraposição à política instituída. Acreditava ele que a implementação desse projeto levaria à redução das funções ligadas a um governo central, porque a luta da comunidade deveria ser contra o Estado (objetivando sua superação) e, portanto, a valorização da autonomia e dos lugares levaria a certa descentralização. Assim, cada vez mais a ideia de verdadeira democracia, desenvolvida por Marx em meados dos anos de 1840, aproxima-se da ideia de comunidade, mais desenvolvida em seus escritos do início da década de 1870, inspirado pela Comuna de Paris. A maior parte dos pesquisadores ainda acredita que o Estado teria a função de “controlar” os mercados; entretanto, o que temos visto é que ele tem trabalhado senão como produtor, ao menos como viabilizador da criação de “normas de competitividade, à custa de todas as considerações de salvaguarda das condições mínimas de bem-estar, saúde e educação da população” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 31), além de defender e auxiliar o sistema financeiro, por exemplo, na crise de 2008. Nesse sentido, afirmam esses autores que “o Estado neoliberal não é um ‘instrumento’ que se possa utilizar indiferentemente para finalidades contrárias. Enquanto ‘Estado-estrategista’, codecididor dos investimentos e das normas, ele é uma peça da máquina que se deve combater”.

5 Embora afirmando-se crítico de uma determinada perspectiva de alguns autores marxistas, Cornelius Castoriadis (1982) desenvolve importante debate acerca da categoria autonomia, mas que de certa maneira não rompe com aquilo colocado, embora mais superficialmente, por Marx. Na Geografia, Marcelo Lopes de Souza apropria-se do debate desenvolvido por Castoriadis e promove importantes associações entre autonomia e espacialidade.

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Se buscamos aquilo que ainda não existe, as reflexões de Marx vão ao encontro do novo; do impossível possível, se verdadeiramente considerado como horizonte a ser alcançado. Aqui não há como não recordar Lefebvre quando afirmava que, para alcançarmos o possível, temos de mirar o impossível. Assim, ao pensar no rompimento com o Estado, a forma política propiciada pela formação da comunidade surge do novo, e, a partir de então, a verdadeira democracia juntamente com a emancipação humana encontrar-se-iam e realizar-se-iam naquilo que Marx chamou de comunismo. Evidentemente, estamos falando de algo que não se realizou (ainda). Quando falamos da superação do Estado, referimo-nos ao conceito de Estado moderno e de sua forma de organização, inclusive à maneira como se dá o agir político. Não se trata de fazer uma revolução para transferir o poder de uma fração de classes governantes para outra, mas para derrubar a maquinaria da própria dominação de classe (MARX, 2011). Para Marx, o Estado precisava existir justamente para percebermos que ele não funcionava e precisava ser superado. É a partir desta consideração que Pogrebinschi (2009, p. 167) afirma que “a comunidade é o antiestado e, ao mesmo tempo, o pós-Estado. Ela ganha existência quando o Estado deixa de existir, e só quando ele deixa de existir”. Por isso, mesmo sem se valer dos instrumentos do Estado, a comunidade nasceria de sua ruína, o que corrobora o discurso de Marx (2011) quando afirmava que a sociedade comunista surgiria da própria sociedade capitalista. Isso porque não acreditava que capitalismo e democracia combinassem. Na utopia que vai em direção a uma sociedade comunista, não resta dúvida de que existiriam funções de governo (até porque Marx nunca imaginou que no comunismo não houvesse governo), mas partia da ideia de um autogoverno, e não de um governo que partisse do Estado; defendia a instauração de funções sociais. A chegada ao momento da sociedade comunista dar-se-ia através de uma revolução, que, para Marx, não se daria em um curto prazo; a revolução seria um processo, eis aí o movimento que levaria ao desvanecimento do Estado. Na sociedade comunista, a liberdade seria característica fundamental e se daria como realização da emancipação humana; nesse sentido, a cientista política Thamy Pogrebinschi (2009, p. 197) acredita que “a liberdade que se tem na comunidade existe precisamente por causa da comunidade e significa exatamente ser membro dela. O indivíduo é livre

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na exata medida em que é membro de uma comunidade livre. Liberdade significa liberdade na comunidade”. E a autora segue afirmando que “associados, na forma de comunidade, os homens, livres, podem agora realizar suas ‘necessidades mais elevadas’: é chegada a hora da democracia. Ou melhor, encontrado seu lugar, é chegado o momento do político: a verdadeira democracia” (POGREBINSCHI, 2009, p. 198). Ao que parece, o fortalecimento do ser político se daria e, simultaneamente, levaria à superação do Estado, assim chegaríamos ao sentido da verdadeira democracia. Marx acreditava que a democracia teria seu fundamento nas noções de autodeterminação e autogoverno, escapando, assim, da alienação. É preciso que o povo intervenha diretamente na realidade. É dessa maneira que, intervindo na realidade, a autodeterminação aliaria atividade e criatividade. O autogoverno é exercido em ambas as esferas, seja a pública ou a privada. Nada disso é simples, entretanto convém esclarecer que a noção de autodeterminação tem um caráter coletivo, de compartilhamento de pensamentos e de ações. Trata-se da determinação de si, mas também, ao mesmo tempo, da sociedade; ou seja, é simultaneamente determinação singular e coletiva, individual e do povo, já que o ser individual e a comunidade se inter-relacionam formando um singular coletivo. O todo e as partes são autoconstituintes. Por isso é factível falarmos em autodeterminação no sentido em que a determinação de um influencie a determinação do outro, o que levou Pogrebinschi (2009, p. 222) a afirmar que “a associação faz com que os indivíduos formem com a comunidade um múltiplo uno”. A cidadania torna-se prática democrática dos seres humanos através de sua própria forma de constituição política; ou seja, todas as ações são ações políticas, e, lembra-nos Pogrebinschi (2009, p. 224), “todas as atividades individuais passam a ter um sentido público, dizem respeito à gestão coletiva da comunidade”. E aqui aproximamo-nos da ideia de autogoverno, pois, se cada indivíduo se governa, ele está simultaneamente governando a comunidade, visto que a ação individual é sempre uma ação pública e com objetivos políticos. A participação ganha, com Marx, uma outra dimensão, pois, com a revalorização do homem como ser político, o exercício da verdadeira democracia leva-nos a outro patamar. A participação torna-se algo “natural” para o ser político e, por isso, não lhe confere qualquer poder superior ou de soberano. Marx critica

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fortemente as instituições hierárquicas fundadas no saber dos especialistas, por isso é compreensível percebermos a sua crítica à burocracia e a sua defesa da autogestão. Logo, melhor seria falar em atividade do que em funções, pois é exatamente a atividade do ser político que explicaria a autogestão, assim como o faz em relação ao autogoverno e à autodeterminação. Em suas reflexões, Marx (2006) deixava transparecer que, para pôr em curso o processo de desvanecimento do Estado, seria necessário extinguir a “profissão” de governar. Assim, o que denominamos de serviço público passaria a ser realizado pelos cidadãos, que passariam a realizar as atividades de forma alternada. Essas atividades, embora possam ser consideradas “análogas àquelas do Estado, […] não são jamais idênticas, não têm o caráter ‘político’ que as qualifica enquanto funções estatais, não são coercitivas e opressoras. São funções públicas” (POGREBINSCHI, 2009, p. 270). A ideia de desvanecimento do Estado, desenvolvida por Marx, permite-nos presumir que haverá forte tensão entre Estado e autogestão. O filósofo francês Henri Lefebvre (2009, p. 147-148) explicita isso ao argumentar que há algo essencial na ideia de autogestão: “constituir-se como um poder que não seja estatal”. O confronto entre autogestão e Estado não será algo trivial, pois, mesmo durante o processo de desvanecimento, o Estado tentará se reafirmar através de seu próprio aparelho. O princípio estatal tende a limitar o princípio da autogestão, a reduzir suas aplicações. Em outras palavras, tentará transformar a ideia de autogestão em uma ideologia de Estado, pois com isso, na verdade, a estaria reprimindo. O geógrafo Mateus Viriato de Medeiros Siniscalchi (2019, p. 134), a partir de Lefebvre (2017), acrescenta que “o Estado capitalista, por sua natureza, opõe seu princípio centralizador (do controle e da dominação estratégica do território) ao princípio descentralizador da autogestão”. Marx apresenta uma visão radical (no sentido de ir à raiz da questão) quando constrói sua noção de verdadeira democracia, visto que não aceita mediações e eleva a participação a outro patamar, pois nela os atores sociais não apenas tomam parte, eles, através da sua atividade, constituem a própria democracia. Ou seja, o ser político se realiza em sua prática, e não necessariamente em instituições. Partindo deste pressuposto, Pogrebinschi (2007, p. 125) afirma que “o

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que define como verdadeira a democracia é a experiência humana que se encontra em sua base, e não as instituições de uma determinada forma de governo ou regime político que porventura a reclamem”. Dessa maneira, como temos tentado deixar claro, precisamos ir além da ideia de que a única possibilidade de mudança venha a ser através da tomada do poder, de estarmos à frente do Estado. Precisamos lutar pela possibilidade de fazermos, de realizarmos juntos e coletivamente, de exercitarmos o fazer coletivo; esse é o caminho para a verdadeira democracia.

Entre o “poder-sobre” e o “poder-fazer”: uma linha tênue e perigosa Como vimos, o próprio Marx, no século XIX, já apontava para o erro do pensamento revolucionário ao acreditar que a mudança do mundo se daria por meio do Estado. As experiências realizadas desde o início do século XX mostraram que, embora tenham sido reduzidas as desigualdades sociais, pouco foi feito pela promoção da liberdade, e isso era um pressuposto fundamental da ideia de comunismo. Aliás, infelizmente, muitas vezes acirraram-se a repressão e o controle. O cientista político irlandês John Holloway (2003, p. 25) acrescenta que “a aparente impossibilidade da revolução no começo do século XXI reflete, na realidade, o fracasso histórico de um conceito particular de revolução, o conceito que identificava a revolução com o controle do Estado”. Embora os movimentos revolucionários tivessem em conta a natureza capitalista do Estado, viam-na como uma forma instrumental que poderia ser transformada através da chegada da classe trabalhadora ao poder. Um grave erro, pois o envolvimento do Estado na rede de relações sociais capitalistas era muito maior e poderoso do que imaginavam. Assim, focar a revolução na tomada do poder estatal acabou por implicar na “abstração do Estado das relações sociais de que é parte” (HOLOWAY, 2003, p. 28); um erro, pois ele não é um ator autônomo. Mesmo sabendo que a estratégia revolucionária tinha na conquista do poder do Estado apenas uma parte de um processo muito maior de transformação social, houve uma concentração na ideia de tomada do poder estatal, que era visto como o lugar do poder.

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Este subcapítulo de nossa obra abre um canal de diálogo com dois livros de John Holloway6 que resgatam o debate que faz acerca do poder. São livros polêmicos e provocadores que geraram intenso debate entre os intelectuais. Sua obra de 2003 gerou muitos debates, entretanto houve críticas – como as do filósofo e historiador italiano Domenico Losurdo7 – simplificadoras e até mesmo desonestas, visto que não davam conta do vigor teórico-metodológico que continha o livro de Holloway. Grande parte das críticas detinha-se também no fato de o autor não apontar a estrada para onde trilhar, e talvez tenham sido tais críticas que o levaram à publicação de 2011. Esse autor desenvolve sua argumentação a partir de leitura cuidadosa das obras de Marx, além de procurar articulações com o pensamento anarquista e com o movimento zapatista. Apresenta um cuidado metodológico rigoroso e no decorrer de seu livro (de 2003) retoma inúmeras vezes o seu ponto de partida; ou seja, um grito de rejeição: “não!”. O ponto de partida de sua reflexão teórica é a negatividade, a luta. Em outras palavras, Holloway (2003, p. 11) parte da rejeição a um mundo que percebemos estar em um caminho equivocado, da “negação a um mundo que sentimos que é negativo”. O grito não seria apenas uma manifestação de desespero, seria uma recusa à aceitação das coisas como estão. Na verdade, o grito seria a abertura para a luta por outra possibilidade; o grito “se nega a aceitar o fechamento da possibilidade de uma alternativa radical” (HOLLOWAY, 2003, p. 17). Uma alternativa radical precisa escapar da percepção de que a mudança da sociedade se realizará através do Estado, que é visto como soberano. Isto porque a ideia de soberania choca-se com a ideia de autodeterminação proposta por Marx. Aliás, Marx não somente descarta a ideia de “soberania do monarca”, como também a de “soberania popular”, propondo a noção de autodeterminação. Para Marx (2005, p. 43), a soberania era uma construção jurídica de caráter ilusório, ele inclusive afirmava que “a soberania é o idealismo do Estado, ela só existe como necessidade interna: como Ideia”. Assim, a soberania cumpre o papel de edificar a separação de Estado e sociedade civil, logo, operando como uma espécie de

6 Mudar o mundo sem tomar o poder (2003) e Agrietar el capitalismo: el hacer contra el trabajo (2011). 7 LOSURDO, Domenico. O marxismo ocidental: como nasceu, como morreu e como pode renascer. São Paulo: Boitempo, 2018.

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construção jurídica que funciona como mecanismo de sustentação dessa separação. A autodeterminação, como já nos referimos anteriormente, é determinação de si; entretanto, para Marx (2005), referir-se-ia simultaneamente “ao homem singular e ao povo”. Ou seja, trata-se de uma inter-relação muito diferente da ideia de soberania, já que a partir da autodeterminação passamos a entender “o homem como um ser comunal e a comunidade enquanto uma associação de homens [que se afetam] reciprocamente, formando um singular coletivo no qual não há distinção entre o todo e as suas partes. […] A determinação individual coincide necessariamente com a determinação comunal. É nesse sentido que se pode falar propriamente em ‘auto’” (POGREBINSCHI, 2009, p. 223). Ao apontarmos para a autodeterminação e para a autogestão, estamos valorizando a ideia do fazer junto. Este entendimento leva-nos a valorizar a percepção do fazer como algo intrinsicamente social, sendo sempre parte de um fluxo social maior do que o fazer individual, pois o fazer do outro propicia os meios do meu fazer; ou, nas palavras de Holloway (2003, p. 47), “a condição prévia do meu fazer é o fazer (ou o ter feito) dos outros […]. O fazer é inerentemente plural, coletivo, […] comunal”. É possível afirmarmos que o poder é primeiramente capacidade de fazer, de saber fazer, e, sendo assim, o fazer implicaria poder; neste caso, poder fazer. Logo, o “poder-fazer” seria sempre poder social. Entretanto, Holloway (2003, p. 50) lembra-nos de que “o poder-fazer se converte em ‘poder-sobre’, em uma relação de poder sobre os outros. Esses outros carecem de poder (ou aparentemente não o têm), estamos privados de nossa capacidade para realizar nossos próprios projetos, já que passamos o dia realizando os projetos daqueles que exercem o ‘poder-sobre’”. E vale lembrar que o Estado é o responsável pela “proteção” dessa relação, que se realiza conforme a lei. Contudo, essa é uma dimensão oculta, pois não se percebe que o Estado é um aspecto da fetichização das relações sociais. Portanto, e isso é muito importante, “criticar o Estado significa atacar em primeiro lugar sua aparente autonomia, compreender que não é uma coisa em si mesma, mas uma forma social, uma forma de relações sociais. […] O Estado é uma relação entre pessoas que não parece ser uma relação entre pessoas, uma relação social que existe na forma de algo externo às relações sociais” (HOLLOWAY, 2003, p. 140).

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Assim sendo, é possível compreender o porquê de Marx ter afirmado que era necessário lutar pelo desvanecimento do Estado. Isso é muito diferente de lutar pela construção de um contrapoder a partir da conquista do Estado. A luta pelo desvanecimento do Estado é, simultaneamente, a luta contra o “poder-sobre” e a favor da emancipação do “poder-fazer”. Holloway (2003, p. 61) aproxima-se desta posição ao afirmar que “a luta para libertar o poder-fazer não é a luta para construir um contrapoder, mas na realidade um antipoder, algo completamente diferente do poder-sobre”. O cientista social irlandês sustenta ainda que “este é o grande, absurdo e inevitável, desafio do sonho comunista: criar uma sociedade livre de relações de poder”. E esta é, sem dúvida, a luta pelo impossível possível: a ideia do comunismo como “movimento real que supera o estado de coisas atual”  (MARX; ENGELS, 2007, p. 38). Alguns poderão afirmar que isto soa como uma utopia, o que não é totalmente inverdade; todavia, também não é totalmente verdade, pois Marx sempre anteviu o comunismo como processo, como movimento em direção a outra coisa, por isso não podemos entender o comunismo como um estado do ser, mas do vir-a-ser. Entendemos, assim, a importância da ideia de fissurar o capitalismo, de encontrar brechas e tensioná-las. Não à toa, Lefebvre (2009, p. 147), referindo-se de forma metafórica à autogestão, afirmou que “uma vez brotando ao nível do chão, em uma fissura, esta humilde planta começa a ameaçar o robusto edifício do Estado. […] A autogestão tende a engendrar o seu desaparecimento”. No capítulo anterior apontamos alguns exemplos de práticas que podem provocar fissuras, mas precisamos intensificá-las cada vez mais. Dentre essas múltiplas práticas que buscam provocar fissuras no capitalismo, temos observado o crescimento de debates que trazem à tona a ideia do “comum” como forma de tensionamento da lógica do Capital.

O fazer-comum: caminho para ir além? Durante a guerra fria – e mesmo após o seu fim – parecia que havia duas opções: o capitalismo ou o socialismo. Evidentemente, como procuramos deixar claro anteriormente, desde o final do século XX, porém mais fortemente no início do século XXI, houve um forte e proposital movimen-

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to de construção no imaginário social de que socialismo e comunismo eram a mesma coisa; e mais, que a história provou que não deram certo. Ou seja, restou apenas o capitalismo. Desdobrava-se da perspectiva capitalismo e socialismo a regra da propriedade privada ou da propriedade pública, de modo que, aponta o teórico literário e filósofo estadunidense Michael Hardt (2010, p. 129), “a única cura para os males do controle estatal é privatizar e para os males do capital é tornar-lhes públicos, isto é, exercer a regulação estatal”. Todavia, aquilo a que desejamos nos referir passa ao largo de uma e de outra; em outras palavras, não nos referimos nem à propriedade privada do capitalismo nem à propriedade pública do socialismo; referimo-nos à ideia do comum no comunismo. Marx (2004), ao desenvolver sua construção teórica da crítica da economia, procurou deixar claro que, em última instância, tratava-se da crítica à propriedade. Nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, mais especificamente no “Complemento ao Caderno II”, que trata de propriedade privada e comunismo, afirma que o comunismo é a expressão positiva da abolição da propriedade privada. Marx (2004, p. 105) enfatiza a ideia de abolição da propriedade (que escapa de determinados discursos ditos comunistas), pois o grupo denominado por ele de “comunismo rude” (ou de “comunismo vulgar” em outras traduções) apenas perpetua a propriedade privada com a justificativa de que ela é estendida a toda a comunidade. Para Marx, não bastaria eliminar a propriedade privada, seria necessário pensar na eliminação da propriedade. Isso parece fundamental para o filósofo alemão, e fica explícito quando afirma que “a propriedade nos fez tão cretinos e unilaterais que um objeto somente é o nosso [objeto] se o temos, portanto, quando existe para nós como capital ou é por nós imediatamente possuído” (MARX, 2004, p. 108). Estas observações nos remetem à ideia do comum, que nos move para além das relações de propriedade. Ressalta ainda Marx que o comunismo é a superação positiva da propriedade privada como autoalienação humana e, portanto, como afirmamos anteriormente, a verdadeira apropriação da essência humana através do homem e para o homem. Ou seja, trata-se da restituição completa do homem a si mesmo como ser social, como ser humano. Em sua reflexão acerca da afirmação de Marx sobre a necessidade de caminharmos em direção da verdadeira apropriação da essência humana através do homem e para o homem, Hardt (2010, p. 140) salienta a importância dessa perspectiva construída por Marx e acredita “que ele

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está usando a noção de apropriação na contramão, ou seja, aplicando-a em um contexto que hoje nos parece estranho: não se trata mais da apropriação do objeto na forma de propriedade privada, mas da apropriação de nossa própria subjetividade, de nossas próprias relações humanas, sociais”. Portanto, Marx (2004, p. 108) concebe – a partir de sua concepção de comunismo – a apropriação não como propriedade, não como ter. Partindo dessa afirmação, Hardt (2010, p. 140) defende a ideia de que “o termo ‘apropriação’ leva a interpretações equivocadas, porque Marx não está falando em capturar algo que já existe, mas sim em criar algo novo. Essa é a produção de subjetividade, a produção de uma nova sensibilidade, que não é propriamente apropriação, mas produção”. Por isso, acreditamos ser importante pensarmos na ideia do fazer-comum e do “comum”. A geógrafa Julia Vilela Caminha8 (2020, p. 61), a partir de Harvey (2012, p. 72), trouxe importante reflexão acerca da diferença entre os conceitos de espaços públicos, bens públicos e comuns. Acredita que os dois primeiros são sempre “objeto de poder estatal e da administração pública e não são necessariamente comuns”. Posiciona-se, inclusive, em desacordo com a intervenção do geógrafo brasileiro Angelo Serpa no XVI Simpósio Nacional de Geografia Urbana (2019), que defendeu a ideia de que “o comum não seria nada além do espaço público por excelência, como lugar de encontro, de exercício democrático e de respeito à diversidade”. A geógrafa afirma que “para entendermos o comum necessitamos pensar em uma sociedade diferente da capitalista. De forma que o comum não é uma terceira opção ao privado e ao público – ou o equivalente a este último –, mas, sim, uma via antagônica à gestão do capital e aos seus meios de produção, sejam eles privados ou públicos”. Até porque, como apontam Dardot e Laval (2017, p. 59), “a pretensa ‘realização’ do comum pela propriedade do Estado nunca foi mais do que a destruição do comum pelo Estado”. Esses mesmos autores, em publicação de 2015, argumentaram que a propriedade exclui o comum, não apenas no que tange ao uso dos bens, mas também no âmbito da produção, visto que ela ratifica uma divisão entre proprietários e não proprietários.

8 Membra do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Espaço e Metropolização) e autora da Qualificação de Doutorado intitulada “O fazer-comum das ocupações na luta pelo direito à cidade”.

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Realmente não podemos confundir o comum com o público. Como procuramos deixar compreensível, o público é controlado pelo Estado, e não pela comunidade. Entretanto, isso não significa que devamos abandonar a defesa dos bens públicos, até porque boa parte do trabalho investido está contido nos bens públicos, todavia é importante entender que não são sinônimos. O filósofo estadunidense George Caffentzis e a filósofa italiana Silvia Federici (2019, p. 57) advertem-nos para o fato de que “o público é uma instituição estatal que assume a existência de uma esfera privada de relações econômicas e sociais que não podemos controlar”. Ao apontar para os comuns, devemos entendê-los como bens e recursos compartilhados e geridos através saberes, práticas e normas idealizados pela coletividade. Os economistas e geógrafos João Bosco Moura Tonucci Filho e Felipe Nunes Coelho Magalhães (2017, p. 447) corroboram essa posição ao afirmar que “o comum não se confunde com os recursos comuns, ou com o bem comum. Deve-se falar, portanto, de comuns para designar não aquilo que é, naturalmente ou por direito, comum, mas aquilo que é investido por uma atividade de compartilhamento. […] É a atividade que ‘torna comum’ a coisa, inscrevendo-a em um espaço institucional mediante a produção coletiva de regras específicas”. O comum deve ser compreendido como um horizonte político para além da dominação territorial do Estado e das elites econômicas, valorizando – como apontamos no terceiro capítulo desta obra – as formas criativas do fazer-com idealizadas pela comunidade. Embora existam aqueles que creem e defendem a ideia de que uma recomposição política poderia gerar uma mudança radical nas relações sociais e nos sistemas de reprodução social, acreditamos que tais recomposições podem criar condições favoráveis à mudança, mas elas por si só não são capazes de transformar radicalmente o sistema social capitalista. Entretanto, criar condições favoráveis já é definitivamente muito importante. Convém relembrar, como procuramos já ter deixado bem claro, que uma revolução social não significa tomar o poder, mas lutar pela dissolução dessa velha sociedade e dessa desigual condição de existência. O cientista social Massimo De Angelis (2019, p. 98) lembra-nos que “uma concepção de mudança radical, de ‘revolução’, […] se relaciona diretamente com a concepção de revolução social de Marx (e não com a de revolução política de Lenin)”. Fazer esta distinção entre revolução social e política

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não significa afirmar que a revolução social não seja em si política, mas significa compreender que ela se encontra para além da política no sentido institucional. De Angelis (2019) assevera que “a revolução social é, em última instância, um processo de busca de soluções aos problemas que os sistemas capitalistas não puderam resolver”. E aqui vale lembrar da ação do Movimento Zapatista e, guardadas as devidas proporções, do Movimento Occupy e de outros movimentos mais, em que estavam em pauta a luta pela defesa das comunidades tradicionais, por maior participação nas decisões, pela reconfiguração dos gastos sociais por parte do governo, pela autogestão de fábricas, por praças públicas autogeridas e pela radicalização da democracia. Em todas essas reivindicações, a ideia do comum estava de alguma maneira presente. Portanto, a ideia de comum acabou adquirindo uma forte dimensão antagonista nos movimentos sociais, que se manifestavam contra a espoliação e a concentração da riqueza. A matemática carioca Tatiana Roque (2017, p. 184) aponta alguns exemplos de expropriação que têm sido combatidos pelos movimentos sociais: “expropriação de camponeses e indígenas de sua cultura sobre sementes e remédios por grandes multinacionais do alimento (como Monsanto) ou por grandes farmacêuticas; o desenvolvimento de patentes por empresas de biotecnologia; e a monopolização por grandes empresas de informática (como Microsoft ou Google) das linguagens, dos softwares e dos saberes de rede em geral”. Embora trate-se de lutas necessárias, tal posicionamento restringe a ideia do comum à reflexão estratégica defensiva, quando, na verdade, deveriam mirar iniciativas de longo prazo; em outras palavras, deveriam ultrapassar a “temporalidade da indignação” (ROQUE, 2017, p. 184). Outra importante contribuição acerca do conceito de comum foi realizada pelo geógrafo Mateus Viriato de Medeiros Siniscalchi9 (2019, p. 143) ao buscar a origem etimológica da palavra. Explicita ele que “sua origem vem do latim communis, relacionado à munus (‘tarefa, dever, função, ofício’), significando, portanto, o ‘ato de repartir tarefas em conjunto’ ou ‘exercer função com’. Este sentido, que inicialmente se remete a uma maneira de fazer (o fazer-com) e a uma circunstância do estar (o estar-

9 Membro do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Espaço e Metropolização) e autor da dissertação de mestrado intitulada “Semeando o comum na metrópole contemporânea: as hortas comunitárias da cidade do Rio de Janeiro”.

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-junto), se estende posteriormente para as coisas que são compartilhadas por todos (res communis) e para os espaços nos quais todos participam de maneira recíproca (locus communis)”. Continuando sua investigação, Siniscalchi (2019, p. 144) acrescenta ainda que esse sentido “se opõe à noção de proprius (‘próprio, particular’), de modo que o comum ou o comunitário não se confundem com a ideia de posse ou propriedade”. Aqui parece claro que a ideia de comum não se encontra ligada à ideia de posse ou de proprietário; ao contrário, liga-se aos usos coletivos, à apropriação comunitária. A conclusão à qual chega Siniscalchi é que desde sua origem etimológica “o comum carrega a ideia de ações e objetos (materiais ou imateriais) que são experimentados e/ou construídos de forma compartilhada, denotando uma relação de compromisso mútuo para com esta ação ou objeto. Nesta perspectiva, quando nos propomos a ‘pensar o comum’ no movimento de produção espaço […], referimo-nos às relações de comunhão e reciprocidade que se desenvolvem entre a diversidade de sujeitos sociais que o produzem”. Reafirmamos que não estamos nos referindo a algo impossível, há ainda hoje inúmeros sistemas de propriedades comunais sobretudo entre as comunidades indígenas da América dita Latina e na África. Caffentzis e Federici (2019, p. 47) apontam para o fato de que na Inglaterra “a terra comunal se manteve como um fator econômico importante até começos do século XX”. Acrescentam ainda que essas são observações importantes “para dissipar a crença de que uma sociedade baseada em bens comuns é uma utopia ou que somente podem ser projetos em pequena escala, inadequados para abrigar as bases de um novo modelo de produção”. Neste primeiro quartel do século XXI, em que vivemos tempos de crises permanentes, que nos abarrotam em intervalos cada vez mais curtos, levando ao desemprego, à redução de salários e ao corte de benefícios sociais, a valorização dos comuns tem se tornado, muitas vezes, estratégia de sobrevivência. No capítulo anterior apresentamos alguns exemplos, como bancos de tempo, hortas urbanas, cooperativas de alimentos etc. Dessa maneira, a reivindicação do comum pode ser percebida através dos movimentos de resistência a novos cercamentos, dos movimentos contrários às privatizações, de alguns movimentos ecologistas e dos movimentos de oposição aos direitos de propriedade intelectual. Isso porque a ideia de comum engloba seu entendimento como recurso material, como bem imaterial, como princípio político e como prática social.

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Caffetzis e Federici (2019, p. 51) lembram-nos que “a lógica de mercado, levada ao extremo, resulta contraproducente inclusive do ponto de vista do capital, impossibilitando a cooperação necessária para o sistema de produção eficiente. Basta observar a situação das universidades estadunidenses, onde a subordinação das pesquisas científicas ante os interesses comerciais tem reduzido a comunicação e colaboração entre pesquisadores, forçando-os a uma espécie de secretismo acerca de seus projetos ou resultados”. Tudo isso tem despertado a curiosidade para a ideia do fazer-comum. Todavia, o comum não significa apenas proporcionar serviços sociais ou amenizar o crescimento exacerbado da desigualdade gerada pelo capitalismo, significa também investir na gestão comunal, na autogestão. Inclusive, salientam Caffetzis e Federici (2019, p. 56) que os comuns “exemplificam a visão que marxistas e anarquistas aspiravam, porém, sem ter obtido êxito: uma sociedade constituída por ‘associações livres de produtores’, autogovernadas e organizadas para assegurar, não uma igualdade abstrata, mas a satisfação das necessidades e desejos das pessoas”. O sistema comunal a ser construído precisa ser pensado para permitir-nos alcançar um novo modo de produção baseado na solidariedade, e não na competição. A igualdade de acesso aos meios de (re)produção juntamente com o igualitário compartilhamento da tomada de decisões é fundamental para a instituição do comum. Se desejamos mudar o estado de coisas atual, precisamos compartilhar e dedicar parte do nosso tempo a espaços de reuniões e manifestações, precisamos organizar-nos em função de nossas distintas necessidades e possibilidades; tudo isso sem nos esquecermos de que é fundamental lutarmos contra as inúmeras formas de exclusão e de hierarquização. A defesa do comum traz em si a negação da propriedade, seja ela pública ou privada. Além disso, lembra-nos Siniscalchi (2019, p. 147), trata-se de uma luta de “enfrentamento aos processos de apropriação capitalista (os cercamentos, privatizações e demais restrições aos usos). Quando os variados autores e ativistas estão falando do comum, geralmente eles se referem ao que estão defendendo das iniciativas de controle privativo e dos projetos de mercadificação que estão em curso”. Tal perspectiva é reforçada pela afirmação de Tonucci Filho (2017, p. 23), de que “o comum tem emergido nas últimas décadas como alternativa emanci-

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patória tanto ao socialismo de Estado quanto ao capitalismo neoliberal, e às suas respectivas formas específicas de propriedade: pública e privada”. Tal perspectiva é de real importância, pois a instituição da propriedade privada é base de sustentação do capitalismo. Diferentemente do que possa parecer, a propriedade pública do Estado não se configura como negação da propriedade privada, mas como uma forma coletiva da propriedade privada. Assim, “se a crítica socialista à propriedade privada no século XIX tinha como fundamento uma indignação frente à usurpação dos frutos do trabalho dos assalariados pelos proprietários dos meios de produção, a essa crítica soma-se hoje o reconhecimento de que a extensão da lógica da propriedade privada, do domínio natural ao intelectual, constitui uma ameaça geral às condições de toda vida em comum no planeta” (TONUCCI FILHO, 2017, p. 95). A experiência do comum envolveria o exercício do direito de uso coletivo; algo para além da reivindicação de uma espécie de propriedade coletiva. Referimo-nos ao rompimento daquilo que seria o direito à propriedade (exclusivo) e, em contrapartida, um movimento em direção ao direito do comum como oposição à propriedade. Dardot e Laval (2015, p. 270) defendem a posição segundo a qual o comum não se oporia ao público, entretanto não se definiria em termos de propriedade. Em suas palavras, o comum “retém aquilo que, no que é público, destaca a destinação social e não apenas a forma jurídica de propriedade”. Convém ainda acrescentar que esses autores nos lembram do risco do uso da expressão “bem comum”, que pode ser entendida como objeto de propriedade, enquanto o comum se refere àquilo que é inapropriável. A instituição do comum não é algo simples, pois, sendo um princípio político, carrega consigo uma dimensão conflituosa, e não uma espécie de governança pacífica. Mas convém lembrarmo-nos do sentido de governança desenvolvido pelo geógrafo português João Ferrão (2015, p. 209) quando propõe uma governança democrática metropolitana. Nessa obra, aponta para a necessidade de reforçar “as relações de coevolução dialética entre novas formas de regulação pós-burocrática por parte do Estado à escala metropolitana e novos modos de microprodução de cidade, resultantes de processos de ação coletiva capazes de criar espaços de respiração e emancipação democrática”. Portanto, Ferrão (2015, p. 210) acredita que uma verdadeira cidade dos cidadãos basear-se-ia em

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“interações e tensões criativas entre a cidade com poder, isto é, a cidade institucionalizada cuja autoridade de regulação assenta na legitimidade democrática conferida através de eleições por sufrágio direto e universal, e a rua com poder, ou seja, um espaço de práticas de ação coletiva e sociabilidade pública”. Isto é importante, pois escapamos da percepção de um “mundo lindo e perfeito”, sem tensões ou contradições; o movimento em direção do comum é, sim, um processo conflituoso, mas necessário e que faz parte da luta pela verdadeira democracia. A ideia de “cidade dos cidadãos”, desenvolvida por Ferrão (2015, p. 219), pressupõe necessariamente uma cidade com poder político, “que possa atuar como instância de regulação e de redistribuição com legitimidade democrática, e uma rua com poder cidadão, ou seja, com indivíduos, grupos e comunidades insurgentes, portadores de uma agenda de transformação progressista da cidade”. Nessa perspectiva, o comum carrega consigo a essência do princípio político – no sentido da valorização do ser político –, pois se realiza como atividade coletiva de deliberação; ou seja, a coatividade é o fundamento da coobrigação política. Em sua longa reflexão acerca do comum, inclusive como possibilidade de revolução no século XXI, Dardot e Laval (2017, p. 617) apontam para a necessidade de compreendermos que o comum não é uma coisa, tampouco uma propriedade ou característica de uma coisa. Logo, não deve ser confundido com aquilo que é considerado naturalmente comum, ou seja, a luz ou o ar, por exemplo; também não pode ser confundido com o que se denomina patrimônio da humanidade, pois estaríamos promovendo a separação entre a coisa e a atividade, “embora seja apenas pela atividade que as coisas possam realmente se tornar comuns”. Portanto, é a atividade que torna a coisa comum. Ademais, é importante compreender que a produção do espaço a partir da ideia do comum em nada se refere a um resgate nostálgico de um cotidiano do passado. Além disso, como salienta Siniscalchi (2019, p. 151), “o comum tem emergido nas últimas décadas como alternativa emancipatória à dominação espacial capitalista. […] Não possui um manual ‘passo a passo’ de como atingir tal emancipação”. Acrescenta ainda que o comum é construído e reconstruído “na prática cotidiana dos grupos que ensaiam maneiras de gerir e transformar os espaços em que […] habitam. Trata-se de um repertório de ideias e um arsenal de práticas espaciais que está [sic] sempre a se renovar – de maneira tática, criativa e

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subversiva – mediante as circunstâncias e ocasiões nas quais a multidão se reproduz socialmente”. O filósofo italiano Antonio Negri (2017), embora com uma abordagem diferente, mantém alguma confluência com a reflexão de Dardot e Laval (2017). Para Negri (2017, p. 237), o comum é sempre uma produção, “um modo de produção na nossa sociedade e como produto fundamental do trabalho de todos”. O foco encontra-se não na luta contra a sua destruição, mas a partir de sua produção. Assim, devemos pensar e pôr em prática formas de promover o comum. Há ainda muito o que pensar quando vislumbramos a promoção do comum, principalmente porque grande parte dos exemplos de concepção de mecanismos coletivos de administração dos comuns encontra-se ligado a grupos reduzidos de pessoas.10 Em outras palavras, a negociação direta na tomada de decisões, dependendo do número de pessoas envolvidas, torna-se mais difícil e implica a necessidade de formas de organização que contenham em si alguma configuração hierárquica. Isso parece um problema, pois, em geral, aqueles que defendem a instituição do comum afirmam a importância da organização política não estatal, não hierárquica e horizontal. Ademais, além da questão da dificuldade da manutenção organizacional de pura horizontalidade, lembra-nos o geógrafo inglês David Harvey (2012, p. 69) que “as possibilidades de uma administração sensata dos recursos de propriedade comum que existem em determinada escala […] não são e nem podem ser transferidas para problemas como o aquecimento global. […] O que parece ser uma boa maneira de se resolver problemas em uma escala não se aplica a outra escala”. Além disso, ao refletirmos sobre a governança democrática metropolitana, como apontada por Ferrão (2015), é importante termos em conta que a realização da ação coletiva e cooperativa com forte participação dos habitantes se dá mais facilmente em locais menores do que em unidades administrativas maiores. Para tentar minimizar a redução de participação dos cidadãos no âmbito de unidades administrativas maiores, o filósofo e historiador estadunidense Murray Bookchin (1992) aponta para a criação de uma espécie de rede confederada de assembleias municipais. Sua proposta procura fa-

10 OSTROM, Elinor. Governing the Commons: the evolution of institutions for collective action. Cambridge: Cambridge University Press, 1990.

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zer uso da representação, mas mantendo o posicionamento decidido nas assembleias de bairros. Bookchin acreditava que sua proposta de criação de conselhos confederados poderia viabilizar a interligação de bairros, pequenas cidades, grandes cidades e metrópoles em redes confederadas. Além disso, haveria uma mudança de sentido do fluxo de decisões, que passaria a fluir de baixo para cima. Um movimento que valorizaria o “fazer-com” e também a dimensão da proximidade, que é fundamental para fomentar a participação. Acreditamos que a instituição do comum seja um processo, assim conviveremos durante muito tempo com situações híbridas, em que articulações com partidos políticos alinhados ao ideário do comum poderão viabilizar determinados avanços nessa direção. Assim, curiosamente, é possível vivenciarmos situações contraditórias em que, como afirma Harvey (2012, p. 70), “a produção e o cercamento de espaços não mercantilizados em um mundo implacavelmente mercantilizador é seguramente algo positivo”. Refere-se, por exemplo, a reservas florestais para proteção da biodiversidade e das culturas das populações indígenas. De fato, parece e é contraditória a afirmação de que para proteger os comuns – como estratégia anticapitalista – faz-se necessário o cercamento. Diante disso, é possível imaginar o quão difícil é o caminho em direção ao comum. O turismo tem contribuído fortemente para a transformação dos comuns culturais em mercadoria. Nesse sentido, práticas sociais e modos de sociabilidade de determinada comunidade passam a ser explorados e são transformados em mercadoria. Tais práticas culturais passam a representar um retorno econômico para empresas ligadas ao turismo e acabam sofrendo uma espécie de “disneyficação”. Curiosamente, uma cidade atrativa é fruto de uma produção coletiva de seus cidadãos, mas o mercado do turismo contribui para a captura desse comum, transformando a cidade em mercadoria. Se por um lado isso não significa a destruição desse comum através do uso, por outro lado, lembra-nos Harvey (2012, p. 74), esse comum “pode ser degradado e banalizado por sua utilização abusiva”. O mesmo poderíamos afirmar ao que se refere a parques urbanos, que acabam sendo capitalizados e gerando o aumento dos preços dos imóveis em suas áreas vizinhas, acarretando gentrificação. Aliás, como procuramos demonstrar no segundo capítulo desta obra, a própria luta pela manutenção do caráter de diversidade étnica de determinado bairro – objetivando evitar a gentrificação – pode,

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simultaneamente, contribuir para o aumento de preço do solo urbano e a mudança do comércio e serviço do local. Isso porque os promotores imobiliários podem transformar aquelas características (a multiculturalidade e o ambiente alegre e moderno do bairro) em mercadoria. Uma situação assim levou Harvey (2012, p. 78) a afirmar que “os que criam um cotidiano comunitário interessante e estimulante acabam por perdê-lo para as práticas predatórias dos agentes imobiliários, dos financistas e consumidores de classe alta”. Outras vezes são promovidos discursos afirmando que grandes eventos ou um projeto de renovação urbana são benéficos para a cidade; e enorme quantidade de recursos são destinados a essas intervenções pelos governantes, que afirmam se tratar de operações de interesse comum da sociedade. Todavia, a pergunta que devemos fazer é: será benéfico para quem? Quem na cidade será beneficiado? Há também um forte movimento em direção à captura do comum, à cooptação de ações de produção do comum. Por vezes, a ideia de comum vem sendo capturada pelo poder político (inclusive através da banalização da noção do “direito à cidade”) e pelos interesses do setor imobiliário. Tudo isso contribui para a necessidade de buscarmos táticas e estratégias criativas para manter o valor produzido sob a gerência das pessoas que o produziram. Em outras palavras, mas de maneira semelhante, Harvey (2012, p. 87) afirma que é preciso “usar os poderes do trabalho coletivo para o bem comum, e manter o valor produzido sob o controle dos trabalhadores”. Vivendo um período de exacerbação da fase de financeirização do capitalismo, o discurso acerca do comum surge como contraposição através de propostas de produção do espaço que se fortalecem através da radicalização da democracia. Nesse sentido, lembra-nos Siniscalchi (2019, p. 153) que “o comum se constitui antes de tudo como um horizonte político, um princípio das relações comunitárias de produção do espaço e reprodução da vida”. Portanto, mais do que necessário, é fundamental valorizarmos a reapropriação do político; referimo-nos ao sentido do ser político. Dessa maneira, podemos sonhar com o projeto de construção de uma política autônoma em favor dos interesses comuns, construídos coletivamente. A cidade – justamente por ser o lugar do encontro e das tensões, do trabalho e do ócio, da alienação e da luta, do repetitivo e da criatividade – pode ser ela mesma compreendida como comum em sua totalidade de

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relações, interações, reações e em toda a complexidade da vida cotidiana. Não à toa, Hardt e Negri (2009) consideram-na, simultaneamente, receptáculo e fonte da produção do comum. Portanto, o comum urbano é produzido através da prática do fazer-comum, que se realiza por meio do valor de uso, da apropriação e do exercício da autogestão. Vale recordar que os espaços públicos, que sempre estiveram sob responsabilidade e administração do Estado, não são comuns. Entretanto, não podemos desconsiderar a importância da criação, em geral por meio do Estado, de obras de saneamento, de pavimentação das ruas, de investimentos em educação e saúde públicas. Além disso, há também a relevância da produção de habitação de interesse social acessível. Esses espaços e bens públicos auxiliam na constituição do comum, quando são verdadeiramente apropriados através de ações políticas dos cidadãos. Harvey (2012, p. 73) defende a ideia de que as praças e ruas são espaços públicos que se tornam comuns urbanos quando as pessoas ali se reúnem para expressar suas opiniões políticas e fazer suas reivindicações. A expansão da financeirização do setor imobiliário, como deixamos claro nos capítulos anteriores, trazendo consigo projetos de “revitalização”, de megaeventos e de condomínios fechados, trouxe também a exacerbação da gentrificação; e a ideia do comum contribui para a construção e fortalecimento da crítica à propriedade privada, além de apontar um caminho para além das opções público e privado. Tonucci Filho (2017, p. 233) acredita que a ideia do comum nos ajuda não somente a “descontruir a ideologia do individualismo possessivo – sustentáculos filosóficos, jurídicos e econômicos do capitalismo –, mas revela-nos ainda um amplo espectro de arranjos e direitos de propriedade da terra, coletivos e não exclusivos, que não enquadram-se [sic] no binarismo público-privado, e que são portanto subjugados ou invisibilizados”. No capítulo anterior apresentamos vários exemplos de práticas do fazer-comum. A produção do espaço, que tem sido fundamental para a reprodução continuada do capitalismo, tem deixado cada vez mais marcas do aumento da desigualdade: empobrecimento da população, crescimento do desemprego, extinção de determinadas atividades laborais, aumento dos moradores de rua, desigualdade no acesso aos benefícios de viver em cidades etc. Tudo isso aponta para a necessidade da concepção de reflexões e de práticas que apontem para a luta pela construção da ideia da cidade como comum, e isso significa também trabalhar pela realiza-

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ção da autogestão. Corroboramos a posição de Lefebvre (2017, p. 140) quando afirmou que a autogestão deve ser estudada através de uma dupla elaboração: como meio de luta, que proporciona a abertura para novas possibilidades, e como meio de reorganização da sociedade, ou seja, possibilitando a criação de formas outras de socialidade através da valorização do “fazer com”. Ao propor a instituição do comum, estamos simultaneamente negando o direito de propriedade e todas as normas, leis e regras que formalizam a sua gestão (seja ela exercida pelo Estado ou pelas grandes empresas e corporações). Esta perspectiva é fundamental, já que tanto o espaço público quanto o espaço privado estão orientados através do direito jurídico da propriedade; e mais, a propriedade estabeleceu-se como o cerne de toda a ordem social. Por tudo isso é que afirmamos que a instituição do comum tem seu sentido pleno para além do capitalismo. Em outras palavras, isso significa dizer que é necessário pensar o comum como algo que se constrói através das fissuras da acumulação capitalista, mas visando caminhar para além dela. Podemos afirmar, então, que não há comum sem luta pelo comum; e mais, não haverá a instituição do comum sem o rompimento com as instituições existentes. Ao reivindicarmos a luta pelo comum, não estamos presos apenas a uma construção teórica, estamos propondo a luta contra a ampliação da lógica da propriedade privada a todas as esferas da vida. Nas palavras de Dardot e Laval (2017, p. 18), “o ‘comum’ se tornou a designação de um regime de práticas, lutas, instituições e pesquisas que abrem as portas para um futuro não capitalista”; e eu poderia dizer, sem qualquer receio, para um futuro comunista.

EPÍLOGO...

...Ou ainda vale a pena acreditar e lutar... Existe uma diferença entre conhecer o caminho e trilhar o caminho. Morpheus no filme Matrix

Ao lermos os jornais e assistirmos aos telejornais, parece-nos que a desigualdade crescente mundo afora não tem solução. E pior: há uma naturalização da miséria, uma naturalização do absurdo! Em geral, é construído um discurso que promove a transferência da culpa dessa tragédia para aqueles que se encontram na condição de pobres, de sem-teto, de desempregados, de expropriados de seus locais de residência etc. Essa ideologia é incorporada cotidianamente por cada cidadão, que muitas vezes acaba introjetando em si a culpa “pelo seu fracasso”: ele é pobre porque não trabalhou o suficiente; e não conseguiu entrar na universidade porque não é bom o bastante. É o velho discurso acerca da meritocracia. Mas, como podemos apontar para a meritocracia, se as pessoas não tiveram as mesmas condições e oportunidades de formação e de preparação? Ao desconsiderarem a situação estrutural de classe, culpam a população mais pobre por sua própria pobreza! Discursos como o da valorização da meritocracia escondem uma enorme desigualdade social, entretanto, a construção desses discursos é muito bem desenvolvida na vida cotidiana. As ideias dominantes em cada época são as ideias da classe dominante. Ademais, tais ideias nada mais são do que a expressão ideal das relações sociais que fazem de uma classe a classe dominante (MARX; ENGELS, 2007). Assim, é preciso afirmarmos diariamente que vivemos em uma sociedade extremamente desigual e que isso não é obra do acaso. Tal percepção fez com que Marx (2005) afirmasse que vivemos a partir de uma visão invertida do mundo, em que parece que é o Estado que torna possível a existência da sociedade e não o inverso; ou de que foi Deus o ser criador de tudo – do homem e da

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natureza – em vez de percebermos que Deus é uma concepção humana. É a partir dessa percepção que Marx (2005, p. 145) reitera que “a religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração, assim como o espírito de estados de coisas embrutecidos. Ela é o ópio do povo. A supressão da religião como felicidade ilusória do povo é a exigência da sua felicidade real”. Aqui o remetimento à expressão “religião” deve ser entendido como à instituição religiosa, e não à religiosidade das pessoas. Precisamos escapar dessa cortina de fumaça. O espaço é o lugar da reprodução das relações sociais de produção e não apenas dos meios de produção, logo, percebemos o espaço como mercadoria. Porém, se o espaço é o lugar da reprodução, é também lugar da contestação, do encontro, da rebeldia, lugar da ação. E aqui se está diante de grandes tensões, contradições; ou seja, se é no espaço da vida cotidiana que se percebe e se vive o dia a dia, é nele também que são concebidos projetos, na maioria das vezes, à revelia dos habitantes do lugar. Se, como afirmamos, muitos daqueles que vivem na cidade acabam por perceber e viver a partir da total naturalização de tudo, da banalização da miséria e da desigualdade, por outro lado, há também aqueles atores sociais que, a partir da indignação, procuram formas de lutar contra o estado de coisas atual; as estratégias de suas práticas espaciais são fundamentais, posto que percebem que a produção do espaço é também instrumento de reprodução das relações sociais. O cotidiano, embora muitas vezes banalizado, já que se expressa por sua miséria e riqueza a partir de eventos triviais, caracteriza-se como a mediação entre a repetição e a criação, entre a alienação e a liberdade, como a clara explicitação da imbricação entre espaço e tempo. As inúmeras possibilidades de apropriação do cotidiano resultam da vivência, da experiência vivida, e têm grande potencial criador, possibilitando a formação e permanência de resistências. Portanto, quando através da apropriação do espaço da cidade se reconstrói a cotidianidade, é possível pensar na formação de movimentos que lutem pela emancipação e pela sua transformação, apontando para uma forma de gestão que priorize a participação popular de maneira intensa, valorizando o “fazer com”; pensar em outras formas de gestão e planejamento; pensar em como viabilizar formas de autogestão. É preciso pensar em novas formas de planejamento, baseadas no diálogo e na participação democrática, pois, como diz Capel (2003, p. 241),

Epílogo

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“não podemos deixar que sejam os técnicos que nos dirijam, que nos ponham diante do fato consumado. Temos que impor o diálogo, tornar explícitas nossas opções e pôr os técnicos a nosso serviço”. Aqui, embora não seja isso necessariamente o que Horacio Capel propõe, valeria a pena, como afirmamos no Capítulo 3, investir na ideia de autogestão; a criação dos conselhos populares é uma estratégia em direção disso. Mas não devemos “eternizar” os participantes desses conselhos, é preciso que haja sempre um revezamento. Devem ser os conselhos a definir as propostas e necessidades, e não apenas o vereador ou o deputado. Estes devem “apenas” representar a posição e o desejo da população; contudo, atualmente, não é isso o que acontece de fato. Esses políticos têm dado muito mais voz aos financiadores de suas campanhas do que à população de forma geral. Embora não seja viável pensar em uma forma apenas horizontal de gestão, é preciso caminhar na conjugação de formas horizontais e verticais. Participação não significa reunir algumas dezenas ou centenas de pessoas e apresentar-lhes um projeto de intervenções urbanas ou apresentar-lhes o que será realizado. Isso definitivamente não é participação; é praticamente apenas uma forma de publicidade em duplo sentido: o primeiro ao apresentar as propostas do governo, e o segundo, no sentido de fazer crer que o governo implementa a participação popular. É preciso construir propostas de mudanças nos processos de decisão, mas também relativas à construção de espaços – no sentido concreto mesmo – de diálogo e de decisões, visto que, como apontamos anteriormente, nós produzimos o espaço que nos produz. Para tanto, é preciso pensarmos o espaço também como política. Há mundo afora sinais de que é possível construirmos esses espaços; inclusive através de exemplos concretos que resgatam as ideias de comuns, de espaços comuns, de participação e de autogestão. Áreas das cidades, muitas vezes abandonadas pelo poder público, são apropriadas pela população do lugar e ganham características de espaço de todos, cuja gestão é produzida de maneira intensa, aberta e participativa. Trata-se daquilo a que Marx e Engels (1998, p. 19), há tempos, referiram-se como “o movimento autônomo da imensa maioria no interesse da imensa maioria”. Como vimos anteriormente, a proposta de intervenção denominada de urbanismo tático consistiria em ações pontuais e de pequena escala que, em longo prazo, poderiam con-

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tribuir para a mudança de comportamento do cidadão no que se refere à apropriação do espaço. Em 2014, o arquiteto português Pedro Gadanho foi curador de uma exposição no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA) que tinha como tema Uneven Growth: Tactical Urbanisms for Expanding Megacities. Tratou-se de uma exposição que apresentava o resultado de propostas para seis metrópoles globais, realizadas por grupos interdisciplinares, com “o objetivo de desafiar conceitos atuais sobre as relações entre planejamento urbano formal/informal ou bottom-up/top-down e direcionar mudanças nos papéis de arquitetos e urbanistas na desigualdade crescente do desenvolvimento urbano”. Além disso, as intervenções propostas a partir do urbanismo tático “emergem como formas participativas de resposta à ausência dos poderes públicos na promoção da habitação, mobilidade, justiça ambiental, segurança, condições ambientais, entre outros”.1 Todavia, não podemos esquecer da capacidade de cooptação dessas iniciativas pelo poder público e pelo empresariado em benefício próprio. Além disso, convém lembrar que o urbanismo tático não substitui o planejamento urbano. De toda forma, são propostas desafiadoras! Mas, por tudo isso, continuamos a acreditar que vale a pena lutar pelo impossível possível do qual nos falava Henri Lefebvre (1991, 2001). Importa romper com a força que a tecnocracia tem ao empreender seus projetos e propostas, pois o conhecimento técnico desprendido da abertura para ouvir os citadinos de nada vale. O Estado tem majoritariamente prescindido da participação dos interessados. É necessário fazer-se ouvir, mostrar aos políticos e aos tecnocratas aquilo que verdadeiramente interessa à população. O direito à cidade não se refere a uma espécie de direito contratual, que se realiza apenas pelo Estado. A verdadeira participação deve partir da população e deve ser ativa e constante; não deve esmorecer quando da conquista dos primeiros resultados, ao contrário, isso deve significar que é possível transformar e então esse é o momento de reavaliar os resultados e lutar por novas conquistas. O crescimento ininterrupto da participação é o caminho para a conquista da autogestão e da verdadeira democracia. É preciso partir dessa percepção, pois temos observado a aceitação passiva, por boa parte da sociedade, do discurso e conteúdo da moder1 Moreira (2019).

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nização: privatização dos serviços coletivos, transformação dos modos de vida, aceleração da compressão espaço-tempo etc. Contudo, como nos lembrava a socióloga Ana Clara Torres Ribeiro (2000, p. 240), essa é apenas “uma das possibilidades abertas pela nova frente modernizadora, correlata a tendências observadas nos países centrais”. Importa valorizar a história única da sociedade brasileira, mas, obviamente, isso não significa que nossa cultura não contenha traços – inclusive fortes – de outras culturas. Talvez seja por isso que a socióloga acreditava que existam “atos a serem reconhecidos e valorizados e, ainda, vozes a serem ouvidas e inscritas na formulação dos futuros possíveis”. Se, atualmente, é impossível não ser influenciado por acontecimentos externos ao cotidiano do lugar, é verdade também que cada indivíduo ou grupo social faz uma leitura do global que, de alguma forma, o diferencia de outro. Por conseguinte, cada lugar responde às influências externas que o integram ao mundo como um todo, a partir de suas singularidades que reforçam a identidade do lugar; por isso, reafirmamos: a proximidade tem um papel importantíssimo na construção de táticas e estratégias revolucionárias. No século XXI temos observado o acirramento das tensões e conflitos na produção do espaço, exemplificados na segregação, na necropolítica, na gentrificação e em discursos antidemocráticos. Nesse sentido, a luta deve ser construída a partir de uma análise profunda desses processos, mas, como sempre faz questão de nos recordar o geógrafo português João Ferrão, deve ser acompanhada da produção de agendas transformadoras alternativas desejáveis e exequíveis, pois, por vezes, é preciso pensar o possível conjunturalmente; dessa maneira, como nos lembrou a geógrafa Sandra Lencioni (2013, p. 32), “talvez possamos encontrar soluções ou encaminhamentos para um futuro em construção”. Sabemos, entretanto, da dificuldade da luta em favor da participação. A população mais pobre vive em condições precárias, ademais, tendo poucos recursos, precisa trabalhar mais horas em serviços muitas vezes extenuantes, o que reduz sua energia para utilizar o pouco tempo que lhe resta em lutas políticas que não melhorarão suas condições de vida no curto prazo. Em outras palavras, é muito difícil o engajamento desse grupo social em estruturas organizacionais de longo prazo sem antes ter conseguido uma seguridade material e uma igualdade básica. E isso parece um ciclo vicioso: para conseguir espaço de participação na definição das decisões acerca do projeto de cidade, é preciso organização coletiva para

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a idealização de táticas e estratégias de luta; contudo, para engajar-se em organizações coletivas, é necessário ter uma tranquilidade mínima – em se tratando de condições de vida – para dedicar-se a um projeto de luta de longa duração. Uma constatação como esta é que levou a pesquisadora alemã de História Urbana Lisa Vollmer (2019, p. 212) a afirmar que “a autodeterminação e a auto-organização pressupõem a existência de uma seguridade material básica e por isso, a esse respeito, existem também desigualdades na autodeterminação da própria vida. A autogestão torna-se muito mais complicada para pessoas com um capital econômico limitado, que vivem situações precárias”. Por isso é tão importante a associação da luta a partir das noções de urgências e utopias, pois, como nos lembrou o geógrafo Mateus Viriato de Medeiros Siniscalchi, em 2020, durante uma reunião do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisa em Espaço e Metropolização), precisamos compreender que, para uma enorme parcela da população, a urgência que marca sua existência é em verdade, sua simples capacidade de sobreviver. Difícil realidade. Portanto, a luta por políticas mitigadoras da desigualdade é muito importante e, nesse sentido, os movimentos sociais e os partidos alinhados mais à esquerda cumprem um papel bastante relevante. Retomando o tema da autogestão e da participação, precisamos reivindicar um papel realmente ativo na própria definição da forma de participação da sociedade. Isso significa, inclusive, a possibilidade da própria formulação da política habitacional e das leis necessárias, que posteriormente seriam levadas à câmara de vereadores e de deputados para debate e viabilização. A luta pela própria definição da forma de participação da sociedade é fundamental, pois há tempos os processos participativos constam oficialmente do planejamento urbano, entretanto a forma é definida pelas instituições de governo. Embora não seja o caso de aprofundarmos este debate no momento em que chegamos ao final desta obra, convém lembrar que o planejamento participativo teve conexão com o que se denominou planejamento comunicativo (que teve por base a teoria da ação comunicativa, desenvolvida por Jürgen Habermas). Em poucas palavras, o planejamento comunicativo defendia a ideia de que os problemas de planejamento poderiam ser resolvidos a partir da participação dos grupos afetados e das partes interessadas através de uma negociação para a busca do consenso. A teoria prega que devem ser excluídas as relações de poder durante as

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negociações; contudo, como considerar a realização de uma decisão consensual a partir de um conjunto de participantes com tamanha diferença de poder? As relações sociais carregam em si as relações de poder, portanto não há, verdadeiramente, como eliminá-las do jogo. Nesse sentido, é preciso compreendermos que o discurso do consenso pode significar o ocultamento dos conflitos e dos diferentes interesses, além de negar o dissenso. Os processos de participação construídos dessa maneira, embora aparentemente democráticos, cumprem a função de escamotear o dissenso e o conflito; e mais: acabam por conferir um forte ar de legitimidade às decisões. Precisamos escapar dessa armadilha, pois, de outro modo, as questões sociais acabam reduzidas a desafios técnicos, passando assim a se tratar apenas de uma questão tecnocrática. É contra essa perspectiva que estamos nos contrapondo. Precisamos subverter a ordem. É necessário desobedecer a ordem dominante, que conta com a aliança do Estado com o Capital e com a mídia hegemônica. Precisamos dar outros usos à técnica, que rompam com a produção desigual do espaço urbano. Concordamos com a socióloga Ana Clara Torres Ribeiro (2012, p. 67) quando afirmava que precisávamos valorizar os contextos da ação, vínculos sociais, vivências e experiências. Não podemos renegar o pequeno, o fugaz, que pode ser de grande importância por constituir-se na única resistência possível. Esta talvez seja a chance de nos contrapormos à ação que se realiza “de cima para baixo”, criando espaços de representação através da experiência construída em apreensões horizontais e cooperativas da vida cotidiana e coletiva. Talvez seja hora de valorizarmos mais o dissenso que o consenso, que é cada vez mais consenso publicitário. O Outro do urbano é o homem comum, que escapa dessa lógica, que, mais que sobreviver, busca viver, porque resiste. Ele inventa, se reinventa de forma criativa, cria táticas de resistência através da apropriação do espaço. Lisa Vollmer (2019, p. 198) apresentou-nos a ideia de “produção de desejos” como estratégia para escaparmos da lógica do planejamento participativo definido a partir das instituições de governo. Apontou, como exemplo, a iniciativa do Park Fiction, em Hamburgo. Havia um projeto de construção de escritórios e edifícios residenciais que fecharia um dos últimos acessos ao rio Elba, entretanto “alguns artistas, instituições sociais, a diretora de uma escola, uma igreja local e o clube Golden Pudel se juntaram para projetar um parque em seu lugar. […] Em vez de

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reivindicarem a criação de um parque, o que fizeram foi imaginar um parque, e assim nasceu Park Fiction”. Dessa maneira, o método de produção de desejos coletivos teve um resultado efetivo, que outorgou legitimidade ao processo. Vollmer (2019, p. 199) acredita que “a produção de desejos é um conceito para a luta e ao mesmo tempo que propõe modelos de ação alternativos. […] [Além disso] critica o fato de se desconsiderar os usuários da cidade e se opõe à transformação das cidades com base apenas em interesses econômicos”. Acrescenta ainda que a produção de desejos “demonstra que é possível que o planejamento da cidade seja feito por aqueles que vivem nela e que lhe deem forma em função de suas necessidades”. Isso é muito importante, pois, como já vimos criticando há tempos, as formas usuais de participação têm sido, na verdade, uma divulgação de um projeto a ser implementado ou, quando muito, a participação ocorre apenas em pequenos detalhes de um projeto já pronto. O conceito de produção de desejos altera a lógica de ação, pois a reflexão acerca das necessidades e o próprio planejamento passam a ser realizados pelos moradores dos bairros, que posteriormente levam seus planos às administrações públicas. O engajamento de muitas pessoas é fundamental para que a proposta ganhe legitimidade; assim, a divulgação e a acessibilidade devem ser muito bem pensadas. É preciso aproveitar os lugares mais habituais de encontro dos moradores, como cafeterias, bares, praças, escolas, lanchonetes, padarias e farmácias para fazer a divulgação acerca da necessidade da participação de todos. É necessário também pensar na criação de um local para receber as propostas daqueles que não puderem participar das reuniões presenciais. Isso é fundamental para aumentar o número de pessoas refletindo e participando do processo de produção de desejos. As propostas podem abarcar um sem-fim de temas; todos importantes e legítimos. Em Berlim, durante o ano de 2014, foi produzido pelos cidadãos um projeto-piloto – apoiado por um movimento de inquilinos – para um antigo quartel de 4,7 hectares, localizado no bairro de Kreuzberg. O projeto teve por base algumas condições por eles mesmos estabelecidas: a obra a ser realizada teria de ser “100% propriedade pública; 100% dos aluguéis a preços acessíveis, também para as pessoas que recebiam ajuda social; 100% de participação, cogestão sem capital próprio e 100% de garantia a longo prazo de proteção contra a privatização” (VOLLMER, 2019, p. 204). Luta difícil, mas, de fato, um planejamento

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urbano focado nos cidadãos tem de estar centrado nas necessidades dos usuários da cidade, e não no seu poder aquisitivo. O que temos visto, ao contrário, são projetos que, levados a cabo, vêm provocando gentrificação.2 Reafirmamos que a gentrificação não é um efeito colateral indesejado, ela faz parte de um projeto urbano que é resultado de políticas, ações e omissões por parte do poder público, que vai ao encontro dos interesses dos atores do mercado imobiliário, do mercado financeiro e das indústrias da construção. A moradia tornada mercadoria levou a questão habitacional a um enredo de difícil solução, por isso a mobilização social é ainda mais importante. Trata-se de uma batalha difícil, que incorpora a luta contra a mercadificação e pela democratização do planejamento na busca de produção de moradia acessível para todos. Parece fácil imaginar que a provisão de moradia social somente seria, de fato, justa e real fora da lógica de mercado. Em Berlim, um grupo de trabalho sobre urbanismo da organização Esquerda Intervencionista3 propõe três passos para alterar a lógica da produção de moradias: redução do mercado imobiliário privado; consolidação da moradia como bem comum; e democratização radical da gestão da moradia pública. O grupo defende medidas duras contra os aumentos dos preços dos aluguéis, inclusive defendem “a expropriação de imóveis privados pelo bem comum, como ocorre com a construção de estradas. Além disso, os governos federais, estaduais e municipais teriam que adotar uma política imobiliária ativa e comprar terrenos ao invés de vendê-los” (VOLLMER, 2019, p. 119). Todavia, a organização Esquerda Intervencionista enaltece a importância de que tais esforços venham acompanhados de uma total democratização das instituições, porque “o fato de que a terra e os imóveis se encontrarem em mãos públicas não é garantia de que os inquilinos não sejam expulsos” (VOLLMER, 2019, p. 120). Trata-se de uma proposta drástica, mas que vai à raiz do problema. Ao levantar o problema e apresentar uma proposta como essa, esse grupo já dá uma enorme contribuição à luta por moradia. O fato é que ao deixar a produção de moradias a cargo do mercado, em vez de imóveis acessíveis e necessários à população mais pobre, prio-

2 No Capítulo 2 desta obra desenvolvemos longo debate acerca desse processo. 3 Interventionistische Linke (IL).

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ritariamente são produzidos imóveis para os segmentos de renda mais elevada. E aqui nem estamos nos referindo à gentrificação. Como apontamos no Capítulo 2, o encarecimento dos preços dos imóveis (e consequentemente dos aluguéis) tem contribuído para a expulsão dos antigos moradores de determinadas áreas das cidades. E muitas vezes da própria cidade, levando-os a optar por moradias nos municípios vizinhos; é o caso, por exemplo, de Lisboa, Barcelona, Madri, Paris, Berlim, Rio de Janeiro e tantas outras. Em determinadas cidades têm havido alterações nas leis que autorizam a construção de imóveis, devido à mobilização social pela produção do espaço de maneira mais justa. Em Barcelona, por exemplo, as novas construções e as grandes obras de reabilitação na cidade devem reservar 30% da área construída para moradias com preço de aluguel acessível à população de renda mais baixa. Anne Hidalgo, eleita prefeita de Paris em 2014 pelo Partido Socialista Francês, apresentou um plano para deter a gentrificação que vinha ocorrendo nos bairros centrais da cidade. Tratou-se da definição de 257 endereços, totalizando 8.021 apartamentos, que a prefeitura tem o direito de impedir a venda com o propósito de transformá-los em moradias subsidiadas. Essa medida visou assegurar às populações de baixo poder aquisitivo sua permanência em áreas residenciais bem localizadas e com acesso fácil a serviços e equipamentos urbanos no centro histórico de Paris, o que evitou sua expulsão para as periferias e a consequente substituição desses moradores por uma parcela da sociedade com alto poder aquisitivo ou pela transformação dessas moradias em imóveis de aluguel por temporada. Estes são apenas dois exemplos, mas não são os únicos. Terrenos públicos e imóveis abandonados, principalmente nas áreas centrais (que têm total infraestrutura construída), devem ser utilizados para a produção de moradia para a população mais vulnerável. No Rio de Janeiro há inúmeros terrenos e imóveis fechados e abandonados na área central da cidade, que poderiam ser utilizados para produção de moradia para a população com baixo poder aquisitivo.4 4 Em 2011, escrevi um livro intitulado A cidade no século XXI: segregação e banalização do espaço, ali apresentei um mapeamento desses terrenos e imóveis fechados e abandonados no centro do Rio de Janeiro, além de indicar também os inúmeros terrenos sem uso – desde as obras de construção do metrô – e pertencentes ao Estado, que poderiam servir para o desenvolvimento de um grande projeto habitacional na cidade (uma nova edição revista e ampliada desse livro foi lançada pela editora Consequência em 2013).

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A sociedade civil também tem se mobilizado. Em meados dos anos 2000, um grupo de cinco arquitetos formados na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) reuniu-se e iniciou um trabalho muito importante para aqueles cidadãos que não têm moradia; eles fundaram a associação Chiq da Silva. O grupo realiza projetos para adequação de prédios que estavam abandonados e que foram ocupados por membros dos movimentos de sem-teto. As 34 famílias que ocuparam um antigo prédio da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) na última década do século XXI, localizado na Rua Mem de Sá 261, na área central da cidade, foram agraciadas com um projeto de adequação do prédio em estilo Art Déco do primeiro quartel do século XX. O projeto é sempre muito debatido com os moradores, que em assembleia definem os detalhes; definem inclusive o tamanho dos apartamentos. Como se tratava de um prédio público, não havia cozinhas nos “apartamentos” e os banheiros eram coletivos. O projeto criou banheiros e cozinhas em cada apartamento, entradas independentes e também ventilação adequada. Segundo declaração de um dos moradores do local,5 ninguém faz objeção a ter de pagar impostos, desejam apenas permanecer no imóvel. A área central, por apresentar infraestrutura totalmente instalada, inclusive de transporte e saneamento, e concentrar boa oferta de ocupações no mercado de trabalho, mostra-se altamente indicada como local para implementação de programas habitacionais, contribuindo também para dar vida a essas localidades. Outros dois exemplos de ocupações que também foram beneficiadas pela colaboração da associação Chic da Silva foram a Ocupação Chiquinha Gonzaga (rua Barão de São Félix) e a Ocupação Zumbi dos Palmares (no prédio do INSS da Avenida Venezuela), ambas na área central da cidade. Por outro lado, temos observado, simultaneamente, o crescimento da construção de condomínios fechados, que colabora cada vez mais para a constituição de relações apenas entre grupos sociais semelhantes. O geógrafo Mateus Siniscalchi (2019, p. 193) observa nesse processo o fato de que “são muitos os grupos sociais que forjam suas relações quase que exclusivamente no contexto privado da vida cotidiana, circunscrevendo seus laços sociais em espaços fechados que marginalizam as diferenças 5 O Globo, 5 jun. 2010.

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a partir do direito jurídico da propriedade privada”. Tais grupos têm no horizonte a defesa a qualquer custo da propriedade privada, fazendo uso da “elaboração de políticas de (in)segurança social, que na prática se traduzem na vigilância e no controle territorial”. E o pior é que essas práticas de luta pela segurança, como vimos no terceiro capítulo desta obra, implicam na exacerbação da violência e do controle em vez de investir na luta pela radicalização da democracia. Olhando para trás, há milhares de anos as cidades são produzidas em torno do poder opressor, do centro opressor. As cidades antigas foram forjadas em torno de uma praça forte ou mesmo de um templo. As ditas cidades industriais, em grande parte das vezes, cresceram em volta da fábrica, com suas ruas apinhadas de gente e eventualmente sem infraestrutura. As cidades do século XXI são edificadas com grandes avenidas, que priorizam os automóveis, em meio a um conjunto de prédios altos e envidraçados; são cidades policêntricas. Nessas cidades não existe mais o centro de opressão, porque, como nos lembrou o filósofo belga Raoul Vaneigem (2002, p. 255), “a opressão está em toda parte”. Há, como foi possível observar no decorrer desta obra, inúmeras formas de opressão e de alienação, a exacerbação daquilo que denomino mercadificação é uma delas. Vivemos em um mundo em que tudo foi transformado em mercadoria e em espetáculo. Experimentamos o consumo do espetáculo e o espetáculo do consumo e, dessa forma, somos simultaneamente consumidores e a própria mercadoria e o símbolo dessa mercadoria (a publicidade mostra jovens felizes e pseudoempreendedores de sucesso). Embora tenhamos afirmado que tudo se transforma em mercadoria e que as moradias também são vistas e tratadas como tal, o “mercado de moradias” não é um mercado igual a qualquer mercado. A habitação tem uma especificidade que não a torna igual a qualquer outra mercadoria. A afirmação de que o mercado segue as leis da oferta e da procura não servem para o mercado imobiliário. O crescimento da oferta de moradias em determinado bairro da cidade não equilibra a falta de oferta em outros. Isso porque o perfil de construção de determinados lugares exclui a presença de certa parcela da população, que não tem recursos para arcar com o preço ali definido. Além disso, uma população mais pobre não pode arcar com altos custos de deslocamento para chegar ao trabalho, o que também explica o crescimento das favelas.

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O acesso à moradia, lembra-nos Vollmer (2019, p. 53), é uma necessidade básica de todos, não se trata de algo de que possamos abrir mão, como outros bens. Essa certeza leva a autora a afirmar que “a moradia não deveria ser uma mercadoria. O ‘mercado imobiliário’ faz ouvidos surdos à sociedade e, além disso, não é operativo. As recorrentes crises da moradia não são erros no sistema, mas parte integrante dele mesmo”. Dessa forma, é possível afirmarmos que a gentrificação acaba por refletir o conflito entre as dimensões social e econômica da moradia. Tentando ser mais claro, reflete o conflito entre valor de uso e valor de troca na cidade. O direito à cidade – ou melhor, o direito à produção do espaço – é muito mais do que o direito àquilo que já existe (embora uma grande parcela da sociedade nem a isso tenha acesso), é o direito de produzir uma cidade diferente, uma cidade para além da lógica do capital. A cidade que queremos se encontra totalmente conectada à reflexão acerca de que tipo de pessoa quero me tornar, pois, ao produzir a cidade, produzimos a nós mesmos. Portanto, para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, precisamos mudar a maneira segundo a qual nos comportamos frente às injustiças e desigualdades. Precisamos valorizar e trabalhar pelo “fazer com”, “pensar com”, “projetar com”, “gerir com”. No quarto capítulo desta obra procuramos demonstrar a importância de resgatar a ideia de comunismo. Obviamente, não as interpretações equivocadas e as distorções que foram postas em prática, mas a perspectiva marxiana de comunismo. Um processo em movimento constante: desvanecimento do Estado e fortalecimento da sociedade civil; verdadeira democracia... comunismo. É preciso que compreendamos que se trata de um caminho a ser trilhado, que é tortuoso, difícil e cheio de bifurcações, mas que precisamos percorrer. O geógrafo Ernesto Gomes Imbroisi (2021)6 afirma que “talvez nós nunca cheguemos ao comunismo como o momento final da revolução, no sentido clássico dado por muitos teóricos, militantes e ‘revolucionários’ de esquerda”. Trata-se de uma afirmação dura, mas extremamente sagaz. Aprofundando sua afirmação, explica que “a ideia do comunismo 6 Ernesto Gomes Imbroisi é membro do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Espaço e Metropolização). Essa reflexão encontra-se no terceiro capítulo de sua tese de doutorado intitulada “Caminhos geográficos para a revolução: emancipação e produção do espaço” (título provisório), a ser defendida ainda em 2021.

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como ponto de chegada e fim da luta contra o capitalismo tem pelo menos duas implicações negativas: i) a eliminação da dialética como motor da história e da vida, ou seja, entende-se a sociedade comunista como asséptica e sem contradições; e ii) de maneira equivalente ao sistema hegeliano, porém, agora em termos materialistas, repete-se o erro de colocar um fim para a história”; ou seja, “Hegel na figura do Estado e nós, marxistas, em uma pretensa sociedade sem classes, sem conflitos, sem exploração e ideal, e, por isso, pura, vazia e sem conteúdo”. Ao contrário do que possa parecer, trazer isso à tona não é ruim, mas fundamental. Isso ratifica o que venho defendendo há tempos e que agora está mais bem sistematizado no quarto capítulo deste livro. Reafirmo que não devemos pensar em revolução ou em comunismo sem entendê-los como processo. De outra maneira, cometeremos os mesmos erros cometidos anteriormente. Imbroisi (2021) acredita que “a revolução vai se dar em cada momento e em cada espaço onde ocorra o aprofundamento da democracia e na instauração da autogestão e no simultâneo enfraquecimento do mercado e no desvanecimento do Estado. […] A revolução está no processo de produção de espaços menos desiguais e mais comunitários. O comunismo está nesse processo, e não no fim”. Minha concordância não poderia ser maior. Enfim, é impossível deixar de lembrar das palavras do filósofo francês Henri Lefebvre (1991, p. 216) ao refletir sobre a necessidade da revolução; são palavras potentes, que nos convidam à ação: “a consciência da infelicidade supõe a possibilidade de outra coisa (de uma vida diferente) além da existência infeliz. Hoje, talvez, o conflito ‘felicidade-infelicidade’ (ou melhor: consciência da felicidade possível-consciência da infelicidade real) substitua e suplante a antiga ideia de destino. Não seria esse o segredo do mal-estar generalizado?”. Portanto, o impossível acontece e, definitivamente, o momento é agora!

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Continuando a pensar a cidade... Ou por uma outra cidad(e)ania João Rua

Departamento de Geografia da PUC-Rio

Ao ler A cidade que queremos, de Alvaro Ferreira, de início localizei-me no subtítulo do livro: “produção do espaço e democracia”. Essas duas expressões podem indicar boa parte da trajetória do autor em termos de publicações. Percurso bastante significativo e que retrata um caminho de destaque na ciência geográfica brasileira. Conheço Alvaro Ferreira há 28 anos, nos quais estabelecemos intensos contatos acadêmicos, familiares e de amizade, por isso não conseguirei ser conciso, isento ou objetivo ao comentar sua obra. Entretanto, serei sincero na observância da perspectiva analítica bastante particular que vem elaborando. Retomo, neste olhar, parte do subtítulo do livro A Natureza do Espaço, do saudoso geógrafo Milton Santos, “Razão e Emoção”. Procurarei ser racional nas observações apresentadas, mas porei a emoção à frente. Será com emoção que me colocarei em diálogo com o querido amigo, autor deste livro. Imagino a trajetória do autor como uma espécie de bacia hidrográfica composta de dois rios e de seus afluentes (portanto, duas sub-bacias) que confluem para um mesmo ponto. A primeira sub-bacia contém afluentes que vêm desde 1998, com o teletrabalho, mais tarde o cyberespaço, depois, a tese sobre a cidade do Rio de Janeiro e diversos outros produtos sobre o espaço urbano, seu labirinto e sua dialética. Todos esses afluentes confluem para o rio principal dessa sub-bacia, constituído pelo livro A cidade do século XXI: segregação e banalização do espaço, de 2011. A segunda sub-bacia parece-me formada por um outro conjunto de afluentes, tais como metropolização, gestão, utopia, comum, verdadeira

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democracia e me conduz à obra agora em apreço. Percebem-se alguns lagos que alimentam simultaneamente as duas sub-bacias: produção do espaço, metropolização, labirinto em diálogo com a utopia, dialética, cotidiano, Marx e Lefebvre, todos podendo servir como exemplos desses lagos alimentadores. Ambas as sub-bacias confluem num ponto que denomino “pensar e agir”. Pensar criticamente sobre a cidade e o espaço urbano e apontar possibilidades de ações que se encaminhem para outras espacialidades e outras maneiras de viver um espaço de comunhão. Juntamente com Alvaro venho desfrutando e bebendo a água desses rios, os quais vêm refrescando há mais de duas décadas um olhar muito acurado sobre a problemática espacial decorrente dos paradoxos e contradições reforçados no modo de produção capitalista, onde a cidade explode numa sociedade urbana a qual passa a definir novas relações urbano-rurais. Se até algumas décadas atrás se percebia uma marcante dicotomia entre a cidade e o campo e, posteriormente, entre o urbano e o rural, o espaço vem se tornando mais complexo pela crescente hibridização e mesclagem de atributos urbanos e rurais. Nas constantes conversas com esse amigo, pude receber muitos ensinamentos e acolher algumas das inquietações (palavra preferida do Alvaro), as quais provocavam permanentes desafios para uma análise crítica das desigualdades que marcam as experiências espaciais cotidianas, em uma ação multiescalar. A partir daí, retomei as ideias de cidade, cidadania, urbanidade e direitos do homem, numa discussão que já venho travando com os geógrafos Joana Cruz de Simoni e Bernardo Cerqueira Agueda, os quais vêm dando solidez a tal retomada. Observa-se que urbanidade e cidadania são constructos burgueses. Mas quem se constituía em cidadão e podia exprimir sua urbanidade nas cidades da modernidade ocidental difundidas pelo mundo? Esse processo evidencia a acentuação das clivagens entre cidade e campo, mas, também, uma certa imposição de uma representação burguesa de urbanidade, cidadão e cidadania negando outras urbanidades (e cidadanias) possíveis. Da maneira ainda apresentada por muitos autores (e é claro que Alvaro Ferreira não está incluído neles), essa negação fica subsumida às generalizações homogeneizadoras que marcam tais representações. Em concordância com o que este livro propõe, deve ser mais destacada

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a multiplicidade interna às cidades a qual projetará distintos projetos político-espaciais, em acordo com as múltiplas demandas, convivendo conflituosamente e projetando tais conflitos como urbanidades em estilhaços desiguais e desigualizadores na projeção do urbano sobre áreas rurais. Ao se falar em “estilhaços” procura-se apontar para a “explosão” de urbanidades atiradas desigualmente sobre todo o espaço – mais adensadas numas partes e mais tenuamente presentes em outras. Na modernidade do iluminismo eurocêntrico, forjou-se a concepção de que cidadão era o habitante da cidade, e que esse habitante possuía direitos (saúde, educação, habitação, trabalho...). Na mesma época, inspirados no pensamento de Locke, Hobbes e Montesquieu, foram apresentados os direitos fundamentais do homem, dentre os quais se destacam a liberdade e a propriedade. Estava desenhada a contradição fundante da sociedade liberal burguesa. É preciso levar em conta que esses direitos surgiam (e até hoje permanecem) bastante limitados. De onde emergiam as formulações de tais direitos? Quem os formulava? Quem os apoiava? Pode-se falar de algumas parcelas do espaço europeu e norte-americano, nas quais foi forjada essa matriz do pensamento ocidental. Não se pode esquecer, entretanto, que essas parcelas do espaço, fundamentalmente cidades em processo de industrialização, eram habitadas por indivíduos hierarquicamente integrados a classes sociais. Somente frações de algumas classes sociais podiam ter acesso aos direitos prometidos para todas as pessoas. A grande maioria não se constituía em cidadãos (não vivendo, assim, a urbanidade mitificada), já que não eram proprietários, e, com isso, viam sua liberdade bastante limitada. Se grande parte dos habitantes da cidade não se constituía em cidadãos (pelo não acesso aos direitos), o que dizer dos habitantes das áreas rurais? Foi preciso um longo processo de lutas, resistências e revoluções para que habitantes do campo e habitantes da cidade pudessem, em movimentos eventualmente alinhados, ter acesso a alguns dos direitos a eles anunciados. Se alguns desses movimentos lutavam pelo direito de serem cidadãos burgueses, inclusive proprietários, muitos outros perseguiram um objetivo de viver em comunidades nas quais se realizasse uma verdadeira democracia. Não preciso demonstrar que essa segunda perspectiva de sociedade ainda não se realizou, mas permanece como horizonte.

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De fato, daquelas pequenas parcelas do espaço europeu e norte-americano e das frações de classe que nelas exerciam hegemonia, puderam se expandir de maneira bastante desigual para outras partes das diversas europas e do leste dos atuais Estados Unidos, e, daí, para o restante do mundo, os princípios universais, universalistas e universalizantes da sociedade burguesa, liberal, capitalista, branca, patriarcal e heteronormativa. Esse universalismo, como política de dominação, esbarrou (e esbarra) em um pluriverso de culturas que ainda tenta se manter após tantos séculos de sedução, sujeição e cooptação, com tudo de controverso que esse movimento de expansão acarreta. Em outro momento de diálogo com Alvaro Ferreira, retomo o Capítulo 4 do livro, mais precisamente o item “O fazer-comum: caminho para ir além?”, e enfatizo a necessidade de problematizar essa busca do devir, devenir, à-venir. Penso em trajetórias nas quais o presente se projeta para o futuro. Seria uma espécie de junção do presente continuado com um futuro continuado e um estaremos fazendo, evidenciando horizontes em movimento. Seriam movimentos sociais espacializados em permanente (re)produção do espaço. Entretanto, o ir além significa buscar, no futuro, um presente que não aceitamos. O presente no qual a contradição propriedade e liberdade constitui-se em fator estruturante das relações sociais e das espacialidades delas resultantes. Negar o presente é preciso. No entanto, anunciar um ir além utópico, mesmo que necessário, pode incorrer em riscos. Apresenta-se um olhar além para se ir além. O olhar além explicita-se tanto na crítica às espacialidades predominantes no presente quanto nos diversos exemplos de outras espacialidades possíveis, já apresentadas no terceiro capítulo do livro, no item “Possibilidades de mudança: experiências que geram esperança”. Uma imagem que me ocorre neste momento é a de encruzilhadas de um labirinto (inspirado na expressão usada por Castoriadis) entendidas como itinerários possíveis para a práxis transformadora da sociedade. Encruzilhadas do labirinto remete-me a pensar algumas entradas para a compreensão de tal práxis transformadora. Um desses itinerários seria aquele apontado pelos socialistas utópicos quando imaginaram ser possível uma transformação baseada na construção de consciências, na educação e em legislações protetivas. Nessa maneira de ir além do capitalismo apontava-se para sociedades livres baseadas na vida comunitária. Portanto a busca do comum que atravessa

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grande parte desse livro estava, de alguma maneira, presente na visão desses pensadores utópicos. Marx era bastante conhecedor do pensamento socialista utópico. Criticava seu idealismo e seu pouco compromisso com a realidade. Pensou, então, um outro itinerário para ir além do capitalismo com base na revolução do proletariado. Analisando a realidade social como produto da história, olhava para além (arrastando o presente para o futuro e trazendo o futuro para o presente) com o intuito de apontar para o desvanecimento do Estado, a verdadeira democracia, a comunidade e o comum como horizontes possíveis. Apresentava-se uma certa visão utópica do futuro, apresentava-a como uma utopia científica, pragmática e sem perder o contato com a realidade. Parece desenhar-se como horizonte em movimento uma busca da autogestão e da autonomia individual e coletiva. Recorro novamente ao pensamento castoriadiano ao buscar o conceito de autonomia (auto-nomos) visando construir uma ideia de governar a si mesmo. Esse si mesmo refere-se a uma comunidade na qual ocorre uma participação direta dos indivíduos que a constituem. Poderão existir indivíduos autônomos numa sociedade heterônoma? O paradoxo está instalado: devemos esperar um esmaecimento da sociedade heterônoma para alcançar a autonomia ou, talvez, a verdadeira democracia? E então explicita-se, mais uma vez, o diálogo entre o possível e o impossível. Como escreve Alvaro Ferreira, apoiado no pensamento lefebvreano, “o impossível é possível”, portanto correr riscos é preciso. O que parece possível para vivenciar os múltiplos horizontes em movimento é analisar, divulgar e vivenciar os diversos movimentos e mobilizações de resistência que ocorrem por todas as partes do planeta. Um matiz multifacetado que os abrange não pode esconder a riqueza das múltiplas práxis em evidência. De mobilizações mais localizadas, como o Occupy London ou Occupy Wall Street, até movimentos mais consolidados territorialmente, como o dos zapatistas, merecem renovadas análises dos rumos por eles tomados. Uma terceira entrada para as encruzilhadas do labirinto pode ser o pensamento descolonial, no qual uma outra concepção de comunidade e comum põe em relevo distintas histórias com trajetórias paralelas à eurocêntrica. Do pluriverso já mencionado, irrompe um número crescente de mobilizações e movimentos que se opõem àquele universalismo da

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matriz euro-norte americana moderno/capitalista/colonial/patriarcal/ sexista, como nos elucida Grosfoguel, arrolados naquilo que se convencionou chamar de estudos descoloniais. A gama de movimentos na América Latina, na África e na Ásia – estas nomenclaturas entendidas como criações do eurocentrismo –, tão diversificada, procura descentralizar o Estado como única fonte de poder. Com esse mesmo objetivo, coloca-se a multiplicidade de manifestações e lutas contra a propriedade, em busca de um uso comum para o território. Seria necessário buscar uma saída do labirinto que se integrasse ao pavimento desse movimento rumo à utopia. Tal pavimento poderia se constituir na criação, resistência e autogestão como táticas de sobrevivência na produção de geografias autônomas – estratégias multiescalares que tecem espaços e tempos – nas quais há um desejo de constituir formas coletivas não capitalistas de política, identidade e cidadania, apoiando-me no pensamento dos geógrafos Jenny Pickerill e Paul Chatterton. O livro A cidade que queremos: produção do espaço e democracia cumpriu plenamente alguns importantes propósitos: desafiar o pensamento crítico a respeito das desigualdades que configuram as cidades em que vivemos; explicitar os paradoxos e contradições entre a propriedade e o uso comum do espaço; apontar a verdadeira democracia e o comum como horizontes possíveis de realização da vida. E a pandemia conseguirá ensinar-nos alguma coisa? É isso aí, querido Alvaro, continuamos juntos em diálogos profícuos como até agora.

REFERÊNCIAS

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ÍNDICE REMISSIVO

A Alienação – 17, 37, 74, 75,76, 77, 82, 90, 135, 168, 174, 176, 196, 197, 205, 209, 213, 219, 229, 234, 244, 266. Albuquerque – 61, 253. Althusser – 195, 253. Alves – 112, 253. Andrade – 182, 253. Ângulo – 42, 253. Anschau – 59, 268. Antunes – 65, 253. Atkinson – 124, 253, 270. Autodeterminação – 18, 198, 200, 210, 213, 214, 216, 217, 238. Autogestão – 17, 18, 38, 83, 181, 184, 186, 189, 196, 197, 198, 200, 202, 214, 217, 218, 222, 224, 230, 231, 234, 235, 236, 238, 246, 251, 252, 260, 264. Autogoverno – 18, 196, 197, 198, 199, 200, 210, 212, 213, 214. Autonomia – 17, 177, 182, 197, 198, 201, 208, 210, 211, 217, 251, 267, 269, 271.

Benevolo – 41, 48, 255. Biopoder – 152, 153, 154. Biopolítica – 152, 154, 155, 261, 267, 272, 275. Boff – 175, 255. Boron – 196, 255. Bosteels – 207, 208, 255. Braga – 158, 159, 160, 161, 162, 254. Brecht – 138, 255. Bridge – 124, 253, 270. Brum – 79, 164, 255. Bueno – 32, 255. Butler – 164, 256.

C

Caminha – 12, 220, 256. Campos – 28, 256. Capel – 12, 25, 94, 234, 235, 256, 260. Capital – 33, 35, 43, 52, 53, 60, 67, 74, 77, 89, 90, 92, 93, 94, 97, 98, 104, 105, 106, 111, 118, 119, 121, 124, 144, 145, 146, 147, 166, 168, 169, 174, 179, 186, 194, 195, 202, 218, 219, 220, 224, 238, 239, 240, 245, 257, 260, 262, 263, 264, 265, 270, 272. Capitalismo – 24, 31, 33, 53, 54, 55, 77, B 82, 97, 98, 105, 106, 143, 147, Badiou – 206, 207, 253, 254, 255, 262. 150, 164, 166, 171, 175, 179, 194, Barber – 58, 254. 195, 196, 203, 206, 207, 212, 216, Barbosa – 158, 159, 160, 161, 162, 218, 219, 224, 225, 229, 230, 231, 254. 246, 250, 251, 256, 263. Barcelona – 23, 25, 78, 95, 96, 107, Capitalista – 15, 25, 53, 76, 90, 97, 100, 110, 112, 113, 122, 126, 127, 118, 119, 124, 139, 145, 147, 149, 184, 242, 253, 254, 256, 259, 153, 154, 179, 203, 204, 205, 212, 260, 263, 266, 267. 214, 215, 220, 221, 222, 224, 226, Baudrillard – 55, 136, 254. 231, 248, 250, 252, 256, 260, 266, Bauman – 58, 254. 269. Beaujeu-Garnier – 63, 254.

275

276

Carlos – 52, 68, 72, 83, 89, 105, 106, 153, 168, 256, 258, 265, 272. Carvalho – 26, 27, 142, 256, 257. Castel – 65, 257. Certeau – 75, 76, 188, 257. Chaparro – 191, 257. Chesnais – 166, 257. Cidade – 15, 16, 17, 19, 23, 24, 25, 31, 38, 39, 41, 42, 48, 51, 55, 63, 65, 70, 74, 80, 82, 83, 84, 85, 87, 88, 94, 95, 96, 102, 104, 105, 106, 108, 110, 111, 112, 113, 114, 115, 121, 122, 124, 128, 129, 135, 143, 145, 151, 156, 158, 166, 168, 169, 170, 173, 175, 180, 182, 184, 186, 187, 188, 189, 191, 194, 210, 222, 225, 226, 228, 229, 230, 234, 236, 240, 242, 244, 245, 247, 248, 249, 252, 254, 255, 256, 257, 259, 264, 265, 268, 270, 272. Cipriani – 88, 257. Claval – 63, 257. Colonialidade-colonialismo-decolonial – 45, 47, 136, 144, 171, 262, 268, 269. Comum – 18, 144, 188, 219, 220, 221, 222, 223, 224, 225, 226, 227, 228, 229, 230, 231, 250, 251, 252, 259, 260, 267, 269, 270, 272. Comunidade – 18, 43, 85, 132, 175, 177, 178, 179, 180, 181, 182, 185, 187, 189, 191, 196, 197, 198, 201, 202, 205, 209, 210, 211, 212, 213, 217, 219, 221, 222, 223, 226, 228, 249, 251, 258, 260. Comunismo – 18, 29, 47, 193, 200, 203, 204, 205, 206, 207, 208, 209, 212, 215, 218, 219, 220, 245, 246, 253, 255, 262. Comunista – 117, 139, 203, 206, 208, 212, 218, 219, 231, 246, 254, 265. Controle – 51, 52, 54, 55, 99, 100, 102, 130, 135, 136, 138, 139, 140, 141,

A CIDADE QUE QUEREMOS

143, 146, 151, 152, 153, 167, 187, 194, 198, 202, 210, 214, 215, 219, 224, 229, 244, 259. Corboz – 94, 257. Cotidiano – 16, 37, 38, 42, 54, 55, 57, 67, 71, 73, 74, 75, 77, 81, 82, 83, 84, 85, 88, 115, 135, 143, 176, 188, 207, 226, 229, 234, 237, 248, 257, 260, 263, 267. Covid-19 – 21, 22, 23, 24, 71, 72, 78, 80, 81, 148, 156, 157, 158, 159, 160, 161, 162, 173, 254, 256, 264. Criekingen – 107, 257. Cruz – 46, 248, 257, 258. Cunha – 55, 82, 258, 267.

D Dardot – 77, 97, 165, 166, 167, 168, 169, 211, 220, 225, 226, 227, 231, 258. Democracia – 15, 16, 18, 19, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 64, 135, 166, 167, 168, 169, 170, 171, 172, 173, 174, 175, 176, 177, 179, 181, 189, 190, 191, 193, 194, 195, 196, 197, 198, 200, 202, 203, 205, 209, 211, 212, 213, 214, 215, 222, 226, 229, 236, 244, 245, 246, 247, 248, 249, 251, 252, 253, 255, 259, 260, 268, 269, 272. Desigualdade – 17, 30, 39, 41, 42, 48, 69, 70, 80, 82, 84, 87, 102, 137, 143, 144, 145, 146, 148, 149, 150, 158, 164, 171, 172, 210, 215, 224, 230, 233, 234, 236, 238, 245, 248, 252, 265. Ditadura-Ditadura do proletariado – 26, 28, 29, 137, 202, 203, 204, 205, 209, 256. Dominguez – 42, 43, 253.

277

Índice remissivo

E

151, 156, 157, 158, 163, 244, 253, 254, 271, 273. Elias – 152, 258, 271. Fernandes – 142, 259. Emancipação – 31, 172, 177, 199, 200, Ferrão – 15, 21, 22, 177, 190, 225, 205, 212, 218, 225, 226, 234, 245, 226, 227, 237, 259. 259, 260, 263, 269. Ferreira – 15, 16, 17, 18, 19, 25, 33, Engels – 32, 74, 76, 196, 201, 202, 205, 34, 37, 52, 54, 74, 79, 88, 89, 218, 233, 235, 265. 92, 93, 94, 95, 97, 103, 104, Espaço – 15, 16, 17, 19, 21, 23, 25, 31, 168, 181, 202, 247, 248, 250, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 46, 49, 251, 256, 257, 258, 259, 260, 51, 52, 53, 55, 58, 63, 70, 74, 75, 264, 269. 76, 82, 83, 84, 85, 88, 89, 90, 91, Financeirização – 16, 97, 98, 110, 92, 93, 94, 95, 96, 97, 98, 99, 100, 145, 229, 230, 266, 268, 270. 104, 105, 106, 107, 109, 112, 118, Finchelstein – 29, 260. 119, 120, 121, 126, 129, 143, 153, Fontenelle – 55, 260. 154, 155, 166, 167, 168, 169, 170, Foucault – 38, 84, 100, 152, 154, 156, 174, 176, 181, 183, 184, 185, 186, 261, 267. 187, 189, 191, 194, 202, 206, 209, Fuzinatto – 142, 259. 210, 211, 220, 221, 222, 223, 224, 225, 226, 228, 229, 230, 231, 234, 235, 236, 237, 238, 239, 242, 243, G 245, 246, 247, 248, 249, 250, 252, 253, 256, 257, 259, 260, 262, 264, Gentrificação – 17, 76, 88, 94, 97, 98, 104, 105, 106, 107, 108, 109, 266, 268, 269, 270, 271, 272, 110, 111, 112, 114, 116, 117, Estigma – 152, 153, 263. 118, 120, 121, 122, 123, 124, Estado – 16, 18, 19, 25, 26, 27, 29, 30, 31, 125, 126, 128, 129, 132, 133, 33, 35, 38, 43, 52, 68, 70, 71, 77, 134, 144, 153, 228, 230, 237, 79, 82, 85, 97, 98, 99, 100, 112, 241, 242, 245, 253, 257, 263, 119, 120, 136, 137, 140, 142, 144, 266, 270. 148, 151, 153, 154, 156, 165, 167, Gestão territorial – 21, 83, 92, 94, 98, 168, 171, 174, 177, 181, 182, 191, 100, 101, 198, 256, 259, 264, 193, 195, 196, 197, 198, 199, 200, 269. 201, 202, 203, 204, 205, 206, 207, Glass – 106, 261. 208, 209, 210, 211, 212, 213, 214, Goldmann – 76, 77, 261. 215, 216, 217, 218, 220, 221, 225, Gomes – 245, 254, 263, 271. 230, 231, 233, 236, 239, 242, 243, Gorz – 65, 262. 245, 246, 250, 251, 252, 260, 264, Governança – 100, 145, 153, 187, 266. 225, 227, 259. Esteva – 177, 182, 258. Grosfoguel – 139, 253, 262. Guerreiro – 69, 70, 71, 268. F Favelas – 24, 39, 70, 80, 83, 87, 88, 98, 101, 102, 129, 130, 137, 143, 150,

H Habermas – 51, 238, 262.

278

Habitação – 94, 101, 107, 110, 111, 112, 151, 170, 230, 236, 244, 249. Haesbaert – 99, 100, 146, 149, 152, 155, 167, 182, 262. Hardt – 219, 220, 230, 262. Harvey – 90, 103, 132, 144, 146, 147, 153, 220, 227, 228, 229, 230, 262, 263. Heller – 75, 76, 263. Holloway – 147, 176, 215, 216, 217, 218, 263. Holm – 109, 120, 263. Holt – 133, 271, 272.

I Ibrahim – 165, 263. Ideologia – 35, 52, 74, 77, 88, 178, 214, 230, 233, 262, 265. Imbroisi – 245, 246, 263. Indovina – 94, 263.

L

A CIDADE QUE QUEREMOS

M Machado – 30, 31, 88, 180, 189, 265, 273. Madrid – 21, 43, 123, 253, 258, 261, 264, 268, 270, 272. Magalhães – 221, 272. Malatesta – 204, 265, Maricato – 102, 265. Martins – 75, 149, 261, 265. Marx – 16, 18, 25, 32, 46, 55, 65, 74, 76, 85, 87, 105, 118, 132, 147, 191, 193, 195, 196, 197, 198, 199, 200, 201, 202, 203, 204, 205, 208, 209, 210, 211, 212, 213, 214, 215, 216, 217, 218, 219, 220, 221, 233, 234,235, 248, 251, 253, 255, 260, 262, 265, 266, 268. Massey – 46, 266. Materialização-Substrução-Projeção – 33, 34, 35, 37, 82, 96, 117, 136, 206, 260. Mattos – 257, 259, 260, 269. Mendes – 110, 111, 125, 253, 258, 266. Mercadificação – 16, 17, 34, 38, 75, 85, 87, 90, 91, 93, 97, 98, 118, 224, 241, 244. Merrill – 72, 73, 266. Metropolização do espaço – 16, 21, 83, 91, 92, 93, 94, 155, 256, 260, 264, 269, 272. Modelo Barcelona – 96. Monclús – 94, 266, 267. Montaner – 129, 266. Moreira – 52, 90, 236, 266, 268. Muxí – 129, 266.

Lander – 46, 268. Laval – 77, 97, 165, 166, 167, 168, 169, 211, 220, 225, 226, 227, 231, 258. Lefebvre – 16, 31, 34, 36, 38, 52, 54, 74, 75, 77, 82, 83, 88, 90, 91, 97, 99, 166, 212, 214, 218, 231, 236, 246, 248, 263, 264. Leite – 49, 264. Lencioni – 52, 92, 94, 97, 104, 109, 237, 264. Liberdade – 23, 26, 50, 56, 57, 60, 64, 65, 75, 88, 147, 194, 209, 212, 213, 215, 234, 249, 250, 257, 266. Lisboa – 21, 22, 23, 72, 95, 110, 111, 125, 128, 189, 242, 254, 257, 262, N 266, 270. Losurdo – 216, 265. Necropolítica – 155, 156, 157, 237, Löwy – 32, 46, 200, 201, 265. 259.

279

Índice remissivo

Negri – 227, 230, 262, 267, 269. Nel.lo – 94, 267. Neves – 142, 272. Nóbrega – 71, 82, 267. Novaes – 59, 267. Nunes – 221, 267, 272.

O Oliveira – 154, 258, 267, 272.

P Participação – 17, 18, 22, 26, 58, 73, 82, 85, 97, 99, 103, 170, 172, 173, 175, 176, 179, 185, 189, 190, 194, 198, 199, 204, 205, 206, 213, 214, 222, 227, 228, 234, 235, 236, 237, 238, 239, 240, 251. Pereira – 90, 101, 108, 145, 268. Peru – 30, 43, 45, 209. Petrella – 90, 145, 268. Pinto – 256, 266. Pizzolante – 88, 89, 260. Planejamento – 17, 18, 31, 63, 101, 102, 103, 104, 168, 169, 170, 179, 193, 234, 236, 238, 239, 240, 241, 255, 262, 265, 271, 272. Poder – 16, 17, 27, 30, 31, 33, 34, 35, 36, 43, 45, 51, 55, 61, 62, 63, 64, 67, 68, 69, 70, 72, 74, 76, 81, 84, 85, 88, 89, 91, 95, 98, 99, 100, 101, 103, 114, 118, 119, 120, 121, 133, 134, 135, 139, 141, 147, 151, 152, 153, 154, 157, 163, 164, 165, 167, 169, 170, 171, 172, 174, 176, 177, 178, 185, 188, 189, 191, 195, 196, 197, 199, 200, 201, 202, 203, 204, 205, 207, 208, 209, 210, 212, 213, 214, 215, 216, 217, 218, 220, 221, 226, 228, 229, 231, 235, 236, 238, 241, 242, 244, 246, 251, 252, 258, 263, 268, 271.

Pogrebinschi – 198, 210, 212, 213, 214, 217, 268. Política – 18, 19, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 35, 39, 45, 49, 50, 58, 63, 69, 71, 72, 79, 80, 82, 84, 95, 99, 101, 102, 103, 104, 110, 111, 119, 120, 126, 128, 129, 134, 138, 141, 142, 143, 144, 151, 152, 154, 155, 156, 157, 165, 167, 168, 169, 170, 171, 174, 178, 181, 182, 185, 187, 191, 193, 195, 196, 197, 198, 199, 204, 205, 206, 210, 211, 212, 213, 221, 222, 226, 227, 229, 230, 235, 237, 238, 241, 244, 250, 252, 253, 255, 257, 259, 261, 262, 263, 264, 265, 266, 267, 268, 272. Políticas de segurança – 143, 150, 151. Pontes – 88, 268. Precarização – 17, 81, 144, 146, 147, 149, 153. Produção do espaço – 15, 16, 19, 25, 31, 37, 39, 49, 70, 76, 85, 89, 90, 92, 97, 98, 106, 112, 119, 155, 166, 169, 170, 174, 176, 187, 191, 194, 202, 206, 210, 223, 226, 229, 230, 234, 237, 242, 245, 246, 247, 248, 250, 252, 253, 256, 257, 259, 260, 262, 263, 268, 269, 270. Projeto Porto Maravilha – 114, 121. Propriedade – 16, 31, 42, 46, 62,63, 82, 87, 90, 103, 104, 105, 106, 109, 144, 170, 171, 180, 181, 185, 187, 193, 195, 207, 209, 219, 220, 223, 224, 225, 226, 227, 230, 231, 240, 244, 249, 250, 252, 258.

Q Quijano – 45, 46, 171, 268.

280

R

A CIDADE QUE QUEREMOS

Silva – 28, 49, 101, 243, 256, 259, 264, 269. Rebelo – 69, 70, 71, 268. Siniscalchi – 88, 89, 187, 188, 214, Rech – 59, 268. 222, 223, 224, 226, 229, 238, Rent gap – 108, 110, 113, 119, 270. 246, 260, 270. Representações – 16, 33, 34, 35, 36, 37, Smith – 110, 117, 133, 270, 271. 38, 54, 57, 73, 81, 83, 89, 91, 187, Socialista – 43, 200, 203, 206, 225, 248, 260. 242, 250, 251, 254, 265. Revitalização – 30, 33, 35, 94, 106, 108, Soja – 52, 271. 110, 113, 114, 119, 144, 153, 230, Souza – 75, 88, 100, 143, 149, 170, 257. 197, 199, 200, 211, 261, 264, Revolução – 41, 47, 48, 90, 196, 199, 265, 271. 200, 212, 215, 221, 222, 226, 245, Susskind – 63, 64, 66, 67, 71, 272. 246, 251, 258, 263, 265. Ribeiro – 49, 75, 77, 84, 237, 239, 259, T 269. Tavares – 97, 153, 154, 155, 167, 272. Rio de Janeiro – 23, 70, 80, 83, 95, 96, 101, 108, 113, 115, 121, 129, 130, Tanatopolítica – 154, 155, 157, 267. 152, 155, 156, 157, 158, 163, 168, Teixeira – 158, 159, 160, 161, 162, 254. 173, 186, 187, 188, 210, 222, 242, Territocracia – 191, 257. 243, 247, 253, 254, 255, 260, 262, Território – 98, 99, 100, 109, 155, 167, 268, 270, 271, 272, 273. 170, 191, 210, 214, 252, 257, Roque – 49, 222, 264, 269. 261, 262, 264, 265, 268, 271, Rua – 47, 51, 92, 247, 256, 257, 259, 272. 260, 264, 269. Timm – 142, 272. Tonucci Filho – 221, 224, 225, 230, S 272. Sabaté Muriel – 107, 269. Trabalho – 17, 32, 38, 39, 41, 42, 43, Sachs – 50, 270. 48, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 59, Salgueiro – 63, 270. 60, 51, 63, 64, 65, 66, 67, 69, Sampaio – 110, 112, 270. 70, 73, 74, 75, 81, 84, 90, 92, Sancho – 41, 42, 270. 108, 141, 144, 147, 148, 150, Sanfelici – 97, 98, 270. 153, 164, 165, 166, 179, 180, Santiago – 23, 46, 116, 267, 269. 182, 184, 187, 194, 195, 196, Santos – 41, 75, 135, 170, 171, 172, 175, 200, 202, 208, 210, 221, 225, 176, 194, 247, 253, 256, 264, 272. 227, 229, 233, 241, 243, 244, Segregação – 17, 30, 39, 55, 84, 89, 94, 247, 249, 253, 261, 264, 266. 98, 103, 105, 129, 137, 153, 168, 170, 172, 237, 242, 247, 257, 259. U Segurança – 25, 48, 56, 62, 100, 129, 130, 134, 135, 138, 141, 143, 150, Urbano-urbanismo – 17, 21, 31, 37, 38, 42, 47, 49, 50, 53, 63, 70, 151, 152, 155, 156, 165, 166, 167, 82, 83, 92, 93, 94, 95, 96, 97, 236, 244, 259, 261, 262, 265. 98, 101, 102, 103, 104, 105,

281

Índice remissivo

106, 10, 124, 133, 153, 166, 168, 169, 174, 183, 194, 210, 228, 230, 236, 238, 239, 241, 242, 247, 248, 249, 255, 256, 257, 259, 264, 265, 266, 267, 269, 270, 272. Utopia – 18, 19, 49, 83, 84, 209, 212, 218, 223, 238, 247, 248, 251, 252.

V Vainer – 95, 153, 168, 169, 265, 272. Valois – 142, 272. Viêra – 59, 268. Violência – 29, 130, 136, 137, 138,

141, 143, 151, 156, 166, 167, 181, 244, 266, 273. Vollmer – 118, 120, 134, 238, 239, 240, 241, 245, 269, 273.

W Wacquant – 151, 273.

Z Zaluar – 88, 273. Zapatista – 179, 216, 222, 251. Zibechi – 30, 31, 180, 189, 273. Žižek – 37, 38, 136, 203, 273.

Esta obra foi produzida no Rio de Janeiro pela Consequência Editora em julho de 2022. Na composição foram empregadas as tipologias Minion e Helvetica.