A Arte de Ator, da Técnica à Representação : Elaboração, Codificação e Sistematização de Técnicas Corpóreas e Vocais de Representação para o Ator [1ª ed.]

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UNICAMP

UNIVERSIDADE ESTA DUAL DI CAMPINAs Reitor HERNfANO TA VARES Coordenador-Geral da Universdade FERNANDO GALEMBEG Pró-Reitor de Desenvolvimento Uni-ersit ário ALVARO p, CRÓSTA Pró-Reitor de Extensão e Assuntos Conunitários ROBERTO TEIXEIRA MEND~S P ró-Reitor de Craduaçãc ANGELO LUIZ CORTELAZD Pró-Reitor de Pesquisa IVAN EMtUO CHAMBOULEYfON Pró-Reitor de Pós-Graduação JOSÉ CLÁUDIO GEROMEL

EDITORA DA

UNICAMP

Diretor Executivo LUIZ FERNANDO NllLANEZ Coordenador-Geral CARLOS ROBERTO LAMARl Conselho Editorial ELZA COTRllvI SOARES- LUIZ DANTAS LUIZ FERNANDO MlLANEZ M. CRISTINA C. CUNHA - RICARDO ANiliNES

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Diferentemente do movimento no tempo, que vimos acima, o ritmo é sobretudo a puls ação do tempo da ação e de seu movimento. Embora o ritmo s e manifeste mais claram ente por meio d o movimento, detenninand o sua dinâmica (e cons eqüentemente a d a a c ão ). ele po de e xis ti r s epa ra do d o m o vim ento da aç ão . n a aparente imobilidade:

Staruslav ski p e rsistiu: /lVocê não está em p é n o ritmo co rr et o !" Ficar em p é no ritmo! Corno ficar de pé num ritmo! Andar, dançar, cantar no ritmo, isto e u p odia e ntender, mas fica r em pé ! [... .] "Perdo e-me. I 0 U'l ! T V U R E! FFEC'

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5 POITRINE

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7- TE TE

Inclinação later al r egress iva . De senh o e at uaç ão : Lu ís O táv io Bu rn ier. Fo tos : Pe d ro [irne rie z

As d ifi cu ld ad es mais ele men tares d estes exercícios são : a) o m ov imen to aut ônorno d o p es co ço e d a ci ntura; b) o qu e Decrou x chamo u de tran sport de t'orgune ainsi dessin e (trans po r te d o órg ão assim desen h ad o ): qu and o, po r exe mp lo ! Dl0 ven10S o p eit o! é 'com u rn o p esc oço e/ ou a ca beça (q ue j á fa zem p ar te d o dese nho) p er d cre rn s u as incl ina.ções . P ar a a execu ção do exercício! esta perd a n atur al da inclin aç ão elas partes já. d es e-

LUÍs O Tf .VIO B U RNI ER

n h ad as é i n adrrriss fv el: c)t~rn1inar por completo u m a inclinação ant es de permitir que a p r óxim a parte do corp o comece a sua vez.

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Inclinação da cabeça, pescoço e peito para a direita; inclinação da cintura para a esquerda transportando as partes superiores tal qual desenhadas. Desenho: Luís Otávio Burnier . .

Uma determinada parte do corpo pode se moverem cada um dos três planos, ou simultaneamente em dois ou nos três . É o que Decroux chamou àedesenho simples, duplo desenho ou triplo desenho. Vejamos um exemplo dessas possibilidades com a cabeça (tendo claro que ele pode ser feito com cada urna das partes, dos órgãos de expressão):

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Ator: Luí s Ot áv io Burn ie r. Fo tos : Pe dr o Iim ene z

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O TÁVIO BURNíER

tipo d e exerc ício ginásti co já. lTIéÚS comple xo, além dos analisados b i ou tri dimensionais, são as ondulações. Decroux recriou a ondulação da coluna, mas de forma muito distinta da natu ral. Primeiramente, ele trabalhou com a sequ ência de c~da parte do corpo, urna depois da outra, o que ele chamou de ondulação corn b àse fixa. A imagem'usada por ele era a de um trem qu.e percorr~ uIlla curva: cada vagão passa pela curva, . um depois do outro . Depois ele trabalhou a ondulação compensada, na qual a base compensa a inclinação da partes uperior. U Dl

Um exemplo de exercício de expressão são os contrapesos. Quando empu~ran10s ou puxamos algo pesado, investimos o peso de nosso corpo contra o peso do objeto enlpurrado ou pux~do. Assim, fazemos um contra-peso ao peso do objeto. iOs .exer c ícios de contrapeso ' são muito úte~spara ilustrar a diferença entre a organicidadena vida e a . organicidadena arte. Na vida, quando empurramos um objeto pesado,' a força é feita na perna de trás, que empurra o objeto -(vi~ e .figura abaixo), ao passo que, na mímica, todo o peso do corpo está na perna da frente, de apoio. A perna de trás, que 'n a mímica não -tern pe,so, mima a força de empurrar: 1/

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Desenho: Luís Otávio Burnier

Decroux codificou uma séri~ de contrapesos de tipos diferentes (empurrar ou puxar por supressão do ponto de apoio, por queda sobre a cabeça... ). Abaixo, 'u m exemplo de contr ap eso do tipo " p u x a-(', da ca teg or ia " e x ten s or es de força" : .

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Con trap es o do tip o " ex ten so r de força ". Desenh o e atua ção: Lu ís O tá vio Burnier. · Fotos : Pedro ]imenez

Qu ant o às for mas de expressão! D ecrou x co d i fi cou. uma série eno nne do que ele chamo u de f igure s de style :- As figura s de estilo são verda deiros quadr os d e pintur a . D e cu r ta d ura çâ o . esses quadr os trabal h am p equen os tentas : a oração! o N arciso! sau. daçiio, 50 long, good bve, sa udação ii rain hn, a ojercn âa, e assi m por diante . A segui r! par a qu e s e tenh a urn a idéi a: a oração :

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Luis OTÁViO BUI e o meio uma: variável do homem" (1972, p . 598). Como produtor de . c~ltura, ele usa de linguagens específicas. Para "usar" de uma língua com destreza, ele deve dominá-la a ponto de'poder'pensar segundo sua estrutura de pensamento. Ora, a "língua" doator são suas ações j fsica s e vocais, é sua técnica corpórea. É 'p or meio dela que ele v ai "falar'tcom os espectadores . Ela é o instrumento de comunicação que lhe mais é próprio e específico. O texto .literário dito por ele não é próprio à sua arte, mas à da Iiteratura. O texto próprio à arte de ator, como vimos, é composto de suas ações físicas e vocais. Por isso sua técnica corpórea constitui sua língua. Desenvolver, adquirir, embebedar se, mergulhar, enfim, ser mestre dessa "lín g u a corpórea", ou dessa técnica que vem:a constituir su a " s egun.d a natureza", cornoa chama Jacques Copeau (Copeau, 1988, p. 129), é pensar-em -mouimento, ou pensar-em-ação , No meu entender, um ator só é Um ator de fato quando começa a pensar-em-movimento. Esse é o ponto de partida que indica o início do domínio de sua arte. A melhor maneira de se adquirir uma nova língua é afastar-se da anterior. A melhor maneira para se aprender o inglês, por exernplo.ié ir viver na Inglaterra, ou seja, "abandonar" a língua mãe natural. Assim, o atar deve abandonar" sua "língua natural" para aprender-desenvolvendo sua língua de ator. Por "abandonar sua língua natural" entendo, no contexto específico deste trabalho, a busca de urn .outro "pensar", recuperar uma forma de pensamento mais orgânica que ele possa ter tido quando criança. Em carta enviada a Natsu N akajima, Tatsurni Híjikata, fundador do .butô, es.crev~: IIn ~ butoh, o pensamento cotidiano desaparece e o pensamento mais profundo vem à tona" (Tatsumi Hijikata, 1984). li

A grande dificuldade que Carlos e eu tínhamos; no início, era decorrente do fato de não estarmos substituindo u ma língua 'p o r outra di fe rent e. po rém igualm ente estruturada, mas por uma que ainda não existia. Era a troca de uma língua por uma ainda " n ão-lín g u a" . Essa era a sensação que tínhamos, mesmo sabendo que, ao cr iar (o u buscar criar) uma no va " lí n g u a " , não estávamos substituindo a primeira por um "n ada" , mas por algo que ainda não era. Partir de 'u m "sabido" p ara um profundo e estranho vazio, um " n ã o sabido", ou' um " es q u ecid o".

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Aos poucos nos dep a r ávam os C0111 urn a realidade cr ue l d e nossa escolha: pesquisar bus cando o naval ou va sc u lhan do 111Uito antigo. signific a ter diante de si uma longa e p rofunda escu ridão . A sensação de va zio vinha de termos de retirar algo para podermos ter o espaço limpo para criar o novo, ou reencontrar o antigo. Re ti r áv arnos, ruas não co lo cávamos, ain d a. nad a no lug ar. O 1l10111ento er a de li mp eza. Unta esp éc ie de p re pa ração d o ca n1p ol con co rn it a n tement e com o co n tato co rn urn a outra e s trut ura ele p e ns arn en t o.

Lutando contra a cult ura

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Ainda no início d este trabalho. deparamos-nos com confronto entre ~ " cu ltura ant ig a..trazida de outras experiências profissionais e de "ú m a formação teatral tradi cional, e uma nova cultura profis siorial, ainda não sabida nem corihecid a, .m a s COD1 no vos par âmetros, novos conceitos e sobretudo nova prática. O que um ator faria norrnalmente se se visse em uma situação como a acima descrita de " lim p a r sem ter de imediato com o que repor? Primeiramente, há de se considerar que ele dificilmente 'se encontraria em tal situação. pois .a formação tradicional não ensina o ator a se confrontar com suas dificuldades, mas a encontrar soluções "r áp id as e criativas". Um ator~. em tal situação, "normalmente" buscaria preencher esse vazio comalgo. A sensação de vazio é em si muito. dolorosa; ela se confunde coma de "incompetência": expõe o ator a suas fragilidades e à .incapacidade de encontrar rapidamente urna solução satisfatória para esta n o va situ ação. Não encontrar uma IIsoluçãolt para esse "v az io" é assinar um atestado de "inc e mpetência". (No início de minhas experiências no Brasil, cheguei a trabalhar com sete atores . Não resis tiram. A p roposta não lhes trazia aplausos, n em recon hecimento; riem sequer em sala de trabalho conseguiam realizar ou acariciar seus egos. Dos sete ficou um.) Um atar que porventura se encontrasse diante de tal situação improvisaria algo sobre alguma emoção já conhecida. Evidentemente, aqui temos alguns problemas sérios: a improvisação e as emoções. /I

O qu e é uma emoção? A palavra vern d o fr an cês ém ot ion, q ue por su a vez é formada p el o model o de m oiion, d o Iatirn mot io-õnis (Etimo lógico Nov a Fronteira), e significa ato d e mo ve r" (Au rélio). Com o v em os, o p rópri o termo indica algo intrinsecamente din âmi co, em movimento. algo que está em moção, em mutação. e é portanto m utá vel (con d ição p ara qu e seja emoçiioy. N ão podemos fix á-Ia, lTIaS simplesmente senti-la. Se a emoção é algo que est á em movimento dentro de nós, n ão podemos conduzi-la segundo nossa vontade. In as simplesmente senti-la. deixá-la fluir, circular. movimen tar-se . Corno disse Cro towsk i ern San to Arc ârigelo, as emo ções são independentes da vo n tade" (Croro wski. 198 8). Le m b reD10S que Stanislavski, n o final de sua vida, nega que os estados emocionais" d o ator em: ce na se jaD1 import antes m e to d o log icamen te para sua arte: lil En10ti on al stat es. VVh at is th a t? I ne ver hearcl o f it" (Tc p or kov . s .d, p . 157 )1 respond eu ironi camente a u m ato r. E le re força a impo rt ân ci a da s a ções físi cas e n ão das e rn o çôe s qu an d o di z: II

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N ão pe n se n o pe l." :3 0nag eITl n a. e xp er iên cia. emo ciona l Vo cê s ó tem uma série d e epis ódios; l

ca d a um diferente d o o u tr o [...]. Des envolva sobret ud o o esqu 21Tlet de se u. co rn por tarnento

Luís

O TÁ VIO BURN IEE

físico em cada episódio e una-os mais tarde em uma linha simples de ação. Este é o caminho infalível para conseguir a corporificação do Pushkin de GogoI (Toporkov, s.d, p . 126).

o mito das emoções, da "mem ória emotiva" como método para o trabalho do atar, ~.

é, portanto, duvidoso. O'própri o Stanislavski, corno vimos, reconhece as fragilidades deste " ~euenfoque dos inícios de sua busca. Não que as emoções não existam ou não devam existir. Devem. Mas, para que.possam de [aio existir, devemos deixá-las sé movimentarem livrernente. Não podemos "fixar" o que por natureza tem a mutação como condição de existenda. Não seria e-moção, mas algo como "in-stagnatum"), .. A emoção' é algo em mutação, ·em movimento dentro de nós, portanto, fixá-la, predeterminá-la, dizer "em tal passagem do texto devo ', sentir' tal emoção" não é·'artificio, é. antinatural, é ircontra a natureza da própria emoção. É certo que:a arte é feita pelo homem e, po~tanto, ariific.i.{ll~ .ma~ en.~~,?n~.? . nos ocupemos das emoções, vamos deixá-Ias livres, que circulem à vontade para que sejam apenas sentidas, como fazia Decroux, que não se ocupava de emoções, mas de arte. Elas .são pór demasiado subjetivàs e mutáveis para embasarmos nossa arte sobre elas. Seria corno .t en t ar construir um edifício sobre um terreno de areia movediça.

A arte, vale lembrar, é do domínio 'd o fazer e pede um manuseio de instrumentos objetivos, materiaisyoper átivos. Lembremos mais uma vez Stanislavski: "Não podemos lembrar os sentimentos e -fixá-los. N~s só podemos lembrar a linha das ~ções físicas" (Toporkov, s.d., p. 173). Assim, as bases de nosso edifício não podem ser as emoções ou os sentimentos. Há de se construir parâmetros objetivos, corporeidades, e assim permitir que as emoções se movam provocando sensações musculares que serão então sentidas e vividas pelo ator. Agindo dessa forma, podemos entrar erncontato com universos muito. além do . das emoções, com a "memória muscular" (Stanislavski, 1980, P: 3?1), o "corpo-mernória" (Crotowski, 1969), ou a "corporeidade antiga" '(Grotowski, 1988) 'n o sentido dê. passada, do passado longínquo: Não devemos, n? meu entender, sequer definir as emoções, .sob o risco de "matá-las". D~veri1os encontrar parâmetros técnicos objetivos para que o ator possa se abandonar às estranhas e misteriosas sensações provocadas por algo que se movenele, : '" que é acordado, dinamizado.s: o remete a -imagens muitas vezes longínquas e .cru éis . T alv ez . assim atores e espectadores vivam realmente algo de significativo e sintam realmente emoções e não algo forjado, 'p r ov ,?cad o, que · d~· e~~ç. ã o só gu~rdao norn~·.· . ·· · ," ,

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Stanislavski entendeu isso no final de sua vida e passou então a i~sistir sobre o método das ações fisicascomo instrumento objetivo e operativo com o qual se poderia de fato 'con str u ir as bases da arte ·d e ator. A outra questão cultural que vem da formação clássica e tradicional dos atores ocidentais é a improvisação: Do latim improuisu, é literalmente a ação do improviso. No teatro ocidental, ela. é muitas vezes fonte .d e c~iação. Para criar, o ator improvisa. Mas "criação" e '''im p r ov is a çã o '' são muito diferentes. Exemplo: eu improviso a ordem das palavras à medida que as escrevo. Mas não existe nesse caso a criação de palavras, deum vocabulário. Evidentemente pode ocorrer de eu inventar palavras novas, inusitadas, no momento em que escrevo. Isso faz parte, é a exceção que confirma a regra. Mas, quando improviso a ordem das palavras, não as estou criando.

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A r~TE DE AlOR: D r;' TÉC Nl C A À EEF'RE5EN TA ÇÃO

A imp rovisaç ão tal CO TIlO é trab alhada cornumentc pelos ate r es o ci dentais é "livre", desprovida de regras restritivas: ela busca a realização do indivídu o, a livre e plena expressão de sua pessoa, a criação de cenas, de personagens. Ela trabalha COll1 a noção de jogo, de brincadeira. C? grande problema é que esses conceitos são executados de urna tal maneira qu e não buscam um conta to real mais profundo com energias potenc iai s d o ator, mas o simples expurgo de desejos, de sensações, de pequenas" genialidades " . A improvisação, aqui, não aparece como uma busca de algo "esquecido", " d e s con h e cid o" , de fontes primitivas de energias, de se dinamizar energias potenciais, d e d ar fo rm a à vid a, mas corno um alívio de tensões, a exibição do conhecido, da inteligênci a, d a " cria ti v idad e"; a busc a do revestimento, da máscara que melhor esconde, qu e m cl hor dis f ar ça , que melhor camufla . Se pensarmos ria commedia dell'urte, um teatro de improvisação, temos atores com "partituras" corpóreas, suas ações físicas eram extremamente codificadas . El es não improvisavam as ações dos personagens, mas a eeqiiência dessas ações. As ações de U.1n Arlequim eram muito diferentes das de um Pantaleão. O ator que representava o Arlequim, por exemplo, não improvisava o .Ariequim. mas com o Arlequim. A improvisação, nesse caso, era a mistura dos códigos e não sua criação, tal qual fazernos .corn nossa língua natural. Não inventamos nem criamos palavras novas a cada instante, mas improui. . . sarnas seqüências. Crotowski diz que uma improvisação só pode existir rio .interiorde um~ estrutura definida, como no jazz (Richards, 1993, pp. 30-34). "

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Para Carlos, todo esse universo era novo. Mas ele teve a coragem deenfrentá-lo e a disponibilid ade e generosidade ' de realmente buscar, abandonar-se à 'd ifí cil busca à qual nos havíamos proposto. Carlos não improvisou, nem tentou me mostra r sua "cornpetência" em " v iv er emoções" . Lembro-me que ele repetidas vezes me dizia: "não sei o que fazer. Devo improvisar?" E eu lhe dizia que não, que deixasse acontecer, que deixasse seu corpo" guiar as ações, que não pensasse/ não premeditasse, simplesmente cedesse ao louco e delirante universo das sensações físicas e' musculares, permitindo que seu corpo desse forma às suas energias. "Não improvise. Faça! Deixe as emoções fluírem, n ão as p r ovoque· n em as fr eie, não se ocupe delas . Simplesmente v ivencie e sin ta . Permita-se penetrar n es te desconhecido ."

A hiper-tensão/ * O fio de Ariadne N ão su bs_ti tu ir o espa ço vazi o por esqu ema s an tigos, conhecidos'. Bus ca r o que ê da pessoa . T r asp ass a r os es tereótipos e ir além . Não negar o d es erto , atr avess á-lo, per passálo , encontran d o a vi da do ou tro lado . Não s e iludir co m es miragen« qu e a s ec u ra e a s ede pr ovoc anl , fru to d o d esejo ardente d e en contrar algo, um caminho, u rna v e re da qu e seja. A s m i ragens s ão p erigosas, en g anos a s .

A pes ar ele a palav ra ser g r a fa da n o rm al ment e sem hí fen . m ante ve -Se aqui (J s inal p ar a técnica d.a doença d e m esmo n o m e.' d is tin ção pre tend id a p e lo a u tor . (N , do [. ).

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et ifE: r0nci ~H e s ta

Luis

OTÁVIO BURNIER

Palavras poéticas e fáceis/ tarefadiftcíl

o importante nesta situação é estar atento e saber ouvir. Às vezes, a luz pode estar em um detalhe que, de tão pequeno, escapa nos despercebido -; Q~alquer feixe de luz deve . ser seguido e, se for falso, ilusão, voltamos ao ponto de partida. E isto deve ser feito repetidas vezes até se encontrar algo significativo, um lume que guie, um "fio de Ariadne". Assim caminhamos até surgir a "hiper-tensão". Antes de tentarmos entender o qu~ se esconde por trás desse termo, vejamos a primeira anotação que fiz em meu caderno no dia em que conversei com Carlos após uma longa sessão de trabalho:

3!! feira - De um comentário sobre a tensão (crispação) muscular do Simioni durante as representações e construção do personagem; coloquei a seguinte questão: "não será esta crispação devida a uma insegurança e falta de domínio das imagens emitidas pelo corpo?"

Segundo este raciocínio, ele crispa (hipertensiona) o corpo como meio para preencher o espaço vazio criado pela falta de domínio e controle das imagens que seu corpo emite, .0

que lhe causaria insegurança (Caderno de notas, 1985).

A partir disso começamos a trabalhar sobre as tensões do corpo, a múltipla variação dessas tensões, que podiam ir desde o extremamente tenso até o sutil e delicado. Como o. ponto de partida deste estudo fo_i a hiper-tensão.dernos este nome ao treino. Começamos por tentar entender, na prática, o conteúdo dessas tensões fortes vividas por Carlos: Ele terisionava ao máximo quelhe era possível cada um de seus músculos, tentando percorrer todo o corpo. Não era uma. "crispação", ou ' seja, uma .fo r.te tensão bloqueada, mas urna forte tensão que "fasseava" p~lo corpo, pelas musculatu.~as. Portanto, a hi:per-tensão era um trabalho em movimento constante. Criamos uma espécie de treinamento energético com a hiper-tensão: Carlos tensionava ao máximo, . exaustivament~, não ~e rendia à facilidade e explorava este universo por longuíssimos -p erfodosde tempo. Na exaustão ele tinha a sensação de haver "limpado" seu corpo: nC?vas energias surgiam, trazendo variações de tensão; sua pessoa ficava mais transpare!lte, vulnerável. Nessa nova situação surgiram novos elementos. A distância corpo-:-pessoa era cada vez mais diminuta .. A presença do físico, do corpo, provocada pela hiper-tensão, era indubitável e inevitável. Os impulsos mentais eram imediatamente corporificados; os impulsos físicos ecoavam imediatamente na pessoa. Eradifícil discernir o que vinha de onde. Aliás, não nos int~ressc:vaesse tipo de entendimento. O que nos importava era justamente a plenitude no fazer decorrente da conexão, docoritato entre o corpo e a pessoa. Não nos interessavam as .possíveis interpretações, leituras psicológicas', soci~is ou culturais, mas simplesmente a fluidez orgânica entre a pessoa, seu corpo 'e 6 fazer artístico . Quando Carlos .tentava "entender" o que estava fazendo, eu o impedia e assegurava, assim, a "proteção" do material que resultava desse fazer de qualquer interpretação. Era importante que ele encontrasse a liberdade de criar. A liberdade real de uma cria-o o ção, que" conversasse" com seu ser, que o deixasse emanar/ sem vergonhas ou pudores.

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Algu ru as r egras fo ra ln na t Li ral men te se deline and o:

1) Nã.o pensar

COIU

a razão; fa z er corn o corpo.

2 ) Nunca interpretar"o qu e se está fa ze n do, s entin d o, v ivencian d o. Não associar o que se viv encia no treinamento a p r oblemas ou dificuld a d es p essoais de ordens diversas, emotivas ou psíquicas. Não tentar entender p roblemas pessoais por IDéia do trabalho. Estamos fazendo arte, não ter ap ia. 3) Ter sempre presente que es tamos fa zendo teatro . P ortanto, o que se vivencia COIU o corpo deve ser projetado, ampliado, dilatado. Deve-se dar, grande e generosanlente. 4) Jamais parar o trabalho quando invadido por emo ções fortes. Sempre jogá-las no próprio trabalho, projetando-as com o corpo.

Essas regras foram fundamentais. Na época, elas surgiram do próprio trabalho. À medida que avançávamos, eu ia entendendo a importância de delimitar o "campo de nossa cultura" para protegê-la. O que se configurava corno "não-cultura", corno algo que não colaborava para a criação artística! e se apresentava corno ruído era colocado à margem do trabalho. Hoje! a primeira regra IDe remete a Stanislavski:

.Quando o ato r está relutante em mostrar seu desejo, quando, ao inv és, ele hesita em criar e começa a p ensar m u i to. el e é com o um ca valo que b a te a p a ta n o m esmo lug a r por lh e faltar forças para puxar sua carga . Para atuar sem inibição, o ator.não deve m~rcçú.· passo, mas se empolgar corn a.ação. Se quer atu ar, tem que atuar cor poreamente. Ação vemdo desejo [lh e unll], da intuição; discussão vem da mente, da cab e ça . O propósito do meu sistema é abrir os caminhos da cr ia tivi d a d e ela nature za orgânica do atar, especialmente n a q ueles moment os n os q u ai s nada ac o n t ece dir eito (To porkov, s .d., p . 159) .

A terceira reg r a m.e lembra Decroux: 1/0 grand ioso é fiei camente grande. Se nU111a obra de arte a gran d eza (grandeLlr) física não é causa da grandeza moral, ela é condição. O grande não é serDpre grandioso, 111as o grand ioso é selllpre grand e. " (De croux, 196 3~ p. 89). Afas t ar qual qu er leitura, t r a ~lu ç ã o , inter p r et a ção d o que se estava faze ndo e arnp liar p ara m ostr ar ao s esp e ct adores! o dar grande e generoso , foi fund amental n o a n el a m ento deste trabalho . Hoj e, Carlos ressalta su a sensação fís ica d o " ra sgar" d o co r pol o dil acer ar d as contra diçõ es m u s culares de movimentos opos tos. o peso ele seu corp o nos pés e a fo r ça do s p és p ar a n ão p erd er o eq u iJíb rio. Estes co mentá rios rernetem n o varrien te a D ec ro u x:

o mim ice é o a to r dil atad o .

(\ JD . (16 ). .

·-Lu ís .aTÁ VI a

B U KNI EH.

É n o d esconfor to que o mímico está no conforto (p . 73).

Sem expor aq ui todos os mandamentos de nossa estética, eu posso d izer qUE' quase s empre a obedi ên cia a estes últimos requer a faculdade d e se manter.em equilíbrio instável (Decroux, 1963/ p . ] 68).

o

"buraco negro"

Embora a hiper-tensão, como o d esabrochar de uma planta selvagem, começasse a ocupar o espaço que havíamos tão ardorosamente "limpado", a sensação do vazio permanecia . Não o vazio de o que ou como fazer, que começávamos a encontrar, mas o do pensamento. Eu persistia numa premissa: que não fosse ele, Carlos, quem conduziss e o movimento.mas o movimento que conduzisse a si mesmo : Lembrava-rriede urna estranha colocação de Decroux durante uma sessão de improvisação: ele nos pediu que trabalhássemos o movimento como uma "ereção muscular"; não se devi a pensar, mas deixar os músculos cantarem, e esta melodia, corno a ereção, chegava e desaparecia sem que pudéssemos saber como riem por quê ... Na saída da aula, ' naquele dia, Decroux me chamou à parte e me disse: "Tu sais rnon petit, j' ai l'impression qu'il y en a, là, du fondement dans notre art ... " Carlos usava uma imagem para esse vazio da mente: um buraco negro:

A H iper-tens ão acentuava a minha presenç_a física do corpo, o estar ali 1?resente e habitando aquele corpo .d irigia minhas energias e atenção para ele. Isto fez com que o universo mental; in telectu al, as imagens, ficassem num segundo plano, O fato de elihão ter que me preocupar como que fazer, qual deveria ser a próxima ação, o fato de eu não ter que fazer algo, mas simplesmente me abandonar à~ estranhas sensações daquelas tensões musculares, me permitiu não pensar e deleitar-me, abandonar-me às

sens~ções

do corpo,

físicas e rn.usculares pela primeira vez em 25 anos . .. 'N ãopartir de improvisações com imagens preestabelecidas.com emoçõe~j~ v ívenciadas, recordaçõ~s emotivas, também foi importante.tA Hiper-tensão. permitiu preencher o

"vazio" _pessoa .

co~

a

algo diferente, possibilitou adentrar em níveis mais profundos de minha

"negro" abriu espaço para um contato com energias mais profundas . Do :

contrário eu estariaprotegido por u!TI véu de experiências já vivid as, coisas coÍ1heci_d~~ e sabidas, e sobre este universo consciente, faria improvisações como se fosse, ou sentisse, - .. .. .._. ~

.

tais co isas. Seria trabalhar sobre emoções que não estariam ali de fato . O "se mágico" (se eu fos se fu l an o.,s e eu vivesse tal coisa), permit~.,ao indivíduo ser o que ele não é na vida, mas is to para um ator é uma grande máscara. Ele acaba por se proteger de si mesmo; não

é

.p recisa entr ar em contare consigo, p ois não é ele quem está agindo assim: oque ele seria ' se ele fos s e fu la n o ou beltrano . ..

a trab alho que fiz emos, a Hip er-tensão e este "buraco negro", me permitiu pela primeira ve z trab alhar com o que eu era e estava sendo e sentindo naquele momento preciso (Carlos Simioni, Cad erno de notas, 1994).

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